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“TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS” E PERSISTÊNCIA DAS DESIGUALDADES DE ACESSO À ESCOLA
“TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS” E PERSISTÊNCIA DAS DESIGUALDADES DE ACESSO À ESCOLA
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1545-1568, 2018
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 16 Março 2018
Aprovação: 23 Maio 2018
Resumo: Este artigo utiliza dados empíricos fornecidos por estudantes de escolas públicas e privadas, analisados à luz dos teóricos Labov, Bourdieu e Bernstein. A partir da análise das disciplinas preferidas pelos estudantes e dos seus discursos orais e escritos, mostra que a estratificação linguística está correlacionada com as desigualdades sociais e escolares, sendo que os estudantes das classes favorecidas levam vantagem em relação aos estudantes das classes desfavorecidas no acesso à escola, que possui um código linguístico distante desses estudantes e próximo daqueles. Conclui que a escola opera um processo de naturalização das desigualdades sociais, visto que, nesse modelo escolar, não se vislumbra um processo de transformação sociocultural.
Palavras-chave: Estratificação linguística, desigualdade social, desigualdade escolar, transformação sociocultural.
Abstract: This article uses empirical data provided by public and private school students, analyzed in the light of the theorists Labov, Bourdieu and Bernstein. From the analysis of the subjects preferred by the students and their oral and written discourses, it was shown that the linguistic stratification is correlated with the social and scholastic inequalities, being that the students of the favored classes take advantage of the students of the disadvantaged classes in the access to the school, which has a linguistic code distant from these students and close to those. It concludes that, the school operates a process of naturalization of social inequalities, in this school model, a process of sociocultural transformation is not envisaged.
Keywords: Linguistic stratification, social inequality, school inequality, socio-.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar a estratificação linguística correlacionando-a às desigualdades social e escolar. Para tanto, fundamenta-se na sociolinguística teorizada por Labov, no pensamento de Bourdieu e Bernstein e em dados empíricos coletados através de questionário direcionado a estudantes do ensino médio de escolas públicas e privadas de São Luís, entrevistas gravadas em áudio e produção textual desses estudantes.
As escolas foram classificadas conforme sua natureza administrativa: pública e privada; e conforme o processo de admissão dos estudantes: seletivas e não seletivas. Dessa forma, as escolas foram nomeadas e classificadas em três grupos: privadas, públicas seletivas e públicas não seletivas. Os dados levantados nessas escolas subsidiam a análise que mostra que os fatores socioculturais e econômicos têm relação com o desenvolvimento escolar e linguístico dos estudantes.
A análise segue uma metodologia de base qualitativa, sendo que a importância dos dados coletados não se justifica pela quantidade dos indivíduos pesquisados, mas pela capacidade representativados dados fornecidos pelos entrevistados dentro do universo que se propôs a pesquisa e, também, pela riqueza dessas informações, as quais permitem tecer relações e ampliar as inferências para um contexto mais generalizado.
O artigo está dividido em quatro seções principais, onde se busca analisar as relações das desigualdades sociais e escolares com o padrão discursivo oral e escrito dos estudantes, bem como o acesso desigual ao capital escolar e sociocultural e suas influências nas transformações socioculturais.
2 A ESCOLHA DAS DISCIPLINAS E O DISCURSO DOS ESTUDANTES CORRELACIONADOS À ESTRATIFICAÇÃO LINGUÍSTICA
Para a relação da estratificação linguística com as desigualdades sociais e escolares, parte-se da escolha dos estudantes sobre suas disciplinas favoritas, sendo que a análise foca na ênfase que os estudantes dão à Língua Portuguesa como disciplina de suas preferências; essa ênfase é contundente na escola pública, especialmente na escola pública não seletiva. Isso se deve ao fato de que a língua que se estuda/ensina na escola é distante da que os estudantes das escolas públicas usam no contexto familiar e, por isso, eles procuram adquirir conhecimento e habilidades no uso da língua para ter sucesso no processo de ascensão social, que não se completa sem o domínio linguístico.
2.1 A escolha das disciplinas e a estratificação linguística
A ordem das disciplinas preferidas pelos estudantes é a seguinte: estudantes das escolas privadas: História (50%) e Matemática (25%), Língua Portuguesa apenas 10%; estudantes das escolas públicas seletivas: Língua Portuguesa (30%), História (30%) e Matemática (20%); estudantes das escolas públicas não seletivas: Língua Portuguesa (50%) e História (30%), sendo que Matemática não é mencionada por nenhum estudante como disciplina preferida.
Há uma relação assimétrica entre Língua Portuguesa e Matemática na preferência dos estudantes das escolas privadas e públicas não seletivas; enquanto Língua Portuguesa só é preferida por 10% dos estudantes das escolas privadas, ela está na preferência de 50% dos estudantes das escolas públicas não seletivas que responderam a esse questionamento; em relação à Matemática, que não faz parte da preferência dos estudantes das escolas públicas não seletivas, é preferida por 25% dos estudantes das escolas privadas e por 20% dos estudantes das escolas públicas seletivas.
Há um movimento inverso na preferência das disciplinas Língua Portuguesa e Matemática; enquanto a preferência por Matemática é maior que por Língua Portuguesa entre os estudantes das escolas privadas, a preferência por Língua Portuguesa é maior que por Matemática entre os estudantes das escolas públicas. Esse movimento é indicativo da importância que a língua tem para os estudantes das escolas públicas, que geralmente não possuem um padrão linguístico familiar de prestígio social e, por isso, procuram alcançar esse padrão dando mais importância às aulas de Língua Portuguesa, enquanto os estudantes das escolas privadas, geralmente, por possuírem um padrão linguístico familiar de prestígio, não consideram essa disciplina como forma de aquisição de um padrão linguístico de prestígio, mas antes como uma disciplina que, assim como as outras, desperta interesse por outros motivos. Como fica explícito na resposta de uma estudante de escola privada explicando porque gosta de Língua Portuguesa e também de outras disciplinas.
A estudante, ao falar sobre a disciplina, diz gostar da parte interpretativa, ou seja, sua possibilidade de compreender o que está implícito no texto; isso é uma reflexão que ultrapassa o simples uso do código para explorar e desvendar as significações inerentes à língua e à comunicação.
Acho muito legal saber o que aconteceu, como foi, gosto muito das aulas de História e Português, no caso de interpreta... de Artes também. Português, assim, mais da parte de interpretação e de Artes, gosto muito da aula de artes, gosto muito dessa parte de música, de cultura, eu gosto muito da aula de Artes. (Informação verbal)1.
A estudante não está interessada na realização da forma linguística, mas no que ela pode revelar, não é um interesse primário, mas está além, busca compreender o significado da comunicação; é uma reflexão no sentido de mais profundidade em relação à língua.
Um estudante de escola pública seletiva expõe seu interesse por Língua Portuguesa mencionando o fato de aprender como as palavras são organizadas e escritas. O capital escolar dos seus pais não é elevado, o que pode justificar a sua perspectiva no estudo da referida disciplina, tendo um interesse mais prático do que teórico. “Porque eu gosto de estudar as palavras, como que são... são organizadas, como que são escritas pra eu poder aprender.” (Informação verbal)2.
Para o estudante, a razão de gostar de Língua Portuguesa é a aprendizagem da língua, é a compreensão, é uma questão prática de aprender a língua que ainda não se sabe, e pode dar-lhe algum prestígio social; esse é o foco da maioria dos estudantes das escolas públicas, em especial dos estudantes das escolas públicas não seletivas, onde 50% dos entrevistados disseram que Língua Portuguesa é sua disciplina predileta.
A análise da preferência dos estudantes pela disciplina Língua Portuguesa aponta indícios da estratificação linguística entre os estudantes das escolas privadas e públicas; a Língua Portuguesa é objeto de apreço maior pelos estudantes das escolas públicas, não devido ao interesse desses pela reflexão linguística e literária, mas pela necessidade prática de uso da língua, é uma necessidade para esses estudantes aprender a língua de prestígio social, que não é a do seu contexto familiar, o que pode ser confirmado a partir da comparação entre a escolaridade dos pais dos estudantes das escolas privadas e públicas, e que pode ser aprofundada a partir dos dados sobre a profissão dos pais desses estudantes.
Os estudantes das escolas privadas, 80% deles têm pelo menos um dos pais com nível superior, e, pelo menos, 50% das mães e dos pais dos estudantes das escolas privadas são filhos de profissionais liberais ou de trabalhadores de profissões de nível superior, então o contexto linguístico desses estudantes é de prestígio social elevado. Enquanto isso, apenas 35% dos estudantes das escolas públicas seletivas têm, pelo menos, um dos pais com nível superior e 5% dos pais e 10% das mães em profissões desse nível; já os estudantes das escolas públicas não seletivas, somente 20% têm um dos pais com nível superior, sendo que nenhum pai ou mãe tem profissão nesse mesmo nível.
Dessa forma, correlacionando essas variáveis, pode-se dizer que a maioria dos estudantes das escolas privadas possui um padrão linguístico de prestígio social, tendo em vista o padrão socioeconômico de sua família, enquanto que apenas uma pequena parte dos estudantes das escolas públicas vive num contexto aproximado ao dos estudantes das escolas privadas. Daí pode-se concluir que a estratificação linguística está relacionada às desigualdades sociais e escolares, uma vez que “[...] as pressões sociais estão operando continuamente sobre a língua, não de algum ponto remoto no passado, mas como uma força social imanente agindo no presente vivo.” (LABOV, 2008, p. 21); dessa forma, não se pode negar a influência dos fatores sociais no processo de desenvolvimento linguístico dos estudantes, sendo que seus contextos sociais e escolares são importantes indicativos de seus padrões linguísticos.
2.2 O Discurso dos estudantes e a estratificação linguística
Os discursos dos estudantes dão indícios do seu desenvolvimento linguístico, o qual não deixa de se relacionar com os dados analisados até aqui, com se vê na fala deles em resposta à pergunta: Sobre a educação escolar. Qual a importância dela para a sociedade, no teu ponto de vista?
Pra mim a educação escolar junto com a educação familiar formam um indivíduo melhor porque primeiro a base é o que a gente aprende com a nossa família, com a sociedade e depois ela, a escola, molda, faz um ser mais crítico, aí com esse criticismo que se forma no homem acaba que ele se desenvolve, se aprimora, ele aprende mais coisas que [...] por exemplo, Newton não ia [...] poderia não ter sido nada se não fosse pela educação escolar que ele teve, que tem [...] a escola que Newton frequentou, vários outros grandes nomes na Inglaterra, um do [...] o slogan dela é “você não precisa ser um gênio pra entrar aqui, mas depois de sair vai ser um”, então eu considero isso meio que fundamental, que a educação escolar ela aprimora muito, ela molda o homem. (Informação verbal)3.
O estudante relaciona o sucesso da educação à escola, à família e à sociedade, dizendo que a família e a sociedade estão na base, porém a escola é a responsável por moldar o ser humano, e esse moldar, na visão dele é desenvolver as potencialidades do ser humano, daí ele exemplificar a partir de Newton, considerando que a genialidade do cientista só floresceu devido à educação escolar que teve, e conclui dizendo que a educação escolar aprimora.
A concepção de que a educação escolar é responsável por melhorar o ser humano é compartilhada por estudantes das escolas públicas seletivas, porém com uma argumentação mais simples e que não faz relação diretamente entre família, sociedade e escola, compreendendo que a educação é a base da sociedade.
A educação é a base de tudo, eu acho que não adianta investir só em segurança se não tiver educação porque antes do cidadão se tornar um marginal ou uma pessoa com má índole ela tem que passar pela escola e a escola é que vai fazer todo um processo cultural pra que aquela pessoa seja uma [...] um bom cidadão. (Informação verbal)4.
Para essa estudante, a escola é responsável pela formação do cidadão, de livrá-lo da marginalidade; ela usa uma argumentação simples que atribui à escola a responsabilidade de formação plena do cidadão, e essa é uma visão muito frequente entre as classes populares que, geralmente são desassistidas de políticas públicas e que convivem com a ameaça da violência e da criminalidade e veem na escola a única via de defesa para os jovens, uma vez que o jovem que se torna marginal passou pela escola e, se ele não se tornou um bom cidadão, a escola falhou, não cumpriu seu papel, uma vez que ela é responsável também em possibilitar o acesso e a aquisição de uma cultura que transforma o estudante em um bom cidadão. Tem-se, aqui, mais um indício do distanciamento do contexto sociocultural da família com o da escola.
Uma estudante de escola pública não seletiva constrói seu discurso dando uma relação de continuidade entre a educação familiar e a escolar, porém não percebe o distanciamento do código desses espaços.
Ela tem grande importância, lógico, né, pra formação do ser humano só que eu nunca tiro a responsabilidade dos pais com relação a isso, eu costumo dizer o pai e a mãe são os primeiros professores e a escola [...] e o lar é a primeira escola, entendeu? Eu costumo dizer isso, então não adianta a gente eh [...] pegar os nosso filhos [...] nós pegarmos os nosso filhos e colocá-los na escola e deixar-lhes sobre a responsabilidade só do professor, lógico que não, acredito que os pais tem grande importância também na formação. (Informação verbal)5.
A estudante expõe uma ideia tradicional que confunde família e escola, em que uma se camufla na outra, em que uma assume o papel da outra. Ela expõe uma ideia corriqueira em que as famílias responsabilizam a escola pela educação dos filhos e, por outro lado, a escola responsabiliza o fracasso escolar do estudante pela omissão dos pais. Ela parte dessa visão, mas não fundamenta sua argumentação. Como indicativo do distanciamento do código linguístico familiar com o código escolar, observa-se na fala da estudante o uso pronominal inapropriado, conforme um uso de prestígio social; isso é caracterizado como processo de hipercorreção, o qual se manifesta quando o falante tenta realizar uma forma linguística que não é habitual a seu uso para se igualar ao uso de mais prestígio social.
Geralmente, quando os estudantes das escolas públicas adentram no ambiente escolar trazem consigo a ideia que estão iniciando um processo de reaprendizagem, pois o que aprenderam com os pais deve ser corrigido pelos professores, e que esse ensino é que permitirá a esses estudantes ascenderem socialmente, já que eles têm consciência que estão no baixo nível de uma classificação social. Isso demonstra a consciência deles em relação ao código elaborado utilizado na escola, porém não é necessário apenas reconhecê-lo para produzi-lo, é necessário também conhecer suas regras de utilização. “No obstante, aunque las reglas de reconocimiento constituye una condición necesaria de la produción de una práctica o texto legítimo específico del contexto, estas reglas no son suficientes. Tambien es necesario saber cómo construir la práctica o el texto especíifico.” (BERNSTEIN, 1998, p. 134).6
O reconhecimento do código escolar é uma das condições para que se possa produzi-lo, porém não é suficiente; é necessário conhecer as regras de sua produção, por isso que a proximidade do contexto familiar com o contexto escolar é um fator decisivo para a aquisição das regras de utilização e de produção do código utilizado na escola e, consequentemente, para a produção de um texto legítimo para o contexto escolar. Quando há proximidade entre o código familiar e o código escolar o estudante tem mais facilidade na aquisição das regras de utilização e produção desse código; quando há distanciamento entre o código familiar e o código escolar o estudante encontra mais dificuldade no processo de aquisição dessas regras.
A legitimidade do código não se encontra nele mesmo, mas nas relações sociais de poder. O código elaborado é o código de uma classe e, por isso, a aquisição dele por indivíduos de outra classe social é um processo que se caracteriza como desfavorável para estes.
[...] los significados del código son traducciones de las relaciones sociales, en el seno de los grupos sociales y entre ellos. Son traducciones de la forma específica adoptada por estas relaciones. Estos significados han surgido a partir de formas especializadas de interacción y control sociales [...] (BERNSTEIN, 1998, p. 209-210).7
O código e seu significado surgem a partir das relações sociais de poder, em que uma classe se sobrepõe a outra e, para manter sua posição, produz uma espécie de código que lhe permite o controle social. Assim, o movimento de classe só se efetiva pela aquisição do código pertencente à classe para a qual se quer ascender, sendo que a escola é a instituição oficial responsável pela efetivação da aquisição do código elaborado, que se caracteriza como código de uma determinada classe.
3 ESCREVO O QUE SEI, SOU AVALIADO PELO QUE DEVERIA SABER: a escrita do desencontro na redação do ENEM
Instaurado em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) aparece como uma reposta sobre as demandas para o século XX, dentre as quais está a melhoria da qualidade de leitura e escrita de alunos ao término da educação básica. O objetivo para sua implantação estava em oferecer uma imagem do desempenho de alunos sobre conhecimentos considerados mínimos para alunos ao término da educação básica. Esse objetivo o distinguia dos vestibulares tradicionais à medida que o Enem foi apresentado como portador de uma linguagem neutra (BRASIL, 2008) capaz de alcançar as diferentes realidades nacionais. Os relatórios, no entanto, divulgados a cada ano com os resultados das provas, chamam atenção para um ponto: o desempenho de alunos da escola privada, como superior aos provenientes de escolas públicas (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2006).
Essa repetição constante dos resultados gera dúvidas sobre o que significa linguagem neutra, sobre o significado da nota recebida por estudantes de escola pública. A fim de entender o descompasso entre a dita neutralidade e as classificações que esse exame promove, volta-se a atenção para os critérios que orientam a avaliação da redação. A análise acontece a partir de redações produzidas por alunos de uma escola pública de São Luís em uma oficina de escrita, realizada nas aulas de língua portuguesa, em que foram apresentados os itens que o Enem avalia em um texto, bem como a nota atribuída em cada critério. As redações foram escritas com base em uma proposta do Enem com a seguinte temática: O desafio de conviver com a diferença. A leitura que se faz da escrita e da fala dos alunos está pautada em uma relação dialógica e dialética entre língua e sociedade; na palavra, como uma arena de lutas sociais.
Conceber a palavra como uma arena de valores sociais significa dizer que a estrutura da língua não é formada por signos neutros que se depositam passivamente no falante, mas por signos ideológicos aprendidos e apreendidos pela interação social, pela relação com o outro, de modo que ao produzir seu dizer o sujeito fala não apenas sobre ele, mas sobre as interações que realizou, sobre os diálogos dos quais participou. O diálogo aqui não está no sentido estreito de conversa face a face, mas em uma perspectiva maior que envolve todas as situações comunicativas em que o falante participou, De acordo com Bakhtin (2003), envolve a relação entre o falante, o ouvinte e um terceiro participante vivo, presente, em todo dizer.
O terceiro está acima dos participantes do diálogo; refere-se ao conjunto de valores que paradoxalmente dão consistência ao que dizemos e estão vigiando a nossa adequação ou não ao que dizemos defender. Ele possui uma dimensão concreta, que varia nos diferentes tempos e espaços, e se manifesta sob várias formas dentre as quais estão Deus, o povo, o julgamento imparcial da consciência humana, o sistema educacional, a voz oficial da instituição, que estabelece critérios sobre o certo e o errado de uma língua. Não há como escapar do terceiro; ele se faz sempre presente, orienta a compreensão, as respostas dos interlocutores, torna as palavras carregadas de valor ideológico.
A língua é não um conjunto homogêneo de signos, do mesmo modo que falar e escrever não correspondem a uma atividade mecânica, entre aquele que enuncia e o destinatário nem seus conjuntos de valores são coincidentes, e esses desencontros geram (in)compreensões, julgamentos de diversas ordens, provocadas não apenas pelo conteúdo que o enunciado expressa, mas pela forma como foi dito. É o que Labov (2008) considera reflexo dos processos sociais na estrutura lingüística; em outras palavras, a língua varia condicionada por fatores de ordem social, e essas variações funcionam como marca de identificação dos grupos, de classificação dos falares em certos e errados, cultos ou populares, de discriminação. Essas marcas estão intimamente ligadas às desigualdades sociais e, como tal, produzem sentimento de inferioridade naqueles que se desviam do modo de dizer instituído como verdadeiro.
Cada variação linguística, conforme Labov (2008), se apresenta segundo uma organização que não justifica, em termos linguísticos, afirmar que há uma variação superior a outra. Nossa ideia de língua foi historicamente construída a partir de uma tradição escrita e dos usos feitos por grupos reduzidos que assumiram a posição de elite política e cultural, ou seja, a classificação dos modos de dizer é estabelecida nas relações de poder que imprimem a um falar o status de norma padrão, enquanto os demais falares são tratados como não padrão, como se as variações da língua coubessem dentro dessa dicotomia radical e estigmatizadora. Em virtude das avaliações negativas, os falantes em situações comunicativas que não lhes são comuns fazem um esforço consciente para se corrigir e até negar os padrões linguísticos de seu grupo social, a fim de ter sua maneira de dizer aceita como válida. Isso porque, ao falar, o sujeito não revela apenas a apropriação de uma variação linguística, mas também a maneira como se apropriou e os tipos de relações sociais estabelecidas durante seu processo de socialização, no qual a família e a escola têm papel de destaque.
O sujeito chega à escola portando um capital cultural transmitido pela família, carregando “[...] um sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre coisas, as atitudes face ao capital cultural e a instituição escolar.” (BOURDIEU, 2007, p. 42). Essa herança cultural, que os pais transmitem, difere segundo as classes sociais e tem efeito direto no nível de sucesso escolar dos filhos. Alunos que chegam à escola, portando uma variação linguística diferente daquela considerada padrão, terão que fazer um esforço muito maior para alcançar êxito, para demonstrar que aprenderam a dar respostas válidas, isto é, que aprenderam não apenas o como dizer a partir das normas de uma gramática prescritiva, mas que se apropriaram de um sistema de valores, de regras que orientam as condutas e os pensamentos próprios daqueles que possuem uma cultura letrada e que ocupam posições de poder.
O desacordo entre o capital cultural que o aluno carrega e aquele que a escola apresenta e deve ensinar como verdadeiro, comum a todos os estudantes, causa tensões relativas à aprendizagem de práticas de linguagem legítimas. Esse é o caso da escrita cobrada em testes que dão acesso a espaços de prestígio social, como o ensino superior. Tais testes, como é o caso do Enem, fazem da escrita o ponto chave para avaliar o nível de apropriação do capital cultural legitimo, para verificar a história de leitura dos alunos, os modelos de escrita que absorveu e que é capaz de reproduzir. Na busca de serem vistos como portadores de capital cultural legítimo, muitos alunos procuram em manuais de redação uma espécie de receita para convencer, para não ser vencido e desclassificado pelas marcas de um sujeito que não recebeu a disciplina necessária para elaborar a defesa de seu ponto de vista.
3.1 A busca por adequação
As entrevistas realizadas com os alunos mostraram a procura desses estudantes por modelos, como se fossem receitas prontas que podem ser replicadas com a garantia de uma avaliação positiva. No diálogo abaixo transcrito, entre um pesquisador que faz o papel de inquiridor (INQ) e um dos alunos, denominado Tom, fala sobre a sua preocupação em encontrar um modelo de escrita com o qual possa se identificar:
INQ. É? E tu costumas ler bastante? TOM: Eu costumo ler.
INQ.: Na tua casa todo mundo lê?
TOM: Não... Essa minha vontade de ler não é tanto por influência porque eu gosto mesmo.
INQ.: E essa leitura te ajuda?
TOM: Acho que ela me ajuda, mas na informação, eu acho que eu ainda não estou lendo pra mim entender como que é o escritor... lá no caso, as técnicas dele...
(...)
TOM: Eu leio muito sobre a redação. INQ.: Você lê muito sobre redação?
TOM: É... sobre como escrever, porque eu me sentia, eu me sinto com dificuldade de fazer redação [...] (Informação verbal)8.
A fala de Tom mostra a busca da linguagem institucionalizada e como o aluno entende a necessidade de apropriação dessa argumentação consistente. A leitura de textos que informam e de livros que ensinam a escrever constitui a maneira desse aluno tentar tornar sua, uma marca pessoal que parece não fazer parte das práticas sociais desenvolvidas em seu mundo de origem. Além da fala, a escrita de Tom deixa pistas sobre uma vontade de acertar, de seguir um padrão que agregue forma e conteúdo legítimos:
Ao longo da história a sociedade passou por diversos conflitos, cujo uma das causas principais era a dificuldade de conviver com a diferença. Um exemplo disso, foi a peceguissão dos neonazistas aos povos judeus, conssiderados pelos alemães descendentes de uma raça inferior. (Informação verbal)9.
É possível perceber nesse parágrafo, assim como em toda a redação, a necessidade de legitimação. As informações utilizadas são próprias de quem estuda a história oficial e por isso pode usá-la como ilustração para o tema apresentado. Os fatos históricos funcionam como uma espécie de argumento de verdade inquestionável num texto organizado em quatro partes, semelhante aos esquemas apresentados em manuais que sugerem um parágrafo para a introdução, dois para o desenvolvimento e um para a conclusão. A preocupação de Tom em mostrar que se dedicou e que conhece elementos textuais marcadores de uma linguagem formal pode ser notada no uso de pronomes, como é o caso de cujo. Mas não basta citar termos considerados cultos; para ser bem avaliado é preciso saber aplicá-los, pois os desvios da norma denunciam as lacunas na incorporação do saber oficial como marca pessoal.
É preciso considerar que o domínio da escrita pressupõe estratégias relacionadas não apenas ao dizer, mas a como dizer. De acordo com Bourdieu (1996), isso corresponde a um esquema de produção e circulação linguística, que leva em conta relações interdependentes formadas pela capacidade de selecionar discursos, em conformidade gramatical, adequados à situação, e pelo mercado linguístico que dita as regras sobre o que deve ser censurado e o que é válido e passível de lucros. Nesse mercado, o que circula não é a língua desprovida de relações sociais, mas discursos que apresentam marcas sobre quem diz e onde aprendeu a dizer. O produto linguístico oferecido pelo locutor precisa ser decifrado pelo receptor, assumindo, desse modo, um valor simbólico que dá sentido ao discurso. Dominar as regras da escrita torna-se um elemento de distinção no sistema escolar (BOURDIEU; PASSERON, 2008).
3.2 O valor da “opinião pessoal”
A escrita diz não apenas sobre o que o aluno deveria saber, mas, também, sobre o que ele sabe, sobre o mundo social de quem não se dedicou a neutralizar diferenças por meio de receitas prontas, de quem diz o que pensa sem o devido cuidado com a situação e todo ritual que envolve a produção de um texto segundo os comandos de uma prova nacional. O trecho que segue faz parte da redação de uma aluna que denominamos Nina:
Outra coisa que gostaria de abordar nesta redação “ricos e pobres”, os ricos – comem, bebem, andam, escrevem, etc, Pobres – dançam,comem, bebem, andam, etc, há diferenças entre Pobre e rico? logicamente que não somos iguais essas pessoas que se acham inferiores aos outros não adianta o sangue é vermelho e não tem nada haver uma coisa com a outra, isso é um absurdo, não devemos julgar nimguém sem concretas provas até por que isso é injusto, agora imagine uma pessoa julgar um pobre que não tem nem como se defender, até por que ele não tem aquele dinheiro todo que o rico tem isso todo mundo sabe que é verdade. (Informação verbal)10.
Destacamos que o tema motivador da redação acima se refere ao desafio de se conviver com a diferença e que a proposta para produção textual veio composta de textos que deveriam ser lidos, compreendidos e explorados pelos escreventes em suas produções. Nina, no entanto, disse durante a entrevista que leu os textos, mas não entendeu muito bem e por isso resolveu colocar o que ela achava, o que ela pensava. Em seu texto, a aluna apresenta a ideia de que somos todos iguais. Entretanto, se não há distinção entre os indivíduos, o mesmo não se pode dizer entre os grupos sociais e os recursos materiais e simbólicos de que eles dispõem. Ou seja, a proposta de igualdade se volta para o aspecto de que todos somos humanos, mas existem diferenças entre pobres e ricos, marcadas pelas práticas desenvolvidas nesses grupos. O dinheiro não representa apenas um recurso, mas também um marcador de posições privilegiadas, uma prova concreta a favor da defesa do que é considerado legítimo e precisa ser preservado.
Essa opinião, que Nina disse ser o que ela tinha na cabeça, não ficou registrada apenas no texto escrito, mas também na entrevista, e sinaliza para as relações sociais que ela estabelece. O trecho a seguir, referente à conversa com Nina, sinaliza para um entendimento sobre provas – a exemplo do Enem e dos vestibulares – como uma prática legítima e necessária, visto que se configura numa espécie de continuidade do trabalho desempenhado pela escola. Os testes feitos em sala de aula são treinos para os concursos a que os alunos precisam se submeter, se quiserem ocupar os espaços de prestígio social.
INQ: O quê que tu achas dessas provas?
NINA: Eu não acho nem tão difícil nem tão fácil, apenas normal, né, pra gente que estuda, faz uma prova dessa, né, eu acho normal.
INQ: Mas tu achas certo o nível de prova, esse tipo de prova?
NINA: Eu acho, porque é o potencial da pessoa, né? Essas provas que não são nada fácil mesmo não. Tanto faz [...] de, de concurso também tá no mesmo nível da gente. Assim, prova de terceiro ano, primeiro, segundo, terceiro, eu acho a mesma coisa, eu acho que não tem diferença não, são todas difíceis. (Informação verbal)11.
Essa forma de cumplicidade com o que está posto como natural, como normal também pode ser encontrada ao longo de toda a redação dessa aluna. No trecho “[...] ricos – comem, bebem, andam, escrevem, etc., Pobres – dançam, comem, bebem, andam, etc., [...]” (Informação verbal)12, seguido da conclusão segundo a qual entre pobres e ricos não há diferenças, Nina deixa pistas de um conflito entre o que é comum aos seres humanos e o que os diferencia. O aspecto comum se refere ao fato de que todas as pessoas apresentam as mesmas necessidades fisiológicas (comer, beber), independentemente das condições socioeconômicas. Em contraposição, estão as práticas desenvolvidas por pobres (dançar) e por ricos (escrever), as quais distinguem os portadores de um capital reconhecido como legítimo.
Quando perguntado o porquê de o verbo escrever não estar na sequência de ações desempenhadas pelos pobres, ela respondeu: “Mas aí ele é analfabeto [...] eu tinha botado et cetera.” (Informação verbal)13. Entretanto, se o uso do termo et cetera justifica linguisticamente a supressão, ele também marca uma tentativa de igualar as diferenças, reforçada pela concepção de analfabetismo como sinônimo de pobreza. As diferenças ganham contornos mais definidos se levantarmos algumas concepções sociais da escrita e da dança.
Escrever é uma atividade que vem associada à ideia de escolarização, de apropriação de saberes a partir de um processo de leitura, de domínio de um sistema de normas a que nem todos têm acesso, de um pensamento refinado, mais elaborado e próprio de pessoas que tiveram acesso a um capital cultural legítimo. Dançar, por sua vez, é uma atividade que vem ligada ao movimento do corpo, sem necessidade de usar palavras para se comunicar. Ao se deixar levar pelo ritmo da música, o indivíduo comunica sensualidade, alegria, desapego a problemas e experimenta uma espécie de catarse. Nesse sentido, a relação segundo a qual aos ricos cabe escrever, enquanto aos pobres, dançar, desvela um processo de incorporação de práticas que se mostram como naturais à aluna; indica a lógica da prática.
Nina se reporta a pobres e ricos, ainda numa relação paradoxal, porque os aproxima – como se houvesse uma democracia em que diferenças são expurgadas –, ao mesmo tempo em que os afasta pela incorporação no modus vivendi dos grupos dominantes, que têm maiores chances de se alfabetizarem e, por isso, escrevem, ao passo que os pobres, não. A estes são restritas as práticas de linguagem legítimas. Busca também conciliar dois aspectos que não costumam se mostrar em harmonia: o uso da norma culta e argumentos, próprios de quem incorporou um capital cultural, não considerado legítimo. Expõe a sua opinião a partir de frases que indicam argumentos fragmentados, uso de termos que oscilam a ideia geral e específica, como é o caso de outra coisa que eu queria dizer. Imprime em seu texto um ritmo marcado pela ausência de pontuação e pela escolha de palavras, que indicam a insegurança e, ao mesmo tempo, a indignação sobre a posição dos pobres. Nina, como ela mesma afirmou, expressa a própria opinião, e assim responde ao comando da proposta de redação; essa resposta, no entanto, tem valor baixo no que se refere ao ter o que dizer e ao saber como dizer para ter o passaporte carimbado para entrada na universidade.
As redações e entrevistas dos alunos indicam as maneiras como a escrita se instaurou e a quais práticas de leitura esses alunos têm acesso, assim como sinalizam para uma realidade nacional marcada pela heterogeneidade da língua e dos grupos sociais que circulam na escola e não possuem reconhecimento porque se chocam com a norma oficial que trata a língua, a cultura como um todo completo e homogêneo. Em outras palavras, elas mostram que a concepção de linguagem neutra, que o Enem diz adotar, não existe; o que existe é uma avaliação das variações.
O Enem, especialmente no que se refere aos textos produzidos, mostra-se como um modelo excludente não apenas porque uniformiza os alunos, mas porque atribui um valor aos saberes que esses jovens carregam, torna a nota um certificado oficial e ainda a coloca como um instrumento de autoavaliação, um modo dos estudantes da escola pública se convencerem do quanto vale o que eles têm a dizer. Ou seja, faz parecer que cada um é responsável pela posição que deve ocupar nas classificações sociais a partir das respostas dadas, e assim transforma os critérios de classificação social em categorias escolares.
4 AS DESIGUALDADES SOCIAL, ESCOLAR E LINGUÍSTICA E O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIOCULTURAL
É evidente que para os estudantes das escolas públicas, especialmente das não seletivas, a escola é uma possibilidade de ascensão social; essa mesma concepção é também compartilhada pelos estudantes das escolas privadas, porém entre a opinião deles e dos estudantes das escolas públicas há uma distância tanto na articulação do discurso, como na personificação desse discurso. Os estudantes das escolas privadas fazem uma análise menos personalista, não se colocando enquanto sujeitos que dependem desse processo de ascensão, enquanto os estudantes das escolas públicas se põem claramente como sujeitos dependentes desse processo. Assim, torna-se evidente que há um processo não democrático de distribuição do capital escolar, em que os estudantes das escolas públicas estão em posição desfavorável em relação aos estudantes das escolas privadas, refletindo, assim, as desigualdades sociais.
O fato da irreversibilidade dos processos de aprendizagem, que faz com que o habitus adquirido na família esteja no princípio da recepção e da assimilação da mensagem escolar, e que o hábito na escola esteja no princípio do nível de recepção e do grau de assimilação das mensagens produzidas e difundidas pela indústria cultural (BOURDIEU; PASSERON, 2008, p. 66).
Assim, o processo de aquisição do capital cultural tem seu princípio na família, que prepara a criança para a recepção do capital escolar, o qual possibilita ao estudante assimilar a cultura produzida e difundida pelos instrumentos culturais. Observa-se que o processo de aquisição do capital cultural tem sua primeira classificação quando as crianças começam a vida escolar, sendo que as de origem desfavorecidas encontram as primeiras dificuldades quando se exige que elas estejam preparadas para assimilar o código pedagógico escolar; como o contexto dessas crianças não tem proximidade com o contexto escolar, elas têm menos chances de sucesso no processo de aquisição cultural do que as crianças das classes favorecidas, que vivem num contexto próximo ao escolar.
Além disso, a ação pedagógica que objetiva a transmissão do capital cultural, possui outro objetivo, talvez anterior e mais fundamental, que é o de legitimar a cultura que transmite e, ao mesmo tempo, disfarçar o seu caráter de classe e a sua natureza arbitrária.
“Na medida em que está investida de uma autoridade pedagógica, a ação pedagógica tende a produzir o desconhecimento da verdade objetiva do arbitrário cultural, [...], ela tende a produzir o reconhecimento do arbitrário cultural que ela inculca como cultura legítima.” (BOURDIEU; PASSERON, 2008, p. 44), ou seja, ao mesmo tempo em que a escola transmite uma cultura, também opera a sua legitimação, ocultando o seu caráter arbitrário. Esse mecanismo faz parte de um processo seletivo e classificatório, no qual são impostas barreiras aos membros das classes desfavorecidas no processo de aquisição do capital cultural, o qual foi legitimado em decorrência das relações sociais de poder.
O código linguístico do estudante é um fator de identificação social, por isso quando as crianças das classes desfavorecidas entram na escola se deparam com um código linguístico distante do seu código familiar, isto porque o código pedagógico escolar está mais próximo do código familiar das classes favorecidas; isso demonstra a influência dos fatores sociais agindo sobre a linguagem.
The relevance of language to social identification has some rather interesting implications for the acquisition of language. No doubt there is some biological attribute in normal humans which enable them to learn language. However, it seems highly improbable that this learning is triggered off simply by the possession of the biological attribute. The motive is furnished by strongest urge of all – the urge for identification and placement in a social system as a member a community. (HASSAN, 2003, p. 267-268).14
Os fatores sociais se sobrepõem aos atributos biológicos no processo de aquisição e desenvolvimento do código linguístico, por isso os estudantes de classes desfavorecidas têm desvantagem nesse processo, em comparação com os estudantes de classes favorecidas. Observa-se que os estudantes das escolas públicas expressam um desejo de ascensão social, o qual é um importante elemento no processo de aquisição do código linguístico elaborado, sendo que sua aquisição é fundamental para a colocação dentro do sistema social. Porém, o desejo de aquisição do código linguístico prestigiado não elimina o forte traço de identificação social da linguagem, daí a possibilidade da identificação social a partir da linguagem do estudante.
Há, dessa forma, uma nítida separação entre os estudantes das escolas privadas e públicas e, além disso, uma separação entre os estudantes das escolas públicas seletivas e os das públicas não seletivas. Essa é uma demonstração que as desigualdades sociais são estendidas para as desigualdades escolares, sendo que o sistema educacional reproduz essas desigualdades. Por isso que os estudantes das escolas privadas, que possuem um capital cultural herdado, tendem a se distinguir dos outros estudantes pela aquisição do capital cultural; é um processo social que se reproduz no sistema educacional.
[...] la separación entre los alumnos dotados de cantidades desiguales – o de tipos diferentes – de capital cultural. Más precisamente, mediante toda una serie de operaciones de selección, separa a los que poseen capital cultural heredado de los que están desprovidos de él. Como las diferencias de aptitud son inseparables de las diferencias sociales según el capital heredado, el sistema escolar tende a mantener las diferencias sociales preexistentes (BOURDIEU, 2012, p. 97).15
O sistema educacional não é capaz de diminuir as desigualdades sociais, em vez disso, as desigualdades sociais são estendidas ao sistema educacional, daí a relação da estratificação social com a estratificação escolar, ou seja, há uma relação simétrica entre as desigualdades sociais e escolares, mas não é só isso, essas desigualdades são refletidas também no código linguístico dos estudantes, uma vez que não se pode negar a influência dos fatores sociais sobre o padrão linguístico de uma comunidade.
Esse processo pode ser observado no padrão linguístico dos estudantes das escolas públicas, sendo que foi possível observar no discurso de alguns deles um certo grau de insegurança linguística no uso da conjugação verbal, colocação pronominal e inadequação semântica no uso do vocabulário; isso resulta no conflito linguístico que o estudante da escola pública demonstra diante do contexto escolar, o qual se distancia do seu contexto familiar, e, no afã de aproximar seu padrão linguístico do padrão de prestígio, comete alguns exageros, principalmente nas colocações pronominais e conjugações verbais, fenômeno denominado de hipercorreção. “C’est ainsi qu’en matière d’usage de la langue, les bourgeois et suttout les intelectuels peuvent se permettre des formes d’hypocorrection, de relâchement, qui sont interdites aux petits-bourgeois, condamnés à l’hypercorrection.” (BOURDIEU, 2001, p. 184)16. Isso quer dizer que as transgressões às formas linguísticas padronizadas são avaliadas com base no status social de quem as transgrediu, sendo que a transgressão realizada por um falante de prestígio social elevado não sofre as mesmas sanções da transgressão realizada por um falante de baixo prestígio social.
Os indicadores sociais são refletidos na escolha da escola pelos pais dos estudantes, sendo que a estratificação escolar tem base no indicador socioeconômico das famílias dos estudantes, com isso não se pode dissociar a estratificação social da estratificação escolar, porém, “[...] l’espace scolaire ne reproduit pas mecanicamente les inégalités de l’espace résidentiel, il les amplifie du fait de la polarisation sociale autour d’un certains nombre de pôles attractifs et privilégiés.” (POUPEAU; FRANÇOIS, 2008, p. 159).17 Ou seja, os espaços residenciais são valorizados devido aos privilégios atribuídos a seus habitantes, daí o espaço residencial estar carregado de valor social, sendo um importante indicativo sociocultural e linguístico de quem nele reside.
5 CONCLUSÃO
Como ficou evidente na análise da produção textual oral e escrita dos estudantes e de suas disciplinas preferidas, o desenvolvimento linguístico está relacionado com o ambiente social e familiar no qual o estudante habita, sendo que sua origem escolar e social é fundamental para compreender o seu desenvolvimento linguístico, ficando evidente a relação entre a estratificação linguística e as desigualdades sociais e escolares. A partir das análises dos dados correlacionados com as estratificações aqui analisadas, fica evidente que não há um processo de transformação sociocultural em curso em nossa sociedade, uma vez que o acesso ao capital escolar, social e cultural está correlacionado às desigualdades e estratificações aqui analisadas.
Se a língua é um instrumento importante nas relações sociais de poder, então o acesso às formas linguísticas de prestígio é uma forma de aquisição também de poder, por isso o grupo social dominante, para manter o poder, usa de mecanismos que restringem o acesso dos grupos sociais desfavorecidos de poder socioeconômico ao código linguístico considerado legítimo, o qual foi legitimado pelo próprio grupo social dominante. Essa restrição não se dá de forma explícita, mas sutilmente, fazendo da língua uma forma de identificação social, ou seja, ela passa a ter valor social.
Não há como conceber uma democracia onde existe uma estratificação escolar, sendo que a instituição escolar funciona com o objetivo de efetivar a classificação social e distanciar a maior parte da população do conhecimento produzido socialmente. A estratificação escolar opera uma estratificação linguística, uma vez que o código pedagógico da escola se distancia cada vez mais do código familiar das famílias desfavorecidas socioeconomicamente; assim, não se pode operar uma democracia aumentando o distanciamento da maior parte da sociedade dos bens culturais produzidos socialmente.
A educação, da forma que está estruturada, não é capaz de superar as desigualdades, em vez disso intensifica as desigualdades sociais a partir do processo de classificação. A educação não é capaz de superar as desigualdades sociais porque é um mecanismo de aquisição do código elaborado institucionalizado por uma classe social; dessa forma o acesso a ela ocorre de forma estratificada, da mesma forma que também são estratificadas as instituições de ensino. A estratificação social é refletida tanto no acesso à educação como em relação às escolas, sendo que mesmo havendo uma educação e uma escola direcionadas para as classes desfavorecidas, essas se caracterizam como instituições precarizadas, sendo que, de fato, o acesso à educação se torna restrita às crianças das classes favorecidas, restando às crianças das classes trabalhadoras uma escola precária e uma educação de baixa qualidade social, daí não se poder negar a existência de uma estratificação escolar.
As desigualdades escolares são reflexos da estratificação social e mecanismo de reprodução dessa estrutura social. A escola pode não superar as desigualdades sociais dos estudantes, porém se as desigualdades sociais não fossem transplantadas para as escolas, elas não seriam transformadas em desigualdades naturais, pois, em muitos aspectos os estudantes das escolas públicas teriam desempenho similar aos estudantes das escolas privadas, uma vez que as desigualdades continuariam apenas no plano social.
A análise realizada mostrou a existência da estratificação social correlacionada à estratificação escolar e linguística e não visualizou indícios de enfraquecimento dessas estratificações, porém não se pode perder de vista a possibilidade de intervenções nesses processos de estratificações. Mas ao mesmo tempo não se pode esperar essas intervenções de uma força social macro que efetivaria uma transformação social; antes disso, é necessário compreender que a manutenção do poder de uma classe sobre a outra depende da conservação dessas estratificações, por isso que uma transformação social depende do envolvimento de vários agentes sociais num processo contínuo e permanente que objetiva a transformação social a partir das bases, não depositando as esperanças numa força macro que operaria uma transformação social de cima para baixo, isto porque o poder pode mudar de domínio sem que isso signifique alterações nos processos de estratificações e, consequentemente, no processo de reprodução social.
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Notas