Mesas temáticas coordenadas
CONTRARREFORMA DA SEGURIDADE SOCIAL: rebatimentos sobre a consolidação da Assistência Social como política pública
CONTRARREFORMA DA SEGURIDADE SOCIAL: rebatimentos sobre a consolidação da Assistência Social como política pública
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1589-1606, 2018
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 10 Fevereiro 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
Resumo: Este texto aborda os rebatimentos das contrarreformas propostas pelo Governo Temer, caso sejam aprovadas, sobre o lento processo de constituição da assistência social como política de seguridade no Brasil, atravessada historicamente pelo conservadorismo. As contrarreformas conservadoras, em curso, poderão descontinuar o processo de consolidação do SUAS e conduzir a assistência social ao risco de regressão conservadora às bases que a originaram, como caridade e ajuda.
Palavras-chave: Conservadorismo, seguridade social, assistência social.
Abstract: This text addresses the refutations of counter reform proposed by the Temer Government, if approved, on the slow process of constitution of social assistance as a security policy in Brazil, historically traversed by conservatism. Conservative counter-reforms, in progress, may discontinue the process of consolida ting SUAS and lead social assistance to the risk of conservative regression to the bases that gave rise to it, such as charity and aid.
Keywords: Conservatism, social security, social assistance.
1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história da humanidade, as seguranças de sobrevivência e pertencimento a determinada sociabilidade têm sido promovidas por dois elementos: pelo trabalho, aos aptos e inseridos nas atividades de trabalho formal ou informal e pela rede de solidariedade criada para os não protegidos pelo trabalho. Esta segunda forma se constitui, portanto, na ação assistencial, que dependendo do desenvolvimento das forças produtivas, tem sido desenvolvida ao nível das relações primárias, através da família e da vizinhança ou secundárias, promovida pela esfera pública em combinação com a igreja e instituições filantrópicas.
Incorporada tanto pelos sistemas de proteção de inspiração bismarckiana quanto nos beveridgianos, a Assistência Social na contemporaneidade se coloca na esfera dos direitos de cidadania a serem assegurados pelo Estado democrático de direito, e dependendo dos critérios de justiça em que se pautam, podem objetivar suprir as necessidades humanas, ou alcançar determinados segmentos pelo critério do mérito. Mas o direito à Assistência Social é fruto de longa construção histórica dos trabalhadores por condições humanas de sobrevivência.
O primeiro sujeito organizador e promotor da assistência foi a igreja católica, direcionando sua ação social aos pobres, doentes, deficientes e órfãos, merecedores clássicos da assistência, a partir do princípio da caridade. O Estado só aparece como sujeito promotor da Assistência Social no período de desconversão da sociedade feudal (CASTEL, 1998), para fazer face às profundas transformações (POLANYI, 2000) operadas na fase de constituição da classe trabalhadora livre e sem propriedades, isto é, destituída dos meios de produção e pronta para servir de mão de obra para a indústria. O pauperismo generalizado e a falta de condições de acomodação dos trabalhadores destituídos colocavam em risco a própria ordem, o que obrigou o Estado a intervir através de políticas sociais, sendo a Lei dos Pobres, de 1388, na Grã-Bretanha, a primeira legislação a regular a oferta de assistência.
No Brasil, só a partir da Constituição Federal (CF) de 1988, a Assistência Social passou a compor o rol das políticas de seguridade social devidas pelo Estado brasileiro como direito do cidadão que dela necessitar, como forma de proteção às adversidades de insuficiência ou ausência de renda decorrentes da sociabilidade capitalista em seu atual estágio de desenvolvimento, bem como de inaptidão ao trabalho por situações intergeracionais ou de deficiência. Esse status foi adquirido tardiamente em relação aos países de capitalismo central, uma vez que a Assistência Social como direito, já compõe os sistemas de seguridade social desde o processo de expansão das políticas sociais no contexto do pós-segunda guerra mundial. (SILVA, 2012).
O lento processo de institucionalização da Assistência Social, pode ser percebido pelas dificuldades de incorporação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), pelas três esferas de governo, a partir de 2005. Essas dificuldades se ampliam no atual cenário de contrarreformas conservadoras levadas a efeito pelo governo Temer. Este artigo trata dessa questão, trazendo ao debate os rebatimentos da Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016 e das contrarreformas da seguridade social brasileira sobre a Política de Assistência Social, que diferente das Políticas de Saúde e Previdência, políticas públicas já consolidadas, terá seu processo de constituição descontinuado, havendo o risco de retorno às bases conservadoras que a originaram como caridade e ajuda.
Este artigo está estruturado, além desta introdução, em uma sessão principal intitulada O lento processo de constituição da assistência social como política de seguridade no Brasil, composta por duas sessões secundárias: O conservadorismo e suas influências sobre a constituição da Assistência Social; A contrarreforma da seguridade e o SUAS: riscos de regressão conservadora, além da Conclusão.
2 O LENTO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL COMO POLÍTICA DE SEGURIDADE NO BRASIL
As políticas sociais se constituem na forma como o Estado capitalista tem buscado responder à materialização das contradições entre capital e trabalho, compreendidas como questão social, isto é, conjunto de desigualdades originárias do modo como a sociedade se organiza para produzir, demandando a intervenção do Estado. Compensar ou reduzir os efeitos danosos do processo produtivo explorador e excludente, expresso nas mais diversas expressões da questão social, é, portanto, o objetivo das políticas sociais, que em sua contradição encerram dupla funcionalidade, assegurando, por um lado, a reprodução do capital, e, por outro, incorporando algumas demandas dos trabalhadores, permitindo a sua reprodução.
O desenvolvimento do sistema capitalista tem demonstrado, no entanto, que o discurso liberal não se sustenta; que o modo de produção capitalista não instaura a liberdade humana, uma vez que se organiza a partir da exploração da força de trabalho daqueles que são necessários para desenvolver o padrão produtivo vigente em cada momento histórico, e que, além disso, torna um significativo contingente da população desnecessário ao processo produtivo, embora aptos e dispostos ao assalariamento. O que se verifica é que, a população sobrante não terá condições de se reproduzir nos termos da racionalidade e da sociabilidade instaurada pela sociedade mercantil, sem a intervenção do Estado.
Um conjunto de determinações concorreu para que no início do século xx as políticas sociais se consolidassem e expandissem como direito social: os impactos da crise do capital em 1929 e as consequências da segunda guerra mundial exigindo grandes esforços de reconstrução, colocando em xeque o ideário liberal pautado na economia de mercado, exigindo a presença interventiva do Estado; a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), chamando a atenção e responsabilizando a sociedade pelos efeitos catastróficos gerados pela guerra e prevendo um rol de direitos a serem buscados pela humanidade em sua história; a possibilidade de expansão do socialismo.
Concorreu também para a consolidação das políticas sociais o conceito de cidadania desenvolvido por T. H. Marshall (1967), segundo o qual a sociedade capitalista tenderia a assegurar a todos os direitos de cidadania: direitos civis, políticos e sociais. Os direitos sociais assegurariam a participação na riqueza coletiva, originando a redução das desigualdades no capitalismo a partir da ideia de justiça social. É a luta coletiva pela igualdade que os embasa, é a necessidade de enfrentamento e redução das desigualdades geradas socialmente que se coloca como objetivo a ser alcançado, logo, a efetivação dos direitos sociais depende do Estado como mediação, para provê-los. (COUTO, 2006).
No interior do movimento conflituoso entre as classes sociais ao longo da história do capitalismo, os direitos sociais foram sendo conquistados pelos trabalhadores, com base na evidência da necessidade ou no contrato (SPOSATI; FALCÃO; TEIXEIRA, 2008), mas a incorporação da noção de seguridade social na década de 1940 rompeu com essa lógica e estabeleceu uma nova concepção para as políticas sociais pautada no conceito de cidadania. Neste sentido, elas têm como suposto o caráter de redistribuição de renda, visando à equidade e a justiça social. A incorporação do conceito de seguridade social nas políticas sociais, portanto, se inscreve no contexto do pós-segunda guerra mundial na década de 1940. Apesar disso, os modelos de proteção social se diferenciaram, sendo mais amplos nos países em que a participação política dos trabalhadores impulsionou a social democracia a expandir os seus efeitos, e, restritos, onde essa influência não se concretizou como marca fundamental. Assim, afirma Sposati, Falcão e Teixeira (2008) que os sistemas de proteção pautados em marcos extensivos originaram sistemas distributivos de serviços sociais básicos a toda a população, e aqueles orientados por marcos restritivos, apenas aos necessitados.
A Assistência Social passou então a integrar os sistemas de proteção e na condição de direito social passou a ser incorporada como integrante da sociabilidade industrial pelos países de capitalismo central tendo como finalidade assegurar a dignidade humana, as condições básicas de sobrevivência aos segmentos populacionais impedidos de assegurá-la dentro dos padrões vigentes, tendo o trabalho como mediação. Mas no contexto dos países de capitalismo tardio, no conceito de incapacitados para o trabalho, encontram-se incluídos não só os demandantes clássicos da assistência social: doentes, idosos e órfãos, mas também grande parte da população economicamente ativa que não consegue inserção no mercado de trabalho e por isso encontra dificuldades de ter sua reprodução assegurada apenas pelo trabalho informal e precarizado em que se encontra incluída. Neste caso, a Assistência Social deve ser extensiva a essa população apta ao trabalho, mas trabalhadores sem trabalho.
A compreensão do processo de constituição da assistência em política social no Brasil requer considerar as bases da nossa formação social, calcada na colonização conservadora e expropriadora das riquezas; no extermínio das populações nativas; no longo período de escravização dos negros; no baixo assalariamento da população economicamente ativa; no estado aprisionado pelos interesses privatistas e patrimonialistas, enfim, no conjunto de marcas que forjaram o país e que influenciaram na desconsideração dos direitos sociais.
a) O conservadorismo e suas influências sobre a constituição da assistência social
A compreensão do percurso tardio e difícil de constituição da assistência em política social, na perspectiva do direito, pode ser compreendida à luz de autores clássicos, como Prado Junior (1977), Furtado (1974) e Fernandes (1987) que confirmam que a formação socioeconômica brasileira se realizou de forma subordinada aos interesses do capital internacional, inviabilizando no país a constituição de processos de desenvolvimento social e econômico segundo a dinâmica do capitalismo clássico, com a explicitação das contradições e das relações entre as classes, solo fértil para a reprodução das relações pautadas nos afetos particularistas em detrimento da racionalidade universalista.
Quanto à política de assistência social, o que se pode verificar no decorrer da história é que esse processo se encontra permeado por rupturas e continuidades com o conservadorismo, e aqui precisamos qualificar esse conceito. A ideologia conservadora, conforme Macridis (1982), possui lógica própria que lhe é inerente e que se expressa através de princípios gerais, em que a aversão à mudança rápida se destaca como o principal. Segundo o autor, o conservadorismo clássico é caracterizado por um conjunto de proposições relacionadas à concepção de autoridade política, sociedade, natureza do indivíduo e relação entre economia nacional e o Estado.
Assim, para os conservadores, a sociedade é concebida como orgânica e hierárquica formada por indivíduos, naturalmente desiguais, que por suas qualidades naturais diferenciadas também desempenham funções e papéis subordinados à hierarquia, não havendo lugar para pensar em igualdade e liberdade na sociedade, mas em hierarquização e desigualdade social consentida. Desse modo, a ideologia conservadora é impregnada de autoritarismo e elitismo. A liderança governamental assume, dessa forma, a função de tutela das massas, articulando ainda o viés paternalista às obrigações sociais do Estado. (MACRIDIS, 1982).
Analisando a influência do conservadorismo na sociedade brasileira, Martins (1994), afirma ser uma sociedade de história lenta, onde o poder do atraso e a persistência do passado demarcam peculiaridades da formação social que impedem os processos de sua transformação. As marcas do conservadorismo dominam o Estado brasileiro e se expressam em relações políticas atrasadas, firmadas no clientelismo e na dominação tradicional de base patrimonial, na oligarquia.
Uma sociologia da história lenta permite descobrir e integrar na interpretação, estruturas, instituições, concepções e valores enraizados em relações sociais que tinham pleno sentido no passado, e que, de certo modo, e só de certo modo, ganharam vida própria. É sua mediação que freia o processo histórico e o torna lento. (MARTINS, 1994, p. 14).
Segundo o autor, no decurso da história política brasileira, a política do favor se constituiu no fundamento do Estado brasileiro, não havendo espaço para distinção entre o público e o privado, encontrando a dominação patrimonial amparo racional-legal nos mecanismos que lhes dão modernidade e possibilidade de realização. Considerando as contribuições de Macridis (1982) e Martins (1994) acerca das características do conservadorismo e de sua influência na formação social brasileira é possível afirmar que o conservadorismo se apresenta como mediação relevante, associado ao autoritarismo, nas relações sociais entre as classes e com impactos no processo de implementação das políticas públicas.
O conservadorismo se expressa como marca na trajetória da Assistência Social no Brasil, inicialmente na ação social da igreja católica, na associação entre assistência e ajuda/caridade cristã, posteriormente nas ações desenvolvidas pelo Estado e Sociedade Civil. O conservadorismo se revela na concepção de pobre como carente, como ser de qualidade inferior reproduzida na intervenção pública como favor, sob relação paternal e tutelar gerando dependência e definindo relações clientelistas. O conservadorismo, dessa forma, depõe contra o direito e reforça a negação do dever do Estado no provimento das necessidades sociais alcançando a organização e gestão da Política de Assistência Social até os dias atuais, mesmo quando já se constitui em direito social legalmente reclamável.
No Brasil, as primeiras formas de assistência resultaram das relações patrimonialistas e clientelistas, na esfera da grande propriedade, orientada pela ideologia liberal e pela doutrina da igreja católica, o que conferia à assistência o caráter caritativo de ajuda ao próximo. Esse mesmo modelo se estenderia ao período imperial e até o início da república, quando o apelo à filantropia dos ricos para com o público-alvo da Assistência foi influenciado pelos interesses da saúde pública em higienizar as cidades, afastando das ruas aqueles seres que comprometiam a saúde da população e a imagem das grandes cidades.
A Assistência Social passou a compor as ações governamentais a partir da década de 1930, nos marcos da industrialização e urbanização e das expressões da questão social resultantes da implantação da sociedade salarial, quando o Estado teve que intervir na regulação das relações capital x trabalho. Nas décadas seguintes a assistência se ampliou como política de governo, com a profissionalização do atendimento através da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e outras instituições nacionais do Sistema S. No período da ditadura militar, a assistência foi a estratégia de relação do governo autoritário com as classes subalternizadas e os estados e municípios foram chamados a expandir a assistência através de convênios com a LBA. No final da década de 1970, todos os municípios brasileiros desenvolviam ações de assistência social segundo o modelo da LBA, segundo a concepção da ajuda, coordenada pelas primeiras damas, buscando retratar o lado benevolente e humanitário dos governos sob a ditadura.
A assistência social foi reconhecida como política de sseguridade social somente a partir da CF de 1988. Propondo-se a romper com a histórica presença de benemerência nessa área, tem encontrado dificuldades de institucionalização, fato que se verificou desde sua regulamentação tardia, através da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, cinco anos após a promulgação da Constituição e seu desconhecimento na década de 1990, nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando essas dificuldades se intensificaram sob o ideário neoliberal, com a reforma do Estado e seus impactos sobre a implementação das políticas públicas de corte social.
Na era FHC, década seguinte à promulgação da CF, a expectativa da sociedade brasileira era que os direitos sociais assegurados constitucionalmente fossem regulamentados e implementados, assegurando a concretização dos avanços legais na vida dos cidadãos. Ao contrário, o que se observou foi a ascensão do conservadorismo sob a égide da doutrina neoliberal gerando inflexões regressivas no processo das políticas públicas. Esse período foi especialmente nefasto para a política de Assistência Social. Sob a onda conservadora, a equipe de governo abandonou o processo de implementação das diretrizes da LOAS e da noção de assistência social como direito de cidadania.
O que se observou foi a reedição de práticas já superadas na condução da Política de Assistência Social, mediante processo histórico de luta empreendida por sociedade civil e governos democráticos, no sentido de superar as condutas clientelistas e patrimonialistas do processo das políticas públicas. Destaca-se o apelo à filantropia da sociedade em geral em substituição à responsabilidade do estado, mediante a implementação do Programa Comunidade Solidária. Outra prática reforçada foi a presença da primeira dama na condução da assistência aos pobres, representada na esfera federal pela coordenação do Programa Comunidade Solidária pela primeira dama Ruth Cardoso.
Os retrocessos de década de 1990 foram fundamentais para dificultar o processo de descentralização da política de Assistência Social das esferas estaduais e federal para os municípios que, a partir da CF de 1988 passaram a compor o federalismo brasileiro, como ente autônomo e responsável pela implementação das políticas públicas. Respaldado pela nova Constituição, o governo federal se empenhou em realizar a descentralização de forma aligeirada, sem criar as relações de colaboração entre as esferas de governo, bases necessárias para a transferência não apenas das demandas a serem atendidas, mas também dos recursos para fazer face às novas atribuições municipais. Desse modo, a esfera federal se descomprometeu da execução das políticas públicas e a esfera municipal foi obrigada a arcar com essa nova competência sem recursos financeiros, humanos e materiais para a implementação das políticas públicas sob sua responsabilidade constitucional.
Nos anos 2000, com a mudança da matriz de poder na esfera federal, se verificou nova inflexão no sentido da afirmação do dever do Estado com a institucionalização da Assistência Social sob a noção de direito. O processo de participação através das Conferências Nacionais, estaduais e municipais teve como resultado a implantação do SUAS, em 2005, e sua transformação em Lei do SUAS, em 2011. A elaboração das normativas necessárias à implementação da LOAS se constituiu marca da Política de Assistência Social dos governos Lula e Dilma. Esse processo culminou com a implantação do SUAS a partir de 2005, consubstanciado na Política Nacional de Assistência Social (PNAS).
O SUAS apresentado à sociedade em 2005 se configurou, a partir de então, na nova forma de organização e gestão da PNAS, buscando romper com a falta de unidade na organização e gestão da política em nível nacional, bem como, com a influência da herança cultural, marcadamente assistencialista e clientelista sobre a concepção e a gestão dessa Política. O SUAS encontra-se estruturado para atender a três dimensões de proteção social: segurança de sobrevivência ou de rendimento e autonomia; segurança de convívio ou vivência familiar e segurança de acolhida. As ações da Assistência Social que dão concretude a essas seguranças passaram, a partir de 2010, a obedecer à Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), através da Resolução nº 109, de11 de novembro de 2009.
Considerando as seguranças afiançadas e os direitos socioassistenciais, as ações do SUAS são organizadas em duas modalidades de proteção. As ações de Proteção Social Básica, de caráter preventivo, desenvolvidas no interior do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) devem potencializar as condições de vida da família na sua comunidade de referência, promovendo as condições de segurança de sobrevivência ou de rendimento e autonomia e a segurança de convívio familiar.
O segundo nível de proteção, a Proteção Social Especial (PSE), deve ser prestado a partir de dois níveis de complexidade. Os serviços de Média Complexidade se destinam ao atendimento de famílias e indivíduos com direitos violados, mas em que os vínculos ainda são preservados e, devem ser realizados também em unidade pública, o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS). As ações do CREAS devem ter por finalidade o fortalecimento da família no desempenho de sua função protetiva; inclusão das famílias no sistema de proteção social e nos serviços públicos, conforme as necessidades; restauração e preservação da integridade e das condições de autonomia dos usuários; rompimento dos padrões violadores de direitos no interior da família; reparação de danos e da incidência de violação de direitos e prevenção da reincidência de violações de direitos.
Os serviços de Alta Complexidade compõem o segundo nível da PSE. Em sua estrutura de organização encontra-se previsto a garantia de proteção integral para famílias e indivíduos sem referência, em situação de ameaça ou que precisam ser retirados da família e da comunidade para sua segurança, além das vítimas de calamidades. O serviço deve ser organizado a partir de três eixos. Serviços de Acolhimento Institucional, serviços de acolhimento em família acolhedora e serviços de proteção em situações de calamidades públicas e de emergências.
A implantação e implementação do SUAS, dentro do formato desenhado pelos formuladores implica no comprometimento do estado nacional em suas três esferas de governo, com a superação do modelo assistencial clientelista conservador, vigente em todo o período anterior à regulamentação da política de Assistência Social como integrante do rol das políticas de seguridade social, conforme prevê a CF de 1988. Supõe a responsabilidade pública com o enfrentamento das iniquidades determinadas socialmente. Dessa forma, prescinde da criação das condições necessárias ao funcionamento de uma política pública que por sua finalidade, deve prestar serviços socioassistenciais a parte significativa da população brasileira, em todas as regiões, principalmente, Norte e Nordeste, por concentrar a maioria dos indivíduos e famílias com o perfil de usuários dessa política pública.
As condições necessárias passam pela construção e equipamento de espaços físicos para funcionamento dos equipamentos públicos, CRAS, CREAS e instituições de acolhimento, de acordo com projetos arquitetônicos específicos já disponíveis. Atualmente, poucos municípios brasileiros possuem unidades de Assistência Social próprias e dentro dos padrões exigidos para a implementação dos serviços. As instalações físicas em que eles funcionam são adaptações de casas residenciais, totalmente impróprias às demandas dos serviços.
Outro aspecto importante diz respeito à constituição das equipes de trabalhadores de referência para cada tipo de serviço, através de concurso público, proporcionando salário decente e plano de cargos e carreira. As equipes que implementam a Política de Assistência Social são constituídas a partir de relocações de funcionários de outras áreas, além de contratos precários, com baixos salários e outros vínculos frágeis. A constituição dos quadros permanentes da política, com salários dignos é condição fundamental para a qualidade dos serviços.
Destaca-se também como elemento fomentador da qualidade dos serviços, assegurar educação permanente e continuada aos trabalhadores, uma vez que, mesmo a formação superior não assegura o rol de conhecimentos específicos necessários ao trabalho exigido. Além disso, o conhecimento deve ser permanentemente atualizado em função das novas legislações, teorias e metodologias utilizadas para os processos diferenciados de trabalho que envolve o atendimento aos diversos públicos usuários dos serviços socioassistenciais. As três esferas de governo são responsáveis por esse processo de educação permanente e continuado.
A construção dessas condições de implementação da política de assistência social vem acontecendo na última década, dentro do quadro de resistência conservadora, apontada por Martins (1994), de forma lenta, em que se contrapõem perspectivas diferenciadas, que lutam para se realizar na arena política, quais sejam: a manutenção da matriz conservadora como necessidade dos que defendem a continuidade da relação clientelista com a população através da assistência, fora da esfera do dever do Estado como ajuda, favor, benesse, e por outro lado, a perspectiva do direito social exigível por quem dela necessitar, no âmbito da esfera pública.
A perspectiva conservadora ganhou novo ânimo com o impeachment de Dilma Rousseff e a posse de Temer, em 2016. Os sinais de regressão conservadora podem ser notados em todas as medidas de ajuste fiscal em curso, bem como as contrarreformas da seguridade social e trabalhista, que têm em comum, a retirada de direitos alcançados ao longo de várias décadas de luta dos trabalhadores em seu esforço de busca de condições dignas de sobrevivência, na relação desigual com o capital. No rol das políticas sociais destaca-se a necessidade de refletir sobre os significados desse conjunto de medidas sobre o SUAS.
b) A contrarreforma da seguridade social e o SUAS: riscos de regressão conservadora.
Estudos realizados por Silva (2012) demonstram que a assistência social vem se construindo permeada por rupturas e continuidades com o conservadorismo que a originou e que a atravessa ainda, no processo de implementação do SUAS. Essa construção da história lenta está sofrendo na atualidade, mais um golpe em seu lento processo de constituição, perpetrado pelo governo Temer, através de um conjunto de medidas conservadoras de ajuste fiscal que retiram direitos da população brasileira e que impactam nas políticas de seguridade social, com claros sinais de regressão conservadora.
Em primeiro lugar destacam-se os efeitos perversos da Emenda Constitucional nº 95/2016, que prevê o congelamento por 20 anos dos limites constitucionais para as despesas primárias da administração pública federal. Esse congelamento de recursos financeiros impacta diretamente sobre as políticas públicas, com destaque para as de seguridade social, especialmente aquela que ainda não foi consolidada em seu processo de implantação e implementação, a assistência social.
Além do congelamento dos limites constitucionais por 20 anos, o que já comprometeria a continuidade da construção do SUAS, há que se considerar o conjunto de contrarreformas previdenciária e trabalhista, que têm como fundamento, a expropriação de direitos já adquiridos e como discurso oficial o enfrentamento do déficit da previdência e do risco de sua extinção em futuro próximo ou a modernização da legislação trabalhista no sentido de facilitar a inserção do trabalhador no mercado de trabalho. A falácia em curso objetiva mesmo, a redução do uso do fundo público no financiamento das políticas sociais para que este fique disponível para recuperar as taxas de lucro do capital financista. (SALVADOR, 2010). A implementação destas medidas incidirá sobre o aumento da população desprotegida pelo trabalho a necessitar da proteção da assistência social, cujos recursos não acompanharão o crescimento da demanda.
A implementação do SUAS ao longo da última década tem se configurado em um imenso desafio, diante principalmente, do não cumprimento do pacto federativo previsto na LOAS e que envolve os três entes federados no processo de financiamento, organização e gestão. O que se pode observar no período é que, sendo a esfera federal a maior financiadora do SUAS, parte considerável dos recursos da política de assistência tem sido destinada aos programas de transferência de renda, Programa Bolsa Família (PBF), destinado a complementação de renda de famílias com insuficiente inserção no mercado formal ou informal de trabalho e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e pessoas com deficiência que não disponha, nem sua família, de condições financeiras para sua manutenção.
A transferência de renda a quem dela não dispõe ou que disponha em níveis insuficientes para a sobrevivência do grupo familiar é um mecanismo que visa assegurar a primeira das três dimensões da proteção social previstas pelo SUAS: segurança de sobrevivência ou de rendimento e autonomia, sem a qual a própria sobrevivência dentro das condições da dignidade humana ficam comprometidas. Os significados do direito ao benefício assistencial de transferência de renda é algo que a elite brasileira não consegue dimensionar, uma vez que não sabe o que é viver sem renda ou com rendimentos irrisórios, como a maior parte da classe trabalhadora sem trabalho ou com trabalho precário.
A redução dos recursos para a transferência de renda é uma das medidas já em curso. Imagina-se que as restrições de acesso ao Programa Bolsa Família e ao Benefício de Prestação Continuada, terão impacto significativo sobre o aumento da pobreza com o retorno aos elevados níveis de extrema pobreza, que na década passada havia sido eliminada. A desvinculação do BPC do salário mínimo é outro indicador de regressão à extrema pobreza, uma vez que, atualmente, muitas famílias sobrevivem tendo como rendimento fixo, o salário advindo do BPC. Estudo realizado por Oliveira e Kassouf (2009), analisa essa relação entre PBF e BPC, destacando a relevância do volume de recursos distribuídos através deste último, por repassar o valor de um salário mínimo mensal. Desse modo, segundo os autores, em 2008 o BPC repassou quase R$14 bilhões a quase 3 milhões de pessoas e o PBF, valor próximo a R$ 10 bilhões, atingindo aproximadamente 40 milhões de pessoas (10 milhões de famílias).
A redução do valor do BPC incidirá negativamente também, sobre as condições de vida e saúde dos idosos e das pessoas com deficiência, que dele dependem, concorrendo também para a desvalorização dessas pessoas no grupo familiar, dificultando a convivência familiar e comunitária, passando de pessoas que tinha importância na composição da renda familiar e por isso, alvo de consideração desta e da vizinhança, para a condição de pessoas que passarão a pesar sobre os ombros dos demais membros da família, que terão que custear seus remédios e demais despesas.
A proposta original do governo federal previa a desvinculação do BPC do valor do salário mínimo. Depois de muita rejeição a proposta vem sendo refeita e o discurso oficial muda de sentido afirmando que nada irá mudar. De todo modo, dependendo da conjuntura, a proposta original pode ser reapresentada. Por outro lado, a revisão dos critérios de acesso e permanência está sendo realizada.
Um deles é a obrigatoriedade de cadastro no Cadastro Único (CadÚnico). Além de ser critério para ingresso, é também critério para permanência, uma vez foi previsto prazo para realização do cadastramento e ao final, aqueles que não tiverem sido incluídos no sistema serão excluídos do benefício.
Uma das potencialidades da Assistência Social reside em dar visibilidade às contradições do sistema de produção capitalista, explicitando a sua incapacidade de integração da população economicamente ativa pela via do trabalho, gerando internamente os excluídos pela produção a serem incluídos pela política social. A despolitização da questão social pode ser uma decorrência das contrarreformas conservadoras, à medida que o Estado se descompromete com a regulação das expressões da contradição fundamental entre capital e trabalho, deixando como atribuição exclusiva do indivíduo. Poderemos retornar ao estado de barbárie em que os pobres serão tratados, novamente, como caso de polícia em substituição a caso de política.
A descontinuidade do processo de consolidação do SUAS dentro do que prevê a Lei do SUAS, as Normas Operacionais Básicas (NOB) e Tipificação dos Serviços, dentre outras, é o que se pode esperar da redução progressiva dos recursos, justo quando a demanda pelos serviços sociassistenciais será ampliada, sob os impactos da expropriação de direitos trabalhistas e previdenciários. No contexto da impossibilidade de afirmação dos direitos sociassistenciais previstos no SUAS, a regressão conservadora poderá ser total, negando a concepção de direito e retornando à concepção de ajuda como base da assistência, conforme os moldes clientelistas.
3 CONCLUSÃO
Assistência Social como política de estado tem como potencialidade assegurar o direito dos inaptos ao trabalho por sua condição de pertencimento à sociedade em seu atual estágio, onde a sociabilidade construída já incorporou e legitimou certos padrões mínimos abaixo dos quais a dignidade humana estaria comprometida. Também politizar a questão social, colocando sob responsabilidade social o fato de pessoas aptas ao trabalho não conseguirem dentro do sistema produtivo ter assegurado um lugar no mercado de trabalho de modo a custear suas necessidades no âmbito da sociedade mercantil de forma autônoma.
Assim, compete à política de assistência social assegurar as condições de dignidade humana dos segmentos não inseridos pela sociabilidade do trabalho, seja por situações intergeracionais ou de falta de saúde que os habilite para atividades laborais, quer seja pela impossibilidade de inserção pelo trabalho. Parece pouco para quem tem assegurada a condição salarial, mas para quem não possui um lugar no sistema de produção, os serviços socioassistenciais são fundamentais para a manutenção do pertencimento social. É a ruptura deste direito que estará em jogo, caso as contrarreformas conservadoras propostas pelo governo Temer sejam concretizadas. O retorno à barbárie (SAMPAIO JUNIOR, 1999), desconhecendo toda a trajetória já percorrida pela sociedade brasileira na luta pelos mínimos de direitos sociais já assegurados. E é isso o que não podemos consentir que aconteça. A resistência e a luta dos trabalhadores e dos homens e mulheres de bem deverá prevalecer.
REFERÊNCIAS
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
COUTO, B. R. O direito e a assistência social na sociedade brasileira: uma equação possível? São Paulo: Cortez, 2006.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,1987.
FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
MACRIDIS, R. C. Ideologias políticas contemporâneas: movimentos e regimes. Trad. de Luís Tupy Caldas de Moura e Maria Inês Caldas de Moura. Brasília, DF: Ed. UnB, 1982.
MARSHAL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MARTINS, J. de S. O poder do atraso. São Paulo: Editora Hucitec, 1994. (Ensaios de Sociologia da História Lenta).
OLIVEIRA, P. R. de. KASSOUF, A. L. Benefício de Prestação Continuada destinado Idosos: uma análise a partir dos Microdados da PNAD. Brasília, DF: MDS, Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, 2009.
POLANYI, K. A grande transformação. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.
PRADO JUNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1977.
SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.
SAMPAIO JUNIOR, P. de A. Entre a nação e a barbárie: os dilemas do capitalismo dependente em Caio Prado, Florestan Fernandes e Celso Furtado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
SILVA, L. P. V. Rupturas e continuidades da assistência social: da benemerência ao direito – uma incursão no Brasil e no Maranhão. 2012. 258 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) – Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2012.
SPOSATI, A. de O.; FALCÃO, M. do C.; TEIXEIRA, S. M. F. Os direitos dos (desassistidos) sociais. São Paulo: Cortez, 2008.