Resumo: O presente artigo é parte da pesquisa em desenvolvimento: Tornar-se professor de História: correlações de poder e força nas práticas de letramento na licenciatura de História PARFOR/UFRRJ. Busca apresentar o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR). Como foco de análise, faz uso do portfólio produzido pelos professores/alunos PARFOR na disciplina obrigatória de 6º período – Ensino de História II. A análise dos indícios produzidos busca compreender o que os professores/alunos escrevem sobre a experiência de leitura e escrita no curso de História/PARFOR, e as implicações dessas correlações para a formação docente.
Palavras-chave:Ensino de HistóriaEnsino de História, formação de professores formação de professores, letramento letramento.
Abstract: The present article is part of the research in development: Becoming a professor of History: correlations of power and strength in literacy practices in the degree of History PARFOR / UFRRJ. We seek to present the National Plan for the Training of Basic Education Teachers (PARFOR). As focus of analysis, makes use of the portfolio produced by the PARFOR teachers / students in the compulsory discipline of 6th period Teaching of History II. The analysis of the evidence produced seeks to understand what teachers / students write about the experience of reading and writing in the History / PARFOR course, and the implications of these correlations for teacher trainining.
Keywords: Teaching History, teacher training, literacy.
Mesas temáticas coordenadas
TORNAR-SE PROFESSOR DE HISTÓRIA: por que se lê e escreve no curso de História PARFOR/UFRRJ?
Recepção: 08 Março 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
O artigo que apresentamos é parte da pesquisa em desenvolvimento: Tornar-se professor de História: correlações de poder e força nas práticas de letramento na licenciatura de História PARFOR/ UFRRJ. Buscamos apresentar o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), assim como os referenciais teóricos que mobilizamos para pensar este campo de pesquisa e seus indícios.
O foco principal de nossa pesquisa é compreender, na formação do professor de História/PARFOR, as correlações de força e poder que constituem as práticas de oralidade e letramento nesse processo formativo dos alunos ingressantes no curso de História/ PARFOR da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Para este artigo analisaremos o portfólio produzido pelos professores/alunos PARFOR na disciplina obrigatória de 6º período – Ensino de História II. A análise dos indícios produzidos busca compreender o que os professores/alunos escrevem sobre a experiência de leitura e escrita no curso de História/PARFOR, e as implicações dessas correlações para a formação docente.
O Decreto n.º 6.775, 29 de janeiro de 2009, instituiu a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica e disciplinou a atuação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no fomento a programas de formação inicial e continuada.
Para estruturar e sustentar a formação de professores da educação básica, há uma série de documentos legais desdobrados em ações que visam “[...] garantir [a] equalização de oportunidades educacionais e padrões mínimos de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.” (BRASIL, 2014, p. 137). No âmbito dessas políticas, encontra-se o PARFOR.
O PARFOR foi criado pelo Governo Federal para atender ao Decreto n.º 6.755, de 29 de janeiro de 2009, e implantado em regime de colaboração entre a CAPES, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal e as Instituições de Ensino Superior. Consoante tal Decreto:
Art. 2o São princípios da Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica:
I - a formação docente para todas as etapas da educação básica como compromisso público de Estado, buscando assegurar o direito das crianças, jovens e adultos à educação de qualidade, construída em bases científicas e técnicas sólidas;
[...]
II - a formação dos profissionais do magistério como compromisso com um projeto social, político e ético que contribua para a consolidação de uma nação soberana, democrática, justa, inclusiva e que promova a emancipação dos indivíduos e grupos sociais;
[...]
IX - a equidade no acesso à formação inicial e continuada, buscando a redução das desigualdades sociais e regionais. (BRASIL, 2009).
O PARFOR é uma política que pretende corrigir as desigualdades e efetivar direitos a segmentos da sociedade historicamente excluídos da participação e usufruto dos bens, das riquezas e oportunidades, do direito à cidadania, da cultura, da educação e/ou do trabalho digno. Tal atributo é acentuado por sua tripla característica:
1. A reserva de vagas a um público que tradicionalmente está excluído do acesso à universidade pública, gratuita e de qualidade;
2. A formação de professores que atuam na educação básica pública e, em consequência disso, a elevação da qualidade das escolas públicas brasileiras, promovendo a emancipação dos indivíduos e dos grupos sociais;
3. A elevação da qualidade da educação oferecida nas escolas públicas e, assim, a redução das desigualdades sociais e regionais que marcam o País.
A UFRRJ, em 10 de novembro de 2009, assinou o termo de adesão ao Acordo de Cooperação Técnica (ACT) n.º 014/2009, com vistas à implantação do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica, instituído pelo Ministério da Educação (MEC), destinado a atender, mediante oferta de ensino superior público e gratuito, à demanda de professores que, embora atuantes nas redes pública, estadual e municipal, não possuíssem formação adequada à Lei de Diretrizes da Educação Brasileira (LDB), n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
No ano de 2010, pela primeira vez, foi aberto, na UFRRJ, o processo de inscrição pela Plataforma Freire1 para os professores da educação básica participarem do processo seletivo e ingressarem nessa instituição pelo UFRRJ/PARFOR. O primeiro processo de inscrição apresentou um número significativo de professores interessados pelos cursos de licenciatura. Diante do elevado número de candidatos, o MEC procurou a reitoria e solicitou que a UFRRJ abrisse turmas específicas para os professores/alunos2.
No primeiro semestre letivo de 2010, foi aberta a primeira turma exclusivamente composta por professores/alunos ingressados pelo PARFOR, no curso de Pedagogia do Instituto Multidisciplinar. Os cursos de Matemática, História, Geografia e Letras, nesse mesmo período, receberam 5 alunos; cada um em suas turmas regulares. Na sequência, as outras licenciaturas, oferecidas pelo Instituto Multidisciplinar, abriram suas turmas PARFOR: 1) 2011.01 Letras; 2) 2011.1 Matemática; e 3) 2012.02 História (como primeira licenciatura); e Filosofia (como segunda licenciatura).
O PARFOR possibilitou a entrada de um perfil de professores/ alunos possuidores de marcas identitárias e saberes acumulados ao longo de seus percursos no mundo da vida e do trabalho sobre práticas de letramento diferenciadas dos alunos que, tradicionalmente, ingressam na universidade. Esses professores/alunos carregam, portanto, saberes que possuem concepções sobre validade e pertinência relativas às práticas de oralidade, leitura e escrita. No processo de formação na graduação, essas pretensões são questionadas e tensionam as tradições letradas constituídas na universidade, abalando as certezas cristalizadas em alguns segmentos acadêmicos. As tensões geram verdadeiras rachaduras epistêmicas-pedagógicas, mais evidenciadas em algumas licenciaturas que outras.
Vale ressaltar que as práticas pedagógicas, no âmbito acadêmico e nas Ciências Humanas, são marcadas pela fala3, pela leitura e pela escrita. No entanto, diferente das produzidas pelos professores/ alunos, são práticas de letramento que, ao longo do tempo, se constituíram como legítimas e válidas na difusão do conhecimento gerado na universidade e na formação por ela efetivada.
Nesse sentido, a pesquisa que fundamenta este artigo busca dialogar com os dois níveis da educação brasileira, a Educação Básica e a Superior, já que a formação de professores se caracteriza como um lugar de transmissão e consolidação de práticas letradas, as quais podem ora promover a emancipação de indivíduos e grupos sociais, ora agravar as concepções de letramento de caráter elitista e excludente e se configurar como um instrumento de manutenção hegemônica do status quo.
[...] A moeda corrente da escola é constituída de palavra – palavras, como vimos antes, que são moldadas de acordo com as exigências do alfabetismo. (GRAFF, 1990, p. 33)
O letramento, ao longo do processo histórico mundial e nacional, configurou-se como uma moeda corrente, isto é, um instrumento ideológico e socialmente construído para permitir ou impedir
o fluxo de pessoas e conhecimentos em espaços sociais e de trabalho. Nesse sentido, a escola foi, nos últimos séculos, a principal agência de promoção, configuração e manutenção de um perfil de letramento legítimo e prestigiado numa sociedade que, nos últimos trinta anos, tem se tornado cada vez mais grafocentrada4.
Entretanto, o perfil de letramento promovido pela sociedade industrial e difundido pelos processos de escolarização produziu diferentes relações sociais, as quais compõem ações que corroboram a manutenção e a divulgação das desigualdades estabelecidas nas práticas de trabalho e docência na educação brasileira.
Investigar as práticas de letramento vivenciadas nesse espaço de formação, a relação do professor/aluno com o trabalho – enquanto docente e discente – e as estratégias de superação das desigualdades sociais estabelecidas historicamente nos espaços de letramento universitário, em especial na formação de historiadores/professores no PARFOR, impulsiona a busca pela compreensão de uma questão central nos processos de letramento promovidos pela UFRRJ:
• O PARFOR, de fato, promove a superação das desigualdades sociais letradas imputadas no processo histórico da constituição do Estado brasileiro?
A primeira turma de Licenciatura em História PARFOR, aberta no segundo semestre letivo de 2012, possuía 40 professores/ alunos. Atualmente, o curso possui, desse total, 64% de seus alunos ativos, 18% trancados e 23% desligados. Essa turma, neste momento, encaminha-se para o término de sua formação no curso de licenciatura em História.
No dia 2 de junho de 2014 foi realizado o I Seminário Interno de Avaliação PARFOR. Na dinâmica do evento, no processo de preparação, buscou-se trazer uma série de informações pertinentes aos cursos oferecidos pelo PARFOR, entre elas a perspectiva discente dessa formação.
Durante a dinâmica construída no Seminário, os alunos responderam a um questionário de avaliação que continha 12 itens, entre eles a questão destinada a avaliar as principais dificuldades encontradas no curso. Nesse quesito, os alunos do curso de História apontaram, como principal problema, o que foi denominado, pelos organizadores do processo, de categoria cultura docente, que abrangia diferentes aspectos das práticas pedagógicas dos professores do curso.
Uma questão recorrente nos questionários ‒ e motivadora da pesquisa em desenvolvimento ‒ refere-se às práticas de fala, leitura e escrita que se constituem nas aulas ministradas nesse curso específico. No caso, os professores/alunos apresentaram várias queixas, dentre as quais se destacam as práticas de letramento. Essas queixas fizeram emergir uma série de indagações que nortearam a pesquisa desenvolvida atualmente5.
Principais indagações que se desdobraram nos objetivos da pesquisa:
1. Quais as principais dificuldades encontradas nas práticas de leitura e escrita no curso de Licenciatura em História PARFOR?
2. Que práticas de oralidade, leitura e escrita são desenvolvidas no curso de Licenciatura em História/PARFOR?
3. Como os alunos compreendem as práticas de oralidade, leitura e escrita realizadas no curso?
4. Quais as maiores dificuldades encontradas nas práticas de oralidade, leitura e escrita?
5. Como a formação universitária contribui para sua prática letrada no exercício da docência?
6. Que concepções de oralidade, leitura e escrita os professores/alunos acreditam que devem ser realizadas no ensino de História?
7. O que é falar, ler e escrever bem para um professor de História?
Compreender as práticas de letramento contidas na formação do professor de História na turma PARFOR/UFRRJ possui uma tripla relevância:
1. Identificar as concepções de letramento praticadas no curso de História/UFRRJ;
2. Situar os tipos de práticas de letramento promovidas e solidificadas nas escolas públicas em que atuam os professores/alunos que cursam História na UFRRJ;
3. Reconhecer as contribuições que a formação acadêmica promove na superação das desigualdades sociais vivenciadas por esses professores/alunos nas comunidades em que desenvolvem a docência6.
Os professores/alunos da turma de História/PARFOR carregam percepções e compreensões sobre práticas de letramento dentro de um contexto institucional específico, a escola pública da educação básica. Possuem, portanto, um saber acumulado ao longo de suas carreiras de professores sobre os valores da fala, da leitura e da escrita e sobre as correlações de poder e forças que as suas práticas possuem.
Esses professores/alunos, ao ingressarem na universidade, são submetidos a um novo desafio: as práticas de letramento que esse novo lugar possui. Tais atores se deparam, então, com novos rituais, novas concepções e distintas validades em relação a suas práticas habituais na educação básica.
Logo, compreender essa imersão na cultura letrada acadêmica e nas práticas de letramento de grupos tradicionalmente excluídos desse processo é fundamental. Compreendemos que a temática possui pertinência e validade ao pretender para o momento atual na formação de professores, pois visa: 1) compreender as práticas de letramento desenvolvidas na formação de professores de História; 2) identificar e analisar como grupos tradicionalmente excluídos da formação acadêmica se relacionam com essas práticas de letramento na academia e em seus espaços de trabalho: e 3) analisar como as políticas de formação de professores implementadas nos últimos anos impactam a educação básica e, com recorte e foco nas práticas letradas, como são superadas as desigualdades sociais tradicionalmente constituídas.
Os estudos sobre as práticas de letramento acadêmico possuem atualmente um trajeto já percorrido por alguns pesquisadores. Entre essas investigações, destacam-se os estudos desenvolvidos por Lea e Street em 1998, Gee em 1990, Street em 1984 e 1995, que indicam haver uma especificidade para o letramento acadêmico e suas práticas sociais. Nesses estudos, destacam-se “[...] a escrita acadêmica como prática social, dentro de um contexto institucional e disciplinar determinado [...]” e “[...] a influência de fatores como poder e autoridade sobre a produção textual dos alunos.” (STREET, 2010, p. 544).
O que diferencia nossa investigação das desenvolvidas, citadas acima, é a especificidade dos atores investigados, já inseridos em um contexto institucional que possui práticas de letramento tradicionalmente difundidas. Nesse contexto, que também é de ensino/aprendizagem, eles ocupam a função de professor, isto é, de autoridade e poder na produção textual. No espaço institucional universitário, eles mudam de lugar, pois são submetidos à autoridade de outros e às regras que esse campo discursivo possui, diferenciado do ambiente da educação básica. Essa mudança de papel pode provocar conflitos e complexificar as práticas de letramento tradicionais no processo de ensino e aprendizagem universitário.
As concepções e os valores sobre fala, leitura e escrita, adquiridas por esses professores/alunos, são desestabilizados no espaço da formação acadêmica, visto que são imersos em uma nova partilha social de letramento e de suas práticas institucionais cotidianas. Todavia, esse novo papel – professor/aluno – pode provocar tensões e conflitos nas práticas de letramento na formação desses professores de História.
Compreender as práticas de letramento que constituem a turma de História/PARFOR é fazer uma análise sociopolítica do processo de formação para a docência, promovida pela UFRRJ. Assim, o recorte História/PARFOR ampliará essa investigação e realiza uma imersão e um aprofundamento analítico nos impactos que as políticas de acesso à universidade por parcelas da população tradicionalmente alijadas desse direito provocam em suas práticas pedagógicas e avaliativas. No caso desta pesquisa, trata-se especialmente das práticas de letramento do curso de formação de professores de História/ PARFOR.
A investigação em andamento também permite identificar elementos que extrapolam o espaço físico da universidade e de suas práticas letradas. Fala-se aqui do espaço de ação desses professores/ alunos que sofrem ao longo do processo histórico brasileiro uma sistemática exclusão social, e, mais especificamente, fala-se de suas práticas pedagógicas no espaço de trabalho de regiões da Baixada Fluminense – RJ. O PARFOR estende suas práticas, portanto, para além do espaço universitário de forma imediata, ampliando sua esfera de ação para o trabalho desenvolvido na educação básica, pois os atores principais desse processo – professores/alunos – já estão presentes nas escolas e são agentes na promoção de práticas de letramento. Além disso, questões de antemão presentes no campo analisado são as relações de trabalho desses professores/alunos7 e o tempo para sua formação em serviço. Esse tema, apesar de marginal nesta pesquisa, apresenta uma relevância crucial na experiência subjetiva de letramento desses sujeitos.
Quando se pergunta como leem e de que forma leem, os professores/alunos destacam o limitador do tempo como fator preponderante na qualidade de suas leituras. Denunciam que, embora pactuado o acordo com o MEC em relação ao PARFOR pelas diferentes secretarias de educação, os professores/alunos não encontram nenhum apoio concreto nas redes em que trabalham. Nesse sentido, os eventos de letramento são impactados pelas condições de trabalho a que tais sujeitos são expostos.
Investigar as práticas de letramento e suas correlações de força e poder extrapola o microespaço da universidade. Os eventos de letramento são uma materialidade macrossocial e, nesse sentido, tornam-se complexos e densos, possibilitando, assim, a compreensão de um espectro mais amplo que o caso específico – História/PARFOR.
Letramento é uma palavra recente, surgida no Brasil nos anos 80 (SOARES, 2004), ou seja, apenas há cerca de trinta anos, ela aparece no discurso dos pesquisadores. Antes desse período, o debate sobre essa temática recebeu algumas expressões em português, entre elas alfabetismo. Nesse sentido, quando a palavra literacy foi traduzida do texto original de Graff (1990) para o português, no ano de 1990, ela ainda se encontrava em disputa. Hoje, o termo já seria traduzido como letramento, pois, em textos mais recentes que dialogam com o referido autor, a tradução não usa mais alfabetismo e sim letramento.
Graff (1990) afirma, de forma enfática, que a moeda corrente da escola é o letramento. Isso significa que os processos de ensino e aprendizagem estão marcados por essa concepção grafocêntrica de sociedade e ensino. (MORTATTI, 2004). O autor também denuncia a concepção difundida na sociedade em relação ao letramento:
O alfabetismo, na minha opinião, é profundamente mal entendido. Essa é uma consequência natural da duradoura tirania do “mito do alfabetismo”, o qual, juntamente com outros mitos sociais e culturais, tem tido, naturalmente, suficiente base na realidade social para poder assegurar sua disseminação e aceitação [...] (GRAFF, 1990, p. 32, grifo do autor).
O princípio do mito do letramento é o de que o domínio do código proporciona ao letrado um trânsito competente pelos múltiplos textos existentes. Entretanto, nessa perspectiva, as práticas tradicionais difundidas pela academia “[...] não avaliam as implicações conceituais que a questão do [letramento] apresenta, e ignoram – muitas vezes de forma grosseira – o papel vital do contexto sócio-histórico.” (GRAFF, 1990, p. 32).
O mito do letramento é profundamente difundido em diferentes setores sociais e muito presente no senso comum acadêmico. Geralmente, a compreensão que diferentes atores da universidade possuem em relação às práticas letradas se baseia nessa premissa. Isto é, a de que todos os sujeitos alfabetizados são capazes de ler e escrever com autonomia qualquer texto, independente do campo discursivo a que ele pertença.
Essa concepção perpetua práticas letradas que não percebem a peculiaridade dos diferentes atores e de suas bagagens de letramento sócio-históricas. (ROCHA, 2010). Ao conceber que todos os sujeitos alfabetizados possuem o mesmo grau de letramento, ignora-se que campos discursivos distintos possuem estética e relações diferentes com a palavra oral e escrita.
Graff (1990, 1994), ainda, salienta a necessidade da compreensão acerca do contexto sócio-histórico dos atores letrados, visto que a palavra possui valores e sentidos distintos em contextos diferentes. Bakhtin ajuda no entendimento dessa questão:
[...] classes sociais diferentes servem-se de uma mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valores contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolvem a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel [...] (BAKHTIN, 2010, p. 47).
Os participantes da comunicação, em sua dinâmica social, são ativos na produção de enunciados escritos e orais que, ao serem apreendidos pelos distintos atores, ganham a acentuação própria do sujeito que os compreende, marcado pelo mundo sócio-histórico que o constitui e por sua subjetividade em ato. “A palavra da língua é uma palavra semialheia. Ela só se torna ‘própria’ quando o falante a povoa com sua intenção, com seu acento, quando através do discurso, torna-a familiar com sua orientação semântica e expressiva.” (BAKHTIN, 1998, p. 100).
A palavra, na História, possui uma carga de sentidos e significados tecidos em processos sócio-históricos e disputas políticas e de poder (AZEVEDO; MONTEIRO, 2011). Nesse sentido, ao proferir a palavra no espaço de formação dos professores de História, PARFOR ou não, o sujeito carrega em seus enunciados – sejam orais, sejam escritos – uma série de palavras semialheias que trazem em si marcas das disputas e dos valores que as adensaram de sentido.
Os enunciados orais e escritos, no processo de ensino e aprendizagem, muitas vezes são naturalizados e revestidos do senso comum com base no mito do letramento. Esses eventos enunciativos constituem práticas de letramento planificadas e descontextualizadas do lugar sócio-histórico que materializa a formação, produzindo, assim, a manutenção do status quo e o afastamento de camadas sociais que não trazem consigo essa palavra como uma bagagem social constituída, nem trazem uma palavra também significada de outros sentidos considerados incorretos pelo campo discursivo universitário.
Compreender as práticas de letramento que se materializam na formação do professor de História/PARFOR é dialogar com esse espaço ideológico, que é a produção do letramento acadêmico e escolar. A análise complexa desse lugar de formação ajuda a dimensionar a ação dos professores formadores na licenciatura e o papel sócio-histórico que a universidade pública e de qualidade possui na constituição das relações de trabalho e na potencial redução da exclusão imputada a um número significativo de alunos atendidos nas redes públicas da educação básica brasileira e, no caso específico em debate, na região metropolitana do Rio de Janeiro, a Baixada Fluminense.
Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso;) toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. (BAKHTIN, 2003, p. 271).
Compreender as práticas de letramento que constituem de sentido a formação do professor de História/PARFOR é um desafio complexo, que se materializa em múltiplos espaços de enunciação. Já que a palavra é complexa e ideologicamente constituída, não basta olhar apenas para o espaço da universidade e da sala de aula, mas sim compreender as múltiplas facetas desse professor/aluno e de sua relação com os professores desse curso, como o uso ordinário e acadêmico da fala, da leitura e da escrita.
Metodologicamente, há dois eixos de investigação:
1. As práticas de letramento dos professores/alunos de História/PARFOR antes de ingressarem na UFRRJ;
2. As práticas de letramento dos professores/alunos de História/PARFOR durante o processo de formação acadêmica.
No processo de construção do campo investigativo, o propósito deste artigo é apresentar o tensionamento entre o local – História/ PARFOR – e o global – o mundo da vida, recortando as diferentes redes públicas de ensino em que se inserem esses professores/alunos. O acesso de atores tradicionalmente excluídos dos espaços universitários de formação e de suas ações no espaço da educação básica se torna, portanto, a principal imbricação na perspectiva local e global.
Buscamos construir, então, um diálogo que extrapole o específico e busque delinear a contribuição que um estudo de caso pode proporcionar para uma compreensão ampla (ANDRÉ, 2002), isto é, para o entendimento das práticas de letramento acadêmico e de sua interlocução com os novos atores, cuja entrada na universidade é proporcionada pelas políticas de acesso e cujas concepções de fala, leitura e escrita são anteriores a isso. Com inspiração em Bakhtin, é possível dizer: são concepções constituídas por diversas palavras alheias, de múltiplos contextos sócio-históricos que refletem e refratam as novas palavras apresentadas. (BAKHTIN, 2010).
A validade de uma pesquisa que investiga um caso específico somente é compreendida quando extrapola o caso em seu sentido estrito. (FONSECA, 1999). Nesse sentido, entende-se que a palavra revela as tensões sócio-históricas e, dessa forma, que o singular traz em si sentidos constituídos em um espectro maior de significação, configurado em seu tempo-espaço, produzindo, assim, uma relação dialógica entre a perspectiva micro e macro de compreensão da realidade concreta. (BAKHTIN, 2010).
As práticas de letramento que se materializam no espaço micro, a sala de aula de História/PARFOR, não estão isoladas do todo social. Por isso, ao investigar esse caso específico, extrapola-se a compreensão acerca de outros espaços de formação de professores e suas práticas de letramento e acerca do desdobramento que a formação acadêmica imputa na docência desses atores.
As etapas que compõem a metodologia desta pesquisa visam compreender as múltiplas facetas desses atores – professores/alunos – e a cultura letrada que os constitui antes e durante a formação universitária (STREET, 2010) e analisar como são potencializadas as futuras práticas em seus espaços de trabalho. Nesse sentido, mediante realização de entrevistas com os professores/alunos em dois momentos, busca-se compreendê-los enquanto grupo/turma e enquanto indivíduos em suas experiências singulares de oralidade e letramento (BAKHTIN, 2006; STREET, 2006, 2010).
Em suma, nossa metodologia de produção de indícios e análise busca transitar entre a escala micro – o indivíduo – e a escala macro – a sociedade, uma vez que esse exercício de escala pode contribuir na compreensão dos processos sócio-históricos a que a universidade tem se submetido. Também, pesquisas desse perfil podem potencializar uma ação mais concreta, desdobrada em ações que se estendam a outros espaços, consolidando na universidade a integração de seu tripé de sustentação – ensino/pesquisa/extensão. Estabelece-se, dessa maneira, um fluxo nas relações entre educação básica e trabalho, compreendendo e superando os processos de desigualdades sociais estabelecidos. Neste recorte, especificamente, trata-se das desigualdades que os processos de letramento imputaram, ao longo dos últimos séculos, à sociedade mundial e brasileira.
Para este artigo trazemos a análise dos portfólios construídos pelos alunos da turma de História/PARFOR, em junho de 2015, na disciplina Ensino de História II e que compõem a pesquisa em andamento – Tornar-se professor de História: correlações de poder e força nas práticas de letramento na licenciatura de História PARFOR/ UFRRJ.
O Portfólio é parte do trabalho final da disciplina obrigatória do 6º período do curso de História/PARFOR. Neste artigo analisaremos como os professores/alunos definiram a compreensão de suas práticas de leitura e escrita no curso.
Foram confeccionados 18 portfólios. Neste artigo elegemos trechos de 2 destes trabalhos, pois ambos sintetizam a percepção que os professores/alunos possuem em relação à função da leitura e escrita em sua formação.
O portfólio era composto de 3 etapas:
1. Questionário com 5 perguntas destinadas a compreender as práticas de oralidade e letramento que foram experimentadas por eles na formação até o presente momento;
2. Práticas de oralidade e letramento de suas memórias escolares;
3. Análise crítica das práticas de oralidade e letramento. Neste artigo utilizaremos a terceira parte do portfólio confeccionado.
1ª Pergunta: Que tipo de leitor você deve ser no curso de História
Acredito que, acima de tudo, devemos ser do tipo de leitor com uma visão crítica do assunto ao qual estamos sendo apresentados. Até porque os professores procuram apresentar autores com ideias, muitas vezes antagônicas, sobre um mesmo tema da História. Desse modo, não aceitar o que está sendo lido como um fato consumado e, sim, estudado e analisado e confrontado com outras opiniões. (Aluna 1 – Parfor História).
O professor/aluno acredita que deve ler com criticidade os textos; nesse sentido, ler significa uma imersão no campo discursivo da História (AZEVEDO, 2011) e de suas disputas de sentido na História (AZEVEDO; MONTEIRO, 2013). A leitura ganha uma perspectiva distinta da tradição escolar da Educação Básica e do uso cotidiano que essa prática letrada possuí.
Ler, nessa perspectiva, é pautado na premissa que a tradição acadêmica cultiva e acalenta, isto é, uma percepção que a leitura por si só fará com que esse professor/aluno estabeleça uma análise complexa do texto apresentado. Que o ato de ler, em si, constituiria um texto mental que se desdobraria na escrita acadêmica. Podemos observar essa perspectiva na reposta escrita que segue.
2ª Pergunta: Como você compreende a função da escrita na graduação?
Já a função da escrita na graduação é essencial para o exercício da produção acadêmica de textos: resenhas, artigos, portfólios, monografias, etc. Entretanto, admito a necessidade de exercitar mais a minha parte escrita, pois atualmente tenho escrito apenas para os trabalhos do curso da graduação, que são os que já citei anteriormente, além das provas, avaliações e e-mails para os colegas e professores sobre assuntos das matérias estudadas. Todavia, o que mais escrevo na graduação são as minhas observações feitas no caderno sobre as aulas dos professores, resumos e sistematização dos conteúdos na tentativa de facilitar o estudo e o aprendizado da matéria. (Aluna 2 – Parfor História).
O professor/aluno destaca que a escrita possui um perfil e uma estética esperados. Podemos perceber em sua resposta indícios que apontam a expectativa dos professores sobre sua competência discursiva, e o que ele acredita que deve ser as práticas letradas do historiador.
“A história (historiografia) é um constructo linguístico intertextual.” (JENKINS, 2009, p. 7). O autor nos chama a compreender a questão da aceitação de uma proposição como validez discursiva, delimitada por um arcabouço vocabular inerente à prática de letramento estabelecida por um grupo social de ofício. Os historiadores, ao escreverem, sacam de seu arcabouço vocabular agregado para produzir sentidos sobre o passado e é aferido a esse constructo linguístico intertextual validado pelo seu campo discursivo e por seus pares. Não basta apresentar argumentos esteticamente construídos; é necessário que sejam validados pela comunidade que os cerca, que sejam legitimados e aceitos como verdade.
Retornemos à resposta da pergunta 1: “[...] não aceitar o que está sendo lido como um fato consumado e, sim, estudado e analisado e confrontado com outras opiniões.” (Aluna Parfor História). Uma das características presentes nos textos historiográficos é o confronto e análise das narrativas sobre o passado, e o uso que as correntes historiográficas utilizam em relação às fontes. Escrever um texto que dialogue com a produção intelectual do campo discursivo é uma característica importante no texto acadêmico de História. Logo, quando ele destaca essa questão, o professor/aluno está apresentando uma faceta deste campo e uma expectativa de produção letrada de seus autores.
Destacamos novamente o trecho a seguir: “Todavia, o que mais escrevo na graduação são as minhas observações feitas no caderno sobre as aulas dos professores, resumos e sistematização dos conteúdos na tentativa de facilitar o estudo e o aprendizado da matéria.” (Aluna 1 - Parfor História).
Nesse trecho podemos identificar indícios que apresentam elementos recorrentes nas práticas de letramento acadêmicos. Ao indicar que suas principais atividades de escrita são as observações feitas no caderno, para sistematizar o conteúdo, o professor/aluno está indicando que no curso em foco a escrita tem uma relevância de hierarquia superior, mas sua prática, de fato, não ocorre com a mesma frequência que as práticas de leitura e fala.
Segundo o professor/aluno, a escrita, em sua maior freqüência, ocorre sem nenhum critério de organização, estruturação ou regra. Sua execução de fato ocorre no âmbito privado do caderno, nas anotações pessoais. Mas ele destaca que “[...] a função da escrita na graduação é essencial para o exercício da produção acadêmica de textos.” (Aluna Parfor História). Logo, escrever possui uma importância fundante no transcurso do curso, mas de fato ocupa na dinâmica das aulas e das práticas letradas quantitativamente um lugar secundário, tendo prioridade a leitura.
A leitura como prioridade pedagógica nos faz crer em uma das principais hipóteses que traçamos em nossa pesquisa. As práticas de letramento existentes no âmbito da academia operam conceitualmente com o mito do letramento (GRAFF, 1990), pois existe uma crença corrente que a leitura, em si, habilita o escritor, isto é, quem lê muito em um campo discursivo, possuirá competência para produzir com autonomia e qualidade gêneros discursivos escritos neste campo.
A leitura, nessa perspectiva implementada, possuiria o poder de produzir um progresso individual, e, nesse sentido, formaria o professor/aluno crítico e capaz de transferir para a ação de escrever alguns predicados existentes no texto lido.
A leitura, nessa ótica, estaria no mesmo campo de sentido ao que Graff (1990) denunciou em relação ao mito do letramento. Podemos ler, a seguir, no texto produzido pelo autor:
[...] Pelos dois últimos séculos ele tem estado inextrincável e inseparavelmente ligado às teorias sociais e pós-iluministas,“liberais” e às expectativas contemporâneas com respeito ao papel do alfabetismo e da escolarização no desenvolvimento sócio-econômico, na ordem social e no progresso individual [...] (GRAFF, 1990, p. 31).
Em diálogo com o autor podemos observar que há uma visão impregnada e dominante nessas práticas de letramento. A concepção que ao ingerir maciçamente a literatura especializada, isto é, a historiógrafa considerada de alta qualidade, os professores/alunos serão capazes de adquirir competências na escrita autoral dos seus textos.
No trecho a seguir podemos observar como a leitura ganha um vulto fundamental na formação enquanto estratégia e prática pedagógica, mas não relevância hierárquica.
3ª Pergunta: Quais os momentos de leitura?
Contudo, creio que os momentos de leitura devem ocupar boa parte do dia: de manhã, à tarde ou à noite e sempre que for possível. De preferência, no quarto onde é mais tranquilo, mas pode ser também na sala ou mesmo em locais de espera de consultórios médicos para colocar a leitura em dia. (Aluna 1 – Parfor História).
O tempo de leitura superdimensionado é quase que uma condição sine qua non para o etos do historiador. Nesse trecho podemos observar que o ler ocupa grande parte do tempo na formação. Quando o tempo de leitura ideal – De preferência, no quarto onde é mais tranquilo – a leitura pode ser efetivada em qualquer tempo disponível – locais de espera... para colocar a leitura em dia. O final do trecho indica que o tempo não basta para todo o volume, que há uma invasão da leitura em múltiplos espaços privados. Há uma perseguição ao volume, uma necessidade de abarcar tudo, um enciclopedismo historiográfico.
Esse trecho me faz lembrar uma imagem folclórica do historiador, o homem sentado com seu cachimbo lendo, e, ao fundo, uma ampla biblioteca pessoal. Evocando a certeza que ele leu tudo o que está contido nos livros. O historiado com o erudito, o leitor voraz, um intelectual das letras. A leitura como sacrossanta e a escrita como inspirada e superior. Bloch, ao falar da escrita da História, afirma:
[...] a história no entanto, não se pode duvidar disso, tem seus gozos estéticos próprios, que não se parecem com os de nenhuma outra disciplina. É que o espetáculo das atividades humanas, que forma seu objeto específico, é mais que qualquer outro, feito para seduzir a imaginação dos homens. Sobretudo quando graças a seu distanciamento no tempo ou no espaço, seu desdobramento se orna das sutis seduções do estranho. (BLOCH, 2001, p. 44)
Marc Bloch (2001), nos anos trinta do século XX, já apontava a relação existente entre a história e sua estética comunicacional, isto é, apontava que sua forma de produção e propagação se efetua por um estilo. O distanciamento do tempo e/ou do espaço faz do historiador um construtor da história que se faz visível em sua escrita/ argumentação estética, em sua ornamentação, em sua capacidade de seduzir o leitor a compreender e aceitar um passado enquadrado e apresentado em sua estrutura textual.
A escrita da História é o lugar da sedução; é nela que o professor/aluno deverá demonstrar sua potencialidade e capacidade de ser um historiador de ofício. É nessa ação específica de seu conhecimento letrado que ele será julgado e pontuado na dinâmica letrada acadêmica vigente.
A escrita é supervalorizada nas práticas pedagógica universitárias, isto é, ela comporta o lugar da finalidade na formação. O processo de supervalorização remove o contexto sócio-histórico que constitui esse professor/aluno.
[...] O [letramento] é, às vezes, concebido como uma habilidade, mas com mais frequência como símbolo ou representativo de atitudes e mentalidades. Isto é sugestivo. Em outros níveis, os “limiares” do [letramento] são vistos como um requisito para o desenvolvimento econômico, “decolagens”, modernização, desenvolvimento político e estabilidade, padrões de vida, controle da fertilidade, e assim por diante [...] (GRAFF, 1990, p. 35)
Na concepção apresentada nos indícios produzidos em nossa pesquisa podemos observar que a escrita abarca o principal lugar na hierarquia das práticas de oralidade e letramento da formação do professor de História PARFOR.
No diálogo que travamos com o campo teórico que baliza nossa pesquisa, e neste artigo em especial com Graff (1990), observamos, também, que o mito do letramento é a concepção que permeia as práticas de oralidade e escrita apresentadas nos portfólios dos professores/alunos.