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O MST E A LUTA PELA TERRA: uma luta para além das reformas

Zaira Sabry Azar
Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Brasil

O MST E A LUTA PELA TERRA: uma luta para além das reformas

Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1195-1212, 2018

Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 05 Abril 2018

Aprovação: 09 Maio 2018

Resumo: O texto trata sobre a dimensão revolucionária do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a partir da luta pela terra. Recupera a luta pela reforma agrária no Brasil, apontando como marco o contexto pós guerra, cuja diversidade conceitual passa a nortear as lutas no país. As concepções acerca da questão distinguem-se teórica, econômica e politicamente, apontando a dicotomia dos projetos societários. Apresenta aspectos da proposta de luta pela terra feita pelo MST que superam a ideia da luta em si, apresentando-a articulada de forma intrínseca a lutas especificas, destacando a educação, formação e os direitos humanos. Conclui que apesar da complexidade que envolve os processos das lutas sociais, em particular no campo, considerando aí, as contradições e limites, o MST é referenciado pela contribuição para a organização da classe trabalhadora brasileira e mesmo internacional. Palavras–chave: Reforma agrária, luta pela terra, MST THE MST AND THE FIGHT FOR THE EARTH: a struggle beyond reforms

Palavras-chave: Reforma agrária, luta pela terra, MST.

Abstract: The text is about the revolutionary dimension of the Landless workers movement (MST), from the struggle for land. Retrieves the struggle for agrarian reform in Brazil, pointing as the post-war context, whose conceptual diversity going on to guide the fights in the country. The conceptions about the issue are distinguished from theoretical, economic and politically, pointing the dichotomy of corporate projects. Presents aspects of the proposal of struggle for land made by the MST to outweigh the fight itself, presenting the articulated intrinsically specific fighting, emphasizing education, training and human rights. Concludes that despite the complexity that involves the processes of social struggles, particularly in the field, whereas there, contradictions and limitations, the MST is referenced by the contribution to the Organization of the brazilian working class and even international.

Keywords: Agrarian reform, battle for land, MST.

1 INTRODUÇÃO

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, é reconhecido nacional e internacionalmente por sua trajetória de luta pela terra no Brasil. Porém, seu reconhecimento não se limita a esta frente de luta específica, pois em sua trajetória construiu uma concepção de luta pela terra articulada, de forma vital, com outras lutas, como a luta pela educação, soberania alimentar, cultura, produção. Acrescenta-se a este elemento, a particularidade do Movimento questionar e construir conceitos referentes aos aspectos que compõem sua luta. Isto significa que a luta pela terra feita pelo MST assume caráter para além das políticas que caracterizam a reforma agrária de modo geral.

Enquanto organização da classe trabalhadora do campo, o MST considera-se herdeiro das lutas populares, recuperando aspectos importantes de marcos como Contestado, Canudos e Ligas Camponesas, mas também se articula com as organizações sociais camponesas e urbanas que referenciam as lutas atuais. Internacionalmente, compõe espaços e instâncias políticos importantes na América Latina e nos outros continentes, com papel destacado na Via Campesina, que busca congregar as lutas camponesas no mundo.

Em sua trajetória, o MST passa por diferentes fases, criando uma dinâmica política fundamentada na dimensão histórica dos processos, o que resulta em uma ação/práxis refletida, contextualizada, analisada. Por entender a sociedade como construção social, constrói e reconstrói conceitos, estratégias e ações, porém tendo a clareza teórica das determinações desta sociedade, formada antagonicamente por classes em constante disputa na construção de projetos societários.

Com esta clareza política, desencadeia sua luta, nas particularidades do campo, compondo a totalidade das lutas sociais mediadas por conflitos, interesses, contradições e complexidades. Entende-se como sujeito político cultural situado em um determinado tempo histórico, resultante de uma formação social, econômica e política particular e, com esta condição aprende com o passado para refletir criticamente sobre o presente e propor a construção do futuro, ideologicamente pensado no sentido da emancipação humana.

Assume compromisso de classe a partir de uma luta e, enquanto classe, a compreende para além da classe trabalhadora do campo ou mesmo do país, defendendo a articulação internacional da classe trabalhadora.

Este texto encontra-se organizado em dois itens, além desta introdução e das considerações. No primeiro, é feita uma recuperação da constituição da luta pela reforma agrária a partir das várias lutas pela terra que aconteciam de forma isolada nas várias regiões do país. O segundo item destaca a educação, a formação e os direitos humanos como lutas específicas e articuladas à luta pela terra feita pelo MST, dando a esta conotação revolucionária na medida em que não encerra em si a luta.

Em termos de considerações, é apontada a complexidade e as contradições do processo das lutas sociais no Brasil, destacando o difícil contexto da luta no campo, no qual o MST apresenta importante contribuição à organização para além da dimensão sindical que lhe é própria, alcançando de forma contundente a classe trabalhadora como um todo.

2 A REFORMA AGRÁRIA NA LUTA PELA TERRA NO BRASIL: indicações históricas

A luta pela terra constitui a mais antiga luta dos homens desde que foi instituída a prioridade privada da terra. No Brasil, por ocasião do processo de ocupação e exploração no período colonial, a terra, apesar de central para a formação econômica da colônia, não provocava conflitos de forma direta, pois que constituía direito da Coroa, que possuía a prerrogativa de dispor a quem lhe conviesse. Para a geração da riqueza a dominação acontecia a partir do trabalho escravo. O negro traficado da África constituía, naquele momento, o grande investimento dos senhores, pois era esta força de trabalho que garantia a produção comercial da época, sendo, portanto, a base do confronto e da luta de então contra a escravidão e pela liberdade dos escravizados e não existiam questões de terra entre os contrários, mas apenas entre os próprios senhores em querelas e disputas de poder.

A regulamentação da posse e da propriedade das terras só aconteceu com a Lei de Terras, em 1850, porém, o ponto mais importante abordado nesta foi a proibição do acesso às terras devolutas à exceção da forma de compra. À conveniência da Lei encontravam-se

[...] os interesses combinados de fazendeiros e comerciantes, instituindo as garantias legais e judiciais de continuidade da exploração da força de trabalho, mesmo que o cativeiro entrasse em colapso. Na iminência de transformações do regime escravista, que poderiam comprometer a sujeição do trabalhador, criavam as condições que garantissem, ao menos, a sujeição do trabalho [...] (MARTINS, 2013, p. 50).

A preocupação se centrava na garantia da exploração da força de trabalho, caso a abolição se concretizasse. A Lei estabelecia novas formas de apropriação da terra, mas asseverando sua não acessibilidade aos trabalhadores, e de forma específica aos escravizados. Os senhores da terra sabiam a intencionalidade negra com a terra, e alforria só lhe proporcionaria a oportunidade de materializar o desejo da liberdade na terra. Tanto assim, que muitas negras e negros alforriados, imediatamente partiram para terras construindo os quilombos, construindo as relações próprias do trabalho campo, fortalecendo a cultura negra, que tanto tem a ver com a relação das populações com a terra. Ou seja, como os senhores sabiam que a população escravizada, que sabia e trabalhava na terra, não precisava dos senhores, precisavam de estratégias de controle sobre os cativos, para poderem continuar tendo controle da força de trabalho.

A luta feita diretamente pela terra só vai se estabelecer pós-abolição, quando se constitui efetivamente o campesinato brasileiro. O confronto dá-se entre os sujeitos camponeses e fazendeiros porque com

O fim do trabalho escravo, a revelação de um novo instrumento de dominação, revelou também a contradição que separava os exploradores dos explorados. Sendo a terra a mediação desse antagonismo, em torno dela passa a girar o confronto e o conflito de fazendeiros e camponeses. (MARTINS, 1981, p. 62).

A terra passou a ser elemento de valor quando “[...] passou a fazer parte da fazenda, passou a ser a parcela principal da fazenda, o que antes cabia ao escravo.” (MARTINS, 1981, p. 62). Mas, se até a década de 1940 as manifestações camponesas de maior expressão assumiam caráter messiânico e de cangaço, a partir da década seguinte, as ligas e os sindicatos passam a constituir as maiores referências de organização e luta política no campo. Entre as duas décadas explodem conflitos agrários nas mais diversas partes do país, demarcando o potencial e capacidade organizativa dos camponeses, porém a luta ainda não focava a reforma agrária, em torno do que não havia um movimento social expressivo porque “[...] apesar de serem recorrentes os conflitos por terra em diversos pontos do país, eles não expressavam por meio da linguagem da reforma agrária” (MEDEIROS, 2003, p. 14).

Vemos aí, os elementos da luta pela reforma agrária, mas ainda não em sua forma materializada na luta. O problema da estrutura fundiária concentrada era real, histórico, marcante, assim como eram reais os conflitos e confrontos em torno e por consequência dela, mas as famílias camponesas, as organizações camponesas não visualizavam para além disso, isto porque, em parte, os camponeses não se compreendiam como sujeitos de direito. O campo ainda não constitui, sob o ponto de vista sociológico, espaço de direitos, o que obviamente, faz dos camponeses e camponeses sujeitos sem direito. Tanto assim, que até hoje, muitas famílias saem do campo para serem cidadãos de direito, e para isso buscam a escola, a saúde e o trabalho na cidade.

Em geral, o crescimento desordenado das cidades encontra-se articulado ao processo migratório resultante da expulsão das famílias camponesas, seja pela expropriação dos meios e condições de vida no campo, seja pela falta ou fragilidade das políticas públicas que são ali oferecidas. De uma maneira ou de outra as famílias expulsas procuram, em regra, melhores condições de vida nos centros urbanos, o que quase sempre não acontece.

Importante contribuição para juntar a luta dos posseiros, arrendatários e foreiros que acontecia nas diversas regiões do pais, foi dada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), considerado a “[...] principal mediação das lutas que então se desenrolavam.” (MEDEIROS, 2003, p. 15). Estavam consolidadas no campo, as relações baseadas na exploração da força de trabalho camponesa pelo latifundiário, caracterizada pela expropriação da terra e rígidas regras no que se refere ao uso da terra, com pagamento de foro e renda, assim como com controle de venda de produtos dos camponeses.

Em termos de direitos, apenas o fazendeiro, afinal, como proprietário tinha o poder de agir de forma absoluta sobre suas terras, lhe sendo garantido o direto à propriedade privada. Por conta disso, em seu reduto privado, age à revelia de qualquer outro interesse. Com esta concepção, os famosos coronéis foram se configurando com o poder absoluto na região Nordeste. A ele o poder inconteste de mando, de ordenação, de definição de papéis e responsabilidades nas terras sob seu domínio. Com controle quase absoluto, castigava os rebeldes com intensa violência exercida por seus capangas.

Os latifundiários, como força política conservadora de grande influência, não admitiam as inovações impostas pelas legislações trabalhista, previdenciária e sindical aos trabalhadores do campo, impondo-lhes a condição de classe inferior frente ao trabalhador urbano. Como consequência, o campo continuou e continua como lugar de negligência proposital do Estado e das políticas públicas em geral. O poder exercido pelos latifundiários referenciava-se no controle da terra e, como já dito, como grandes proprietários mantinham poderes como que absolutos no campo, seja político, econômico, social e cultural.

A reforma agrária, como demanda das diversas forças sociais do campo “[...] transformou-se na tradução política das lutas por terra que se desenvolviam em diversos pontos do país.” (MEDEIROS, 2003, p. 14), tornando intrínseca a reforma agrária à luta pela terra, porém com concepções que variavam de acordo com influências de grupos e intelectuais da época. Em síntese, Medeiros (2003) aponta quatro importantes concepções que nortearam a luta pela reforma agrária a partir da década de 1950.

A primeira, defendida pelo PCB, que entendia sua necessidade orientada pelas diretrizes da Internacional Socialista, cuja base era o “[...] o campo brasileiro era fortemente marcado pela existência de restos feudais que dificultavam o livre desenvolvimento das forças produtivas” (MEDEIROS, 2003, p. 15-16), o que exigia o combate ao latifúndio, condição para a constituição do mercado consumidor então em pauta na economia política nacional. Nesta perspectiva, a reforma agrária constituía, basicamente, na “[...] divisão das grandes propriedades entre os que nelas quisessem trabalhar e a consequente extinção dos latifúndios.” (MEDEIROS, 2003, p. 16). Ou seja, a partir desta concepção, a luta pela reforma agrária se resumia na luta pela terra. Era a terra pela terra, não lhe sendo agregada qualquer perspectiva outra, que não a da liberdade de agir do capitalismo, afinal, o latifúndio constituía sinônimo de atraso.

Outra importante influência, que orientou as Ligas Camponesas, foi Francisco Julião, cuja concepção era de que para quebrar o poder do latifúndio era necessário tornar o campesinato reconhecido no âmbito da luta politica nacional, o que consistiria o primeiro passo para a revolução socialista no Brasil (STÉDILE; FERNANDES, 1999), rompendo assim, com a ideia etapista da revolução, adotada pelo PCB. Entenda-se aí, o avanço no sentido da continuidade do processo, pois fica evidenciado que haverá desdobramentos a partir da conquista da terra, mas com o protagonismo das famílias camponesas rumo ao socialismo.

Mas, a igreja, contrapondo-se às ideologias estranhas representadas pelas ideias comunistas passa a encampar a luta pela reforma agrária, na perspectiva de “[...] apoiar o acesso à terra e a recomendar políticas voltadas para a formação de uma classe média rural. Defendia o direito instituído de propriedade, mas reconhecia a necessidade de uma reforma agrária que fosse feita por meio de desapropriações com justa indenização.1” (STÉDILE, 2005, p. 65). Assim, se empenha em estimular a organização dos camponeses em sindicatos e à luta por direitos.

Em termos de macroeconomia política, com o debate do enfrentamento ao subdesenvolvimento ou industrialização nacional no pós guerra, “[...] a agricultura com base em grandes propriedades e baixo nível de incorporação de tecnologia era considerada um obstáculo ao desenvolvimento.” (MEDEIROS, 2003, p. 18), para o que a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) propunha a alteração com a modernização do setor, inclusive com a elevação do padrão consumidor das populações camponesas. Tal ideia respondia à proposta de reforma agrária burguesa feita pelo governo de John Kennedy para desenvolver o mercado na América Latina e evitar revoluções como acontecido em Cuba.

A luta organizada e sistematizada em torno da reforma agrária teve importantes organizações como as Ligas, aqui já apontadas, a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTABs) e o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), indicando no lema Reforma Agrária na lei ou na marra! a intencionalidade da radicalização da luta. Com isso, nada de estranho no fato de a proposta de reforma agrária constituir motivo da deposição do governo João Goulart, em 1964.

João Goulart (1961-1964), vice-presidente do então presidente Jânio Quadros, por ocasião de sua renúncia em 1961, em famoso discurso proferido em comício para cerca de trezentos mil trabalhadores na Estação de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1963, prometeu reformas que alterariam as estruturas econômica, social e política, com o intuito de superar o imperioso subdesenvolvimento que caracterizava o Brasil, mas que também diminuíssem as desigualdades sociais. Cunhadas de reformas de base, tinham em sua composição as reformas educacional, fiscal, eleitoral urbana, bancária e, obviamente, agrária.

Assim, tendo o país uma burguesia apátrida, tais pretensões feririam de morte seus interesses particulares, o que dizia respeito aos interesses nacionais. Portanto, articulada com interesses capitalistas exógenos, a burguesia engendrou, sob a batuta militar o golpe de 1964, afastando de forma irremediável o então presidente.

Com a ditadura militar instituída, foram desencadeadas campanhas estratégicas para dizimar todo e qualquer tipo de organização e luta no país. Como maior mecanismo foram adotadas a repressão e a violência, através da perseguição, prisão, tortura e assassinato. No campo, a repressão mostrou-se contundente com a investida dos militares em todos os recantos do país, alcançando comunidades nos limites do Rio Grande do Sul até as florestas da Amazônia. Tudo foi vasculhado, todos os militantes e lutadores (com raras exceções) foram identificados e presos. Os que não foram presos, foram viver na clandestinidade.

Mas, a luta não acabou apesar do grande arrefecimento. Tanto, que atualmente, os camponeses encontram-se organizados em várias organizações, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (FETRAF); assim como na Via Campesina, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), além do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Assim como todos os movimentos que lhe antecederam, a organização camponesa atual luta pela terra, sendo que os mecanismos e estratégias usados em cada momento histórico constituem processos para garantir a reprodução social camponês.

Foi na efervescência da luta pela redemocratização da política do país na década de 1980, contexto de reorganização das forças sociais perseguidas pelos governos militares pós-golpe e luta pela redemocratização brasileira, que surgiu o MST, especificamente como “[...] resultante de um processo histórico da formação do campesinato brasileiro, tendo sua gênese determinada por fatores econômicos e políticos.” (SILVA, 2011, p.47).

A afirmativa nos indica, então, a dimensão histórica da luta pela reforma agrária que vai embasar a luta desencadeada pelo MST, destacando, todavia, dois aspectos fundamentais: o econômico e o político. Em termos econômicos, a ideia passa pela democratização do capital, que tem como sentido, a acesso aos meios de produção socialmente acumulados e é justificado por haver “[...] uma enorme situação de concentração oligopólica de algumas empresas sobre o mercado agrícola, sobre as indústrias.” (STÉDILE; FERNANDES, 1999, p. 161). Para esta democratização, mister as condições de acesso a recursos financeiros pelos camponeses. Para o MST, isto significa a necessidade de que os camponeses

[...] tenham acesso a crédito subsidiado, para que possam não só desenvolver a produção agrícola, mas também consigam instalar suas próprias agroindústrias, seus mecanismos de acesso a mercado e a comercialização, enfim, que se democratize também a propriedade dos demais meios de produção e comercialização. (STÉDILE; FERNANDES, 1999, p. 161-162).

Politicamente, a reforma agrária assume outras dimensões na perspectiva de romper cercas, o que implica uma diversidade de espaços, conceitos, direitos e lutas. Nesse sentido, o MST constitui importante sujeito sociopolítico no enfrentamento tanto ao latifúndio quanto ao capital. Em primeiro plano, apresenta organização de caráter sindical, não limita sua atuação junto às famílias sem terras, sua base social. Sua compreensão de luta assume a perspectiva de classe, assim, busca articular-se tanto com os outros movimentos e organizações de luta pela terra, como com os movimentos e organizações urbanas.

A luta específica pela reforma agrária faz o Estado, enquanto sujeito mediador, responder às pressões criando uma política de assentamentos com perspectiva conservadora, posto que além de reduzido alcance não desconcentra a terra, não diminui as desigualdades e sequer impede a migração. (GIRARDI, 2008). As políticas de reforma agrária constituem uma contradição própria das relações entre as classes, uma vez que a alta concentração fundiária tem gerado, historicamente, situações de conflitos no campo que exigem uma resolução através das políticas assinaladas.

O aspecto político constitui, efetivamente, o caráter revolucionário da luta pela terra feita historicamente pelo MST. Ao longo de sua trajetória o Movimento foi construindo e reconstruindo conceitos, concepções, estratégias e táticas que imprimem à sua prática uma conotação para além da luta pela terra, contribuindo para que haja social, política e teoricamente outro olhar sobre o papel da luta camponesa na história.

3 A LUTA PARA ALÉM DA TERRA: estratégias revolucionárias do MST

O MST, como já dito, surge, enquanto movimento social, em meio à reorganização das forças políticas pela redemocratização do país. Compondo uma estratégia para congregar à luta de classes os trabalhadores do campo que por todo o país já empreendiam lutas contra o latifúndio e pela reforma agrária. Com isso se quer destacar não constituir apenas um movimento a mais, mas o MST passa a se caracterizar por alguns elementos que vão lhe dar conotação revolucionária, posto que compreende desde cedo a necessidade de atentar para questões centrais como o papel da história e, neste sentido, busca compreender as lutas históricas: sua importância, seus limites e equívocos. Com isso, tentar aprender com os erros da história.

Nessa perspectiva, inicialmente o MST abraça o que é chamado em seu programa agrário, os pressupostos de uma reforma agrária burguesa, avançando a proposição da luta pura e simples da terra, no sentido da compreensão de que articulada a ela, seria imprescindível a educação, a formação, a saúde, a produção, o trabalho, a cultura, enfim, a garantia dos direitos humanos e sociais, como uma responsabilidade do Estado. Neste sentido, a educação, por exemplo, passou a ser um aspecto da estratégia de ocupação adotada pelo Movimento, sendo a criação da escola uma das primeiras providências na formação de um acampamento, mas não só isso, pois aí, se institui, também, os grupos como o de saúde, segurança, cultura, educação, comunicação e produção, o que vai dar base para a organicidade interna do MST.

Como construção histórica, o MST foi entendendo a amplitude e complexidade de todos estes aspectos, como particularidades, mas imprescindíveis na luta. Central em tal questão é a percepção da totalidade dos sujeitos; a compreensão do camponês como sujeito político, portanto, responsável por si próprio, um sujeito capaz de definir seu destino, compondo como sujeito crítico e propositivo o curso da história.

A dimensão revolucionária do MST, tendo aí sua base, é materializada num primeiro momento, na sua forma de se organizar a partir de setores ou grupos de trabalho, onde, de forma interdisciplinar, faz o debate específico de sua área de atuação, o que é ampliado na transversalidade que caracteriza a operacionalização das atividades e ações. Com isso, é garantido que todos os assuntos sejam tema de todos os grupos e pessoas.

Outro elemento tão importante quanto são os princípios que norteiam a vida do MST, é a direção coletiva que, em termos de organicidade bem demonstra seu aspecto democrático. Tal princípio se materializa nas instâncias deliberativas, que tem como base as famílias acampadas e assentadas, que assumem o papel da reflexão, das decisões e encaminhamentos no que se refere às linhas políticas defendidas pelo Movimento. Os debates acontecem em espaços que vão desde a reunião de núcleos de famílias no próprio acampamento ou assentamento, reunindo cerca de dez, doze famílias para debater a dinâmica cotidiana, até o Congresso Nacional dos Sem Terra, que congrega as famílias sem terra de todas as regiões do país para tirar as linhas gerais que norteiam as ações estratégicas da organização, o que acontece de cinco em cinco anos.

No que se refere às particularidades das lutas empreendidas, aborda-se neste texto três frentes de ação para refletir, sendo elas: a educação, os direitos humanos e a formação. No que se refere aos direitos humanos, este setor foi criado compreendendo que é “[...] na satisfação das necessidades vitais de pessoa, então que se pode avaliar se os direitos humanos estão sendo efetivamente respeitados.” (ALFONSIN, 2012, p. 223), o que muito diz respeito à conjuntura nacional e internacional, considerando os marcantes desafios que a sociedade capitalista enfrenta em relação a estes direitos. Particularmente, no Brasil, a marca é da pobreza e miséria que resultam da histórica desigualdade, e que faz o país compor o ranking dos países mais desiguais do mundo, ainda que disponha de recursos de riqueza inigualáveis.

No campo, a afronta aos direitos humanos se manifesta de diversas formas, mas destaca-se a expropriação dos meios e condições de reprodução social das populações camponesas, dando-lhes lugar de pessoas de segunda classe. Ponto central: a atual e eterna estrutura fundiária concentrada, hoje homogeneizada por empresas do agronegócio, que determinam as relações sociais neste espaço, numa intensa disputa pelos territórios camponeses, incluídos aí, povos indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhos.

Como estratégia de disputa, o agronegócio apresenta a seu favor sua articulação com outros setores conservadores da política nacional. Além da mídia conservadora, em termos estatais, no Legislativo, a famosa e reconhecida Bancada BBB, Bancada do Boi, da Bíblia e da Bala se responsabiliza em barganhar a institucionalização dos interesses deste grupo; enquanto o Executivo, principalmente através das Policias Militares, cumpre importante papel contra as famílias camponesas, por exemplo, cumprindo mandados de despejos, prendendo, torturando e muitas vezes agindo como verdadeiros capangas de fazendeiros, inclusive fazendo sua segurança privada.

Importante lembrar que os mandados são expedidos pelo Judiciário, que tem assumido publicamente sua aliança com o ideário do agronegócio. Alia-se a este quando compõe a estratégia de criminalização da luta pela terra, decretando prisões de militantes e negligenciando processos contra latifundiários. Muitos são os exemplos publicizados que denunciam que “[...] acirrado processo de criminalização dos movimentos organizados e de trabalhadores vem se desenvolvendo no Brasil, com o objetivo de atemorizar e desmobilizar segmentos que lutam pela efetivação de direitos essenciais previstos na Constituição”. (AMORIM, 2017). Como uma das formas de enfrentamento, destaca-se a articulação nacional de advogados populares, mas particularmente, a construção de cursos na área do Direito, como uma estratégia em que camponeses conheçam as leis e possam intervir nesta seara, deixando de ser assessorados juridicamente, passam a interpretar e agir a partir das leis.

Na área da educação, muitos são os estudos que apontam as particularidades da Pedagogia do MST, que tem como base a Educação do Campo. Tal educação se configura como libertadora, pois

Ainda que a Educação do Campo se mantenha no estrito espaço da luta por políticas públicas, suas relações constitutivas a vinculam estruturalmente ao movimento das contradições do âmbito da QUESTÃO AGRÁRIA, de projetos de agricultura ou de produção do campo, de matriz tecnológica, de organização do trabalho no campo e na cidade... E as disputas se acirram ou se expõem ainda mais quando se adentra o debate de conteúdo da política, chegando ao terreno dos objetivos e da concepção de educação, de campo, de sociedade, de humanidade. (CALDART, 2012, p. 261).

Indiscutivelmente, a luta em torno da educação do campo possibilitou o acesso, nunca antes admitido, das populações do campo ao universo das universidades. Como resultado numérico, só através do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), de 1998 a 2001 foram realizados 320 cursos, atendendo 164.894 educandos, por meio de 82 instituições de ensino em 880 municípios, sendo 167 de EJA fundamental, 99 de nível médio e 54 de nível superior (BRASIL, 2016).

O inovador fica por conta, então, da concepção. É o camponês dizendo do seu saber, na condição de oprimido, numa pedagogia não para ele, mas dele. Uma educação libertadora, onde “[...] o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica.” (FIORI, 2003, p. 9). Com prática social, a educação concretiza-se em prática política no momento em que constitui luta para que as famílias camponesas acessem a educação, direito que historicamente lhes tem sido negado; resulta da reivindicação coletiva; nasce do real, do concreto, da necessidade da dinâmica desigual da sociedade; e em sua metodologia “[...] combina a luta pela educação com luta terra, pela Reforma Agrária, pelo direito ao trabalho, à cultura, à soberania alimentar, ao território.” (CALDART, 2012, p. 261), através de uma

[...] pedagogia enraizada na vida dessas subculturas, a partir delas e com elas, será um contínuo retomar reflexivo de seus próprios caminhos de liberação; não será simples reflexo, senão reflexiva criação e recriação; um ir adiante nesses caminhos: ‘método’, ‘prática de liberdade’, que, por ser tal, está intrinsecamente incapacitado para o exercício da dominação. A pedagogia do oprimido é, pois libertadora de ambos, do oprimido e do opressor. Hegelianamente diríamos: a verdade do opressor reside na consciência do oprimido. (FIORI, 2003, p. 9-10).

Destaque para o caráter de formação política que a educação assume nesta concepção, onde o oprimido, o explorado, tem como responsabilidade ontológica sua libertação, mas carrega consigo a liberdade de seu opressor.

Por fim, tratando especificamente da formação no MST, esse processo tem início já com o debate em torno da educação ainda na década de 1980. Esta relação passa pela compreensão de que a educação precisa ser prenhe de sentidos e de que constitui estrategicamente a disputa dos projetos societários. Em outras palavras, quando se trata de educação, é sempre importante se questionar qual educação, para que, para quem e como.

A formação política no MST se insere na clareza de que “[...] toda a organização deve ter e procurar formar seus militantes de acordo com os princípios políticos e filosóficos que estabelece. É por assim dizer toda organização precisa ter os seus intelectuais orgânicos.” (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 2005, p. 29). Para isso, construiu a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), sua mais importante referência na formação política de sua base. Referência esta que assume papel de articulação para além da formação organizativa da luta camponesa, pois que congrega uma diversidade de lutas e organizações de vários países, tanto da América Latina quanto de outros continentes. A ENFF adquiriu caráter de espaço ou mesmo da instância de internacionalização da luta da classe trabalhadora.

A ideia de instância faz sentido no momento em que essa Escola não cabe e nem se limita ao espaço físico em que se encontra, mas é, efetivamente, uma realização de fundamentos teóricos que orientam a educação e formação socialista, educação que prepara para a superação da ordem vigente, ou a ordem burguesa. Adota metodologias cujos princípios seguem teorias revolucionárias, que se materializam em ações articuladas entre as várias lutas internas e internacional, camponesas ou urbanas, de gênero ou geracional, políticas ou étnico-raciais. Como referência de luta, além da formação, se referencia com as ações diretas de solidariedade internacional, seja através de Brigadas Internacionalistas, que compõem lutas especificas como na colheita das oliveiras, na Palestina, seja na produção de arroz agroecológico na Venezuela ou realizando cursos de formação política nos países ou na própria Escola. Isto lhe confere o grande reconhecimento na formação política da classe trabalhadora.

4 CONCLUSÃO

A luta pela reforma agrária no Brasil tem como marco a necessidade de expansão do capital no pós-guerra em países até então agroexportadores. O MST resulta das lutas pela terra nos vários estados brasileiros. Adota princípios e valores que orientam uma prática revolucionária a partir da luta pela terra, justificada na concepção de lutas específicas como intrínsecas à luta mais geral, a exemplo da reforma agrária, objetivada como ampliação da luta pela terra, sendo que a mesma passa a não se justificar em si, mas como apenas um passo importante para, contraditoriamente, superar a ordem burguesa.

Nesse sentido, à guisa de conclusão, pode-se apontar que nesse processo, o MST apresenta contribuições importantes para a luta da classe trabalhadora, e particularmente para o campo.

Para o campo, de modo geral, mais do que as muitas conquistas materiais, como a terra, os programas e as políticas públicas, que mostram a capacidade e o poder organizativo dos camponeses, o MST contribui para um novo olhar sobre o campo e sobre suas populações, inclusive o olhar do próprio camponês sobre si mesmo, construindo uma identidade não mais subjugada à tirania do latifúndio. Identidade esta que passa pela ideia de resistência e luta; são agora os povos da terra, das águas e das florestas.

Em termos da classe trabalhadora, elencam-se três elementos importantes. O primeiro, expresso pela articulação feita entre o campo e a cidade, evidenciando a lição histórica desta emergência. O segundo, quando assume lutas específicas, não só como articuladas à luta pela terra, mas como intrínsecas a ela, como é o caso da luta LGBT.

Por fim, o papel assumido pelo Movimento na internacionalização da luta, e não só camponesa, mas de toda a classe, tendo como referência a ENFF, que constitui instância formativa de caráter internacional da classe trabalhadora.

Demarca-se, que, apesar da abordagem específica ao MST, desnecessário dizer que esse processo não constitui exclusividade dele, sendo as lutas feitas por um conjunto de movimentos e organizações sociais que partilham o sonho de uma sociedade socialista. Todo esse processo, mediado por contradições e complexidades, exige das organizações de luta a clareza e o compromisso na superação dos limites, das dificuldades e na construção de condições objetivas e coletivas da sociedade que está por vir.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Publicado na Coletânea do pronunciamento sobre a questão agrária feito pelo cardel D. Vicente Scherrer, em seu programa radiofônico A Voz do Pastor, p. 61-64.
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