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OS DIREITOS HUMANOS E A LUTA PELA TERRA: a experiência da Turma Evandro Lins e Silva

Maria Inez Pereira Pinheiro
Universidade Federal de Goiás UFG, Brasil

OS DIREITOS HUMANOS E A LUTA PELA TERRA: a experiência da Turma Evandro Lins e Silva

Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1231-1248, 2018

Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 06 Abril 2017

Aprovação: 09 Junho 2018

Resumo: O texto aborda sobre como a luta pelos direitos humanos compõe, estrategicamente a luta pela terra feita pelo MST, articulado a outras organizações sociais. Reflete sobre os direitos coletivos como uma superação da dimensão restritiva dos direitos individuais, indicando que o Judiciário apresenta dificuldades para o seu reconhecimento. Traz a experiência da constituição do primeiro curso de Direito no Brasil, voltado exclusivamente para atender demanda de movimentos sociais, contextualizando o processo, a partir de ações conservadoras e reacionárias na tentativa de impedir sua realização. Conclui a importância revolucionária desta iniciativa política dos movimentos para a organização da classe trabalhadora, em particular para as camponesas e camponeses organizados pelo MST.

Palavras-chave: MST, direitos humanos, educação.

Abstract: The text discusses how the struggle for human rights strategically composes the struggle for land made by the MST, articulated to other social organizations. Reflects on collective rights as an overcoming of the restrictive dimension of individual rights, indicating that the judiciary presents difficulties for its recognition. It brings the experience of the constitution of the first course of Law in Brazil, focused exclusively to meet the demands of social movements, contextualizing the process, starting with conservative and reactionary actions in an attempt to prevent their realization. It concludes the revolutionary importance of this political initiative of the movements for the organization of the working class, in particular for the peasants organized by the MST.

Keywords: MST, human rights, Education.

1 INTRODUÇÃO

O tema direitos humanos se apresenta de forma corrente em todos os contextos da atualidade e, como tema recorrente a todas as áreas e ciências, constitui objeto constante de estudos, debates, polêmicas e disputas. De forma geral, a ideia de direito, enquanto algo próprio do ser humano, é consensual, mas questões com a abrangência e a efetivação constituem pontos complexos nos debates.

Como tema fundamental nos dias atuais, o direito se articula organicamente com a luta pela terra no Brasil, esta como síntese da questão agrária no país. E, falar de questão agrária e luta pela terra é falar de movimentos e organizações sociais que lutam por direitos, no caso, à terra, como elemento central do trabalho e da vida camponesa. Importante destacar que a questão agrária brasileira

[...] é o resultado histórico de quinhentos anos de tratamento diferenciado e privilegiado que o Estado português, na época da colonização, e posteriormente do Estado brasileiro, após a independência, deram às classes mais abastardas com relação à propriedade rural em nosso país. (ATAÍDE JUNIOR, 2006, p. 15).

Como abordado, pensar em questão agrária e luta pela terra no Brasil é discutir direitos humanos, considerando a estrutura social e política que os efetiva, neste caso o Estado, visto que o Brasil sempre negligenciou as famílias camponesas, privilegiando os grandes proprietários.

Um conceito simples de direitos humanos nos remete a direitos e liberdades básicas de todas as pessoas e, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o conceito está ligado à ideia de liberdade de pensamento, de expressão e à igualdade de todos e todas perante a lei. Isso considerado, os movimentos sociais entendem estes direitos para além dos individuais, travando uma luta pelos chamados direitos coletivos, ampliando o raio de alcance dos direitos.

No entanto, apesar do potencial dos direitos coletivos, no momento em que ele não individualiza os direitos, tende a ser desconsiderado, pois

Cada vez que são propostos ou reivindicados, é desqualificado o seu sujeito: o povo indígena, se reivindica um direito coletivo, deve fazê-lo como pessoa jurídica, o MST só pode ser visto como reivindicante de direitos individuais à propriedade de lotes de terra. Exatamente por isso a extrema dificuldade do poder judiciário em entender ou acatar o direito coletivo reivindicado e, invariavelmente, conceder liminares para desocupações coletivas de terra garantindo o direito individual, tudo que seja coletivo é estatal, ou omitido, ou invisível (SOUZA FILHO, 1999, p. 307).

A citação acima nos indica, de imediato, a existência de uma grave questão que pode ser entendida como central no âmbito das lutas populares, que é exatamente a dificuldade do Judiciário, enquanto poder institucional do direito, em, politicamente, deliberar a favor de sujeitos coletivos, como os citados. Ou seja, podem-se vislumbrar daí entraves na dimensão jurídica das lutas. Nesse sentido, no que se refere à luta pela terra, o direito coletivo constitui o objeto maior da luta, pois nenhum movimento ou organização social que organiza a luta pela terra no Brasil se empenha por interesses individuais ou subjetivos. Os esforços são todos, invariavelmente, pelos interesses coletivos, sejam eles corporativos ou de classe, exceção feita aos desvios e vícios que corrompem politicamente militantes e/ou lideranças sociais.

A organização e a própria luta acontece de forma coletiva. São sujeitos de direito que lutam pela garantia destes direitos. A concepção passa pela construção do coletivo, na perspectiva da superação dos interesses (e não direitos) individuais. É o exercício do interesse pelo outro também como sujeito de direito, e com a compreensão de que a conquista dos direitos para os camponeses deve vir construída por todos e todas, alcançando as famílias que vivem da e na terra.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, em sua perspectiva histórica tem como objetivo a luta pela terra, a reforma agrária e a transformação social. Para tanto, a luta pelos direitos humanos constitui um ponto central na construção da transformação da sociedade e, para isto, organiza as famílias sem terra em várias frentes de luta, seja na própria ocupação de fazendas, como um direito vislumbrado na função social que a terra precisa ter, seja no estudo das legislações que tratam e afetam diretamente as condições de vida dessas famílias.

Importante, no processo, é que todas as frentes constituem responsabilidades internas do Movimento, no sentido de que a própria base camponesa precisa ter a responsabilidade do pensar e do agir, ou seja, o conhecimento das leis não deve constituir privilégio de iluminados ou de uma classe, mas os sem terra devem se apropriar de forma profunda das leis que subsidiam os direitos e deveres na sociedade brasileira, como forma estratégica de organização e luta. Nesse sentido, este artigo debate sobre os direitos humanos, destacando os direitos coletivos; e apresenta a experiência do primeiro curso de Direito, resultante da luta dos movimentos sociais do campo.

Em termos de estrutura, encontra-se composto por dois itens, além desta introdução e considerações. Em um primeiro momento, trata sobre o direito coletivo na perspectiva de um direito que ultrapassa a ideia do direito jurídico em si, e mesmo do direito individual na sua essência, mas como algo inerente às organizações sociais, que pretendem para além da proposta individualista da legislação burguesa, onde o direito limita-se e confronta-se com o direito do outro. No item seguinte, sinteticamente, apresenta a experiência da Turma Evandro Lins e Silva, como primeira turma do curso de Direito, demandado pelos movimentos sociais do campo, destacando conquistas, limites e desafios. Considera ser importante a conquista do Curso de Direito que, mesmo permeado por complexidades e contradições constitui oportunidade de construir coletivamente saídas para a liberdade da classe trabalhadora.

A conquista do Curso de Direito também foi um processo complexo e cheio de contradições, próprias do momento histórico em que o curso se encerra, ou seja, queremos com isso apontar que a luta, no contexto atual, enfrenta dificuldades para superar desafios, no sentido de construir coletivamente as saídas exigidas para a libertação da classe trabalhadora.

2 O DIREITO COLETIVO: um direito para além do direito jurídico

Como já apontado, o tema direito apresenta-se permeado de debates e polêmicas em todas as dimensões, seja no campo da filosofia, da sociologia, da política ou mesmo da ação. Muitas são as concepções, algumas concordantes outras discordantes; o que importa é que as várias ideias pautam sua dimensão doutrinária. Especificamente, no que se refere aos direitos humanos, segundo Ataíde Junior (2006, p. 47) a própria nomenclatura já constitui um problema, mas que é preciso contextualizá-la, sendo

[...] a terminologia preferida pelos autores anglo-americanos e latinos, que reflete uma utilização mais frequente e uma coerência com a tradição e o devir histórico, é direitos humanos ou direitos do homem; enquanto entre os autores publicistas alemães há uma preferência pela expressão direitos fundamentais. (ATAÍDE JUNIOR, 2006, p. 47).

Mas, também são usadas, segundo o autor, outras denominações, como Direitos Individuais, Direitos Fundamentais, Direitos Fundamentais do Homem, Direitos da Pessoa Humana, Direitos Naturais, Direitos Subjetivos, Direitos Morais, e ainda liberdades públicas (ATAÍDE JÚNIOR, 2006). Certamente que tal diversidade apresenta-se conflituosa, considerando que cada terminologia pode apontar perspectivas filosóficas e doutrinárias diversas, cujas consequências podem implicar em questões graves, sob o ponto de vista de quem busca e reivindica tais direitos.

Independentemente da confusão terminológica, os direitos humanos só podem ser compreendido como uma materialidade histórica, concretizada pela busca da igualdade. O mais importante marco dos direitos humanos é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, como culminância da Revolução Francesa, pelo fato de, pela primeira vez na história, o ser humano ser reconhecidamente sujeito de direito por sua condição humana. Em seu preâmbulo, reconhece o desprezo dos direitos do homem como uma causa dos males públicos e da corrupção dos governos, porém é contundente o desprezo dos governos, em geral, pelos direitos de alguns homens e não de todos os homens.

É na perspectiva da busca pela igualdade que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra desencadeia sua luta no campo. Este movimento social parte da profunda desigualdade, particularmente fundiária, que caracteriza o Brasil.

As famílias que compõem o Movimento Sem Terra têm uma composição de sujeitos que o tempo todo faz ações que questionam o modo capitalista e, de forma particular, o jeito como foi sendo realizada a distribuição das terras no Brasil. Importante destacar que a forma de uso e propriedade da terra no país tem como marco legal a Lei de Terras, datada de 1850, compondo o contexto de ampliação da organização do capital, afinal o então império inglês, para a formação do mercado capitalista, impunha à então colônia portuguesa a absolvição do trabalho escravo, base da economia da época.

Esse marco legal é de extrema importância porque é considerado como o aprisionamento da terra, como estratégia de impedimento de acesso à terra pelos negros alforriados, para que assim fosse garantida a exploração da força de trabalho nas novas formas organizativas de produção. Como regimento, a lei instituía a privatização da terra, mas desde a chegada dos portugueses, o uso e usufruto da terra já constituíam privilégios, inicialmente nomeados aos donatários, posteriormente sesmeiros, e depois, senhores. Embora a Coroa não houvesse determinado sobre a propriedade, já legislara sobre o uso, e, pelas condições impostas, os negros e indígenas já seriam excluídos desta possibilidade. Em outras palavras, historicamente, a estrutura fundiária legal do Brasil se funda na concentração.

Como desdobramentos dessa dinâmica podem ser apontadas as desigualdades sociais, a pobreza e a exploração dos trabalhadores, principalmente do campo, que sofrem com as dificuldades de sua reprodução material e social pelas relações estabelecidas com os fazendeiros e latifundiários. Situação que vem sendo agravada ao longo do tempo, hoje, reconfigurada com as relações estabelecidas no campo com a produção hegemônica do agronegócio, cujas práticas têm afetado sobremaneira os modos e condições de vida das famílias camponesas, porém permanecendo como central a concentração da terra, base para a produção comercial que embasa esse setor produtivo do campo.

As relações estabelecidas entre as classes antagônicas no campo sempre foram contestadas pelas famílias camponesas através de diversas formas, dependendo do tempo histórico, até porque essas relações sempre tiveram como característica principal os conflitos definidos pela forma de uso da terra, pois invariavelmente, a produção comercial organizada pelos grupos representantes do capital incidia de forma devastadora nas vidas camponesas. As lutas que se originam com a resistência indígena e negra contra a escravidão, movimentos messiânicos ou cangaço, e seguem em organizações sindicais e associativas, ou mesmo em grupos espontâneos. Tudo isso confluindo para a luta pela terra, organizada na luta pela reforma agrária.

Martins (1981) traça o percurso histórico dos movimentos camponeses no Brasil no século XX. Lá é possível compreender como elemento comum a contestação da ordem social. O autor mostra que a luta pela terra, feita pelos vários movimentos, tem como ponto de partida a apropriação de grandes extensões territoriais por fazendeiros, que exploram famílias trabalhadoras e lhes impõem, arbitrariamente, códigos de comportamento, onde lhes é proibido a contestação e a organização política.

Sobre o domínio imperioso do fazendeiro, o poeta Ferreira Goulart (2004), no clássico cordel João Boa Mortecabra marcado pra morrer, conta a sina de um trabalhador do campo, que por ficar revoltado recebe como lição, a expulsão da fazenda, mas que acaba por encontrar nas Ligas Camponesas a oportunidade da organização, compreendendo que o grande inimigo dos camponeses é o fazendeiro.

O fazendeiro, além da exploração do campesinato, mantinha as terras como símbolo de poder ou como reserva de valor, mantendo-as muitas vezes sem qualquer tipo de produção, mas não permitindo seu uso pelas famílias camponesas.

Com o surgimento do MST na década de 1980, cujo contexto político estava caraterizado pelas ações de repressão e violência da ditadura militar, as famílias sem terra, organizadas pelo MST, passam a contestar a organização da sociedade através de ações estratégicas de ocupações, marchas, e através de uma organicidade particular dos assentamentos e acampamentos, com atenção especial à organização das crianças, jovens e adultos em coletivos que cultivam valores diferentes dos impostos pela sociedade burguesa. Um dos principais enfrentamentos é pelo direito à própria vida, direito este negado no Brasil, ao pobre, ao negro, ao indígena, e de forma muito particular, ao camponês.

Esse direito à vida a que se dá direito o relegado, o expropriado, o inculto, constitui objeto de debate, uma vez que a luta pela terra feita pelo MST é “[...] uma luta que permite a um ser humano parar de morrer.” (CALDART, 2001, p. 4). A autora faz referência na afirmativa, a uma fala de um acampado que diz que quando o sem terra ocupa uma terra ele pára de morrer, o que claro, evidencia a ocupação como uma ação de esperança, de fé. O sem terra, então, desprovido de vida, excedendo ausências, falta de condições, humilhado, expropriado do direito à própria vida, na ocupação se renova, cria forças, se recompõe como sujeito, pois passa a acreditar no futuro, cria expectativas e passa a sonhar de forma concreta com as possibilidades.

Com ações consideradas radicais realizadas pelo MST, como as ocupações, as famílias sem terra imprimem a dinâmica da desobediência civil que, “[...] enquanto direito está estritamente relacionada à ideia de cidadania e coaduna-se com as reivindicações dos movimentos sociais, normalmente ligados às minorias, não se justificando a criminalização de suas ações.” (HACK, 2015, p. 65). A luta do MST passa, então, pela construção da cidadania, na ideia da garantia dos direitos constituídos, como o direito aos serviços e políticas públicas, fazendo com que as famílias camponesas deixem o lugar do não cidadão ou cidadão de segunda classe, que merece receber as sobras dos serviços públicos.

Com suas ações, O MST reivindica para o campo o respeito da sociedade e do Estado, como lugar de vida e, portanto, de direitos. E, com esta compreensão é que o Supremo Tribunal de Justiça se baseou para sentenciar a respeito de processo de criminalização de militantes do MST. O referido Tribunal assim se manifesta acerca da questão.

Se a ação de reivindicação de milhares de trabalhadores rurais sem terra é expressão ou exercício de cidadania com amparo na Constituição da República de 1988, a tentativa de enquadrar como crime de formação de quadrilha para a prática de esbulho possessório foi veementemente repudiada pelo Superior Tribunal de Justiça (VIA CAMPESINA BRASIL, 2016, p. 24).

Essa interpretação reitera a ideia de que

As ocupações de terra realizadas por movimento popular que pretende implantar a reforma agrária e a obtenção de subsídios agrícolas não caracteriza crime contra o patrimônio, mas sim direito coletivo, expressão da cidadania, sendo a pressão popular própria do Estado de Direito Democrático (HACK, 2015, p. 367).

Com tais afirmativas, fica evidenciada a importância da desobediência civil na construção da cidadania até porque

A desobediência civil acontece quando um grupo de pessoas não tem espaço para discutir suas dificuldades ou está insatisfeito com políticas de governo realizando ações que, à primeira vista, violam a lei para efetivar mudanças políticas, sociais e econômicas funcionando como “grupo de pressão” que teria um papel de influência e apoio junto ao Congresso (ARENDT, 2004 apud HACK, 2015, p. 66).

A desobediência civil praticada por movimentos sociais como o MST mostra a insatisfação por um conjunto de ações estatais que evidenciam e fortalecem as desigualdades entre grupos e classes, entendendo-as como injustas ou mesmo preconceituosas, não cabendo outro recurso senão desobedecer às ordens estabelecidas, afinal, para dividir a terra, são tantos artigos, tantas leis prá enfrentar, como diz o cancioneiro Irineu Albernaz (1999)1.

Está claro, a partir do exposto, que o MST trava uma luta pelos direitos humanos coletivos, de forma especial pelo direito à terra. Os direitos coletivos são direitos considerados de uma garantia genérica, que de alguma forma condiciona o sujeito a abdicar de direitos individuais tradicionais, inclusive com outras formas contratuais, considerada por Alfonsin (2012) como direitos sem sujeitos, referindo-se o jurista à centralidade coletiva das lutas em detrimento dos interesses individuais

A construção de uma nova visão de direitos humanos, que destaca a dimensão coletiva dos direitos, vai ser muito importante para entender a atuação dos movimentos sociais no Brasil, e em particular do MST, objeto deste texto. Essa dimensão coletiva dos direitos humanos vai ser ainda mais acentuada e nos ajuda a entender um pouco a necessidade de pautar essa questão na luta em prol dos direitos humanos.

No Brasil, um país onde a concentração exacerbada de terra produz grandes distorções na aplicação dos princípios da justiça, a luta por reforma agrária faz-se emergente e necessária e à medida que o sistema legal, ou seja, o judiciário brasileiro condiz com a definição feita do Direito no século XIX, caracterizado por relações que garantem os interesses da classe dominante, como já denunciava Stucha (1976).

Percebe-se que à medida que o sistema legal não funciona, aumenta a demanda pela reforma agrária e cresce a formação de organizações que buscam organizar o povo como uma forma de pressionar para que o Direito funcione e a justiça seja feita, e assim a propriedade privada deixe de ser um entrave para a transformação social tão pretendida pelas classes populares.

Os problemas enfrentados com a Justiça, no que se refere à distribuição de terras no país é sempre carregado de falhas, como a intimidação dos trabalhadores e trabalhadoras para não realizarem registro de queixas; erros nas investigações policiais; lacunas e atrasos injustificáveis em processos judiciários e; falta de assistência dos governos estaduais e federais. No específico da assistência governamental, pode-se dizer que dificilmente se encontra uma Defensoria Pública que esteja capacitada para defender os direitos humanos coletivos. Todos os elementos acima contribuem diretamente para o aumento da violência no campo.

No sentido de avançar na luta pela reforma agrária, na perspectiva ampliada da luta, onde os direitos sejam compreendidos para além do restrito da legislação, o MST, na particularidade do enfrentamento às forças conservadoras do direito, tem construído estratégias e ações para que as próprias famílias tenham condições de operar as legislações por si mesmas. Nesse sentido, através do Programa Nacional de Educação em Áreas de Reforma Agrária (PRONERA), e em parceria com universidades públicas federais, tem realizado cursos de Direito, como experiências concretas de, primeiro, acesso das filhas e filhos de assentados às políticas públicas de educação; mas também, como uma proposta de educação que possibilite o trabalhador do campo se perceber como sujeito de sua história.

4 O DIREITO COMO CAMPO DE SABER: a luta pelo fazer direito

Das várias frentes de trabalho do MST, o Setor de Direitos Humanos faz o debate sobre estes direitos, assim como presta assessoria jurídica junto às ações que envolvem o Movimento, tanto nas questões penais quanto nas questões administrativas. A emergência deste setor se justifica pelo histórico contexto de perseguições e violências praticadas contra a luta social, no qual merece destaque a situação da luta camponesa.

Enquanto setor que trata de tão complexa questão, apresenta dimensões importantes de atuação. Internamente, acompanha todos os processos jurídicos que envolvem as organizações representativas dos acampados e assentados, como as cooperativas e associações ou lideranças e militantes do MST; como formação de base, orienta as famílias do campo acerca dos direitos previdenciários e trabalhistas. Em termos de articulação, compõe a Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP); o Setor de Direitos Humanos da Via Campesina - Brasil e Internacional; o Conselho Nacional de Direitos Humanos; e da Articulação das Entidades Defensoras dos Direitos Humanos. Em atuação internacional, além de compor a Via Campesina, realiza campanhas de solidariedade aos presos políticos do Brasil e do mundo.

Mas, especificamente, o texto abordará sobre a ação formativa desse setor no tocante ao conhecimento do Direito. Desde 2008, quando teve início o primeiro curso de Direito, realizado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), já foram formadas mais cinco turmas, em parceria com outras universidades, havendo turmas na Bahia, Paraná, Pará e Goiás.

De forma muito particular, a primeira turma, denominada com o nome do jurista Evandro Lins e Silva, foi constituída como Turma de Direito da Terra, com o objetivo de formar advogados populares que contribuam com a defesa judicial da classe trabalhadora, bem como contribuir, de forma especial, com a organização das famílias camponesas em suas diversas formas de organicidade, como associações, cooperativas, ou mesmo desenvolvendo suas atividades de assessoria para o movimento sindical ligado à agricultura familiar e para obtenção de crédito, realização de todas as atividades referentes à produção; enfim, questões que são imprescindíveis para a atuação das advogadas e advogados populares que,

Com seus conhecimentos poderão auxiliar o Estado na realização da sua tarefa, permitindo a composição dos conflitos agrários, dando segurança aos assentados nas diversas transações comerciais, atuando decisivamente para a melhoria das condições de vida dos camponeses que lutam para permanecer na terra (SIQUEIRA, 2012, p. 18).

Como primeira turma do curso de Direito, esta tem um significado histórico na luta dos trabalhadores, pois nesta turma é que foi possível discutir o motivo pelo qual os camponeses e camponesas têm direito a fazer o referido curso. Com essa discussão, e com caráter inovador, “[...] esta pioneira iniciativa de luta pela conquista do direito ao Direito tinha que ser de caráter nacional, porque as resistências teriam as mesmas dimensão e força e assim foi tratada.” (SIQUEIRA, 2012, p. 25).

No entanto, é preciso demarcar que este curso se insere na disputa de projetos de sociedade e, considerando o caráter elitista que caracteriza este campo profissional, é importante lembrar que a decisão da UFG, em criar 60 vagas no curso de Direito para beneficiários da reforma agrária e de agricultores familiares tradicionais, foi motivo de grandes questionamentos e debates internos da própria Universidade em um processo que durou de maio de 2005 e só foi concluído em setembro de 2006, com a aprovação do Curso, através da Resolução nº 18, de 28 de março de 2006, da UFG

Cria a turma especial do curso de graduação em Direito para beneficiários da Reforma Agrária, na cidade de Goiás, atendendo ao convênio com o Programa Nacional de Educação em Áreas de Reforma Agrária - PRONERA/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria - INCRA, estendendo-se aos cidadãos beneficiados pela Política Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais (Lei n. 11.326 de 24/07/2006) (SIQUEIRA, 2012, p. 25).

Portanto, a Turma Evandro Lins e Silva foi criada dentro de um processo de luta e resistência, em um momento de grande articulação da rede internacional de camponeses e trabalhadores rurais, denominada Via Campesina, na qual vários movimentos brasileiros participam de forma ativa. Essa articulação, fundada na Bélgica, em 1993, tem como objetivo as mudanças estruturais que perpassam os direitos humanos e políticas empreendidas pelos Estados. Em 2004, a Via Campesina reitera a questão dos direitos humanos a nível internacional, peticionando para a Comissão de Direitos Humanos da ONU para o Desenvolvimento, uma carta de direitos dos camponeses, que teve como desdobramento a Conferência Food and Agriculture Organization (FAO), realizada em 2006, sobre reforma agrária e desenvolvimento rural, onde 350 ONGs se reuniram e reconheceram, formalmente, o papel essencial dessa reforma na erradicação da fome e da pobreza.

A Turma de Direito da Terra concluiu com 54 estudantes, de 19 estados e composta por militantes do MST, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (MABE), militantes do movimento sindical e de comunidades quilombolas, assentados (as), agricultores(as) familiares.

Foram muitas as dificuldades para sua implementação, desde questionamentos no Judiciário, através de ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF), até várias ações de discriminação e ofensas por parte da imprensa burguesa local e nacional. Essas dificuldades expressam bem o desrespeito secular aos direitos dos trabalhadores do campo, chegando ao ponto de um procurador da República, que tem por obrigação a defesa da Constituição Federal (CF), negar o direito constitucional da educação como direito de todos e dever do Estado, entrar com uma Ação Civil Pública, questionando o direito de trabalhadores cursarem Direito. Reflexões acerca do processo, feitas por Morais (2011) que

O que lhe causa realmente profundo incômodo e verdadeiro arrepio, é sim a possibilidade de, finalmente, parcela da população posta à margem do processo de produção e acesso a direitos afirmados na ordem jurídica, dispor da atividade profissional de verdadeiros defensores da justiça social em nosso país (os sem terra, por exemplo).

A luta pela formação da turma visava, sobretudo, a democratização das vagas no curso de Direito de uma universidade, onde quase sempre estas foram destinadas às elites brasileiras, reafirmando a forma como ao longo do tempo se estruturou o sistema de ensino. E, só podemos entender as ações contrárias ao curso, compreendendo que

O papel de controle exercido pelo Judiciário em várias demandas do PRONERA somente reafirma essa posição e demonstra a necessidade de uma análise crítica para visualizar melhor os conflitos que estão presentes. Na opinião do pesquisador, as razões que explicam a judicialização do PRONERA, em especial da Turma de Direito em comento, não são percebidas satisfatoriamente por alguns atores no Poder Judiciário. (MORAIS, 2011, p. 144).

A decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que negou o pedido de extinção da Turma de Direito Evandro Lins e Silva, usa como uma de suas argumentações , o fato de a Ação Civil Pública alegar que o Curso de Direito estaria fora da realidade do campo. Importante salientar que a referida ação era carregada de discriminação, conforme consta no texto da Ação em pauta.

Não há qualquer estudo que indique que os assentados da reforma agrária sofrem maiores dificuldades no acesso ao ensino superior que os demais moradores pobres do interior do Estado de Goiás. Por acaso, o filho do servente de pedreiro da cidade de Goiás tem maior facilidade de acesso ao ensino superior que o filho do assentado? Ou o filho do funcionário da oficina mecânica? Ou o próprio mecânico? Por que não criar um curso de Direito para trabalhadores de oficinas mecânicas? Ou para trabalhadores de lojas de concerto (sic) de bicicleta? Ou para vendedores de gêneros alimentícios de beira de estrada? Decerto que a pertinência de todos eles para com o Direito é a mesma que a dos beneficiários da reforma agrária. Não há objetivo a ser atingido, senão uma afinidade ideológica que começa a perder o pudor de mostrar as caras e vir a público ante a estupefação geral. Cada vez mais o Brasil é menos competitivo e mais paternalista, formando gerações de analfabetos funcionais que contam com o beneplácito do Estado, que não demanda dos interessados nenhum esforço pessoal. (MPF-GO apud MORAIS, 2011, p. 155).

Nessa afirmação do procurador, percebemos que há um questionamento quanto à criação de uma turma para assentados e indica que nesse caso teríamos que ter turmas de direito para os outros filhos de pobre, e a resposta foi de que a luta dos trabalhadores é exatamente pela universalidade do ensino superior e que todos e todas têm direito à educação independente de sua classe social. O histórico do Campus da UFG em Goiás é de que grande parte dos estudantes vieram das famílias Curado ou Caiado, ou seja, filhos de grandes latifundiários da região, que tinham e têm o domínio político e econômico daquela cidade, e essa cota nunca foi questionada pelo Ministério Público.

No entanto, muito bem se coloca sobre a questão o advogado César Brito, ex-presidente da OAB e advogado de defesa da turma, por ocasião da audiência quando disse: “[...] o próprio Ministério Público Federal já havia arquivado um inquérito civil com o mesmo teor argumentativo, ao considerar que as turmas para trabalhadores rurais são de fundamental importância social e pública”. (MOVIMENTOS DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA, [20--?]).

Após a audiência que deu vitória aos trabalhadores e trabalhadoras do campo, o advogado construiu a seguinte definição

A vitória da Turma Evandro Lins e Silva abre precedentes para outros cursos promovidos através do Programa Nacional de Educação do Campo (PRONERA) e que estão sendo questionados pelo Poder Judiciário, reconhecer a constitucionalidade dos convênios entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e as universidades é importante, mas a voz do campo será fundamental para a construção de um novo direito. (MOVIMENTOS DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA, [20--?]).

A experiência vivenciada no processo de construção, dessa Turma de Direito, constitui importante ação no campo das disputas políticas entre os setores conservadores da sociedade e dos movimentos e organizações sociais, principalmente no campo, uma vez que denuncia o controle da educação pelos grupos dominantes da sociedade, com a criação das ilhas do conhecimento, verdadeiras áreas intocáveis pelo conjunto da sociedade, deixando claro a hierarquização do saber, a partir dos interesses hegemônicos.

Com o enfrentamento feito pelas organizações, oportuniza-se às famílias camponesas de modo geral, o acesso mais do que às políticas públicas, simplesmente, mas a materialização de uma proposta, no contexto atual, revolucionária, no que ela representa para a classe trabalhadora, e para os movimentos sociais envolvidos; afinal é, no mínimo, muito significativo e cheio de representações, uma turma de direito composta por camponeses, estudando em uma região reconhecida como do agronegócio, liderada politicamente por fazendeiros renomados.

5 CONCLUSÃO

A luta pela terra e pela reforma agrária no Brasil assume dimensões para além dessas lutas específicas com o MST, no momento em que este amplia as proposições, constrói conceitos, articula setores e sujeitos, criando uma dinâmica de luta que constrói uma identidade de classe. Nesse sentido, a criação da primeira turma do Curso de Direito constitui um marco para a luta, pois foi a primeira turma formada exclusivamente para o público camponês, visto que articula várias organizações do campo, desmistifica o direito, enquanto uma disciplina privativa dos setores elitizados da sociedade.

Para a luta camponesa, demarca a sua força também na luta de classes, no momento em que consegue fazer frente ao confronto explícito capitaneado pelo MPF, como representação das forças conservadoras do campo.

Mas, consideramos que, apesar de representar grande e importante avanço das classes populares do campo, a conquista do Curso de Direito também foi um processo complexo e cheio de contradições, próprias do momento histórico em que o curso se encerra, ou seja, queremos com isso apontar que a luta, no contexto atual, enfrenta dificuldades para superar desafios, no sentido de construer coletivamente as saídas exigidas para a libertação da classe trabalhadora.

REFERENCIAS

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Notas

1 Descrevendo o sonho das famílias camponesas de ter um pedaço de chão, Irineu Albernaz aponta na música Terra Esperança como uma das grandes dificuldades na luta pela reforma agrária, os tantos artigos e leis que os iletrados precisam enfrentar.
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