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BELÉM (PA): contradições sociais do e no planejamento urbano
Sandra Helena Ribeiro Cruz; Pedro Paulo de Miranda Araújo Soares
Sandra Helena Ribeiro Cruz; Pedro Paulo de Miranda Araújo Soares
BELÉM (PA): contradições sociais do e no planejamento urbano
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1269-1290, 2018
Universidade Federal do Maranhão
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Resumo: O presente texto resulta de pesquisa e extensão realizado no âmbito do Grupo de Pesquisa Políticas Urbanas e Movimentos Sociais na Amazônia Globalizada, objetivando refletir sobre o planejamento urbano e sua relação com as forças sociais emergentes nas bacias hidrográficas do Tucunduba, Una e Estrada Nova. O percurso metodológico se alicerçou na teoria social crítica, que subsidiou a análise sobre os processos de planejamento tecnocráticos e orientados para o mercado, assim como sobre a atuação dos movimentos sociais diante das intervenções urbanísticas em Belém. Conclui que embora no discurso oficial tais projetos apareçam como soluções técnicas às demandas da população para melhoria das condições de moradia e saneamento, observa-se o aprofundamento dos efeitos segregativos que o capitalismo produz nas cidades.

Palavras-chave:Planejamento urbanoPlanejamento urbano, movimentos sociais urbanos movimentos sociais urbanos, Belém Belém.

Abstract: The present text is the result of research and extension carried out within the framework of the Research Group on Urban Policies and Social Movements in the Globalized Amazon, aiming at reflecting on urban planning and its relationship with emerging social forces in the Tucunduba, Una and Estrada Nova hydrographic basins. The methodological course was based on critical social theory, which subsidized the analysis of the technocratic and market-oriented planning processes, as well as on the social movements' action in front of the urban interventions in Belém. It was concluded that although in the official discourse such projects as technical solutions to the demands of the population to improve the conditions of housing and sanitation, we observe the deepening of the segregative effects that capitalism produces in cities.

Keywords: Urban planning, urban social movements, Belém.

Carátula del artículo

Mesas temáticas coordenadas

BELÉM (PA): contradições sociais do e no planejamento urbano

Sandra Helena Ribeiro Cruz
Universidade Federal do Pará - UFPA, Brasil
Pedro Paulo de Miranda Araújo Soares
Universidade Federal do Pará - UFPA, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1269-1290, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 15 Março 2018

Aprovação: 16 Maio 2018

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho, apresentado na VII Jornada Internacional de Políticas Públicas (JOINPP), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), resulta de pesquisas e atividades de extensão realizadas no âmbito do Grupo de Pesquisa Políticas Urbanas e Movimentos Sociais na Amazônia Globalizada (GPUMA), através do projeto de pesquisa Reconfiguração Urbana e Redefinição de Usos do Solo: experiências de intervenções urbanísticas em Belém e do Programa de Apoio de Reforma Urbana. Dentre os resultados da referida pesquisa está a evidência de que o planejamento urbano em Belém é determinado por uma lógica que tem a técnica como elemento definidor de suas ações, se sobrepondo à dimensão política, dissociando o indissociável. Esta questão se constitui central na presente discussão.

Ao se apresentar de forma exclusivamente técnica e neutra – apesar de imprimir significativos impactos sociais, ambientais, econômicos e políticos – o planejamento urbano passa a ser objeto de pressão para as frações das classes trabalhadoras que residem nas áreas urbanas de Belém, especialmente os chamados assentamentos precários, os quais recebem projetos de saneamento para fins de renovação urbana. Assim, o presente artigo tratará da relação contraditória que se estabelece no âmbito do planejamento urbano em Belém, evidenciando os processos de resistência política que a população atingida por Grandes Projetos Urbanos (GPU’s) têm desencadeado nessa cidade.

O estudo se situa nas bacias hidrográficas do Una, Tucunduba e Estrada Nova por serem áreas que vivem os efeitos da reconfiguração de sua fisionomia por projetos de intervenção urbanística, como o Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una, o Projeto de Macrodrenagem da Bacia da Estrada Nova (PROMABEN), o Projeto de Recuperação da Bacia do Tucunduba e o Projeto de Duplicação da Avenida Perimetral, que por sua dimensão em relação ao financiamento, cobertura e impactos são considerados Grandes Projetos Urbanos, segundo Cruz (2012).

A pesquisa se apoiou teoricamente em autores da teoria social crítica, buscando refletir sobre as categorias de técnica e de política enquanto fio condutor da análise do planejamento urbano. Assim, recorreu-se à Mosse (2005), Li (2007), Cruz (2011, 2012), Farage (2014), Harvey (2014), dentre outros. Operacionalmente, o estudo optou por realizar a observação direta nas áreas de renovação urbana, acompanhar as atividades dos movimentos sociais urbanos junto aos órgãos públicos governamental e não-governamental, sendo três audiências públicas na Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA), na Defensoria Pública e na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/PA).

No contexto da pesquisa e da extensão universitária se elaborou um dossiê para cada bacia hidrográfica, para subsidiar a luta dos movimentos sociais urbanos, com o intuito de dar o retorno das pesquisas realizadas no âmbito do GPUMA/PPGSS/UFPA e da extensão realizada pelo Programa de Apoio à Reforma Urbana (PARU)1. Realizou-se, ainda, uma roda de conversa intitulada Intervenções urbanísticas e conflitos socioambientais: o papel da Universidade Federal do Pará, tendo como público alvo as lideranças dos movimentos sociais urbanos do Una, Tucunduba e Estrada Nova. Também foi realizada uma oficina intitulada Direito à Cidade, tendo como público-alvo a Frente dos Moradores Prejudicados da Avenida Perimetral (FMPAP), bem como um Seminário Itinerante de Socialização de Experiências e Práticas Sociais em Belém nas três bacias hidrográficas, com o objetivo de expor os resultados das atividades de extensão e de pesquisas realizadas por docentes e discentes do GPUMA.

Além disso, foi feito um levantamento sócio-histórico com membros dos movimentos sociais urbanos em áreas de grandes projetos urbanos como forma de identificar a natureza, as conquistas, os instrumentos de luta, as reivindicações e os desafios de tais movimentos. O levantamento foi realizado com três movimentos sociais urbanos existentes: Frente dos Moradores Prejudicados da Avenida Perimetral (FMPAP), a Frente dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una (FMPBU) e o Comitê Popular Urbano (CPU).

Após o tratamento das informações coletadas nas atividades, a análise e reflexão sobre o planejamento urbano adotado pelo Estado capitalista e os processos de resistência emergentes na cidade de Belém, concluiu que estes processos estão associados aos efeitos que o modelo de planejamento e implementação de grandes projetos urbanísticos adotado pelo poder público exerce sobre a maioria da população moradora dos bairros atingidos pelas intervenções urbanísticas. Tal modelo possui como principal característica a produção territorial da cidade com vistas a garantir facilidades à ampliação da reprodução do capital, sobretudo do capital imobiliário, por meio de ações de grandes empreendimentos. Estes projetos, que reconfiguram áreas consideradas decadentes e precárias, e revitalizadas para uso do mercado, geralmente recorrem a uma retórica do bem comum e da neutralidade, como se a política e as relações de poder na sociedade de classes não fizessem parte da produção do espaço urbano.

2 O PLANEJAMENTO SOB A PERSPECTIVA DA TÉCNICA

Farage (2014) apresenta que o desenvolvimento do capitalismo na América Latina e Brasil se deu como um desenvolvimento capitalista, desigual e combinado. Desenvolvimento desigual e combinado porque integra, ao mesmo tempo, o avanço e a modernização provocada pela expansão capitalista em suas diferentes fases – especificamente em sua fase monopolista industrial – com elementos sociais arcaicos e conservadores. Nessa combinação entre o moderno e o arcaico, entre o desenvolvido e o pré-desenvolvido, são criadas marcas internas e externas aos países, com desdobramentos na conformação urbana. O espaço urbano nasce, então, como fruto do processo de desenvolvimento desigual e combinado. As cidades, como expressões tangíveis do espaço urbano, ao se constituírem de distintos territórios, passam a evidenciar a conformação desigual desse espaço, que se expressa não na geografia natural dos territórios, mas em suas intervenções sociais e urbanísticas.

É nesse cenário de desenvolvimento urbano que a questão social vem paulatinamente se acirrando no capitalismo. E, diante disso:

Identifica-se o processo de expansão das cidades orientado pela segregação sócio-espacial, econômica e cultural. Essa segregação ganha aparência de um processo “natural” de organização da cidade. A cidade passa a expressar de forma enfática as desigualdades das relações sociais, cuja consequência na vida dos sujeitos é a degradação de sua humanidade. (FARAGE, 2014, p. 247).

Para Cruz (2011), durante os anos que decorrem a década de 1970, grande parcela da população brasileira residente nas periferias das cidades iniciou processos de reivindicações que culminaram no surgimento de várias formas de organização popular, cujo objetivo imediato poderia ser alcançado através de reivindicações precisas. É nesse sentido que a autora percebe os movimentos populares como sujeitos produtores de espaço urbano e de uma transformação sentida como necessária.

Então, esse espaço urbano e da cidade vai tomando lugar no debate político contemporâneo e, de acordo com Farage (2014), mais especificamente após a Constituição de 1988, impulsionado pela ânsia de participação popular e pela possibilidade constitucional de criação dos fóruns e conselhos de direitos. Também surgem movimentos e organizações urbanas que passam a lutar pela democratização da sociedade e das relações sociais, ampliando as redes de produção das políticas públicas urbanas e do espaço urbano em si.

Entre os atores que compõem as redes responsáveis pela produção do espaço urbano, juntamente com os habitantes da cidade, movimentos sociais urbanos e o próprio mercado imobiliário, também se encontram os técnicos e planejadores urbanos. As Ciências Sociais, através de estudiosos do desenvolvimento, como David Mosse (2005) e Tania Murray Li (2007), vêm refletindo sobre as práticas e exercícios intelectuais de técnicos e especialistas que atuam em grandes projetos como aqueles desenvolvidos em Belém. A atenção dada por cientistas sociais aos técnicos e experts tem se justificado como uma forma de adicionar camadas de entendimento a processos globais que se materializam no plano local, além de realizar a crítica cultural dos pressupostos desenvolvimentistas que balizam tais projetos. Além disso, Bruno Latour (2013) também tem argumentado que as fronteiras entre os elementos técnicos e políticos, naquilo que consideramos ciência, muitas vezes são artificiais e pensadas de forma arbitrária, dizendo mais respeito às cisões disciplinares do que à realidade em si, onde a natureza, cultura, política e a linguagem se constituem mutuamente.

Ao mesmo tempo – e para o caso deste trabalho – as perspectivas da técnica também devem ser consideradas dentro de contextos mais amplos que levem em conta a ação do Estado moderno na organização das cidades e suas formas institucionalizadas de articulação entre cultura e natureza em uma sociedade de classes, o que se constitui como objeto de reflexão da Ecologia Política Urbana (HEYNEN; KAIKA; SWYNDOUW, 2006). Para efeito da presente discussão, os técnicos são atores que representam o próprio Estado na produção das políticas públicas urbanas, encerrando em seus discursos as racionalidades próprias aos projetos tecnocráticos que têm sido postos em prática em Belém.

Observou-se em pesquisa e nas atividades de extensão universitária, pelo PARU, que é comum entre os planejadores urbanos a concepção de que seu trabalho é melhor realizado quando há uma separação nítida entre os aspectos técnicos e os aspectos políticos da realidade onde se dará a intervenção. Isso ficou bastante evidente na fala de um engenheiro sanitarista – durante um evento acadêmico realizado na Universidade Federal do Pará (UFPA) – sobre as causas dos alagamentos e inundações na Bacia do Una após a conclusão do Projeto de Macrodrenagem2 realizado na área:

Nós não podemos transigir tecnicamente. E onde foi que a Macrodrenagem [do Una] transigiu tecnicamente? [...] Movimentos de Reforma Urbana com pauta política! Não pode! Porque com base na pauta política, a pauta técnica foi desrespeitada. O Projeto de Macrodrenagem era pra ser projetado com chuvas num período de retorno de vinte anos, por padrão de drenagem pra áreas urbanas. [...] E eu calculei que o projeto do Canal do Una pra armazenar água de chuvas tinha que ter duzentos metros de largura pra não haver alagamentos. Duzentos metros de largura. Foi construído com oitenta. Tem alagamento! Pra ter capacidade de armazenamento, eu cheguei e disse: “Wady, tem que ter duzentos daqui à ponta!” E ele disse: “Não pode, porque senão nós vamos ser demitidos”. Por causa das forças do movimento social! Eles tinham força política tremenda ali com o [governador] Almir Gabriel. (Informação verbal) 3.

O que aparece na fala do engenheiro como revelações sobre os primórdios do Projeto Una, isto é, a discrepância entre o que deveria ter sido feito – canais com duzentos metros – e o que de fato aconteceu – canais com no máximo oitenta metros nos pontos mais largos – chama atenção para os bastidores de grandes projetos como a Macrodrenagem da Bacia do Una. Estamos diante das práticas subterrâneas de que fala Li (2007) sobre programas de desenvolvimento. Mosse (2005) também observa que existem éticas e coações inerentes aos projetos de desenvolvimento que estão para além da sua formulação enquanto programas de ação técnica. Isso reflete a máxima do trabalho desse autor, segundo a qual “[...] não são as políticas que produzem práticas, e sim as práticas que geram políticas” (MOSSE, 2005, p.16), incidindo na forma como projetos são administrados e implementados. As práticas subterrâneas, às quais se refere Murray (2007), consistem em fazer vista grossa diante da inobservância de regras ou omitir informações que prejudicariam a narrativa linear do projeto (problema – intervenção – resultados), sendo estas práticas comuns em iniciativas do porte do PMU. Isso demonstra que as diretrizes e concepções técnicas de projetos sofrem constrangimentos de forças externas, estando sujeitas a revisões diante de contingências e reveses.

Nesse sentido, observa–se a dinâmica da geração das políticas por meio das práticas. Se o engenheiro sanitarista separa a técnica da política, este tópico tenta reaproximar esses dois elementos das políticas públicas, mostrando como grandes projetos como o PMU aparecem como híbridos a partir de redes que articulam técnica, política e discurso em diversas escalas de análise. Com base no conhecimento científico adquirido em sua formação e prática profissional em Engenharia Sanitária e Hidrodinâmica de Canais, o técnico estabelece que um canal deve ter duzentos metros de largura para armazenar a água das chuvas e esgotamento pluvial durante vinte anos. Por fatores extrínsecos ao conhecimento técnico disponível para o projeto, o canal é construído com oitenta metros.

Para o engenheiro, os movimentos sociais – que para ele constituem o elemento político na realização da política pública – são os grandes responsáveis pelo realinhamento e revisão do Projeto Una, quando a largura dos canais é reduzida de duzentos para oitenta metros. No entanto, um exame mais cuidadoso das redes de produção do espaço urbano aponta que as mudanças ocorridas no PMU podem ser o resultado da articulação de outros fatores e interesses.

Entre esses fatores, em um primeiro plano encontram-se várias condicionantes a serem gerenciados pelo Estado conjugados em redes (LATOUR, 2013) formadas por atores sociais e naturais. Entre eles está o próprio Estado e seu quadro técnico-administrativo, mas também as chuvas e marés, movimentos sociais urbanos e outras entidades civis organizadas, representantes parlamentares, o capital imobiliário, a baixa topografia de Belém (abaixo da cota de 4 metros em relação ao nível do mar) e as grandes empresas de engenharia envolvidas nas obras de transformação da cidade.

Para dar mais exemplos desses condicionantes sociotécnicos, recorro ao trabalho do engenheiro civil Kléber Silva (2004), em que o autor sugere uma série de outras condicionantes ligadas às características geológicas dos solos da Bacia do Una. É o caso das obras que são executadas por meio de “[...] escavações e aterros em depósitos aluvionares de argilas orgânicas muito moles”, o que para Silva (2004, p. 52) representa “[...] um desafio para engenheiros”, na medida em que essas condições dificultam a estabilização de taludes de canais e de pavimentos. Para esse autor, a capacidade de carga dos canais da Bacia do Una é mais uma condicionante que deve ser considerada juntamente com outras para que o projeto seja bem-sucedido, tais como o tipo de aterro utilizado nas obras, o tipo de revestimento dos canais, o nível de elevação das vias marginais, as características do curso d’água, o tipo de ocupação humana na área e as já citadas características geotécnicas do terreno. (SILVA, 2004).

A dimensão dos canais em obras de macrodrenagem também depende da tecnologia e dos materiais utilizados, o que por sua vez se dá em função do contexto demográfico em que ocorrem tais obras. Em relação a políticas de contenção de alagamentos urbanos, autores como Matthew Gandy (2014) apontam que a solução tecnocrática de canalização dos rios – ao invés da criação em campos de inundação naturais – está ligada ao objetivo de evitar perdas de solo urbano. Em seu trabalho sobre o Rio Los Angeles, Gandy (2014) observa que a canalização do rio foi condicionada não apenas pela existência de ferrovias nas proximidades das margens do rio, mas também por interesses especulativos do mercado imobiliário local.

Kléber Silva (2004) também aponta em seu trabalho para o fato de que as obras da Bacia do Una aconteceram em um contexto de alta densidade populacional e construída, no qual os rios, igarapés e canais se encontravam estrangulados por habitações e pelo processo de urbanização que já estava em curso em algumas áreas desde a década de 1960. Assim, compreende-se que a concentração populacional em algumas áreas da Bacia do Una foi um fator decisivo na tomada de decisões técnicas sobre a construção de canais com taludes de concreto inclinados e ao mesmo tempo mais estreitos (SILVA, 2004). É plausível que essa decisão tenha sido tomada tendo em vista a realização do mínimo possível de remoções das áreas beneficiadas pelas obras, seja por pressão dos movimentos sociais, seja para reduzir os gastos do projeto com remanejamentos ou reassentamentos. Ainda assim, usar a canalização dos rios para evitar a perda de solo urbano também pode representar uma tentativa de preservar grandes faixas de terra para futuros empreendimentos imobiliários, sobretudo em áreas que se valorizam por estarem próximas ao centro da cidade. Nesse caso, observa-se como a economia política de terras urbanas – a produção, a distribuição e o consumo do solo urbano numa sociedade de classes – agencia as intervenções urbanísticas em drenagem e saneamento.

Em outro plano, mas ainda em estreito diálogo com os anteriores, há ainda agências multilaterais que financiam projetos de desenvolvimento e mitigação da pobreza, como, por exemplo, o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). O trabalho de Joana Valente Santana sobre a atuação do desenho ideológico4 do BID para o caso do Projeto de Macrodrenagem da Bacia da Estrada Nova (PROMABEN), em Belém, constitui um exemplo significativo sobre como estes organismos internacionais influenciam a implementação de políticas de reforma urbana. Os dados da previsão orçamentária do BID para o PROMABEN, apresentados pela autora, revelam uma diferença muito grande entre o investimento em infraestrutura física (36,9%) e o investimento em infraestrutura social (3,92%) em relação ao total do orçamento (SANTANA, 2012). Assim como aconteceu na Bacia do Una, no PROMABEN prevaleceu o modelo tecnocrático no qual há gastos expressivos nas obras físicas (vias urbanas, comportas, obras de arte) e poucos recursos destinados ao Projeto de Trabalho Técnico-Social, desapropriações, remanejamentos, reassentamentos, educação ambiental e sustentabilidade do projeto em questão. Assim, as limitações no orçamento também são determinantes para a redução da dimensão dos canais, dado que esse elemento está ligado ao número de remoções de moradores do local onde ocorrerá a intervenção.

A agência dessas organizações supranacionais não é percebida apenas no financiamento e na negociação orçamentária dos projetos. Instituições como o BID também exercem pressão sobre o início e retomada de obras através dos prazos estipulados nos contratos de financiamento, além de cobrar relatórios sazonais sobre os projetos financiados durante e depois de sua execução, determinando o nível de êxito ou fracasso do programa. No caso do Projeto Una, uma das condições de financiamento – cujo contrato foi assinado em 1993 – foi a participação popular na forma de Conselhos Gestores e Comissões de Fiscalização in loco, formados por moradores das áreas atingidas. Além de constituir uma inovação diante da recente redemocratização do país, a participação popular sofisticou o processo de tomadas de decisão no Projeto Una, introduzindo novas dinâmicas nas relações entre Estado, sociedade civil e meio ambiente que, em tese, reduziriam o caráter autoritário dos projetos a serem implementados. À gestão pública coube equacionar esses diversos atores, ao mesmo tempo em que o fez dentro de um determinado modelo de gestão estabelecido no acordo de empréstimo com o BID.

Assim, em um projeto como a Macrodrenagem do Una, as práticas produzem políticas – retomando a máxima de David Mosse (2005) – assim como a política aparece enlaçada na técnica, atravessando níveis e escalas de análise, sendo produzida na intersecção das agências de diversos atores e instituições. Se o diagnóstico de um especialista não serve aos interesses da rede que produz as transformações requeridas, procura-se outro profissional cujos discursos não prejudiquem a narrativa linear do projeto formada pela identificação de problemas, práticas de intervenção e obtenção de resultados. O modus operandi dos grandes projetos urbanos e desenvolvimento sugere que essa narrativa já está pronta, se encontrando apenas à espera das condições materiais de sua realização. Dessa forma, a técnica pode ser flexibilizada, na medida em que problemas são reinterpretados não somente conforme as soluções técnicas disponíveis (LI, 2007), mas também de acordo com as soluções politicamente negociadas. Então, opta-se por determinados modelos de intervenção em detrimento de outros.

Logo, a pauta política a que se referiu o engenheiro sanitarista no trecho destacado da sua apresentação corresponde às disputas pelo uso do solo urbano e pelo direito à moradia, agendas, de fato, ligadas aos movimentos de reforma urbana. Se os movimentos sociais interferem na realização das políticas públicas envolvendo remoções, reassentamentos e remanejamentos é porque – mesmo nos dias atuais, como veremos adiante – o poder público não tem oferecido soluções satisfatórias para moradores deslocados em função de grandes obras. Ao mesmo tempo, se houve pressão popular durante a realização do PMU, esta pressão foi acatada pela gestão do projeto, que não a considerou de forma isolada, mas em conjunção com outros fatores e interesses. Em outras palavras, não há interesse na perda de solo urbano nem pelos movimentos sociais, nem pelo mercado imobiliário e nem pelo Estado.

Ainda há duas considerações a serem feitas sobre a fala do engenheiro. Em primeiro lugar, ao invés de considerar a pauta política como obstáculo à pauta técnica, seria necessário reconhecer que o conhecimento técnico também é atravessado por processos históricos e culturais, pelas condições materiais e técnicas disponíveis, além das redes que atuam em projetos e políticas de intervenção na cidade. Em segundo lugar, as decisões técnicas também são decisões políticas. A fala do engenheiro procura desqualificar a participação popular, como se este fosse o elemento político a poluir a técnica. Ao fazê-lo, o trabalho do técnico se torna eminentemente político, pois implica escolhas de gestão e negociações entre o poder público, agentes do mercado e os movimentos sociais, definindo inclusive o grau de determinância de cada um desses atores na produção do espaço urbano.

Reaproximadas as dimensões técnicas e políticas da produção do espaço urbano, através de grandes projetos, é preciso reforçar que esta separação presente nos discursos dos planejadores não possui apenas consequências epistemológicas, isto é, não se trata somente de uma crítica à compartimentalização do conhecimento na modernidade. A separação entre a técnica e a política em grandes obras e políticas públicas tem levado, como aponta o trabalho de Maria Carmen Lemos (2003), ao isolamento dos técnicos e à marginalização da população beneficiária nos processos decisórios sobre obras que têm impactos diretos sobre as suas vidas. Como veremos a seguir, ao contrário do que apontou o engenheiro sanitarista no trecho destacado de sua fala, as experiências em políticas públicas urbanas na cidade de Belém têm se caracterizado pela falta de mecanismos eficientes de participação popular, o que reflete as lógicas do Estado na condução de projetos tecnocráticos e autoritários que exacerbam a segregação socioespacial, bem como a distribuição desigual dos impactos socioambientais das políticas públicas e da urbanização capitalista.

3 DESENVOLVIMENTO URBANO E LUTAS SOCIAIS EM BELÉM

Nessa primeira metade do século XXI, a cidade de Belém do Pará vivencia alterações na sua estrutura física, paisagística, econômica e social, em que o poder público recorre ao tipo de planejamento estratégico de cidade, cujo fio condutor ideológico é tornar as cidades atraentes e competitivas para o mercado global. Este tipo de planejamento tem se pautado pela lógica de Grandes Projetos Urbanos que tem como perspectiva um conceito de cidade em que a infraestrutura se constitui elemento determinante para o mercado, seja em sua dimensão produtivista, seja em sua dimensão consumidora. Citam-se o Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una, Projeto de Duplicação da Avenida Perimetral, PROMABEN e o Programa de Saneamento da Bacia do Tucunduba.

Nesse contexto, o direito à cidade se constitui objeto de disputa entre os trabalhadores que habitam áreas precárias infraestruturalmente e uma pequena elite política e econômica, que modifica a cidade segundo as suas necessidades e seus mais profundos desejos. Longe de serem soluções técnicas neutras e apolíticas, os projetos de intervenção urbanísticos são orientados pela lógica do capital, que por sua vez tem por finalidade atender interesses de mercado, em detrimento das necessidades sociais das classes trabalhadoras.

É diante desse cenário, marcado pela intensificação da questão urbana, que emergem movimentos sociais que irão reivindicar a reforma urbana e o direito à cidade. A atuação dos movimentos sociais urbanos viabiliza distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. Tais movimentos adotam diferentes estratégias de luta, como denúncia, mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.

O estudo buscou fazer uma atualização da leitura sobre movimentos sociais urbanos nas áreas impactadas por Grandes Projetos Urbanos, com o intuito de identificar os movimentos nacionais e locais que lutam pelo Direito à Cidade e Reforma Urbana, os quais representam uma contraposição ao ideário tecnocrático e despolitizado que tem sido observado no planejamento urbano realizado em Belém. Além disso, este trabalho está atento à natureza de tais movimentos sociais para decompor sua aparente unidade e reconstruir seus elementos constitutivos (GOHN, 1991). Desse processo foi possível fazer a caracterização de oito (8) movimentos sociais urbanos e outras formas de organização social emergentes em áreas de Grandes Projetos Urbanos em Belém, através do estudo feito no período de 7 de janeiro a 24 de fevereiro de 2017, como se pode ver no quadro 1.

Quadro 1
atureza, reivindicações, composição e instrumentos de luta dos movimentos sociais urbanos e outras formas de organização social emergentes nas bacias hidrográficas do Una, Tucunduba e Estrada Nova, em Belém

Dados do projeto Atualização da Leitura Acadêmica acerca de Movimentos Sociais Urbanos em áreas de Grandes Projetos Urbanos em Belém.

Através desta pesquisa buscou-se compreender o formato dos movimentos sociais urbanos emergentes em Belém, principalmente em áreas impactadas diretamente por projetos urbanísticos. Tais movimentos fogem aos formatos de lutas das décadas de 1970 e 1980 em Belém, pois segundo Cruz (2011), o final da década de 1970 é marcado por um formato de luta articulador com a criação da Comissão de Bairros de Belém (CBB) que conseguiu unificar as lutas de centros comunitários e associações de moradores de todos os bairros de Belém, que naquele período era composto por 26 bairros.

De 1983 a 1985 tem-se o momento de transição democrática e uma discussão sobre o papel desempenhado pelos movimentos sociais. Já no final da década de 1980 tem-se uma nova forma de participação diante de um Estado Democrático com a Coordenadoria Municipal de Associações Comunitárias (COMAC) e a Federação Metropolitana de Centros Comunitários e Associações de Moradores (FMCCAM), que não possuíam o caráter aglutinador de lutas como ocorria na década anterior. Na década de 1990, com a mudança radical no cenário sociopolítico, ocorreu o declínio das manifestações nas ruas que davam visibilidade aos movimentos sociais populares nas cidades e o surgimento de outras formas de organização popular, mais institucionalizadas, como Fóruns, que estabeleceram a prática de encontros nacionais gerando diagnósticos das expressões da questão social e os objetivos estratégicos para solucioná-los, segundo Gohn (2003).

Destaca-se em Belém, o surgimento na década de 1990, do Fórum Metropolitano de Reforma Urbana (FMRU) como resultado da insatisfação dos sujeitos sociais excluídos que reclamam por melhores condições de vida no espaço urbano; o fórum mobilizava para definir as estratégias de lutas para a participação na elaboração do Plano Diretor em Belém do Pará e do Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una. O fórum emergiu de um processo histórico e resultado de um processo de luta pela implantação da Reforma Urbana em nível nacional, materializado com a criação do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU).

Diante disso, percebe-se que o perfil dos movimentos sociais mudou, pois a conjuntura política mudou, segundo Gohn (2003). Já nos anos 2000 emergiu um novo perfil de movimentos sociais, distinto das décadas anteriores, pois atua por meio de redes sociais, locais, regionais, nacionais e internacionais. (GOHN, 2003). Tais sujeitos foram vítimas da conjuntura, pois as políticas neoliberais contribuíram para o enfraquecimento e desorganização dos setores que estavam organizados. Isto não significa que os movimentos sociais tenham desaparecido, pelo contrário. Segundo a autora supracitada, os movimentos sociais na atualidade mudaram a sua natureza, pois a conjuntura política, social e econômica do país mudou.

Em Belém do Pará destaca-se, no contexto atual, a emergência de movimentos sociais urbanos e outras formas de organização social nas bacias hidrográficas do Una, Tucunduba e Estrada Nova, por serem áreas que tiveram a sua fisionomia reconfigurada por projetos de intervenção urbanística como o Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una, o PROMABEN e o Projeto de Duplicação da Avenida Perimetral, que por sua dimensão em relação ao financiamento, cobertura e impactos são considerados Grandes Projetos Urbanos, segundo Cruz (2012).

Através do estudo foi possível identificar na bacia do Una a existência da Frente dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una (FMPBU), que apesar de surgir em 2013, vem denunciando desde 2008 a problemática dos alagamentos na bacia do Una através de uma ação civil pública ambiental, que ainda está tramitando no ministério público estadual. A partir disso, a Frente busca apoio nas entidades que defendem os direitos humanos, no âmbito acadêmico, e, com outros movimentos, realiza panfletagem para expor a problemática para a sociedade que sofre com alagamentos e possui um blog, com o intuito de dar visibilidade à problemática. Além da frente, foi possível verificar na mencionada bacia a existência e retomada do Centro Comunitário Unidos Venceremos (CCUV), que existe desde 15 de agosto de 1982, no bairro da Pedreira.

Já na bacia do Tucunduba, verificou-se a emergência da Frente dos Moradores Prejudicados da Avenida Perimetral (FMPAP), que surgiu em 2015 para contestar a lógica do Projeto de Duplicação da Avenida Perimetral, pois conforme a obra avançava, as condições de moradia eram ainda mais prejudicadas. Nesse sentido, alguns moradores da Avenida Perimetral passaram a denunciar os impactos da obra junto ao poder público local e buscar apoio no âmbito acadêmico. Criou-se a Comissão de Acompanhamento de Obras (CAO) do Projeto de Duplicação da Avenida Perimetral, que possui uma emergência espontânea, uma vez que é vinculada ao projeto de intervenção como instrumento de participação da população. No entanto, observa–se que a comissão não funciona com o intuito de organizar a população para reivindicar direitos, mas sim para legitimar o planejamento urbano concebido pelos gestores de Estado (CRUZ, 2012), evidenciando as maneiras pelas quais o planejamento urbano tem instrumentalizado a participação popular a favor de seus interesses. Por meio da escolha de representantes comunitários, coadunados aos interesses dos Estado, o poder público vem despolitizando os processos decisórios referentes a grandes obras de infraestrutura urbana, enfraquecendo também os processos de resistência aos impactos negativos dessas obras.

Mais recentemente, identificou-se o movimento denominado Comitê dos Prejudicados da Bacia do Tucunduba, que reúne moradores dos bairros Guamá, Terra Firme, Canudos, e Marco em decorrência da intervenção urbanística do Programa Integrado de Saneamento do Tucunduba. Essa política pública mudou a situação de moradia da população afetada, que hoje vive com alagamentos permanentes, ruas esburacadas e problemas de mobilidade urbana com vilas, passagens e ruas recebendo obstáculos para o acesso de pedestres, bicicletas e transportes de grande e pequeno porte, incluindo o transporte coletivo. O Comitê é um movimento aberto de aglutinação da população prejudicada pelos efeitos das obras e busca respostas para suas demandas junto ao poder público. Por meio do presente projeto foi possível apoiar a mobilização dos moradores com reuniões de formação sobre o programa de saneamento, a elaboração de documentos e participação em audiência pública realizada tanto na Assembleia Legislativa do Estado do Pará (ALEPA) quanto na câmara municipal de Belém. Na Estrada Nova verificou-se a presença da Comissão de Acompanhamento de Obras (CAO) do Projeto de Macrodrenagem da Bacia da Estrada Nova (PROMABEN) formada para fazer o acompanhamento da referida intervenção urbanística. No entanto, se observa a flutuação de sua atuação em decorrência das diversas interrupções que sofre a obra. A CAO do PROMABEN encontra muitas dificuldades de mobilização e articulação tanto dos moradores afetados, quanto no que tange à articulação junto ao poder público.

Por fim, há o Comitê Popular Urbano (CPU), surgido em 2014, a partir da necessidade de aglutinar as lutas pela Reforma Urbana e pelo Direito à Cidade em Belém. Acentua-se que o movimento possui uma luta mais ampla em relação aos movimentos sociais urbanos apresentados anteriormente, pois abrange a cidade de Belém e sua Região Metropolitana como um todo. Além disso, o movimento engloba as reivindicações de outros movimentos sociais urbanos como a Frente dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una (FMPBU). Destaca-se, também, a Frente dos Moradores das Áreas do PAC (FEMAPAC), que surgiu espontaneamente a partir dos intensos atrasos nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na capital paraense, e que visa aglutinar as lutas objetivando a conclusão dos projetos do PAC em Belém.

Os Movimentos Sociais Urbanos estão se organizando em Belém para denunciar os impactos gerados pelos projetos de intervenção urbanística, bem como reivindicam a melhoria das condições de moradia, regularização fundiária, fim dos alagamentos e a conclusão de obras inacabadas. É importante ressaltar que a origem desses movimentos sociais urbanos em Belém, na contemporaneidade, está relacionada principalmente aos impactos gerados pela ação de grandes projetos urbanos, em que as frações das classes trabalhadoras atingidas ficam à mercê, desalojadas de suas moradias e de seus locais de trabalho, condição básica de sobrevivência, deixando-as em situação de profunda vulnerabilidade social e econômica. É o caso, por exemplo, das 288 famílias do projeto Portal da Amazônia, que tiveram suas unidades habitacionais demolidas, permanecendo por mais de 10 anos no benefício do auxílio-aluguel. É o caso também das 33 famílias que se encontram no auxílio-comércio porque tiveram suas atividades econômicas desestruturadas pelo Programa de Macrodrenagem da Bacia da Estrada Nova – o PROMABEN.

Aliado a esses aspectos recentes, ressalta-se que, em que pese os efeitos gerados pelos grandes projetos urbanos, os movimentos sociais urbanos não abandonaram as pautas históricas das péssimas condições de moradia caracterizadas pela ausência ou deficiência de esgotamento sanitário e abastecimento de água, problemas de drenagem em vias sem pavimento e terraplenagem, coleta de lixo irregular, além das inúmeras interrupções na execução dos projetos/programas, prolongando a situação de vulnerabilidade e sofrimento social da população atingida. Essas condições de vida são aprofundadas pela forma como o Estado realiza o planejamento urbano, excluindo as populações dos processos decisórios sobre as políticas implementadas, ou seja, não oferece soluções satisfatórias para os problemas apresentados e realiza políticas públicas para atender interesses privados.

É importante ressaltar, por fim, que ao mesmo passo que os Grandes Projetos Urbanos passam, trazendo desenvolvimento econômico para a cidade, também destroem modos de vida e formas de trabalho de diversos sujeitos. Nesse sentido percebe-se que o Direito à Cidade tem sido modelado de acordo com os desejos de uma minoria, de acordo com Harvey (2009). Porém, é através das práticas diárias dos sujeitos que é possível mudar o modelo de cidade que existe, transformando-a em uma cidade de acordo com os desejos da coletividade. Sendo assim, os segmentos sociais organizados, que resistem e denunciam as violações de direitos humanos em tais áreas, estão buscando (re) construir essa cidade, pois, como ressalta Harvey (2009), se o mundo urbano que existe foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito, isto é, o espaço urbano que existe pode ser transformado através da organização dos sujeitos.

4 À GUISA DE CONCLUSÃO

Na atualidade, as cidades estão sendo produzidas e administradas sob a égide do capital globalizado, em que planejar o cotidiano urbano significa produzir novos territórios, mesmo que para isso os processos históricos vivenciados pelas frações das classes trabalhadoras tenham que ser desmantelados, as formas de vida desorganizadas em nome do novo e do moderno. Assim, o planejamento urbano tem sido utilizado como instrumento de governabilidade, de governance e da própria gestão do território. Ele se caracteriza como um processo constituído de um conjunto de técnicas de origens interdisciplinares, aplicado à gestão do planejamento urbano enquanto atividade de avaliação, propostas e controle território das cidades.

Embora no discurso do poder público os projetos de intervenção urbanística sejam uma resposta às demandas da população e visem melhorar as condições de moradia e saneamento nas bacias hidrográficas, o que tem se observado a partir da íntima relação entre o Estado, o capital e setores da classe dominante detentores dos meios de produção nos centros urbanos brasileiros, em especial no município de Belém, que têm como objetivos a ampliação da acumulação capitalista, é o aprofundamento dos efeitos segregativos que resultam do próprio sistema capitalista que cria e recria, produzindo a cidade formal e informal.

Para Cruz (2012), essas medidas de planejamento revitalizam os centros urbanos, produzem territórios para o mercado, desarticulando relações construídas historicamente, como as que estão relacionadas diretamente com a questão da moradia. São relações de vizinhança, atividades econômicas, manifestações culturais, práticas associativas etc., que são desagregadas, dando lugar ao progresso e à modernidade, onde tudo que é antigo, velho ou tradicional, passa a ser decadente, precisando ser extirpado, afastado, eliminado, dando lugar ao novo, limpo, belo e moderno. O planejamento urbano, então, ao garantir melhorias e infraestrutura urbana, paradoxalmente assegura as condições necessárias à produção da cidade espoliativa, excludente e segregativa.

Ressalta-se que, no caso da Amazônia, as cidades despontam como potencialidade para a dinâmica capitalista, sobretudo as suas metrópoles, haja vista a sua diversidade cultural diferenciando-se das demais cidades capitalistas em nível mundial e, assim, tornando-se elemento de atração para os órgãos de financiamento internacional,cujo compromisso maior é com os representantes do grande capital, fazendo com que suas ações nos países periféricos contribuam para o circuito internacional da economia e, portanto, para as condições gerais da produção. É necessário, então, retomar a perspectiva teórica que aponta a cidade e sua urbanização como fenômeno próprio das sociedades capitalistas, ou seja,

[...] a aglomeração da população, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres e das necessidades – em outras palavras, a cidade – não é, de modo algum, um fenômeno autônomo, sujeito a leis de desenvolvimento totalmente distintas das leis de acumulação capitalista, onde a esfera da produção, da troca e do consumo estão em constante interação. (LOJKINE, 1997, p. 139, grifo do autor).

Na contramão da lógica do capital que produz a cidade apenas através de intervenções que se apresentam como meramente técnicas, os processos de resistência emergentes na cidade de Belém estão associados aos efeitos que o modelo de planejamento tecnocrático e, por vezes, autoritário na implementação de grandes projetos urbanísticos adotado pelo poder público que exerce sobre a maioria da população moradora nos bairros atingidos por essas intervenções urbanísticas. Esse modelo caracteriza-se pela produção territorial da cidade com vistas a privilegiar a ampliação da reprodução do capital, sobretudo do capital imobiliário, por meio de ações de grandes empreendimentos que reconfiguram áreas consideradas degradadas ou decadentes, onde frações da classe trabalhadora habitam em condições precárias, são convidadas a se retirar em razão da revitalização desses espaços para uso do mercado, cuja marca maior tem sido o remanejamento de população, o deslocamento compulsório, o desemprego, mesmo que seja o trabalho informal.

Nesse sentido, os movimentos sociais urbanos emergentes em áreas de Grandes Projetos Urbanos vêm denunciando em Belém o descaso vivenciado não somente pelos moradores prejudicados das bacias do Una, Tucunduba e Estrada Nova, mas também o descaso vivenciado pela população de Belém, demonstrando a capacidade de resistência por parte dos sujeitos que vivenciam a violação cotidiana dos direitos humanos.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
1 O PARU é um programa de Extensão Universitária existente há 30 anos, ligado à Faculdade de Serviço Social na Universidade Federal do Pará. O PARU vem desenvolvendo ações principalmente no que se refere à assessoria aos movimentos sociais populares que defendem o direito à cidade, tendo como principal premissa o fortalecimento da sua organização em defesa de suas reivindicações e de sua interlocução com o Estado.
2 O Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una ocorreu em Belém (PA), onde o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) financiou juntamente com o governo do estado do Pará um ambicioso projeto de reforma urbana entre os anos 1990 e os anos 2000. O projeto foi responsável por uma série de obras de engenharia para implementação de redes de esgoto e drenagem, aterro de áreas baixas e alagadiças, bem como a implementação de sistema viário dentro de uma Bacia Hidrográfica que corresponde a 20 bairros e quase 60% do sítio urbano de Belém.
3 Promovido pelo PARU no dia 28 de novembro de 2013, no auditório do ITEC (Instituto de Tecnologia da UFPA) sob o título Urbanização e desigualdade em Belém: a Macrodrenagem da Bacia do Una.
4 A autora demonstra que instituições multilaterais como o BID se utilizam do discurso social e ambiental como eufemismo para a necessidade de infraestruturação física do espaço urbano em iniciativas voltadas para grandes investimentos de capital. (SANTANA, 2012).
Quadro 1
atureza, reivindicações, composição e instrumentos de luta dos movimentos sociais urbanos e outras formas de organização social emergentes nas bacias hidrográficas do Una, Tucunduba e Estrada Nova, em Belém

Dados do projeto Atualização da Leitura Acadêmica acerca de Movimentos Sociais Urbanos em áreas de Grandes Projetos Urbanos em Belém.
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