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Piauí empreendedor e a questão dos babaçuais: contradições e problemas de um projeto de desenvolvimento
Piauí empreendedor e a questão dos babaçuais: contradições e problemas de um projeto de desenvolvimento
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1449-1464, 2018
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 02 Março 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
Resumo: Este texto faz uma reflexão sobre os discursos acerca do desenvolvimento do Piauí, mostrando a configuração e as implicações deste projeto ideológico e político tais como a criação dos territórios do desenvolvimento do Piauí. Aborda as situações e os problemas que estão relacionados à floresta de babaçu, bem como a mobilização social protagonizada por diversos agentes sociais que são afetados por ações e empreendimentos que ameaçam a sua sobrevivência. Descreve os conflitos socioambientais existentes, as iniciativas vistas como ameaça e os movimentos sociais que a elas se opõem. Conclui, expondo as formas de enfrentamento e as identidades acionadas no processo de mobilização social constituído.
Palavras-chave: Desenvolvimento, babaçuais, conflitos, mobilização social.
Abstract: This text reflects on the discourses about the development of Piauí, showing the configuration and the implications of this ideological and political project such as the creation of the territories of the development of Piauí. Addresses the situations and problems that are related to the babassu forest, as well as the social mobilization carried out by various social agents that are affected by actions and ventures that threaten their survival. We describe the existing socio-environmental conflicts, the initiatives seen as threats and the social movements that oppose them. It concludes, exposing the forms of confrontation and the identities triggered in the process of social mobilization constituted.
Keywords: Development, babassu forests, conflicts, social mobilization.
1 INTRODUÇÃO
Desenvolvimento tornou-se uma palavra constante nos diálogos estabelecidos no Piauí, ocupando um lugar de destaque nos planejamentos econômicos e políticas públicas desenvolvidos pelo governo estadual. Nessa esfera, o vocábulo é sempre dotado de uma conotação positiva. Traduz a noção de progresso, o que implica na incorporação de um modelo caracterizado pelo abandono de práticas obsoletas em favor de novas ações que promovem o bem-estar e a qualidade de vida. Embora o poder público seja um dos agentes protagonista do desenvolvimento, a devida adequação ao modelo depende dos investimentos do poder privado e da colaboração da sociedade civil. Todos devem se unir, reunir forças para alcançar as metas estabelecidas e retirar o Piauí da posição indesejada: um dos estados mais pobre do Brasil.
O referido discurso sustentado pelo poder estatal está situado em um cenário que vem se consolidando desde o século XIX, ocasião em que o desenvolvimento passou a ser uma das mais fortes ideologias/utopias do mundo ocidental, ocupando um lugar de grande importância no panorama político e ideológico. (RIBEIRO, 1992).
Segundo Arturo Escobar (2012), o desenvolvimento é um discurso que fundamenta as estratégias de dominação social e cultural,que resulta na produção de práticas concretas de pensar e agir por meio das quais o Terceiro Mundo é produzido.
É um discurso perpassado por categorias culturais ocidentais e vinculado à expansão econômica capitalista. Tornou-se um campo de poder formado por redes e instituições que compartilham interesses diversos, sendo possível aplicar a noção de consorciação para entender as articulações entre os diferentes atores no campo do desenvolvimento. (RIBEIRO, 2008).
A ânsia de superar a imagem de estado brasileiro pobre e atrasado tem sido um dos fortes argumentos utilizados para legitimar ações e empreendimentos econômicos no Piauí. Norteado pela percepção econômica, o projeto de desenvolvimento em curso, embora inclua a questão social no nível do discurso, está pautado majoritariamente na perspectiva econômica de crescimento, com prazos e metas a serem alcançadas. Isso fica evidente, por exemplo, nos pronunciamentos dos chefes políticos do Estado e no Plano Plurianual do Piauí1.
Opondo-se ao discurso sustentado pelo poder estatal e na contramão deste processo de desenvolvimento em curso, os movimentos sociais vêm apresentando críticas às ações desenvolvidas que privilegiam apenas os grupos econômicos e seus empreendimentos. O aumento da produtividade e a circulação de capitais no Estado não estão produzindo melhores condições de vida para os/as trabalhadores/as rurais. Denunciam a nova configuração agrária que vem sendo constituída, a partir da expropriação territorial dos pequenos proprietários e dos povos e comunidades tradicionais. Um mercado de terras vem se constituindo em todo o Piauí, gerando lucro aos grupos econômicos que se especializaram na especulação de terras.
O fato é que o poder estatal, em sua ânsia pelo desenvolvimento, tem contribuído com esse processo, favorecendo a legitimação dos empreendimentos e facilitando o acesso aos recursos através de incentivos e regularização das atividades. Torna-se, portanto, um facilitador para a chegada e permanências de grupos econômicos que idealmente farão o Piauí sair da decadência. O discurso governamental propaga os índices que revelam a eficiência dos passos dados e demonstram a expectativa de um futuro promissor (PIAUÍ, 2015)2.
Nessa conjuntura, merece nossa atenção a criação dos Territórios de Desenvolvimento Sustentável, criados no Piauí pela Lei Complementar nº 87, de 22 de agosto de 2007, para favorecer ao planejamento governamental. Considerando as características ambientais, a vocação produtiva e o dinamismo das regiões, as relações socioeconômicas, as culturas existentes nos municípios, a regionalização político administrativa e a malha viária, foram constituídos 11 territórios, idealizados como unidades de planejamento, promotores do desenvolvimento sustentável do Estado, da redução das desigualdades e melhoria de vida dos piauienses. A democratização de programas e ações, juntamente com a regionalização do orçamento seria, segundo o governo, as formas de alcançar essa nova dinâmica governamental.
A participação e o controle social são feitos por meio da realização de Assembleias Municipais dos Conselhos de Desenvolvimento Territorial Sustentável e do Conselho Estadual de Desenvolvimento Sustentável. Todas essas instâncias contam com a participação de representantes do poder público e da sociedade civil organizada. Esse é um espaço de continuas disputas, pois cada seguimento age no sentido de fazer valer seus interesses.
O agronegócio e a produção de energia são atividades que têm se beneficiado do processo de desenvolvimento adotado e se instalam considerando as potencialidades de cada Território. Assistimos o festejado crescimento da produção de grão, decorrente das monoculturas da soja, arroz e milho, principalmente na região do Cerrado piauiense. Além dessas monoculturas, têm sido feito investimentos na cana-de-açúcar, mamona, pinhão-manso e eucalipto. Os empreendedores chegam animados com os baixos preços das terras e os incentivos oferecidos pelo poder estatal. A regularização da posse da terra tem sido facilitada por iniciativas tais como o Fórum Agrário no Estado do Piauí, que idealmente age no sentido de dar celeridade à regularização fundiária, evitando conflitos e gerando segurança para os investidores. Contudo, as lideranças dos movimentos sociais alertam que o processo em curso tem contribuído de forma significativa para facilitar o acesso da agricultura empresarial a grandes extensões de terras e expropriar os territórios tradicionalmente ocupados pelos moradores locais.
Novas expectativas de desenvolvimento têm sido propagadas pelo programa do Governo Federal que propõe a ampliação dos sistemas produtivos agropecuários na área do Cerrado dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o conhecido MATOPIBA.
Difundida como a última fronteira agrícola do país, a região será, de acordo com o programa, destinatária de investimentos na infraestrutura, pesquisa, tecnologia, inovação e assistência técnica. A meta é impactar positivamente o Produto Interno Bruto do Estado através da produção de commodities e inserção no mercado de produtos agropecuários mais valorados.
Uma vez que a produção de energia é um desafio para fixação de empresas e a ampliação do mercado no Piauí, crescem os investimentos públicos na produção de energias, o que inclui as fontes de energia renovável, através das monoculturas da cana-de-açúcar, mamona e pinhão-manso e energia limpa tal como a eólica3.
Oficialmente, os discursos registram com recorrência a afirmação de compatibilidade do agronegócio e com a agricultura familiar. Segundo o Governo, seria possível estabelecer parceria entre as empresas de grande porte que estão em situação privilegiada no mercado de grãos com os trabalhadores rurais. Essa relação seria rentável para os dois seguimentos, pois favoreceria a sustentabilidade do primeiro e possibilitaria melhores condições de vida para os trabalhadores/as rurais, em decorrência da oferta de empregos e da ampliação da renda das famílias.
Contudo, os povos do Cerrado vêm denunciando a decadência da agricultura familiar em decorrências das ações desenvolvidas, que favorecem apenas a expansão e consolidação do agronegócio. Para evidenciar essa percepção, descreveremos os conflitos socioambientais localizados na região dos babaçuais e os movimentos sociais organizados, evidenciando os agentes sociais que atuam nesse cenário. Dessa forma, teremos conhecimento das situações de conflitos e as demandas apresentadas pelos agentes sociais que se opõem ao projeto de desenvolvimento que vem sendo efetivado.
2 FLORESTA DE BABAÇU: conflitos socioambientais, empreendimentos e movimentos sociais
Os dados etnográficos que apresentaremos a partir de agora são decorrentes de trabalho de campo realizado de outubro de 2014 a abril de 2015, no âmbito do projeto de pesquisa Projeto Cartografia Social dos Babaçuais: Mapeamento Social da Região Ecológica dos Babaçuais. Neste período em que foram realizadas visitas, reuniões, entrevistas com os movimentos sociais e coleta de informações em agências governamentais e não governamentais4.
Uma vez que o objetivo da pesquisa era mapear os babaçuais, privilegiamos a atuação do Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu, que no Piauí atua em 35 comunidades localizadas nos municípios de Barras, Esperantina, São João do Arraial, Morro do Chapéu, Luzilândia, Madeiro e Joca Marques. Nessa região de atuação, o movimento desenvolve atividades de organização, mobilização e mediação na defesa da preservação das florestas de babaçuais, no livre acesso aos recursos naturais e na manutenção de um modo de vida e de um saber local. Entretanto, como já afirmado acima, as florestas de babaçu extrapolam a região delimitada geograficamente pelo Estado, denominada de Territórios Cocais, assim também como a região ecológica do babaçu estende-se além das áreas de atuação do MIQCB. Os dados coletados na pesquisa apontaram a presença de palmeiras de babaçu e processos de mobilização social em defesa de uma autonomia no uso e controle dos recursos naturais nos denominados Territórios de Desenvolvimento Entre Rios, Carnaubais e Planície Litorânea5.
Nesses espaços, percebe-se uma rede de organizações em pleno processo de formação e atuação em defesa de um modo de vida ameaçado por um processo de devastação que não se caracteriza apenas pela ação devastadora dos recursos naturais, mas também pelas relações sociais e pelos conflitos que caracterizam essa ação predatória. (ALMEIDA, 2005). É no confronto com esse antagonista comum que os agentes sociais denunciam as ameaças que sofrem e explicitam as estratégias de combate baseadas nas práticas tradicionais de uso e controle dos recursos naturais e pelas ações de mobilização e resistência que abrangem uma diversidade de agentes e movimentos sociais.
As situações sociais, apontadas pelos agentes sociais e mapeadas, abrangem um espaço geográfico amplo, diferentes formas de organização política e processos históricos. Comporta, também, diferentes formas de pressões e estratégias intrínsecas ao processo de devastação que vão desde o cercamento dos recursos naturais por parte dos fazendeiros, o desmatamento para pasto e produção agrícola, passando pela implantação de grandes empreendimentos agrícolas de grupos econômicos que atuam na região até a especulação imobiliária.
O desmatamento e a derrubada da palmeira de babaçu continuam sendo uma das maiores ameaças da reprodução física e social das famílias extrativistas. Juntamente com a devastação, emana uma série de ações de ameaças e imobilização da força de trabalhos das famílias que fazem uso desses recursos. As produções de arroz e cana de açúcar por grupos econômicos vêm aumentando sistematicamente nesses últimos dez anos na região. No município de União, segundo o Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR), cerca de 80% da floresta de babaçu foram derrubadas em vista de liberar a região para os canaviais e as terras tradicionalmente ocupadas estão sendo arrendadas para esses cultivos. Os moradores da cidade reclamam do uso de agrotóxicos também pulverizados por aviões e do fogo ateado nos canaviais na época da colheita da cana. Atualmente, sindicalistas são ameaçados por denunciarem a situação.
Em Miguel Alves há registros de conflitos ocasionados pelo arrendamento de terras tradicionalmente ocupadas pelas famílias extrativistas para a produção de arroz por grupos empresarias. Outro problema ocasionado pelo processo de devastação é a contaminação do meio ambiente pelo uso inadequado de agrotóxicos pulverizado por aviões. Segundo os agentes sociais, o veneno levado pelo vento atinge diferentes pontos do município, inclusive chegando à sede municipal, infectando a cidade, trazendo problemas de saúde, como alergias. As áreas de plantios familiares também são atingidas pelo veneno pulverizado, contaminando o solo e as plantações. As cobertas das casas também são atingidas pelo veneno, e, quando chove, a água contaminada vai para as cisternas.
Outro agravante é a construção pelos arrozeiros de um sistema de irrigação utilizando água do rio. Frequentemente os campos são inundados, escoando para o rio o veneno e os fertilizantes usados nas plantações. Os pescadores denunciam a escassez e ou envenenamento dos peixes e, até mesmo a poluição da água que é utilizada na cidade.
Além do desmatamento das florestas de babaçu por empreendimentos econômicos e a contaminação do solo e dos mananciais que afeta o meio ambiente como um todo, existem outras ações por parte de grupos empresariais que vêm se apresentando na região pesquisada. Como novos empreendimentos, são citados os projetos de piscicultura na região de Esperantina, ocasionando desmatamento das florestas de babaçu. Em Piracuruca, são apontados os testes de plantio realizados por Gaúchos e Argentinos.
Segundo informações do Centro de Educação e Assessoria Ambiental (CEAA), na localidade Deserto, no município de Piracuruca, os argentinos compraram dez mil hectares de terras e começaram a plantar pião manso. Como a experiência não resultou naquilo que esperavam, começaram também a plantar milho, depois eucalipto, mas ainda em pequena escala. Os denominados gaúchos compraram também propriedades na região de Pé de Serra, em Piracuruca e em Esperantina e Campo Largo. Segundo os agentes sociais, em Piracuruca estão fazendo testes com plantios de milho, batata e feijão; hortaliças em geral e pimenta. Há também a possibilidade de realizar testes para a criação de caprinos e ovinos para engorda e pastos. A preocupação dos agentes sociais é com o resultado desses testes e implantação de grandes empreendimentos, a exemplo de União e Miguel Alves, trazendo, assim, mais conflitos para a região.
O cercamento das terras pelos fazendeiros continua sendo uma prática utilizada como forma de imobilização da força de trabalho e de acesso às terras. “A forma deles expulsarem os trabalhadores das terras não é dizendo vai te embora, nem botando cachorro não, mas é cercando. Quem tá lá dentro, pra sair [...]” (Informação verbal)6. As famílias, portanto, são obrigadas a sair do local. Várias são as estratégias para pressionar as famílias a deixarem o local, entre elas a proibição de melhorias das habitações, de criar animais soltos, de comercializar as amêndoas do coco babaçu.
Juntamente com os cercamentos das terras vem a impossibilidade de acesso ao coco. Grandes extensões de florestas de babaçu são arrendadas por terceiros para a extração do coco inteiro, que são vendidos para alimentar as fábricas de sabão e vela em Esperantina, de cerâmica em Luzilândia, Miguel Alves e Teresina. No Maranhão, abastecem as fábricas de cerâmica de Timon. Segundo informações do STTR de Esperantina, há presença de muitos atravessadores que arrendam a área, compram, juntam o coco e vendem para as fábricas. Diariamente, passam vários caminhões carregados de coco em direção às indústrias.
Além do arrendamento de terceiros para a extração do coco inteiro, as próprias indústrias são proprietárias de terras na região. Ou seja, além de comprarem coco inteiro da mão de atravessadores, parte dos cocos utilizados por elas vem de suas próprias terras, o que dificulta a extração desse recurso pelas famílias que residem na região.
A especulação imobiliária também aparece como um dos problemas que agrava o desmatamento das florestas de babaçu. Empreendimentos imobiliários estão sendo implantados em forma de loteamento. Em Esperantina, segundo os agentes sociais, as áreas de terras próximas às rodovias viraram mais do que ouro, referindo-se à valorização dessas terras pelo mercado imobiliário. O loteamento, portanto, tornou-se um empreendimento mais rentável (sendo vendido cada lote a um valor estimado em R$ 10.000,00) e é uma prática que está se tornando comum na região.
As áreas de babaçuais utilizadas pelas quebradeiras de coco e demais famílias extrativistas estão sendo devastadas, trazendo não só prejuízo ambiental, como também a desorganização da economia extrativista da região. Nesse cenário, os agentes sociais organizam-se e constroem formas de enfrentamento dessas situações, a partir de atos de mobilização e resistência.
3 FORMAS DE ENFRENTAMENTO: identidades e processos de mobilização social
Durante o período de trabalho de campo na região de Esperantina, no Piauí, um aspecto em particular chamou muito atenção da equipe de pesquisa: foi a forma com que os diferentes grupos sociais com os quais estabelecemos relações de pesquisa, estão organizados, como eles têm resistido aos seus antagonistas. Atentar para alguns aspectos de como os agentes sociais se organizam, no sentido de construir e operacionalizar suas formas de enfrentamento e processo de mobilização, é imprescindível para compreender as situações sociais, relações políticas, disputas, conflitos e resistência na região7.
Um dos aspectos importante e muito marcante que pudemos observar é o que iremos chamar aqui de presencialidade da memória dos conflitos da luta pela terra. O termo empregado diz respeito à maneira como os agentes sociais justificam sua configuração atual de organização, baseada na memória coletiva das lutas sociais pela terra ocorridas no último quartel do século XX no Piauí, que é a principal fonte de inspiração do atual formato de enfrentamento e resistência utilizada na região da floresta de babaçu. A memória dos conflitos ocorridos em Esperantina e região, envolvendo os diversos grupos sociais, estão muito presentes nos discursos dos agentes sociais e dos movimentos sociais organizados. É justamente essa presencialidade da memória das lutas sociais que é acionada pelos agentes sociais como forma de explicação do processo de mobilização e organização que está em curso.
A situação etnográfica com a qual nos deparamos pode ser interpretada como sendo a politização da história social das lutas que serve de referência para a organização do grupo no presente. Sobre a politização da história, explica Almeida (2005), ela traz o passado para o presente através de uma atitude que leva à história do grupo, enquanto fundamentos da pretensão de direito.
Durante nossa estada em campo no momento das reuniões, conversas e entrevistas foi possível perceber com muita frequência o acionamento da memória coletiva dos conflitos vivenciados, tanto de uma maneira individualizada pelas pessoas, como de forma coletiva, operacionalizada nos discursos dos representantes das estratégias políticas organizativas locais. Quando se trata de reafirmação de identidade ou da reivindicação da legitimidade da memória das lutas sociais, a memória acaba apreendida nos discursos sempre de forma coletiva, havendo pouquíssimas variações apenas no modo de narrar as histórias dos povoados e sua integração ao processo de luta e resistência.
A memória coletiva tem assim uma importante função de contribuir para o sentimento de pertencia a um grupo do passado comum, que compartilha memórias, ela garante o sentimento da identidade do indivíduo colocado numa memória compartilhada não só no campo histórico do real, mas sobre tudo no campo simbólico. (KESSEL, 2007, p. 3).
A memória individual tem como base a memória coletiva. Uma vez que todas as lembranças são constituídas no interior do grupo (HALBWACHS, 2004), não há memória que seja somente imaginação pura e simples ou representação histórica que tenhamos construído que nos seja exterior, ou seja, todo este processo de construção da memória passa por um referencial que é o sujeito.
Os conflitos sociais dos anos 1980 deixaram profundas marcas na organização social, nos processos mobilizatórios e nas estratégias de enfrentamentos dos atuais conflitos. A Pastoral Popular e o antigo Centro de Educação Popular Esperantinense (CEPES)8 aparecem nos discursos dos agentes sociais como precursores da organização atual. Este era responsável pela formação política, principalmente de jovens, usando para tanto a performance teatral com uma forte influência do catolicismo. Era o CEPES que articulava a resistência das comunidades juntamente com os STTR.
As entidades que estiveram envolvidas na organização e mobilização das comunidades piauienses no ultimo quarto do século XX, contribuindo no enfrentamento e resistências na luta pela terra, hoje figuram como fonte de inspiração para atuais organizações políticas locais que têm se tornado estratégicas para o enfrentamento dos conflitos nos dias de hoje. As mobilizações sociais existentes atualmente na floresta de babaçu do Piauí passam por uma diversidade de movimentos sociais com pauta de reivindicação convergente; algumas com base na reivindicação de identidade étnica; outras, nas formas organizacionais mais tradicionais, como no caso dos sindicatos de trabalhadores rurais, associações locais, assentamentos e ONGs que (co)formam uma grande rede que está articulada entre si, o que tem dando uma dinâmica própria aos processos mobilizatórios na região.
Essas organizações locais funcionam como instrumentos políticos capazes de potencializar a resistência contra as formas de dominação, sendo estratégicas para enfrentamento do avanço do agronegócio e de grandes projetos que ameaçam a floresta de babaçu e, consequentemente, ameaçam também a reprodução do social, física, cultural e religiosa dos grupos.
Os grupos sociais que vivem nos babaçuais, devido ao seu modo especifico de existir, que depende da relação que eles estabelecem com o território e o uso comum dos recursos naturais, têm sua existência colocada em risco com o avanço do desenvolvimento baseado em monoculturas potencializadas por diversos incentivos advindos dos governantes locais. O apoio governamental à agricultura empresarial, visando o incremento da produção de commodities, é muito forte. Baseados em argumentos desenvolvimentistas, os discursos oficiais acabam por transformar os babaçuais em empecilho ao progresso e os incentivos estatais se transformam em uma espécie de financiamento premeditado do processo de desflorestamento dos babaçuais.
Enquanto o lobby ao agronegócio transforma a floresta em empecilho ao progresso, do ponto de vista das comunidades e dos movimentos sociais a floresta do babaçu é vista como um bem coletivo utilizado tradicionalmente pelos diferentes grupos sociais da região, que possibilita às pessoas vislumbrarem um desenvolvimento estruturado a partir da relação estabelecida entre as pessoas das comunidades e com a natureza. É um modo de vida próprio que vem sendo construído através das gerações, com o entendimento de que a vida só é possível devido à sintonia entre homem e natureza, principalmente no jeito de utilizar os recursos e vivenciar a natureza. Em outras palavras, a sobrevivência desses grupos está relacionada com a maneira como eles se relacionam com o meio ambiente. A natureza é vivenciada aqui de forma politizada, a partir do processo de consciência dos agentes sociais e da compreensão que têm da realidade social.
Entre essas organizações políticas locais importantes estão a Escola Família Agrícola do Cocais (EFA COCAIS) e a Escola Família Agrícola Soinho (EFA SOINHO), que atuam na formação educacional, técnica e política das pessoas das comunidades que estão localizadas na região da floresta de babaçu. As escolas funcionam de acordo com a pedagogia da alternância, que consiste no aluno ficar um período de aproximadamente quinze dias na escola e outros quinze dias na comunidade, aplicando seus conhecimentos adquiridos na escola na sua comunidade. O objetivo é estimular os jovens a usarem sua formação técnica integrada ao conhecimento local.
As escolas recebem anualmente jovens das mais diferentes comunidades, o que possibilita, posteriormente, a formação e a consolidação de uma rede articulada a partir das relações sociais e do processo de formação política construído no âmbito das atividades realizadas nas escolas. As EFAs não são fabricas de técnicos e sim centros de formação política de novas lideranças. É dessas escolas que têm saído as novas lideranças que têm se engajado nos processos de enfretamentos atual.
As EFAs são lugares de formação educacional, uma alternativa ao modelo oferecido pelo Estado. Dessa forma, podem ser vistas como espaços sociais marginais que permitem a socialização de uma prática distinta onde a resistência é alimentada. (SCOTT, 2000). Os alunos das EFAs escapam do controle da educação formalizada e homogeneizadora, onde as realidades locais não são problematizadas.
Outra organização local que tem contribuído para o processo de mobilização na floresta de babaçu no Piauí é o CEAA, que absorve os jovens formados nas EFAs, para o trabalho de assessoria agrícola em suas comunidades e/ou comunidades vizinhas, com as quais ele tem vínculo. Estes despontam como lideranças no espaço em que atuam.
A inserção de trabalho, possibilitada pela atuação dessas organizações educacionais, cria uma dinâmica de constante mobilização desses agentes sociais, que operam de forma articulada dentro da floresta de babaçu. Foi justamente essa movimentação que possibilitou o acesso aos dados e às informações que nos permitiram realizar o mapeando social dos babaçuais no Piauí. Só foi possível mapear a mancha do babaçu no Piauí através da nossa inserção nessa rede.
Organizações políticas locais, como os Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) (Madeiro, Luzilândia, Esperantina, Porto, São João do Arraial, Barras, Miguel Alves e União), têm um papel histórico no processo de mobilização social e enfrentamento dos conflitos sociais na região pesquisada. O STTR foi uma das organizações fundamentais para esses agentes sociais nos conflitos da década de 1980 e tem sido importante aliado no processo de resistência. O sindicato assumiu a tarefa de organizar e mobilizar a comunidade e o movimento social no sentido de combater o avanço dos antagonistas.
Outras formas de organização política que foram observadas etnograficamente são as que estão ligadas à configuração específica de articulação política, fortalecida pelo acionamento do dado étnico dos grupos sociais, como é o caso dos quilombolas e das quebradeiras de coco babaçu.
Segundo Almeida (2005), o critério étnico é construído a partir de mobilizações que expressem formas de agrupamentos políticos em torno de elementos comuns. Embora isso seja notado apenas em uma dimensão mais localizada, os discursos dos agentes sociais têm sido no sentido de demonstrar o processo de tomada de consciência de si e a reivindicação pública da identidade quilombola. Isso é objetivado em atos de autodefinição de associação comunitária, ou seja, em momentos públicos onde as pessoas se apresentam enquanto quilombolas e são reconhecidas pelos seus pares como tais.
Já o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco (MIQCB) atua como um importante articulador indispensável à garantia da manutenção dos babaçuais. Mais que uma bandeira de luta, a palmeira é parte da identidade política organizativa da quebradeira. Segundo Almeida (2005), esse é o critério de composição que faz com que as pessoas se sintam pertencentes a uma mesma identidade e com laços de solidariedade em face de uma pauta de reivindicação que se aproxima de maneira profunda, porquanto seu modo de existir e fazer.
4 CONCLUSÃO
A relação de pesquisa e os dados coletados nos permitem afirmar no cotidiano vivenciado em cada comunidade, que as formas de enfrentamento são bastante diversificadas. O processo de resistência é diário e contínuo, podendo ser descrito como o que James Scott (1985) denominou de formas de resistências cotidianas, sendo estreitamente variado e localizado, que vai desde a recusar a aceitar qualquer tipo de relação de trabalho proposto pelos antagonistas, até atos de desobediência, que são os casos onde os moradores se recusam a se submeter a qualquer imposição ou regras por eles ditadas.
A situação etnográfica observada no Piauí aponta para a existência de uma estratégia das organizações locais, que é a formação de um quadro político com um forte cunho de solidariedade, objetivando uma ação efetiva na organização dos movimentos sociais na região da floresta de babaçu. As observações referem-se a situações em que os grupos sociais vão aperfeiçoando e ressignificando seus instrumentos de resistência.
O projeto de desenvolvimento promovido pelo governo do Piauí, em parceria com as elites agrárias e os grandes grupos econômicos, criou uma conjuntura adversa. A mobilização social existente mostra que as quebradeiras de coco se posicionam ativamente diante da devastação dos babaçuais e dos inúmeros episódios de violação dos seus direitos e possui uma importante capacidade de forjar alianças com outras coletividades e organizações. Contudo, o seu protagonismo tem sido impactado severamente pelo poder politico e econômico dos seus adversários, o que coloca em risco a existência da floresta e a sobrevivência física e cultural das quebradeiras de coco babaçu.
REFERÊNCIAS
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Notas