Mesas temáticas coordenadas

QUANDO A BALANÇA PENDE: um corredor para exportações e o território Santa Rosa dos Pretos

Anacleta Pires
Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Brasil
Cindia Brustolin
Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Brasil

QUANDO A BALANÇA PENDE: um corredor para exportações e o território Santa Rosa dos Pretos

Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1365-1386, 2018

Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 05 Março 2018

Aprovação: 23 Maio 2018

Resumo: O artigo apresentado resulta da fusão de duas comunicações apresentadas na Mesa Temática Projetos de desenvolvimento e comunidades tradicionais e indígenas no Maranhão: fronteiras territoriais, lutas sociais e equacionamento de conflitos durante a Jornada Internacional de Políticas Públicas, na UFMA, em 2017. Especificamente, evidencia as discussões relacionadas aos processos de construção da infraestrutura logística no Corredor Carajás para o escoamento de commodities do continente para o porto em São Luís sobre o território quilombola de Santa Rosa dos Pretos. Os trabalhos de pesquisa foram realizados nos anos 2015 e 2017 a partir da realização de entrevistas semiestruturadas e de documentos.

Palavras-chave: Empreendimentos, lutas territoriais, quilombolas.

Abstract: The article presented results from two communications presented on the Thematic Table Development projects and traditional and indigenous communities in Maranhão: territorial boundaries, social struggles and conflict equation during the international Public Policies Congress, at UFMA, in 2017. Specifically, it highlights the discussions related to the processes of construction of the logistics infrastructure in the corridor for the disposal of commodities from the mainland to the port in São Luís on the Quilombola territory of Santa Rosa dos Blacks. The research work was carried out in the years 2015 and 2017 from the realization of the interstructured interviews and documents.

Keywords: Enterprise, territorial struggles, quilombolas.

1 INTRODUÇÃO

Você é uma das lideranças da comunidade? - Em Santa Rosa dos Pretos todos somos lideranças. - Você representa o quilombo de Santa Rosa? - Eu represento o quilombo de Santa Rosa dos Pretos, os quilombos do Maranhão, os quilombos do Brasil e todos os qui- lombos do mundo (Informação verbal)1.

O trecho da entrevista conferida durante a coletiva de imprensa realizada por lideranças quilombolas na sede da Comissão Pastoral da Terra, em São Luís do Maranhão, em setembro de 2014, traz questões importantes para pensar os processos de reconhecimento de direitos territoriais e os conflitos socioambientais envolvendo grupos negros no estado. Depois de uma intensa mobilização realizada por cerca de 30 comunidades, em que quilombolas permaneceram mais de quatro dias acampados, alguns amarrados aos trilhos e outros tendo chegado a greve de fome, lideranças explicavam para jornalistas de meios de comunicação locais as condições impostas a setores do governo federal para saírem dos protestos realizados nos trilhos da Vale S.A.

As ações empreendidas nos trilhos não podem ser tomadas como atos localizados de lideranças negras devido aos conflitos fundiários e socioambientais na cidade de Itapecuru-Mirim, no interior do Maranhão. Pensamos ser importante pensá-las como inseridas nas possibilidades de universalização de demandas, da constituição de uma esfera pública reivindicada, mas não instalada, na equação de pleitos pela terra entre os grupos negros, quando da saída dos processos de escravidão2, o estado brasileiro e as mais recentes investidas em projetos neodesenvolvimentistas.

Na cidade de Itapecuru Mirim (MA), mais especificamente, no território da comunidade Santa Rosa dos Pretos, onde os protestos aconteceram, existe uma linha de trem mais antiga, construída na década de 1980, utilizada principalmente para transportar o minério de ferro das minas de Carajás para o porto, em São Luís, e outra mais recente, que integra o projeto de duplicação da ferrovia e de escoamento da produção de ferro de uma nova mina no Pará (Projeto S11D). O território da comunidade cortada pelas duas estradas, palco dos protestos, em setembro de 2014, era um dos mais próximos, se se pudesse considerar as etapas do procedimento administrativo de regularização fundiária dos territórios quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no Maranhão, como um processo regular, com etapas previsíveis, de chegar à titulação.

O território quilombola Santa Rosa dos Pretos situa-se no município de Itapecuru Mirim MA, a 86 quilômetros de São Luís, capital do estado. Limita-se ao leste com o Rio Itapecuru e o quilombo Filipa, a oeste com o território do quilombo Monge Belo, ao norte com as terras da antiga comunidade Barro Preto, hoje parte do assentamento São Francisco, e ao Sul com o quilombo Oiteiro do Nogueira, parte inserido no Projeto de Assentamento Entroncamento.

A comunidade Santa Rosa dos Pretos aparece no projeto Vida de Negro do Centro de Cultura Negra do Maranhão e da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos com um território de heranças. Poderíamos dizer que o reconhecimento como território quilombola completa anos junto com a Constituição Federal (CF) de 1988. Figura entre as primeiras comunidades quilombolas a reivindicar direitos territoriais no Maranhão. O processo de regularização fundiária, iniciado no Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (ITERMA), teve reconhecimento estadual a partir de um decreto estadual, e em 2005, com a aprovação do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, passou para o INCRA. Santa Rosa dos Pretos trava uma luta aguerrida pela titulação de seu território e contra a destinação de suas terras para a ampliação de um corredor a exportação de minérios e outras commodities em detrimento da reprodução da vida na localidade.

Entre as questões mais intrigantes das entrevistas das lideranças à imprensa local, não estavam somente os relatos das condições do protesto e de suas reivindicações, mas a não titulação das terras de quilombos no estado federativo que inaugurou a luta das comunidades negras no Brasil pelos seus direitos territoriais. Nenhum território que envolvesse desapropriação de terras particulares estava totalmente titulado, ressoava aos ouvintes mais atentos. Mais de vinte anos da oficialização dos direitos territoriais aos quilombolas e poucos avanços. Outra questão que chamava a atenção é que apesar dos impactos gerados por grandes empreendimentos, como as estradas de ferro da Vale S.A. e a duplicação da rodovia (BR 135) pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT), a consulta prévia (garantida pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT), a discussão acerca de medidas mitigatórias e dos estudos de impacto ambiental (também regulados por lei) foram minimizadas e ainda por cima a Vale S.A. teria contestado o processo administrativo de regularização fundiária do território de Santa Rosa dos Pretos.

Tomamos, neste texto, algumas questões provocadas a partir da entrevista coletiva sobre o protesto nos Trilhos do Trem da Vale, em Santa Rosa dos Pretos, e de vivências, idas à comunidade e entrevistas com lideranças realizadas posteriormente a esse momento (em 2015 e 2016), para discussão da tensão entre o reconhecimento de direitos territoriais aos grupos negros no Brasil, tratando especialmente do Maranhão, e o avanço de projetos desenvolvimentistas sobre territórios tradicionais, no caso, o de Santa Rosa dos Pretos, para discutir dispositivos de poder que operam na constituição de zonas de sacrifício, deslocando a cidadania reivindicada pelos grupos ora ao total desprezo, ora à condição de perigosos, ora a condição de pobres, ora a condição de bêbados. Numa guerra, contra os esforços e ganhos políticos dos grupos negros na constituição de esferas públicas mais plurais. Resumindo, como diz Eliete Paraguassu, do quilombo Rio dos Macacos, Ilha da Maré, na Bahia, parece que “[...] fizeram faculdade para negar direitos.” (Informação verbal)3.

Propomos a leitura dos direcionamentos ambíguos das políticas estatais de regularização dos territórios (como ter direitos, ter um processo administrativo e não ter titulações; ter um grande empreendimento que adentra as terras, ter legislação que obriga a escuta das comunidades, mas isto não ocorrer), o avanço de estruturas logísticas para grandes empreendimentos sem que se instalem arenas de discussão, bem como, uma série de ações localizadas que tendem a minar possibilidades de enfrentamento e resistência ligadas ao exercício de governo que incide sobre as populações e reorganiza espaços territoriais, determinando quem e como se deve viver, e quem está destinado a morrer. Ou seja, ao exercício da soberania e de seu direito de matar.

As tensões analisadas permitem ainda trazer à tona processos coloniais que ligam a localidade aos processos mais amplos de exploração e expansão de um capitalismo espoliador que tem como face central uma racionalidade neoliberal e processos coloniais internos à nação. Se a força dos processos expropriatórios provocados por grandes empreendimentos, que operam na lógica do desenvolvimento, está relacionada a um capitalismo dependente e à condição periférica de exportador de minérios; os formatos e deliberações que permitem a espoliação desenfreada e sem legitimidade de determinadas regiões, a violência que orquestra essas ações, as ações e omissões regulatórias do estado brasileiro, indicam as fissuras do tecido social brasileiro.

2 PROJETOS EM CONFLITO: a afirmação territorial e a construção de um corredor

Depois de um período de relativa autonomia dos grupos negros na região de Itapecuru Mirim, como apontam as narrativas de antigos moradores, a década de 1950 aparece como um marco nas transformações ocorridas na região, principalmente, da perda de terras. Uma série de mecanismos políticos operada via ações do estado, iniciativas de empreendimentos privados e de fazendeiros permite a projeção de estruturas logísticas de grandes empreendimentos e de fazendas sobre as terras dos grupos negros saídos do processo de escravidão, que mudaria drasticamente o cenário da vida na região. Dispositivos relacionados a apropriação territorial, como a demarcação e a compra de terras, o cercamento de áreas maiores do que as compradas, o apossamento de terras não compradas, a construção de estradas e a produção de documentos tencionam a recolocação de hierarquias raciais que pareciam em parte rompidas no imediato pós-abolição4. Houve um Itapecuru negro e cultural, em que os negros comandavam, na memória de Libânio Pires, que não era esse Itapecuru comercial que avança hoje sobre as práticas, as terras e os significados da região.

No pós-abolição, Joaquim Nunes Belfort, Barão de Santa Rosa, deixou em testamento à América Gomes e àqueles que lhe serviram como escravos, as terras do centro de lavoura da Fazenda Santa Rosa, incluindo no documento uma cláusula de inalienabilidade. Por cerca de meio século, o testamento foi passado de mão em mão entre os mais velhos descendentes das famílias dos ex-escravizados para a guarda. As terras herdadas foram cuidadas pelos anciões que se reuniam e decidiam em conjunto situações como as solicitações de pedido de morada pelos de fora. Como dizem ainda velhas lideranças de Santa Rosa, “[...] esse terreno não se vende, não se afora e nem se dá a pagamento”5. O rompimento das relações locais de guarda das terras está relacionado a gradativa apropriação territorial dos fazendeiros por meio da violência, a legitimação de apossamentos, a construção simbólica e legal da região como um corredor para exportações em nome dos bens públicos.

O desmembramento do quinhão de terras que estavam sob a vigilância dos mais velhos inicia-se quando a justiça torna-se necessária para dirimir problemas com o posseiro Teodoro Moreno que havia recebido permissão para se colocar na área, mas quebrava as condições impostas para a aceitação de sua morada. Seu Urbano, em 1952, quando exercia a função de guardião das terras, portanto, do testamento, passou uma procuração para o advogado e prefeito de Itapecuru Mirim (1952-1956), João da Silva Rodrigues, para levar a situação de conflito com Teodoro Moreno para a justiça. No documento conferido ao advogado, “[...] a procuração dava poderes ao ‘dito procurador propor outra qualquer ação contra o citado Teodoro Moreno, bem como promover a demarcação do dito imóvel [Santa Rosa]’ (Autos de Demarcação da Data Santa Rosa, 1952: 5)” (LUCCHESI, 2008, p. 45).

O prefeito João da Silva Rodrigues, em nome de Urbano Belfort, enviou ao juiz de direito da comarca de Itapecuru, Pitágoras Monteiro, requisição de demarcação judicial da Data Santa Rosa. No documento, conforme discutido por Lucchesi (2008, p. 46), o testamento deixado pelo Barão é mencionado, no entanto, não aparecem referências “[...] aos escravos e a cláusula de inalienabilidade”, sendo citados apenas América Gomes e seus descentes. O documento teria sido rasurado para as operações legais.

Além da procuração conferida ao advogado e prefeito, a demarcação da Data Santa Rosa, que permitiu o desmembramento e a posterior venda de terras, está relacionada à expedição do Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 que favoreceu no Maranhão o tempo do demarque. Muitas áreas foram requeridas e demarcadas nesse momento em prejuízo aos camponeses que estavam na posse das terras, mas não detinham ou não conseguiam fazer valer documentos. A maior parte da situação territorial do Maranhão, até a década de 1950, era de apossamentos. Os herdeiros descendentes em Santa Rosa possuíam um documento, no entanto, o registro das terras ainda precisava ser realizado. No bojo de processos de demarcação incentivados pelo governo federal e estadual ainda na relação com o advogado, as regras vividas começaram a ser rompidas.

A Data Santa Rosa foi recortada e repassada para diferentes requerentes na década de ‘1950. Os descendentes das famílias escravizadas que viviam no espaço territorial não foram contemplados, ficaram no quinhão Santa Rosa, uma área bem menor do que a ocupada. Apenas uma descendente direta do Barão, Marcolina Pires Belfort, que tinha documentos e foi oficiada da demarcação foi citada para a ação demarcatória. A publicação de aviso do processo no jornal do estado (Diário Oficial do Estado D.O.E) e no jorna O Imparcial não alcançou os moradores da área. O processo de uma nova formalização passou longe de grande parte dos moradores e das terras ocupadas6.

No momento de início do desmembramento e da venda de terras de Santa Rosa dos Pretos começam a chegar empreendimentos que cortaram também o território. A instalação das estradas rodoviária e ferroviária nas terras foi operada inicialmente a partir de conversas de técnicos com os moradores e da ênfase nas possibilidades ofertadas ao local de comunicação e de circulação das pessoas e de produtos, antes possível apenas pelos picos, pelo rio Itapecuru Mirim e pelo caminho que chegava ao Porto da Gambarra, e também pela contratação dos moradores para o trabalho de abertura da mata na obra da rodovia, hoje a Br 135. Embarcaram numa canoa furada, como analisa Seu Libanio, olhando para a situação de usurpação das terras hoje relacionada a instalação de estruturas de escoamento de produção, como as estradas.

Apesar das mudanças gestadas nessa década tão emblemática para pensar rompimentos em Santa Rosa dos Pretos, os processos de cercamento das fazendas, de pavimentação da rodovia, de construção de novas estradas de ferro aconteceram nos anos 1970-1980. O asfaltamento da rodovia, concluído em 1970, atraiu novos investidores para a região. Os novos compradores, principalmente o fazendeiro João Rodolfo, que na época era vice-governador do estado do Maranhão, cercou as terras, cortou acessos, impediu caminhos.

A compra e o cercamento realizado por João Rodolfo precisam ser pensados no contexto de mudanças inaugurado pelo governo Sarney, em 1967. Nesse período, já se esboçava o Maranhão Novo, o Maranhão Carajás, como se refere Asselin (2009). Momento em que foi criada a “[...] infra-estrutura, que permitiu a atração dos capitais sulistas e estrangeiros. Foi o tempo da construção das estradas que cortaram o estado, ligando, em primeiro lugar, a capital, São Luis, com as capitais vizinhas, e depois penetrando nas regiões do Pindaré e Tocantins.” (ASSELIN, 2009). Os projetos desenvolvimentistas para as regiões norte e nordeste juntamente com promulgação da Lei Sarney de Terras em 1962 incentivaram o processo de expropriação territorial campesina e fomentaram a venda de terras, minando o projeto de autonomia negra gestado.

As estratégias que consolidaram as perdas territoriais em Santa Rosa dos Pretos incluem o cercamento de terras dentro do território, amparado em parte na compra originada de uma alteração no testamento que possuía uma clausula de inalienabilidade, mas também na ação violenta de intimidação dos fazendeiros e da polícia. Como se pensava: vidro não briga com pedra. Mesmo assim vidros quebraram aos montes no território, numa luta ainda inacabada.

Contra a insistência dos moradores, legítimos donos, de acessar os babaçuais, lagoas, caminhos que historicamente percorreram, o gado foi solto em cima das plantações, a polícia foi acionada em defesa da propriedade. Ou seja, na usurpação da terra, como ressalta Asselin (2009 p. 151), “[...] a violência é inerente à grilagem, uma vez que é peça articuladora de apropriação de terras devolutas pelos projetos econômicos e de sua incorporação ao modelo da propriedade privada do sistema capitalista”. O Maranhão na década de 1980 foi palco de intensos conflitos por terra.

Fator decisivo na chegada das fazendas, foi a construção da rodovia. Na década de 1950, a rodovia BR 135 começou a ser aberta. A BR 135 ligou a cidade de São Luís ao sul do Maranhão, ao Piauí e aos estados do centro-oeste. Cortou praticamente ao meio o território de Santa Rosa dos Pretos. Foi construída no bojo de iniciativas desenvolvimentistas, à época, projetadas para o norte do Brasil.

As negociações para que a estrada passasse dentro das terras herdadas foram cercadas de promessas e possibilidades apresentadas pelos operários que trabalhavam na estrada, e também engendradas por relações próximas entre os técnicos envolvidos e os moradores. Um dos trabalhadores da estrada, um mensurador, auxiliou na própria medição das terras do grupo negro quando dos conflitos com posseiros. Os moradores de Santa Rosa também trabalharam na abertura da estrada, no trecho Itapecuru – Açailândia. Além das oportunidades imediatas de trabalho, o acesso à comunidade naquele momento era realizado principalmente por picos (hoje caminhos velhos), que poderiam ser trafegados a cavalo ou a pé e pelo rio Itapecuru.

Duas décadas após a instalação da rodovia, começou a ser construído o que se conhece hoje como o Corredor Carajás. A entrada dos trilhos no território assemelhou-se à construção da BR. Nenhuma indenização ao grupo, nem mesmo uma reunião com os moradores. Mais do que apenas uma estrada, agora um trem passaria por Santa Rosa. E ligaria Santa Rosa à rota internacional da mineração. Um trem que não poderiam embarcar.

No bojo do programa Grande Carajás7, a Estrada de Ferro Carajás (EFC) foi uma peça chave para os objetivos da empresa em relação ao mercado externo, completando a configuração do complexo mina ferrovia -porto (Província Mineral Estrada de Ferro Carajás - Terminal Portuário Ponta da Madeira, de propriedade da Vale). Após sua construção, as linhas do trem passaram a ser responsáveis pelo escoamento de minério de ferro e de outros produtos que têm como destino principalmente o mercado externo, como: os grãos de soja, os combustíveis, o carvão, o manganês. (SILVA, 2011).

O território quilombola de Santa Rosa dos Pretos foi atravessado pela a Estrada de Ferro Carajás (EFC), operada pela companhia mineradora VALE S.A, a ferrovia Transnordestina São Luís-Teresina, a rodovia BR 135, dois linhões da Companhia Energética do Maranhão (CEMAR), chamados Coebinha, e mais três que pertencem à companhia Eletronorte chamados Coheb Grande. Portanto, as terras vem sendo gradativamente destinadas a um projeto que não contempla seus moradores. Conforme aponta Silva, Ribeiro Junior e Sant’Anna Júnior (2011, p.3), desde o final da década de 1970, foram implantados no Maranhão:

[...] estradas de rodagem cortando todo o território estadual e ligando-o ao restante do país; a Estrada de Ferro Carajás, ligando a província mineral de Carajás (sudeste do Pará) ao litoral maranhense; o Complexo Portuário de São Luís, formado pelos Portos do Itaqui (dirigido pela Empresa Maranhense de Administração Portuária), da Ponta da Madeira (de propriedade da então Companhia Vale do Rio Doce, atual Vale) e da ALUMAR; oito usinas de processamento de ferro gusa nas margens da Estrada de Ferro Carajás; uma grande indústria de alumina e alumínio (ALUMAR, subsidiária da ALCOA) e bases para estocagem e processamento industrial de minério de ferro (Vale) na Ilha do Maranhão; um centro de lançamento de artefatos espaciais (Centro de Lançamento de Alcântara – CLA); a Termelétrica do Porto do Itaqui (em construção); projetos de monocultura agrícola (soja, sorgo, milho, eucalipto) no sul, sudeste e leste do estado; bem como, mais recentemente, a construção da Refinaria Premium da Petrobrás e a Usina Hidrelétrica de Estreito.

Boa parte desses empreendimentos envolvem o Corredor Carajás. Na luta pela titulação do território de Santa Rosa dos Pretos, a comunidade insurge-se contra a tomada continua de suas terras para esse projeto de desenvolvimento que destina ao Maranhão o lugar, principalmente, de portador de estruturas logísticas de escoamento da produção mineral e agrícola para o exterior e corta os territórios quilombolas, transformando esses espaços no que a literatura que discute os conflitos socioambientais chama de zonas de sacrifício.

3 O PROGRESSO E O DESENVOLVIMENTO: entre a invisibilidade e a folclorização da presença negra

Os discursos sobre o progresso e o desenvolvimento em documentos públicos e propagandas têm o efeito de esvaziar de sentidos a existência negra na localidade. O slogan da propaganda sobre o aniversário dos 30 Anos do Carajás, em 2015, Mais que uma história, um exemplo da capacidade humana de ver onde nada havia para ser visto (ANDRADE, 2015), apaga na linha traçada pelo trem grupos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais. Mesmo que só em Itapecuru Mirim existam em diferentes registros mais de setenta quilombos.

A invisibilização da presença desses grupos ou a folclorização de suas manifestações culturais, constantemente produzida, está relacionada com estratégias de governo e a incongruência de suas existências nos projetos hegemônicos para a região. Amparadas em arsenais de uma nação que não contempla os grupos étnicos e suspeita de suas demandas, configuram-se situações de extrema violência em nome do público, do bem comum.

Sobre a região que vem sendo consagrada como lugar de passagem de mercadorias para exportação foram projetadas duas novas obras na última década – a duplicação da estrada de Ferro Carajás e a duplicação da Rodovia Br 135. A intensificação do comércio de commodities minerais e agrícolas para o exterior via porto, no município de São Luís, e a retomada de projetos desenvolvimentistas projeta o aumento do corredor consolidado nas décadas de 1970-80, alterando novamente a dinâmica dos territórios negros. Apesar da formalização de direitos territoriais a esses grupos na Constituição Federal de 1988, por meio do art. 68 do ADCT, a relativização de seus efeitos na não titulação e principalmente na concessão de terras para empreendimentos é constante e crescente, como aponta Almeida (2012).

Trata-se do que Anjos (2015) destaca como a eliminação do direito em seu próprio exercício. Destacamos nuances dessas táticas e estratégias relacionadas à execução dessas novas obras, com início entre 2004 e 2017, que atingem diretamente o território de Santa Rosa dos Pretos.

3.1 S11D e os processos de invisibilidade e silenciamento dos quilombolas

A duplicação da estrada de ferro Carajás, que cortou recentemente o território de Santa Rosa dos Pretos, faz parte do projeto Ferro Carajás S11D da mineradora Vale S.A. O projeto começou a ser apresentado ao órgão ambiental, em 2004, para expedição das licenças necessárias à exploração de novas minas no Pará, a construção de uma usina e as expansões na logística ferroviária (expansão de 504 km e remodelação de 226 km de linhas existentes) e ampliação portuária em São Luís.

A nova linha cruzou o território quilombola de Santa Rosa dos Pretos, apesar de uma série de protestos, de denúncias, de ações judiciais e de acordos não cumpridos que evidenciavam a concessão de licenças ambientais que não tinham seguido os ritos necessários, como: a produção do EIA, a realização de Consulta Prévia e de audiências públicas que explicitassem minimamente o projeto, a apresentação dos impactos sobre os territórios quilombolas, que evidenciassem e propusessem as mitigações necessárias. Os quilombolas no momento de concessão de licença haviam ficado de fora dos estudos exigidos por lei.

Menos do que um esquecimento, foram silenciados e invisibilizados diante de processos formais de reconhecimento e de titulação já com relativo avanço. Santa Rosa dos Pretos teve seu RTID publicado em 2008 pelo INCRA. Mesmo contando com um marco legal e estando presente em diversas listas públicas no INCRA, na Fundação Cultural Palmares, na página da Comissão Pró-índio, não foram contemplados nos estudos ambientais para a instalação da obra. O seja, na construção da nova ferrovia, se decidiu seguir o padrão da obra anterior, fizeram foi invadir mesmo. Conforme Silva (2011), em 2011, a mineradora iniciou o processo de duplicação da Estrada de Ferro Carajás sem comunicar as comunidades quilombolas que seriam atingidas. As informações que chegavam eram vagas e vinham através de terceiros, como funcionários de empresas terceirizadas. (SILVA, 2011).

O conhecimento da existência da comunidade e sua desconsideração pela empresa e pelos órgãos públicos é evidente, por um lado, na ignorância no momento de estudo e de licenciamento do empreendimento. E, por outro lado, na lembrança pela empresa mineradora da existência quilombola ao contestar o RTID de Santa Rosa dos Pretos e de Monge Belo. Em 2008, em face da obra, a VALES.A contestou o reconhecimento do território quilombola no que diz respeito ao traçado definido pelo INCRA:

[...] a área excluída não é suficiente para salvaguardar o correto funcionamento da Estrada de Ferro Carajás, no pequeno trecho da interseção com a comunidade Santa Rosa, tal como delimitado pelo INCRA -MA, vez que, inadvertidamente, deixou de considerar o processo em andamento de ampliação, duplicação, melhorias da referida linha férrea. (INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA, 2009, p. 10).

Além da solicitação de exclusão da área devido à ampliação das linhas férreas, outro argumento apresentado pelos representantes da empresa foi o fato de se tratar de uma concessão de serviço público cedido pela União à Vale S. A., voltados para o transporte de produtos diversos para o porto da Ponta da Madeira e de transportes de passageiros, e que compreenderia as margens da ferrovia que teriam ficado dentro do perímetro delimitado como território:

Nessa esteira, avançando no processo de desestatização da logística ferroviária nacional, em 30 de junho de 1997, a União, por intermédio do Ministério dos Transportes, firmou contrato com Companhia Vale do Rio Doce – Vale, ainda em vigor, cujo objeto consiste na concessão de serviços públicos federal de transporte ferroviário de cargas e passageiros, compreendendo o uso, gozo e exploração da Estrada de Ferro Carajás, envolvendo também toda a área que margeia a ferrovia (faixa de domínio), a qual serve de suporte para a manutenção da aludida estrada de ferro. (...) [...] Vê-se, por conseguinte, que por meio da Estrada de Ferro Carajás é realizado não só o transporte de minérios, soja, gusa e cobre, como também o transporte das populações dos diversos lugarejos longínquos, desassistidos de infraestrutura e transporte público, sendo tal serviço público realizado de maneira legítima e com supedâneo em atos administrativos que garantem à empresa Impugnante a posse mansa e pacífica sobre a referida malha, por onde trafegam as composições ferroviárias (INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA, 2009, p. 10).

A contestação foi indeferida pelo Comitê de Decisão Regional do INCRA/MA, no dia 30 de setembro de 2009, com base em pareceres apresentados por especialistas da autarquia: o do Procurador Luiz Fernando Pedrosa Fontoura, Chefe da Procuradoria Federal Especializada, e o de Fernanda Lucchesi, Antropóloga, Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário.

No entanto, no dia 05 de novembro de 2009, os advogados da mineradora entraram com recurso contestando as razões técnicas e jurídicas que foram apresentadas como base para o indeferimento (INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA, 2009). A partir da segunda contestação, o processo de regularização fundiária ficou estagnado por anos. As possibilidades dos quilombolas terem ciência dos motivos da paralisação do procedimento no INCRA foram construídas a partir das relações tecidas com o Ministério Público Federal (MPF), com a Defensoria Pública da União (DPU), com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e principalmente a partir de atos de protesto e ocupação.

As denúncias realizadas pelas lideranças de Santa Rosa dos Pretos e de Monge Belo, acerca dos problemas envolvendo as duplicações da estrada de ferro e a paralisação dos processos no INCRA, deram base a uma Ação Civil Pública contra a mineradora e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), em 2011, por omissão dos “[...] impactos ambientais e sociais causados às comunidades remanescentes de quilombos Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo, além de outras indicadas.” (BRASIL, 2011, p. 1). No bojo dessa ação foi firmado um acordo judicial em 2012 (BRASIL, 2012) envolvendo quilombolas, a FCP, o IBAMA, o INCRA e a VALE S.A. O acordo cria obrigações para todas as partes envolvidas, seguem algumas cláusulas que evidenciam, por exemplo, na clausula 2, a VALE e os quilombolas num acordo sobre a passagem no território e o processo de regularização no INCRA:

Cláusula segunda

a) A VALE desiste das impugnações administrativas ou judiciais contras os relatórios técnicos de identificação e delimitação das comunidades remanescentes de quilombos de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo ressalvados fatos supervenientes. Não há necessidade de republicação dos RTID de Santa Rosa e Monge Belo.

b) As comunidades de Santa Rosa e Monge Belo, através das suas associações, concordam com a delimitação de uma faixa de segurança lateral à ferrovia, com a extensão máxima de 40 metros, para cada lado da via, considerando especialmente as medidas identificadas no presente termo. (BRASIL, 2012).

Na cláusula quarta, a tentativa de tradução do aterramento dos igarapés, tão presente nas demandas dos quilombolas no território:

Cláusula quarta

A VALE compromete-se a:

a) Apresentar ao IBAMA, no prazo de 10 dias, considerando o fornecimento de termo de referência a ser elaborado pela autarquia, estudo específico sobre a situação dos corpos hídricos afetados pela Estrada de Ferro Carajás e sua duplicação no segmento 20, inclusive abordando as medidas a serem adotadas para a sua recuperação e hábeis a propiciar a sua utilização pelas comunidades adjacentes aos empreendimento. O estudo deverá ser elaborado as expensas da VALE. [...]

c) adequar os bueiros e passagens de água atualmente existentes na Estrada de Ferro Carajás no segmento 20, no prazo de seis meses a contar da homologação do acordo, de forma a garantir a circulação hídrica e passagem dos peixes, além de realizar a recuperação das margens e dos corpos hídricos afetados por serviços de manutenção nos prazos assinalados pelos IBAMA.

d) não realizar a abertura de estradas de serviço /manutenção com aterro em corpos hídricos ou suas margens excetuadas as hipóteses na quais houver autorização específica para tanto, concedida pelo IBAMA no procedimento de licenciamento. (BRASIL, 2012).

Sem adentrar na discussão sobre as circunstâncias da produção do acordo, queremos destacar como o acordo foi permeado por posteriores descumprimentos. No dia dez de dezembro de 2014, o MPF recorreu à justiça para exigir o cumprimento das medidas acordadas pela VALE, pelo IBAMA, pelo INCRA e pela FCP. Só não foram demandadas nesta petição realizada no curso da ação judicial, as comunidades de Monge Belo e de Santa Rosa dos Pretos que de pronto haviam cedido suas terras para a passagem da nova linha, cumprindo o acordo firmado na justiça. Um acordo, quando assinado ou dada a palavra, na justiça ou não, para um grupo que tem no respeito uma de suas principais bases éticas, como os moradores da Comunidade Santa Rosa dos Pretos, é uma obrigação. No entanto, um acordo, uma reunião, uma assembleia podem ter objetivos distintos para as demais instituições envolvidas e assumir estratégias de esvaziamento das possibilidades de discussão.

No texto inicial da petição intermediária de 2014 à ACP, na parte intitulada IBAMA e VALE – da não implementação das providências aos impactos dos corpos hídricos, o MPF menciona um trecho da nota técnica do IBAMA reprovando o Estudo Ambiental realizado pela mineradora: “[...] dessa maneira essa equipe técnica entende que o diagnóstico dos corpos hídricos potencialmente impactados pela Estrada de Ferro Carajás ficou prejudicado, e sendo assim, comprometeu-se o objetivo principal do EA. Sugere-se a reprovação do EA e solicitação de retificação do mesmo por parte do empreendedor”.

Diante do descumprimento, mais estudos e mais tempos foram cedidos. Segundo o mesmo documento, enfatiza o procurador que a “VALE afirma ter encaminhado novo estudo ao IBAMA, porém, não apresentou documentação comprobatória dessa providência.” (BRASIL, 2011). Continua afirmando que a empresa alega ter “protocolado novo estudo em 27/06/2014, ou seja, mais de 210 dias após a data que afirma ter sido comunicada da reprovação do estudo”. O procurador conclui a solicitação afirmando o problema no atraso por parte da empresa e que de fato não se saiu do lugar, persiste: “[...] o mesmo problema dois anos após a celebração do acordo.” (BRASIL, 2011, p. 1276).

O descumprimento da obrigação assumida no acordo pelo IBAMA também é mencionado pelo MPF que destaca: “[...] não pode limitar-se à chancela de documentos do empreendedor e sua atuação não pode ser apenas formal”. Da mesma forma, na mesma peça jurídica, chama-se a atenção da FCP que “[...] somente realizou as medidas que beneficiaram à VALE (i.é. a manifestação liberatória da obra – clausula quinta, “c”). Quanto à proteção dos interesses dos quilombolas, contudo, não se verificou o adimplemento de obrigações”. (BRASIL, 2011, p. 12820).

Em 2016, a peça endereçada a mesma ação judicial pela DPU tinha como foco novamente o cumprimento do Acordo. Quatro anos após a realização do acordo, o defensor público solicita à empresa

[...] no que se refere à manifestação sobre os corpos hídricos, verifica-se a insuficiência dos dados e das justificativas apresentados pela VALE, tornando-se isto evidente pelo acréscimo de mais um pedido de complementação de relatório solicitado pelo IBAMA, no qual foi evidenciado a necessidade de detalhamento pelo empreendedor sobre o incremento na concentração de ferro dissolvido nos 6 (seis) cursos d’água referidos na Nota Técnica, devendo o empreendedor comprovar que este incremento não é devido à operação ferroviária, ou, caso contrário, propor ação mitigatória desses impactos [...](BRASIL, 2011, p. 4).

No documento de 2016, existem outras demandas exigidas pela DPU, relacionadas ao não cumprimento do Acordo, também ao INCRA, à Fundação Cultural Palmares, à VALE S.A. e ao IBAMA.

A produção da existência quilombola enquanto sujeito de direitos que foram violados e precisam de reparações fica aprisionada numa série de reuniões, visitas, denúncias que seguem exigindo novas reuniões e denúncias sempre como um vir acontecer, que não acontece. Nesses espaços temporais, um processo lento de normatização, de microregulamentações vai se constituindo e tem resultado em perda territorial e avanço dos empreendimentos. Os desacordos tácitos gerados nos descumprimentos de leis ou de acordos afirmados, apesar de papéis assinados e das multas e do pronunciamento de procuradores (e dos demais aliados), produzem uma série de novos documentos, reuniões, ações, documentos confusos, ou como diria uma das lideranças, produzem um mundo dos papéis.

O mundo dos papéis tem um efeito normalizador no sentido que constitui um tempo de espera e enrolação por um direito sempre a acontecer. Constituindo uma margem de possibilidades de distintas manobras técnicas e políticas que permitem a instalação das obras, amparadas sobretudo na urgência do progresso e do desenvolvimento. Como num jogo invertido, em contraposição das regras, apenas em nome de um bem comum que nunca encontra fundamento empírico numa coletividade, além da necessidade de escoamento de mercadorias, as obras instalam-se para depois serem operados a reboque os processos de concertação em instâncias estatais que, como deveriam cumprir um rito anterior à instalação, acabam assumindo caminhos diversos, arranjos, remendando estragos. Ou seja, a exceção vira o rito nos processos remendos de consultas e licenciamentos que não ocorrem.

Por enquanto, os prejuízos causados pela antiga ferrovia e demais empreendimentos que rasgam o território (linhões, estradas de ferro, rodovia) foram somados aos da nova obra (os igarapés que já sofriam foram mais aterrados, por exemplo), formando, na linguagem da técnica, um enorme passivo ambiental, sem que o levantamento do preço pago pelos territórios devido às estruturas construídas saísse dos ombros dos quilombolas e adentrasse às esferas públicas e aos responsáveis. A recusa ao empreendimento não foi uma possibilidade de posicionamento para os quilombolas. E os impactos e as mitigações não foram uma questão de direitos a serem respeitados no processo de concessão das licenças, ausentes até nos papéis, mitigações ou avaliações do processo de tomada das terras não se apresentaram nem sequer como possibilidade de alguma equação diante das modificações territoriais produzidas e de seus impactos. Vozes, compreensões, faltas entram as vezes pelas frestas de algum documento, que menciona o fim dos igarapés Simaúma e Lenheiro, entre outros que estão secando. No processo com um todo, as perdas continuam ecoando apenas àqueles que caminham pelas terras secas e nos olhos dágua ainda resistentes.

Somente no local e transpondo diversas fronteiras necessárias ao mundo dos papeis é que é possível vislumbrar que um mundo está em jogo e este não ascende aos espaços de poder institucionais, não transpõe as muralhas que têm sido postas pelos empreendimentos. Certo dia na comunidade começou a circular o sonho de Libânio. O sonho ressoava nas casas como acontecimento. Libânio, que quase não enxerga, estava sendo levado pelos encantados em sonho para olhar os Igarapés, ora para lembrar como eram antes dos impactos, ora para ver como estão.

Na ata da reunião realizada em 2014 para discutir possíveis Consultas Públicas sobre o PBA da Vale S.A. em função das estradas de ferro nos territórios quilombolas, uma das lideranças quilombola explicita um dos resultados do processo desrespeitoso que envolve a entrada de empreendimentos nas terras de Santa Rosa dos Pretos:

[...] numa conversa com Ana Edith foi oferecido um poço pela VALE e quando foi o mês de junho a VALE chegou disse que o poço foi aprovado e que a VALE pediu que ele assinasse e que iria ainda levar para o Prefeito sob o argumento de que a Prefeitura iria fazer. Ele disse que não foi isso que foi combinado e discutido. E que o valor do poço seria de R 158.000,00 com uma profundidade de 150 metros. E que a VALE disse que está fazendo uma doação, porque que eles fazem isso, porque não sabíamos que era uma consulta. (BRASIL, 2014).

O que era para ser uma discussão sobre o que é devido a esses grupos, vira doação. A ameaça a seus igarapés e a toda terra de roças e encantarias que envolve a produção da vida no quilombo, uma métrica desregrada reduz a um poço, um laudo de resíduos, um melhor encanamento. Castro (2017) destaca que uma grande operação se processa nesses casos em que as demandas de grupos indígenas, que reivindicam o respeito à diferença e à vida, são transpostas a favores ou a doações. No mesmo ato em que oferecem o presente a ser doado, os desejam transformar em pobres e retiram a condição de portadores de direitos e de diferenças a serem respeitadas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: a duplicação da BR 135 e o aparecimento folclórico do quilombo

Em finais de outubro e início de novembro de 2017, sem Consulta Prévia, sem a realização de audiências públicas, sem apresentação de documentos, as máquinas chegaram à Santa Rosa dos Pretos e às demais comunidades quilombolas do Trecho 2 da duplicação da BR 135, que no passado já haviam sido cortadas pela rodovia, para iniciar os procedimentos necessários para a duplicação da via.

Dessa vez, Santa Rosa aparece no EIA8 como possuindo um importante tambor de crioula (com fotos de um Tambor de Promessa), a Festa do Divino e um grupo de bumba meu boi. É mencionado no estudo que foram realizadas 6 entrevistas, no quilombo de mais seiscentas famílias. A desconsideração se opera novamente, agora não mais com uma total invisibilidade nos estudos, mas com a folclorização de suas manifestações culturais. Inclusive com muita suposição, uma vez que o boi que é referido já está parado a mais de uma década.

Uma série de reuniões começam a ser organizadas e órgãos públicos começam a ser provocados. Mais uma das vias do corredor precisa ser colocada. Se o ter o boi ou ter o tambor aparecem, a vida que dá sentido a essas práticas continua como um nada, onde se quer construir um tudo (a necessária duplicação da rodovia para o bem comum, o progresso do Maranhão e contra as mortes na estrada).

No entanto, a memória da rodagem e do mastro nos produz novos sentidos quando ouvimos que vai ser difícil atravessar, caso a duplicação aconteça. Atravessar não é chegar ao outro lado de uma rodovia apenas, mas manter a unidade de um território, a comunicação e as relações que o fazem retribuir ao divino a própria existência do todo e de cada um, pois quem manda em Santa Rosa dos Pretos é o Divino. O Divino em sua igreja está na beira da rodagem e o mastro ainda segue contra os carros e a velocidade em direção a todas as casas de cada lado dessa beira, não só em dezembro (como erradamente colocam no EIA, aprovado pelo licenciamento), mas em novembro e em janeiro de cada ano. Em Santa Rosa, não se é nada sem ele. O respeito ao Divino, a relação de reciprocidade estabelecida, um sentido de vida e sim um território nos chama a outras ontologias, constantemente ameaçadas no desrespeito da ação violenta do estado e de grupos privados e seus empreendimentos.

REFERÊNCIAS

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ANDRADE, C. Um especial conta em texto e fotos os trinta anos de história da Estrada de Ferro Carajás: fotos inéditas dos desafios de engenharia que mudaram para sempre uma região nunca antes desbravada. São Luís, 2015. Disponível em:http:// www.portosma.com.br/noticias/noticia.php?id=3145. Acesso em: 10 jun. 2017.

ANJOS, J. C. Prólogo. In: BRUSTOLIN, C. Reconhecimento e Desconsideração: a regularização fundiária dos territórios quilombolas sob suspeita. São Luís: EDUFMA, 2015.

ASSELIN, V. Grilagem: corrupção e violência em terras dos Carajás. Imperatriz, MA: Ética, 2009.

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BRASIL. Defensoria Pública da União. Ata de audiência – 08.03.2012 - ACP 21337-52.2011.4.01.3700. Brasília, DF, 2012.

BRASIL. Defensoria Pública da União. Petição Intermediária - ACP 21337-52.2011.4.01.3700. Brasília, DF, 2011.

CARNEIRO, M. A exploração mineral de Carajás: um balanço trinta anos depois. Não Vale, São Luís, p. 16-30, 2010.

CASTRO, E. V. de. Os Involuntários da Pátria elogio do subdesenvolvimento. Belo Horizonte: Chão da feira, 2017. (Caderno de Leituras, n. 65 - Série Intempestiva).

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA. Processo INCRA 54230.001364/2009-79. Contestação ao RTID Comunidades Santa Rosa dos Pretos. Brasília, DF, 2009.

LUCCHESI, F. Relatório Antropológico de Identificação do Território Quilombola de Santa Rosa (MA). Brasília, DF: INCRA, 2008.

SILVA, S. Relatório sobre a situação dos Territórios quilombolas Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo. [S. l.: s. n.], 2011.Disponível em:www.justiçanostrilhos.org. Acesso em: 24 maio 2011.

SILVA, S. C. da; RIBEIRO JUNIOR, J. A. dos S.; SANT’ANA JÚNIOR, H. A. Projetos de desenvolvimento e conflitos territoriais no espaço amazônico maranhense: a duplicação dos trilhos da estrada de ferro Carajás e os impactos socioambientais nas comunidades quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo em Itapecuru-Mirim. São Luís, 2011. Mimeo.

Notas

1 Depoimento retirado da fala de Anacleta Pires na entrevista concedida em uma coletiva de imprensa em 2014.
2 E, tratando-se da escravidão, são demandas que só podem ser compreendidas como sendo reivindicações que ecoam de vozes no mundo, como citado no trecho da entrevista acima. É importante destacar que a nação brasileira começa a organizar suas bases, no século XIX, após o rompimento com Portugal, em 1822, tendo a escravidão como parâmetro. Como exemplo, as discussões em torno da Lei de Terras de 1850 e o texto aprovado pensam e organizam um regime de terras que dificulta a apropriação formal e o reconhecimento de apossamentos, prevenindo-se da provável abolição.
3 Trecho da fala de Eliete Paraguassú, documentário Mulheres das Águas, Fiocruz (direção Beto Novaes, 2017).
4 Ainda carecem pesquisas sobre os processos de autonomia dos grupos negros na região.
5 A frase aparece nas narrativas de moradores de Santa Rosa dos Pretos, especialmente, de lideranças mais velhas, e também em registros, como o relatório antropológico de Lucchesi (2008).
6 A área da Data Santa Rosa foi dividida em sete quinhões: 1) Quelrú (154,2040 ha.), para Cia. Babaçu Ltda.; 2) Boa Vista (3.098,0000 ha.), para Marcolina Pires Belfort; 3) Barreiras (726,0000 ha.), para José Lopes Macedo; 4) Frexeiras (500,0000 ha.) para Maria Anunciação;5) Santa Rosa (2.178,0000 ha.), para Urbano Belfort e Outros; 6) Santa Rosa (1.260, 6000 ha.), para Marcolina Pires Belfort; 7) quinhão Picos (894,8400 ha.), para Joaquim Nogueira da Cruz (LUCCHESI, 2008).
7 O Programa Grande Carajás foi criado em 1980 pelo Decreto-Lei nº 1813 de 21 de novembro de 1980. O principal objetivo do governo com a criação do programa era beneficiar as empresas que por ventura viessem a se instalar na região, que envolvia os estados do Pará, Maranhão e Tocantins. Os benefícios seriam através de incentivos financeiros e isenções fiscais operacionalizadas por instituições públicas da região e pela própria estrutura de organização do PGC. Foram empreendimentos beneficiados pelo investimento do governo: as fábricas de produção de alumina e alumínio, a Albrás (Pará) e Alumar (Maranhão) e a fábrica de silício metálico CCM no Tucuruí/PA. Além de projetos agropecuários de empresas que trabalharam na construção da infraestrutura de Carajás: a Queiroz Galvão, Mendes Júnior e a Tratex. E por fim as usinas de ferro-gusa localizadas em Açailândia/MA e Marabá/PA (CARNEIRO, 2010).
8 Nos referimos a seguinte parte do documento: Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da BR- 135/MA. Diagnóstico ambiental do Meio Socioeconômico. Brasília, DF, 2016. Tomo IV.
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