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DINÂMICAS SOCIOTERRITORIAIS E PRÁTICAS PROFISSIONAIS: entre chãos e gestão

Carola Arregui
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, Brasil
Dirce Harue Ueno Koga
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, Brasil
Rodrigo Aparecido Diniz
Prefeitura da Cidade de São Paulo, Brasil

DINÂMICAS SOCIOTERRITORIAIS E PRÁTICAS PROFISSIONAIS: entre chãos e gestão

Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1407-1430, 2018

Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 19 Abril 2018

Aprovação: 09 Maio 2018

Resumo: O presente artigo buscar realizar aproximações entre política social e análise socioterritorial. Confluindo a essa análise, destaca, ainda, as discussões que permeiam o trabalho social no contexto das políticas sociais, sobretudo, na política de assistência social. Busca, (ainda) ademais, situar e discutir a pesquisa e a avaliação como elementos centrais e inerentes das políticas sociais, abandonados pela perspectiva gerencial e que precisam ser reposicionados para a construção do debate sobre os propósitos da avaliação, na perspectiva socioterritorial. A partir de experiências desenvolvidas em municípios do interior de São Paulo e da cidade de Londrina-PR, este artigo busca decifrar duas linhas de força na direção dos sentidos territoriais na política de assistência social: a força da experiência e a força do sentido coletivo e público na ação, buscando aproximar chão e gestão.

Palavras-chave: Território, avaliação, gestão, assistência social.

Abstract: The present article seeks to make approximations between social policy and socio-territorial analysis. Confronting this analysis, it highlights the discussions that permeate social work in the context of social policies, especially in social assistance policy. It also seeks to situate and discuss research and evaluation as central and inherent elements of social policies abandoned by the managerial perspective and that need to be repositioned for the construction of the debate about the purposes of evaluation, from a socio-territorial perspective. Based on experiences developed in municipalities in the interior of São Paulo and the city of Londrina-PR, we sought to decipher two lines of force in the direction of territorial directions in social assistance policy: the strength of experience and the strength of the collective and public sense in action, seeking to approach ground and management.

Keywords: Territory, evaluation, management, social assistance.

1 INTRODUÇÃO

Os resultados das eleições de 2016 no Brasil revelaram mudanças significativas no quadro da gestão municipal, com um visível crescimento dos partidos de centro-direita, em que o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) com maior número de municípios sob seu comando, passando de 1.021 (2012) para 1.038 (2016) e o Partido da Social Democracia (PSDB) cresce de 695 municípios (2012) para 803 (2016). O Partido dos Trabalhadores (PT) é o que sofre a maior queda à frente das prefeituras municipais, passando de 638 municípios (2012) para 254 (2016). Sem dúvida, este cenário, aliado à crise política-econômica do país, o corte orçamentário e retrocesso no campo das políticas sociais com a aprovação em dezembro de 2016 da ex Proposta de Emenda a Constituição (PEC) nº 55/241, agora Emenda Constitucional (EC) nº 95, de 15 de dezembro de 2016, afetaram diretamente a gestão das políticas sociais no âmbito local, principalmente. Os trabalhadores e usuários do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) têm se organizado em torno de fóruns locais, e a experiência acumulada em processos de aprimoramento do próprio SUAS nos últimos tempos tem contribuído para o fortalecimento da luta e resistência desta política pública frente a este cenário.

Ao mesmo tempo, continuam sendo desafiadores para as políticas sociais brasileiras e para o SUAS e seus usuários, trabalhadores e gestores a dimensão continental do país e suas 5.570 cidades, marcadas pelas desigualdades socioeconômicas e as diversidades socioculturais presentes no cotidiano de seus territórios.

As reflexões delineadas em torno das aproximações entre a gestão pública e seus territórios de intervenção nascem de experiências de supervisão técnica com municípios do interior do Estado de São Paulo e da cidade de Londrina-PR, no âmbito da Política de Assistência Social, aliando o acúmulo construído na universidade e os conhecimentos e experiências consolidadas pelos trabalhadores e gestores do SUAS. As mediações construídas nesses processos de supervisão técnica se concretizaram em instrumentos de gestão, que buscavam apoiar os processos cotidianos de trabalho dos sujeitos envolvidos.

Mais do que instrumentos, tratou-se de movimentos de construção coletiva do conhecimento, envolvendo o que Profa. Myriam Veras Baptista costumava denominar de pesquisa-ação na ação, e que abarcaram processos e produtos com a finalidade de dar concretude a uma lógica de planejamento, que ao longo da assessoria ganhava cada vez mais sentido, a ponto de legitimar diretrizes já apontadas pela equipe de gestão, a partir das demandas dos territórios e das situações de desproteção social, lançando perspectivas para: implantação, adequação ou ampliação de serviços. As experiências com estes trabalhadores do SUAS reforçam a importância da educação permanente e, ao mesmo tempo, a perspectiva de fazer valer processos dialogados e coletivos de produção do conhecimento, em que os trabalhadores sejam, de fato, os principais agentes, sujeitos da ação.1

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 O ponto de partida: território, cotidiano e territorialidades

Entender o território como elemento fundante de uma política pública requer ajustar o foco do olhar para a realidade social, sobretudo, quando a tentativa é apreender as dinâmicas socioterritoriais como base para a realização do trabalho social na política de assistência social. Essa tarefa não pode e não está deslocada do seio das contradições inerentes ao processo de apreensão das mediações e complexidades que envolvem a assistência social como uma das políticas de promoção e garantia de proteção social aos cidadãos.

É preciso saber que a política de assistência social, por meio de seu conjunto normativo: Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), SUAS, Norma Operacional Básica (NOB) centralizam o território como chão de sua edificação na regulação e proteção social. É no lugar territorial, no chão das relações sociais, que a vida se produz e se reproduz, onde é possível perceber as capacidades protetivas, as mediações arquitetadas para a vivência e sobrevivência. É o espaço de ocorrência das vulnerabilidades, ameaças, violência, potencialidades, sociabilidades e outras múltiplas expressões das relações humanas e sociais.

É com esse mote analítico que o território ocupa espaço estratégico na Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e no SUAS, porque força seus atores a conhecer a realidade, as dinâmicas socioespaciais e demográficas. Permite a leitura da presença e incidência de situações de vulnerabilidades, percepção dos traços das vivências, das mediações políticas, sociais, culturais, econômicas e relacionais produzidas no chão da vida, seja, no contexto urbano das metrópoles, das grandes, médias e pequenas cidades ou na realidade rural, ribeirinha e das comunidades tradicionais dos lugares mais recôncavos do país.

O geógrafo Milton Santos (2000) estabeleceu em suas apreensões a noção de território usado. Essa análise permite um salto conceitual, ético e político na compreensão do espaço geográfico, uma vez que centraliza o sujeito no cerne das relações e mediações com o lugar. Sob essa perspectiva, todo e qualquer lugar só pode ser entendido como território se considera as relações humanas, as dobraduras, percursos, escolhas e processos humanos no espaço.

Assim, o espaço territorial deve ser entendido a partir da noção de seu uso, das vivências coletivas que imprimem marcas, eventos e significações aos espaços. Essa compreensão firma a noção social e coletiva, uma vez que o território expressa concretamente as marcas das relações econômicas, sociais, políticas e culturais do contexto social em que os homens produzem e reproduzem a vida. Pois, “[...] o território em si não é um conceito, ele só se torna um conceito utilizável para a análise social quando o consideramos a partir do seu uso, a partir do momento em que o pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam.” (SANTOS, 2000, p. 22).

A apreensão do território usado permite entender que os espaços socioterritoriais são resultados do processo histórico e da base material do trabalho humano. São expressões da ação dos sujeitos, observando as mediações e contextos sociais aos quais estão envolvidos, expressando também a totalidade das relações humanas, considerando que:

As rugosidades são os espaços construídos, o tempo histórico que se transformou em paisagem, incorporado ao espaço. As rugosidades nos oferecem, mesmo sem tradução imediata, restos de uma divisão de trabalho internacional, manifestada localmente por combinações particulares do capital, das técnicas e dos trabalhos utilizados. (SANTOS, 1996, p. 138).

As rugosidades expressam as sínteses do tempo e das ações dos homens no espaço, são heranças que indicam a conexão entre tempo e espaço no processo de formação territorial. São os conteúdos de vida e vivência, de experiências e práticas sociais. Sobretudo, expressam as contradições e a marca de cada tempo social. Essas marcas e rugosidades são tecidas e materializadas no espaço da existência cotidiana, que é ineliminável da vida de qualquer homem. É no espaço da vida mais comum, no qual as necessidades humanas são respondidas de forma imediata, que as rugosidades e dobraduras do tempo histórico, econômico e social se mostram.

Cotidiano e território são pares dialéticos inexoráveis, relevando a equação prática do tempo e espaço das relações humanas. Essa trama revela que o cotidiano é uma escala da vida no território, é através dele que se pode compreender os eventos, as tramas dos episódios, das redes de relações, dos acontecimentos e de como os sujeitos se afetam e se movimentam. É no cotidiano que as desigualdades sociais, as contradições se expressam de modo mais singular.

É no cenário mais pragmático da vida que as múltiplas determinações sociais incidem sobre as populações. Dessa forma, é importante delinear que território e cotidiano constituem, juntos, o chão da vida, processo imbricado de relações que revela e ofusca as particularidades produzidas pelas tramas societárias e a reprodução particular dos sujeitos em determinado espaço, conforme já nos esclarecia o geógrafo Milton Santos (2014, p. 321-322):

No lugar, nosso Próximo, se superpõem, dialeticamente, o eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores, e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando, definitivamente, as noções e as realidades de espaço e tempo.No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada um exerce uma ação própria, a vida social se individualiza, e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vem solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, por meio da ação comunicável, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.

É nesse cotidiano compartido que as relações entre os homens ocorrem, onde os modos de vida e a conexão entre as ordens distantes (macrossociais) e as ordens próximas (cotidiano das experiências) dos sujeitos criam e recriam teias de relações, formas de vivências, modos de organização particulares da vida nos lugares.

Todo território estabelece uma rede de relações, tessituras, que estabelecem objetivos, determinam a direção e intencionalidade dos sujeitos nos lugares, constroem objetivos comuns e identidades entre as pessoas, o grupo social e o espaço. E cada espaço territorial tem uma identidade e processos de relações diferentes, o que lhe confere uma particular territorialidade.

Desse modo, as territorialidades são construídas e reconstruídas, por meio do conjunto de ações dos sujeitos que edificam significados, vivências, particularidades e atribuem sentidos a um determinado espaço através de sua experiência histórica e prática. (RAFFESTIN, 1993). As territorialidades são as expressões da gramática das relações, dos processos interativos e interventivos entre os sujeitos sociais e seu lugar de vida.

As territorialidades se traduzem pela apropriação do espaço pelos homens, como esses recebem as determinações macrossociais, interpretam e intervêm na dinâmica de seus espaços de vida. As territorialidades podem se apresentar de modo diverso, múltiplo e contraditório para cada pedaço de chão. É na trama do cotidiano que as territorialidades se fundam, como uma maneira singular que os sujeitos têm de se apropriar e edificar os lugares. É, portanto, um atributo humano-social, que está ligado e corresponde diretamente às tramas de poder, trocas, sociabilidades, necessidades e suas formas de resposta.

As sociabilidades e territorialidades se confluem mutuamente, nos processos de uso, vivência, na manifestação das diversas intervenções e práticas sociais dos sujeitos. Estão encampadas na vida dos lugares, do espaço vivido, que contempla os ritmos reais, as tramas, as significações e apropriações do espaço pela sua forma e razão.

De tal modo, as territorialidades podem ser expressas e apreendidas através de muitas mediações, as quais se destacam: os percursos e mobilidades, vínculos existentes, relações de pertença, relações de poder de diversas clivagens, participação e controle social, expressões das desigualdades sociais, relações históricas e sua expressão no tempo presente, relações culturais e modos de vida, trajetórias individuais e coletivas, expressões de proteção e desproteção social, relações entre o legal e ilegal, dentre outras tantas formas.

2.2 Políticas sociais, territórios e modos de vida: uma costura necessária

Ao falar de Política Social e territórios, é imprescindível pensar no contexto social, nas marcas sócio-históricas da sociedade brasileira e consequentes determinações que impelem as políticas sociais. Se os territórios são os resultados de processos sociais, culturais, econômicos e políticos de determinada realidade, é possível afirmar que os territórios da sociedade brasileira são marcados por processos estruturais densos e complexos, os quais se fazem necessário recuperar, mesmo sinteticamente, para compreender seus efeitos e seus impactos na política social.

O sociólogo Octávio Ianni (2010), discutindo A ideia de Brasil Moderno, traz a noção de que vivemos um processo histórico em que nosso passado se funde com o presente, onde as marcas de ontem se reverberam e se presentificam nas formas de cultura da sociedade, nos modos de vida, trabalho, poder e nas relações sociais da sociedade brasileira.

Assim, o tempo presente tem muito de nossa forma pretérita e carrega as rugosidades de nossa história colonial, escravocrata e desigual como processos que caracterizam as relações sociais brasileiras, na sua forma mais ampla de cultura que atinge os modos de vida e pensamento da sociedade.

Pode-se considerar que as relações sociais no Brasil estão pautadas pela baliza de uma sociedade autoritária, mas que não se reconhece deste modo. A violência da fome, o abuso de poder, concentração de renda nas mãos de poucos, entre outras tantas marcas do autoritarismo convivem com o imaginário social de harmonia e uma falsa pretensão pacífica. (CHAUI, 2000). As diferenças tornaram-se desigualdades, as violências se encampam com naturalidade sob a égide de preconceitos escondidos contra o negro, a mulher, o pobre, o trabalhador, e até mesmo entre as diferentes regiões e localizações das cidades e do país.

O papel do Estado como agente mediador civilizador se baseou, ao longo do tempo, nos vetores econômicos privados e de privilégio das classes abastadas da sociedade, por uma noção privada/ familiar de interesses, que não está preocupada com a universalidade de direitos e interesses coletivos. A condução do Estado se mostra na guisa de uma regulação social tardia (SPOSATI, 2002) que não contempla as necessidades e valores sociais de emancipação e igualdade entre os diversos setores na sociedade, que intervém de modo tardio e incompleto nas diversas expressões da questão social.

As políticas sociais encaram as marcas da verticalização, focalização, processos densos de privatização e mercantilização que se acentuam na cena mais recente. A compreensão e aderência do território às políticas sociais também é um processo cheio de tensões e há grande dificuldade em apreender o sentido e a concepção inerente entre políticas sociais e territórios.

Sposati e Koga (2013), quando discutem os sentidos territoriais e políticas sociais, lançam a reflexão de que as políticas se movimentam por uma lógica sedentária, inversa à territorialização humana. Ou seja, as lógicas e planejamento e intervenção das políticas sociais são desconexas e não incorporam as dinâmicas dos territórios, o que revela um processo de atuação apartada dos sentidos e contextos dos interesses e necessidades dos sujeitos nos espaços.

Outro aspecto sobrepujante é o ranço histórico da burocratização de acesso aos direitos e às garantias sociais, que se enredam a concepções moralistas e preconceituosas, sobre quem é passível ou não de acesso à cidadania. A materialização da cidadania no contexto brasileiro se movimenta de modo restrito, ancorando suas ações na consecução documental, nos fluxos, critérios e condicionalidades para atendimento.

O modo como o trabalho social tem se inscrito na realidade perpassa pela concepção restrita do território como área de abrangência administrativa, na qual o sujeito está inserido através de sua localização domiciliar, em que serviços, equipamentos, programas, projetos e benefícios configuram uma intervenção localista e restrita. É preciso entender que a compreensão do território como elemento pulsante da vida e da realidade social pode contribuir para que se possa adentrar na apreensão do cotidiano de vida dos sujeitos, na superação e possível refinamento no trato às demandas por segurança e proteção social.

Territórios e políticas sociais são elementos mediativos essenciais à regulação e garantia de proteção e cidadania. São capazes de movimentar a apreensão sobre as particularidades dos sujeitos de cada lugar, pois, ao compreender territorialmente as demandas por seguranças socioassitenciais, pode-se orientar com nitidez o planejamento e a execução das políticas sociais, sobretudo, da assistência social.

Assim, a leitura territorial se constrói à medida que se estabelece e se conecta às mediações coletivas do território e das necessidades presentes nos lugares, captando os determinantes econômicos, políticos, sociais e culturais presentes nos pontos comuns da vida socioespacial.

É também a partir das leituras das trajetórias de vida e da confluência com a história do lugar que se podem operar intencionalidades ligadas às realidades, e propor mudanças, ações de segurança e proteção social. Portanto, a análise territorial requer atenção para as dinâmicas, anseios, concepções coletivas do lugar, o uso e as relações dos diferentes sujeitos, das experiências estabelecidas e que se tecem nas relações sociais, na gramática da vida do lugar.

Esse processo pressupõe tratar o trabalho social no campo público, social e político, ultrapassando a lógica privatista, focalizada e individualizadora de atenção e proteção social. Isso implica incorporar outra lógica de investimento nas ações de gestão das cidades e das políticas sociais, que pressupõe aprimoramento técnico e metodológico, que possa atingir redes sociais, territoriais e societárias de segurança social pública e cidadania.

2.3 O lugar da pesquisa e da avaliação nas políticas sociais

Parte-se do pressuposto de que a pesquisa e a avaliação promovem processos reflexivos necessários ao fazer profissional, gerando as bases para a produção de novos conhecimentos e o avanço dos quadros conceituais, modelos analíticos e dispositivos metodológicos. Entende-se, conforme Iamamoto que: “O conhecimento não é só um verniz que se sobrepõe superficialmente à prática profissional, podendo ser dispensado, mas é um meio pelo qual é possível decifrar a realidade e clarear a condução do trabalho a ser realizado.” (IAMAMOTO, 2001, p. 63).

Dessa forma, busca-se construir processos formativos que se contraponham às atuais condições e circunstâncias da produção de conhecimento, que resultam de um contexto histórico e ideológico avesso ao pensamento crítico e às interpretações teóricas abrangentes da vida social, e que, consequentemente, dispensam o exercício da pesquisa em profundidade. No âmbito acadêmico, o predomínio da lógica da quantidade e da busca desenfreada por resultados nas diversas áreas do conhecimento se expressa em uma pressão cada vez maior para a adequação das universidades às necessidades do mercado (seja do ponto de vista dos currículos, seja na forma produtivista de construção do conhecimento), o que instrumentaliza e esvazia a sua função histórica. Por sua vez, a aplicação da pesquisa no cotidiano profissional enfrenta uma lógica pragmática e tecnicista, demandada aos profissionais para o enfrentamento das expressões da questão social, que despreza a análise crítica e a pesquisa no exercício profissional ao priorizar a aplicação mecânica de procedimentos e instrumentais e reduzir a intervenção profissional às ações imediatas, pontuais e fragmentadas.

Para Desrosières (2008), a emergência do Estado neoliberal, consolidado nos anos 1990, provoca profundas mudanças não só nos modos de operar as políticas sociais, mas também nas formas de representação e produção das informações. Ao afirmar que o Estado neoliberal governa por meio dos grandes números, sinaliza a importância e a função dos processos de quantificação, produção e divulgação de informações nas formas de construção da legitimidade dos governos e do gerenciamento da população.

Assim, ganham centralidade na operação das políticas sociais: a produção de dados quantitativos, com ênfase nos resultados; o predomínio de modelos econométricos e probabilísticos para escolha de públicos e modelos de avaliação; e a influência da Economia e da Sociologia como áreas de conhecimento dominantes para a produção das informações. Se do que se trata é governar pelos números, quem detém a informação detém uma fonte importante de poder e legitimação.

É justamente nessa perspectiva que Boschetti (2009) critica o sentido restrito da avaliação, concebida como uma engenharia cada vez mais sofisticada de métodos e técnicas e que desconsidera as relações e mediações que se processam entre mercado e Estado, não permitindo desvendar o papel das políticas sociais na produção e reprodução das desigualdades sociais.

A perspectiva funcionalista, economista e gerencial esconde questões centrais no campo da pesquisa avaliativa de políticas sociais. A ênfase das últimas décadas, que priorizou o estudo da eficácia, da eficiência e do impacto, bem como a relação custo-benefício dos serviços sociais, abandona o princípio da justiça social inerente a políticas sociais, desconsiderando, assim, os princípios de igualdade, universalidade e gratuidade.

É nesse contexto que precisam ser problematizados o aumento das formas de controle da população, o uso exacerbado de instrumentos de coleta de informações, a perda da relevância dos processos relacionais operados pelo trabalho social e o processo crescente de tecnificação no trabalho dos profissionais que atuam no terreno das políticas sociais.

Na experiência de formação, o debate mais amplo dos processos sociais contemporâneos, aliado à introdução da dimensão da pesquisa e da avaliação, busca fortalecer a dimensão técnica operativa do exercício profissional, garantindo a necessária unidade com as dimensões ético-política e teórico-metodológica, o que possibilita discutir e construir percursos metodológicos capazes de identificar, não só o que e como fazer, mas também o porquê e o para que.

Dessa forma, os marcos teórico-metodológicos que sustentam as experiências de formação, permitem situar a pesquisa e avaliação no campo das políticas sociais e recuperam a importância da análise sócio-histórica, a perspectiva socioterritorial e a dimensão sociopolítica da prática avaliativa.

2.4 Escalas e escolhas teórico-metodológicas

Em contraposição à perspectiva funcionalista, partimos da concepção trabalhada por Paz e outros (2004) que considera a avaliação da política social como processo de construção de respostas às questões sociais, permeado pela tensão e disputa de diferentes visões e interpretações, conflitos de interesses que fazem parte da definição e constituição do que se entende por coisa pública e, portanto, de responsabilidade do Estado. Nessa perspectiva, não se refere apenas à medição de resultados previstos nos objetivos e metas, deve ser capaz de compreender, iluminar e mapear as expressões da questão social, que representam demandas sociais para as políticas públicas; de discutir e construir parâmetros para analisar a capacidade de oferta, as condições de acesso e a qualidade dos serviços. Em última instância a análise da política social exige interrogar os direitos e os elementos de justiça expressos ou negados (VIEIRA, 2009) e conforme apontado por Boschetti (2009, p. 8) o exercício da avaliação “[...] deve ser guiado pela intenção de apontar até que ponto políticas e programas sociais são capazes [de] e conseguem expandir direitos, reduzir desigualdades e promover equidade”. Essa visão de totalidade na avaliação permite tensionar a gestão para a defesa e ampliação dos direitos sociais.

Pressupõe, portanto, compreender como se configuram as expressões da questão social que representam demandas para a política de assistência social e em que medida as provisões socioassistenciais são prioritariamente pensadas no âmbito das garantias da cidadania, promovendo a universalização da cobertura, a garantia de direitos de acesso e o padrão de qualidade nos serviços, programas e benefícios, conforme estipulados na LOAS.

Em função dessa perspectiva, o trabalho de realização de diagnósticos socioterritoriais junto às equipes de trabalhadores na assistência social tem buscado descolocar a identificação de situações de vulnerabilidades pela compreensão socioterritorial dos processos de produção e reprodução de desigualdades sociais e das dinâmicas discriminatórias e segregacionais. O que supõe problematizar a relação de proteção-desproteção engendrada no âmbito da produção e reprodução das relações sociais, e, portanto, significa considerar as próprias respostas de proteção social, a qualidade de tais respostas ou ainda a falta de respostas como expressões de materialização e/ou interdição de direitos socioassistenciais.

Consequentemente, as matrizes analíticas de diagnóstico, monitoramento e avaliação buscam identificar e analisar as formas de organização e estruturação da política, as condições de acesso e a existência de entraves e barreiras de acesso na oferta de serviços.

Isso significa que as equipes são chamadas a pensar e analisar como se configura historicamente, sobre quais fundamentos opera e como se organiza a política de assistência social no município a partir dos novos parâmetros e princípios construídos no SUAS. Busca-se, assim, romper com a lógica descritiva e/ou de contagem nominal de atendimentos em função do leque de projetos e programas sociais vinculados à Secretaria de Assistência Social, em geral, ainda fortemente vinculados à tradição de atuação por segmentos ou à incidência das entidades socioassistenciais. A análise da organização da oferta por serviços e a sua relação com as demandas por seguranças socioassistenciais têm permitido discutir as formas de organização da política de assistência social como possibilidade de materializar e/ou interditar condições de acesso. Permite colocar em relação e em tensão as dinâmicas sociais existentes nos territórios e a dinâmica institucional da política, de forma a perceber e fazer emergir a existência de barreiras de acesso.

Esse processo permitiu construir espaços coletivos de discussão, sistematização e análise das condições de proteção e desproteção social no município, a relação entre demandas existentes e oferta de serviços, programas e benefícios e a trajetória de implementação e capacidade instalada da política de assistência social e das instâncias do controle social.

O desafio posto foi que esse processo coletivo de construção teria que fugir, também, de uma análise genérica, ou melhor dito, de uma compreensão estática da realidade do município e/ou expressa apenas pelas suas médias estatísticas.

Acrescenta-se assim a necessidade de incorporar a dimensão sócio-histórica para compreender os processos de formação, ocupação e apropriação desigual das cidades, introduzir a perspectiva territorial, não apenas do ponto de vista conceitual, mas também metodológico, de forma a compreender as peculiaridades, singularidades e dinâmicas sociais dos territórios e afiançar a dimensão sociopolítica, garantindo a participação dos diferentes sujeitos (trabalhadores e população) ao longo do processo.

A introdução da dimensão da pesquisa no campo da avaliação, longamente discutida por Silva (2008), permite não só adensar um processo analítico e investigativo que constrói e reconstrói o conhecimento para as políticas sociais, mas recuperar a dimensão sociopolítica, construindo mediações fundamentais que qualificam o exercício profissional e fortalecem o debate público.

Desconstruir práticas e concepções tutelares, autoritárias, clientelistas e preconceituosas, que ainda preponderam no campo de atuação da assistência social, exige processos de formação e construção que devem romper, por sua vez, com as matrizes que perpetuam uma série de distinções entre os que pensam e os que operam, reforçando as relações de subalternidade na sociedade brasileira.

A concepção tecnocrática e funcionalista fragmenta e instrumentaliza não só os sujeitos, ditos beneficiários das políticas sociais, mas também os profissionais e as práticas sociais. As novas exigências e dispositivos informacionais dispensam dos profissionais o ato de pensar suas práticas, forçando-os a considerar os serviços como produtos financeiros, restritos à análise de meios e ignorando sentidos e finalidades. É na operação desses dispositivos que se confunde valor com classificação, que se substitui o raciocínio pelo manual e que se confiscam, via procedimentos, o pensamento e a decisão do profissional, tido como mero operador da política social.

A produção de informação somente se torna conhecimento se afirmada em espaços concretos, em rotinas de registro e análise periódicas e em fluxos de informação com caminhos de ida e volta.

A produção de conhecimentos para a gestão das políticas públicas não começa e termina na simples coleta de dados. A análise contínua é o que insere o diferencial da ação, recombinando vários instrumentos, fases, referenciais, sistematizações e reflexões críticas sobre os dados levantados. O uso da informação e da tecnologia qualifica o exercício profissional quando rompe com a leitura mecânica ou apenas técnica da realidade, possibilitando relacionar, problematizar e questionar os dados considerando as demandas sociais e as interdições produzidas e operadas pelas próprias políticas sociais.

2.5 A força da experiência

É preciso ter em conta que existe um legado de luta, conquistas e resistências que marcam a história da política de assistência social de Londrina2 e de seus trabalhadores, que tem seu marco no início dos anos 90, quando em dezembro de 1991 é promulgada a lei que institui a Secretaria Municipal de Ação Social (SMAS), pois até então a assistência social estava atrelada às áreas de saúde e educação.

Observa-se que o legado é fruto de luta e resistência de um conjunto de sujeitos sociais, em que estão implicados assistentes sociais da Prefeitura de Londrina, entidades da categoria e alunos e professores da Universidade Estadual de Londrina (UEL), e que configuram uma tessitura diversa de militância em torno da assistência social, enquanto arena de disputa, estudos e pesquisas, além de campo de gestão da política pública. Certamente, todo este processo de luta significou, ao mesmo tempo, acúmulo de experiências, que têm deixado marcas no modo de realizar a gestão da política de assistência social pelo conjunto dos trabalhadores.

Uma das marcas que se evidencia é a proximidade entre a gestão e a universidade (no caso os programas de graduação e pós-graduação em Serviço Social da UEL), por meio da participação de trabalhadores nos processos de formação em pós-graduação e eventos de pesquisa e extensão promovidos pela UEL, bem como na participação de pesquisadores e docentes da UEL nos processos de capacitação do SUAS, por exemplo.

Nota-se que essa articulação se expressa nos temas dos trabalhos de conclusão de curso e de iniciação científica, artigos, dissertações e teses desenvolvidos na universidade, bem como na participação de estagiários da universidade nos espaços de gestão, envolvendo outras áreas, além do Serviço Social. Nesse contexto, destaca-se a presença da geografia, que passou a conquistar um espaço importante na gestão da política de assistência social em Londrina, ao introduzir a ferramenta do geoprocessamento como estratégia para territorialização das áreas de abrangência dos Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e demais serviços socioassistenciais. O geoprocessamento abriu, dessa forma, novas perspectivas de análise a partir das possibilidades de localização dos serviços pelos territórios de Londrina.

Tal compatibilização significou um importante avanço também em relação à territorialização da política de assistência social, ao possibilitar a utilização dos dados do IBGE na escala dos setores censitários, que, por sua vez, foram agregados de acordo com as áreas de abrangência dos CRAS. Este exercício permitiu a agregação dos

dados cadastrais do Sistema de Informatização da Rede de Serviços de Assistência Social (IRSAS) pelos setores censitários e áreas de abrangência dos CRAS. A compatibilidade entre as bases cartográficas existentes na cidade com a base dos setores censitários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem representado um dos obstáculos para a constituição da territorialização do SUAS na escala intraurbana pelos órgãos gestores municipais de assistência social

Dessa forma, a função de vigilância socioassistencial em Londrina potencializou sua capacidade instalada de leitura e análise dos dados disponíveis, especialmente no confronto entre demandas e ofertas de proteção social. Observa-se que, além das discrepâncias na grandeza dos números, há similitudes e diferenciações nas concentrações dessa população nos territórios, o que impulsiona a necessidade de agregar aos processos de tomada de decisão a análise dos trabalhadores e agentes das políticas de proteção social que atuam nesses territórios, pois são eles que mantêm maior proximidade com as dinâmicas ali presentes.

Chama a atenção, no caso do setor de informação da Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS) de Londrina, a combinação de saberes técnicos diferenciados (informacionais e da gestão do SUAS) e o compromisso comum em torno dos alcances e acessos da política de assistência social pelos cidadãos que dela necessitam. É particularmente interessante a presença na equipe de um profissional que não tendo nível universitário, possui uma larga experiência no campo dos sistemas informacionais, e que faz toda a diferença no aprimoramento do próprio SUAS em Londrina.

Na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos (2004, p. 790), esta experiência aproxima-se do questionamento e, ao mesmo tempo, da superação da “[...] lógica da monocultura do saber e do rigor científicos”, pois segundo o autor, esta lógica “[...] tem que ser questionada pela identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor”. Neste sentido, o autor propõe uma sociologia das ausências, em que não haveria lugar para um saber em geral ou para uma ignorância em geral, exercendo-se um princípio de incompletude.

Deste princípio de incompletude de todos os saberes decorre a possibilidade de diálogo e de disputa epistemológica entre os diferentes saberes. O que cada saber contribui para este diálogo é o modo como orienta uma dada prática na superação de uma certa ignorância. O confronto e o diálogo entre os saberes é um confronto e diálogo entre diferentes processos através dos quais práticas diferentemente ignorantes se transformam em práticas diferentemente sábias. (SANTOS, 2004, p. 790).

Importa ressaltar ainda que esta composição de saberes tem produzido novos saberes e novas possibilidades de construção do conhecimento, em que o ponto de partida é o (re) conhecimento da diversidade de experiências que podem ser dialogadas em torno das informações sobre os territórios de Londrina, com suas demandas e capacidades de proteção social instaladas.

2.6 A força do sentido coletivo e público

Em se tratando da trajetória quanto ao modo de organizar a política pública de assistência social em Londrina, chama a atenção a valorização e a vivência das equipes por meio de grupos e comissões de trabalho, que de fato exercem papel de operacionalizadores das decisões tomadas coletivamente. Trata-se de exercícios de vivencia coletiva, em que se agregam trabalhadores de diversos setores da gestão, como também de diferentes experiências e perspectivas de leitura da realidade.

No processo de pensar a lógica territorial da gestão, a experiência vivenciada anteriormente por meio de grupos e comissões de trabalho favoreceu a articulação e o enriquecimento do debate em torno dos sentidos territoriais na política de assistência social. De forma concomitante, a mesma experiência traz sinalizações dos conflitos de interesses que emanam das particularidades de cada experiência, exigindo novos esforços para o confronto e as tensões próprias de processos coletivos de construção do conhecimento.

Interessante observar também como as equipes que atuam nas áreas rurais de Londrina expressam perspectivas diferenciadas sobre o trabalho social e os sentidos de proteção social, dada a experiência acumulada, em que os contextos socioculturais e territoriais diferem daqueles situados nas áreas urbanas, ainda que mais periféricas.

Números e nomenclaturas ganham novas dimensões à medida que são contextualizados, a partir do momento que são territorializados. O plano municipal de assistência social de Londrina (2013- 2017) contemplava um diagnóstico socioassistencial muito criterioso e bem elaborado pelo coletivo de técnicos que se dedicaram a este trabalho. Descobriram-se, ao longo do processo de assessoria, novas possibilidades de análise sobre a cidade e as demandas e ofertas de proteção social e defesa de direitos ao se territorializar as informações a partir das 10 áreas de abrangência de CRAS, que agregam 45 microterritórios no total. Alargou-se o diagnóstico socioassistencial para sua dimensão territorial.

Esse processo significou uma travessia em se pensar os dados, saindo de uma lógica de média da cidade para a perspectiva intraurbana, permitindo (re) conhecer novas particularidades e dinâmicas internas de cada uma das 10 áreas de abrangência. Importa reconhecer, inclusive, as particularidades do que é normalmente reconhecido como área rural ou aldeia indígena de forma homogênea e genérica.

O trabalho desenvolvido pelas equipes do CRAS Rural expressa a importância de se atentar para a dimensão coletiva que marca as populações que residem nesses territórios, e que extrapola o sentido de agregação ou ajuntamento de indivíduos e suas famílias. Trata-se de verdadeiros mosaicos de diversidades que não necessariamente podem ser compreendidos na simples contraposição ao chamado mundo urbano. Importa lembrar que a história de Londrina tem suas raízes fincadas em terras indígenas, como decifrado pela professora Jolinda Alves em sua tese de doutoramento, ao afirmar que “[...] até o inicio do século XX a região, onde se instalou a cidade de Londrina em 1929, era habitada por indígenas, principalmente das tribos Kaingang e Xokleng.” (ALVES, 2002, p. 17)

A partir dessas considerações, se reconhece o quanto a gestão do SUAS na cidade de Londrina, a partir de sua diversidade sociocultural e desigualdade socioterritorial, encontra no sentido coletivo uma chave importante para adentrar pelos territórios e pelas territorialidades vivenciadas pelas populações, atentando-se para o risco de se sobrevalorizar micros escalas, tornando-se refém de um localismo ou mesmo de um comunitarismo. Linha tênue de análise, que perpassa o universo das políticas sociais à medida da necessidade em se desenvolver o trabalho social de forma mais coletiva.

Assim, o sentido coletivo a ser (re)conhecido como constituinte de determinadas populações revela-se como força a ser confrontada junto aos modelos exclusivamente individualizados que marcam programas de transferência de renda, benefícios socioassistenciais e mesmo serviços, em que as medidas de impacto recaem sobre a capacidade individual de autonomia ou superação em relação às condições de vulnerabilidade ou risco social enfrentadas. Como tem alertado no mesmo texto citado, Prof. Edval Campos (CRUZ et al., 2013, p. 218):

Para nossa tradição, a família estrutura-se com base em um núcleo socioafetivo no singular. Qualquer que seja o seu desenho prevalece a referencia liberal, a sociedade familiar individualizada sobrepõe-se à força do coletivo. Em algumas populações tradicionais os vínculos de consanguinidade não se sobrepõem ao poder de socialização do coletivo. Ou seja, a família como expressão social espelha-se na matriz de propriedade e no modo de produção prevalecente em cada sociedade.

Ao mesmo tempo, corre-se o risco dessa valorização do sentido coletivo representar a constituição de verdadeiros enclaves ou coletivos fechados, em torno de microescalas, como se tais coletivos não dialogassem com outras instâncias de vivência e convivência, como se não houvesse campos de disputas entre escalas.

Nesse contexto, o mundo rural tão presente e, ao mesmo tempo, quase invisível em Londrina, diante da luminosidade do seu mundo urbano, faz com que a política de assistência social passe a ler a cidade pelas suas pluralidades ou multerritorialidades. Essa conjugação de esforços no sentido de se compreender melhor como acontecem as situações intermediárias entre o urbano e rural, bem como outras dualidades ainda tão presentes nas leituras das cidades brasileiras, como centro e periferia, se fazem cada vez mais importantes ao processo de reconhecimento da dimensão socioterritorial na política de assistência social.

Trata-se de experiências vivenciadas a partir do momento em que é deflagrada a luta pela democracia em nosso país, e em que os militantes da política de assistência social em Londrina exercem um papel fundamental, como já apontado anteriormente. São conquistas que tensionam o caráter institucional da participação social, na medida em que se transformam em um modo de operar a gestão da assistência social na cidade, que passa a ser incorporado pelos diversos atores sociais, na direção de uma política de fato pública.

3 CONCLUSÃO

Quando Vincent de Gauléjac (2007) analisa a ideologia e o poder gerencialista da gestão social contemporânea, introduz a imagem da quantifrenia para criticar o uso exagerado de quantificação e problematizar a predominância de uma lógica instrumental, que exige a produção constante de informações, abandonando a necessária interrogação anterior que permite identificar para quem e para que são criados os dados. A supremacia de indicadores quantitativos nas perspectivas financeira, econômica e de controle ignora as competências e os princípios específicos, o sentido público da política social e a dimensão política dos direitos sociais.

Nas políticas genéricas de gerenciamento da população, o que importa é quantificar e não qualificar; o que prevalece é o discurso competente, e a função tecnoburocrática esconde a dimensão política da gestão e da avaliação de políticas sociais.

Com Marilena Chaui (2014), compreendemos que a ideologia da competência foi edificada no interior do fordismo, que cria uma divisão social entre competentes (especialistas que detêm conhecimentos científicos e técnicos) e incompetentes (os trabalhadores que devem executar as recomendações realizadas pelos especialistas). Com isso, “[...] a ideologia da competência oculta a divisão de classes sociais, nega a competência real e garante a alguns o direito de dirigir, controlar, manipular e punir a outros, reduzidos a meros executores de ordens, cujo propósito, significado e origem permanecem em segredo.” (CHAUI, 2014, p. 118).

Trata-se de lógica fundada no sigilo burocrático e explorada em campanhas de desinformação e no uso desqualificado dos dados pela mídia, produzindo-se um tipo de informação que nada explica e nada muda.

No caso de Londrina, a pesquisa de Profa. Jolinda Alves, ao lado da pesquisa de Profa Márcia Lopes, já citadas anteriormente, representam referencias a serem constantemente (re) visitadas pelos trabalhadores da política de assistência social, no sentido de se perceber as marcas da história da cidade que se misturam à trajetória da assistência social neste lugar. Trata-se das rugosidades, das heranças deixadas pelas experiências acumuladas nos territórios, na leitura de Milton Santos.

Dessa forma, junto ao reconhecimento dos territórios da cidade se faz necessário compreender suas rugosidades enquanto expressão de suas trajetórias históricas. É possível que neste exercício se encontrem algumas revelações duras e difíceis sobre as formas tradicionalmente violentas de ocupação dos territórios e de luta pela terra.

Alargar o sentido público da política de assistência social passa pelo reconhecimento das marcas da sociedade colonial escravista, que podem ser observadas nas relações estabelecidas entre trabalhadores e gestores (gestão e ponta), entre trabalhadores e consultores (academia e prática), entre trabalhadores e cidadãos (técnicos e usuários/beneficiários). O acesso aos direitos socioassistenciais atravessa necessariamente os caminhos das relações sociais que permeiam a gestão dessa política pública.

Em tempos de retrocesso democrático e barbárie, vivenciados em nosso país, tais marcas tendem a ser recompostas ao encontrar condições extremamente favoráveis para sua reprodução. Os 10 anos de SUAS encontram-se hoje no confronto com outros mais de 510 anos de colonialismo e escravidão. Luta aparentemente inglória.

É preciso, porém, olhar com outras perspectivas a própria condição histórica em que nos encontramos. Talvez, Frantz Fanon (2005) em Condenados da Terra, originalmente publicado em 1961, traga algumas novas luzes ao decifrar a própria condição do indígena em relação ao colonizador. E com uma de suas análises sobre este mundo colonial se possa encontrar possibilidades de resistência, que tal qual a marca da vivencia coletiva indígena, tem passado despercebida.

Esse é o mundo colonial. O indígena é um ser confinado, o aparheid é apenas uma modalidade da compartimentação do mundo colonial. A primeira coisa que o indígena aprende é ficar no seu lugar, a não passar dos limites. É por isso que os sonhos do indígena são sonhos musculares, sonhos de ação, sonhos agressivos. Sonho que estou saltando, nadando, correndo, escalando. Sonho que estou rindo, atravessando o rio com um passo, que sou perseguido por bandos de carros que nunca me alcançam. Durante a colonização, o colonizado não para de libertar-se entre as nove da noite e as seis da manhã. (FANON, 2005, p. 69).

Se é por dentro do próprio SUAS que se tem percebido os riscos de seu retrocesso, é possível que pelo reconhecimento das forças de luta e resistência presentes nos mais diferentes territórios do país e no interior do cotidiano de gestão, ainda que entre as sete da manhã as oito da noite, que se esteja a germinar novos conhecimentos, novas práticas para um SUAS mais resistente.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Importa destacar a Resolução CNAS nº 6, de 13 de abril de 2016, que estabelece parâmetros para a supervisão técnica do SUAS em consonância com a Política Nacional de Educação Permanente (PNEP)/SUAS.
2 Ver: LOPES, Márcia H. C. A Construção da Política de Assistência Social Pública: uma gestão democrática em Londrina – PR. 1999. Dissertação (Mestrado em Serviço Social)– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999; ALVES, J. de M. Assistência Social aos Pobres em Londrina: 1940-1980. 2002. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo, 2002.
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