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SENTIDOS TERRITORIAIS DA PROTEÇÃO SOCIAL NO LITORAL NORTE DA PARAÍBA
SENTIDOS TERRITORIAIS DA PROTEÇÃO SOCIAL NO LITORAL NORTE DA PARAÍBA
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1641-1664, 2018
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 20 Fevereiro 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
Resumo: O artigo parte da realidade vivida nos estudos territorias no litoral norte do estado da Paraíba, e consolida, em tese, o pressuposto de que em geral, sabemos que não há sociedades humanas que não tenham desenvolvido alguma forma de proteção social aos seus membros mais desprotegidos. A ferramenta metodológica adotada – Diagrama de Venn – que possibilitou a identificação de grupos e suas inter-relações, auxiliou na obtenção de informações exploratórias, como também, permitiu a obtenção de uma visão geral das relações entre instituições, organizações e grupos sociais. As 32 aldeias estão conectadas pelo elo organizacional das necessidades de vida e sobrevivência; possuem um cacique geral e cada aldeia possui um cacique local.
Palavras-chave: Proteção social, território, Potiguaras.
Abstract: The article starts from the reality of territorial studies within the northern coast of the state of Paraíba, this work consolidates the premise that, in general, we know there is no human society which has not developed some sort of social protection to their weakest members. We have opted for the Venn Diagram asour methodological tool, which allowed us to identify groups and their interrelations, carry out an exploratory search and also achieve a general overview on the intertwine of institutions, organizations and social groups. The 32 villages are connected by their life necessities and survival. They share a main cacique (the tribal chief) and have a local chief for each village.
Keywords: Social protection, territory, Potiguaras.
1 INTRODUÇÃO
A tentativa criteriosa em pesquisar no campo da Política Social, especificamente da Proteção Social no esteio dos conflitos de classes e das consecutivas investidas neoliberais que se expande causando efeitos nefastos para a classe que vive do trabalho, apresenta-se como exigência a leitura crítica que direciona que esse ambiente tem em sua genética questões paradoxais e contraditórias que “[...] se expressam por formas variadas, entre as quais, por mais incoerente que possa parecer, a reiteração da desproteção social.” (SPOSATI, 2013, p. 653).
Partir da realidade vivida nos estudos territorias no Litoral Norte do estado da Paraíba consolida, em tese, o pressuposto de que, em geral, sabemos que não há sociedades humanas que não tenham desenvolvido alguma forma de proteção social aos seus membros mais desprotegidos. Seja de modo mais simples, através de instituições não especializadas e plurifuncionais, como a família, a aldeia, por exemplo, ou com altos níveis de sofisticação organizacional e de especialização. Diferentes formas de proteção social emergem e percorrem o tempo e o espaço das sociedades “[...] como processo recorrente e universal.” (YAZBEK, 2012, p. 1).
Conforme Di Giovanni (1998, p. 10), compõem sistemas de proteção social: “[...] as formas – às vezes mais, às vezes menos institucionalizadas – que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio e as privações”.
Entendemos que a concretização do modelo de proteção social sofre forte influência da territorialidade, pois ele só se instala e opera a partir de forças vivas e de ações com sujeitos reais. Para Sposati (2009), ele não flui de uma fórmula matemática ou laboratorial, mas de um conjunto de relações e de forças em movimento. Para os autores, o sentido de proteção supõe, antes de tudo, um caráter preservacionista e de defesa da vida, dos direitos humanos e sociais e da dignidade humana.
Afirmamos a concepção fundante de que proteção significa prevenção, o que subtende a redução de fragilidades aos riscos que, do ponto de vista temporal, podem ser permanentes ou temporários e se inserem no exame da questão do enfrentamento de ricos sociais. (SPOSATI, 2009; SILVA, WANDERLEY, CONSERVA, 2014; SILVA, 2016).
Atualmente, apreendemos que toda ação social implica compartimentações (tácitas e/ou formais/explicitas). O território pode ser compreendido por suas compartimentações, pois elas são reveladoras de usos do território1, quer seja um uso hegemônico no caso das divisões político-administrativas construídas para o exercício do poder do Estado ou pelo uso hegemonizado, caso das compartimentações indígenas Potiguaras inseridas na pesca artesanal no litoral norte do Estado da Paraíba, objeto de nossa análise empírica. Usar o território, em todos os tempos, implicou apropriações, delimitações e demarcações, três termos de uma equação de uso que concernem ao problema fundamental da realização da vida em sociedade.
Optamos pela ferramenta metodológica – Diagrama de Venn (Figura 1) – que possibilitou a identificação de grupos e suas inter-relações, que auxiliou na obtenção de informações exploratórias, como também, permitiu a obtenção de uma visão geral das relações entre instituições, organizações e grupos sociais.
A distância entre os círculos, no diagrama das relações da Aldeia Tramataia, representa a relação entre os referidos grupos. Sendo parceiros, colaboradores estarão próximos, podendo até se sobrepor um ao outro, parcial ou integralmente. Observamos, ao desenvolver a ferramenta metodológica, que é adaptada para representar as relações entre os diferentes grupos de uma sociedade. Em nosso caso, buscamos demonstrar a relação entre as instituições e o território indígena.
Essa é uma ferramenta com um potencial bem interessante, porém, é complexa, exige moderação e bom domínio dos procedimentos de execução. Para tanto, utilizamos um gravador portátil para registro do diálogo estabelecido com os participantes. Tal condução garantiu a construção de um quadro de características marcantes que permitiu estabelecer relações de comparação, possibilitou identificar critérios de avaliação, permitiu o detalhamento das informações, as quais foram utilizadas para avaliar potencialidades.
A diferença entre atuação (distância) e poder (tamanho do círculo) ficou clara para todos. Há grupos com muito poder de intervenção, mas que podem estar atuando pouco; esse grupo, então, mereceria um círculo grande, mas se posicionaria longe do centro do diagrama.
Buscamos caminhos alternativos, com a mediação dos próprios trabalhadores e trabalhadoras da pesca, os quais indicavam a liderança, o que a nosso ver, é uma forma legítima, uma vez que a liderança é reconhecida e validada pelo território usado e de vida. Para uma melhor compreensão do diagrama das relações, estabelecemos conexões, resultantes do diálogo das rodas de conversas com a aldeia Tramataia.
2 A VOZ DA ALDEIA: uma leitura da relação do território com as instituições
2.1 Conexão: Aldeia Tramataia e Pesca Artesanal
A atividade pesqueira em Tramataia é o ponto forte dos vínculos de garantia de sobrevivência que se traduzem em proteção e conferiu, no diagrama das relações, o maior círculo devido à importância dada pelos indígenas. A pesca artesanal possui uma lógica de apropriação da natureza diferenciada dos empreendimentos voltados ao cultivo de camarão. Além disso, dela todos podem participar sem restrições maiores, como as apresentadas na carcinocultura.
A atividade pesqueira é uma atividade humana que representa uma modalidade de uso do espaço. Sua especificidade reside na articulação dos meios aquático e terrestre, sendo que o primeiro comporta os processos de apropriação da natureza e o segundo significa os espaços de morada do pescador e o da realização do pescado enquanto mercadoria (CARDOSO, 2003, p. 119).
A captura de caranguejo, mariscos e outros recursos do estuário do rio Mamanguape está inserida na lógica de apropriação voltada para a reprodução social da aldeia; a comercialização do pescado é feita para garantir a alimentação e sobrevivência de todos. É assim que adquirem outros alimentos necessários à sua sobrevivência, garantem o pagamento de suas contas, seus gastos com redes e materiais de pesca, vestimenta etc. O espaço é tido como valor de uso da aldeia. Na carcinicultura, tem-se uma lógica voltada aos moldes capitalistas de produção, visa a necessidade imediata de expansão e reprodução econômica, para gerar lucro imediato apenas para um proprietário.
O território sofre uma delimitação e ordenamento de uso, onde os pescadores artesanais determinam, por uma dinâmica direcionada pela natureza, os locais de pesca que são conferidos como território usado, rico de sentidos e conhecimentos advindos da prática cotidiana exercida nesse lugar. Pois, é neste território, usado pelos pescadores para garantia de sua subsistência, que são tecidas relações de conhecimento, identificação, pertencimento e interação entre homem e natureza.
Dessa forma, tem-se a construção do território usado pelos pescadores artesanais, na medida em que exercem suas atividades, seja em água ou em terra. Nessa apropriação territorial, o valor de uso e as formas tradicionais de produção são as características principais do território da pesca artesanal. Sendo assim, é na relação dos territórios terra e água que observamos a materialização das contradições existentes entre os diferentes atores que se apropriam do espaço. Devemos considerar como território da pesca artesanal, as áreas que os pescadores utilizam para o desenvolvimento de suas atividades, como o mangue, por exemplo, ecossistema que não é somente terra nem somente água. É nesse espaço que os empreendimentos de cultivo de camarão se instalam e onde ocorrem inicialmente os conflitos.
Os manguezais são considerados ecossistemas-chave em razão de sua riqueza em biodiversidade e dos serviços ambientais que eles proporcionam [...] em virtude desse processo, destacamos, entre os serviços ambientais, o de viveiro e de local de alimentação para muitas espécies, fixas ou migrantes, da fauna terrestre, aquática ou ainda de pássaros. Nessa interface entre meios terrestre e aquático, os manguezais oferecem uma grande variedade de recursos naturais, base de sustentação de populações costeiras há séculos [...] (PROST, 2007, p. 154).
Na Área de Proteção Ambiental (APA) do Mamanguape, os manguezais se distribuem por quase toda área, sendo de grande importância para as comunidades tradicionais que ali residem e dependem dele para sua sobrevivência. Percebe-se que a relação entre as comunidades tradicionais com as áreas de mangue é, do ponto de vista ecológico e social, uma simbiose que, de certa forma, consiste em uma dependência para sobrevivência e reprodução social. A aldeia Tramataia, com suas casas, apresenta uma ligação de continuidade com o mangue, que chega a compor o quintal dos povos indígenas, do lugar. Podemos destacar a vocalização dos pescadores e pescadoras da aldeia,
[...] o mangue está juntinho da gente (pescadora da aldeia Tramataia).
Precisamos cuidar melhor do mangue e do rio (Informação verbal)2.
O pão de cada dia eu tiro do mangue e das croas (Informação verbal)3.
2.2 Conexão: Aldeia Tramataia e Projeto COOPERAR
O projeto COOPERAR, do Governo do Estado da Paraíba, foi o destaque como instituição, nas falas dos participantes, inclusive do cacique Elias, da Aldeia Tramataia.
Esse projeto gerou várias ações nas aldeias, algumas positivas e outras negativas. Uma das iniciativas positivas foi o subprojeto de apoio à apicultura, em Baía da Traição, pelo Cooperar e Banco Mundial (BM), que atenderam diretamente 20 beneficiários das Aldeias São Miguel, Tramataia, Cumaru, Forte, Galego, Lagoa do Mato, São Francisco e Tracoeiras e Camurupim, com um investimento de R$ 81,7 mil destinados à construção da unidade de extração de mel, aquisição de equipamentos e materiais apícolas, computador completo e material para escritório.
Muitas outras ações do Cooperar vêm ocorrendo na aldeia, como a fábrica de gelo para condicionamento do pescado e a implantação da carcinocultura, em 1997, ou cultivo de camarão exótico (Litopenaeus Vannamei); foram construídos tanques numa área de cerca de 180 ha. Atualmente, a carcinicultura na área indígena é um empreendimento realizado por poucas famílias de maior poder aquisitivo, devido ao alto custo de implantação e manutenção. A atividade também exige conhecimento técnico especializado pouco acessível à grande maioria.
Nas rodas de conversas houve pontos de discussão e polêmica quando a pauta era a carcinocultura, mostrando-se como uma iniciativa com repercussões negativas, por não ser uma prática coletiva e apresentar apenas um proprietário. No desenvolver da atividade surgiram discordâncias com relação ao manejo territorial. De forma enfática, um grupo afirmou que os recursos do mangue e do apicum são bens comuns de áreas de uso coletivo, enquanto os tanques são propriedades privadas de uma ou duas pessoas. Contudo, as relações entre as famílias indígenas, e dessas para com seu território, geram pautas que fortalecem o planejamento de práticas que beneficiam todos os trabalhadores da pesca e não apenas um pequeno grupo, como observado na prática da carcinocultura.
A partir dessa atividade, podemos analisar falas dos grupos com opiniões diferentes sobre a carcinocultura na aldeia:
[E o viveiro qual o mal dele? ] Porque o viveiro não abrange muitas famílias, só os três meses que vai despescar é que se precisa de 12, 13 pessoas pra despescar. Agora é só 2 funcionários que trabalha em cada viveiro desse durante esses 3 meses e nos três meses é que precisa de mais gente para despescar (Informação verbal)4.
E agora tem uma ajuda também que é os viveiros de camarão. Eles têm dado uma dor de cabeça pra alguns por causa do Ibama, mas dá emprego pra alguns também. Um viveiro de 1 hectare, o emprego é de duas pessoas, mas quando vai despescar leva umas 10 pessoas pra trabalhar. É uma diária que cada um já vai receber. Já tem outros viveiros que são maiores, já leva mais pessoas. Já é uma ajuda pra quem tá sem ganhar nada (Informação verbal)5.
No tempo o meu viveiro custou 30 mil reais pra fazer ele, com duas despesca pagamos o viveiro. Além de pagar o viveiro e dividimos pra seis família um feira boa. Ainda fiquei devendo 4 mil ao rapaz que construiu, sorte que ele tinha condições e ainda tem, ele não veio mais atrás [...]. Além de ser uma atividade que não demanda muita mão de obra existe a relação com o atravessador, que em nenhuma atividade produtiva é bem vista (Informação verbal)6.
A Literatura especializada afirma que a carcinicultura vem causando severos impactos socioambientais. Estudando a carcinologia7 do estuário do rio Mamanguape, observamos as mudanças nas paisagens e na diminuição dos recursos pesqueiro advindas das falas dos trabalhadores e trabalhadoras da pesca artesanal deste território.
Os impactos mais recorrentes listados na literatura, e que podem ser vistos na região, são a destruição de manguezais e apicuns8, poluição hídrica, os riscos pela introdução de uma espécie exótica (Litopenaeus vannamei), difusão de epidemias, desestruturação das comunidades de pescadores artesanais, modificação do fluxo das marés, redução e extinção de habitats de numerosas espécies, extinção de áreas de trabalho (mariscagem, pesca e captura de caranguejos), proibição de acesso às áreas de pesca e de coleta, contaminação de água. O processo de implantação dos tanques se inicia pela retirada da vegetação dos mangues e apicuns, abertura dos tanques com draga e trator, remoção do solo.
Em muitos debates e estudos, envolvendo pesquisadores das ciências biológicas e das Ciências Sociais, é reconhecido que a sobrevivência desses povos depende da sobrevivência e proteção do meio natural, com todo o seu potencial de recursos faunísticos e florísticos. Sabemos da preferência pelos apicuns para construção dos viveiros, marcas na vegetação do manguezal podem ser observadas, como nas áreas de Tramataia e Coqueirinho. A área na altura de Brejinho chegou a ser desmatada para a implantação de viveiros e encontra-se em processo de regeneração. Independente da escolha entre o mangue ou apicum para implantar os viveiros, muitos compreendem e destacam a importância socioeconômica e ambiental dos dois. Os apicuns, preferidos para a implantação dos viveiros, são considerados ambientes de fartura de guaiamuns, portanto, uma área de grande importância econômica.
Nas reuniões com os moradores, eles explicitaram que os tanques beneficiam poucas famílias no caso da aldeia Tramataia. São onze proprietários, com um contingente de pescadores artesanais sete vezes maior e que dependem diretamente da área de influência afetada pelos tanques. Após a implantação do tanque e início das atividades, os prejuízos seguem com a contaminação das águas dos rios Sinimbu e Mamanguape com os efluentes dos tanques. A grande quantidade de ração utilizada diariamente gera a proliferação de bactérias e para combatê-las os Potiguaras utilizam cal. A erosão dos taludes e diques, construídos respectivamente para conter os tanques e fazer a troca das águas, é percebida pelo assoreamento do rio Mamanguape expresso por meio das formações de croas de areia, atrapalhando o deslocamento das canoas pelo rio.
Nessa perspectiva, consideramos que a carcinicultura restringe o uso dos recursos do mangue, privatizando espaços de livre acesso, na mesma lógica da cana-de-açúcar, que impede os demais agricultores de usar a terra para outras culturas. Os carcinicultores implantam seus tanques e usufruem de seus lucros e os pescadores, coletores e marisqueiras socializam a degradação causada pela atividade.
O círculo maior no diagrama construído foi o da pesca artesanal, porém o primeiro a ser citado foi o Cooperar, uma vez que a pesca entra na relação íntima de sobrevivência e é a primeira a satisfazer as necessidades mais urgentes do povo potiguara. As falas são reveladoras dessa ligação do homem com a natureza mantenedora de necessidades. Os vínculos de proteção são fortes entre índios e o meio ambiente, porque a pesca artesanal garante a sobrevivência das populações ribeirinhas.
Ninguém aqui passa fome, o mangue dá, só é preciso ter coragem (Informação verbal)9.
Todo mundo aqui é ligado ao mangue porque é nosso trabalho, de onde tiramos nosso sustento (Informação verbal)10.
A gente só não tem casos de fome aqui graças a natureza (pescador da aldeia Tramataia).
Esses tanques de criação de camarão é um problema pra gente pescador, destrói tudo quando lança a água com ração e outros produtos que eu não sei qual é, mas sei que faz mal à saúde, porque todas as vezes que entramos em contato com a agua lançada adoecemos, por isso quando eles lançam a água contaminada dos tanques eu não vou pescar e onde fica meu direito? (Informação verbal)11.
A relação homem/natureza é de extrema importância para o entendimento do porquê a pesca artesanal se apresenta como resistência ao modo de produção capitalista.
Para Lessa e Tonet (2009), a compreensão do pensamento de Marx se baseia na premissa de que a relação homem/natureza é condição indispensável para compreender o ato de transformação por meio do qual a sociedade existe e se reproduz. É o trabalho na pesca artesanal que media essa transformação entre os potiguaras, o ato pelo qual os indígenas se fazem seres sociais para a sociedade contemporânea, diferentemente das leis que regem a natureza, já que o ato de exercer trabalho é antes idealizado no processo de consciência antes de ser objetivado12.
Uma leitura é necessária: como se constrói o modo de vida ligado à pesca artesanal indígena? Já que numa relação direta com a natureza que proporciona o ato de pescar, a partir do mangue, esses atores, em sua necessidade de subsistir, desenvolvem técnicas próprias para a atividade extrativista, e a partir dessas atividades estabelecem também relações outras que definem seu modo de vida e dá identidade à aldeia.
2.3 Conexão: Aldeia Tramataia e FUNAI/SESAI
A organização política do território tem seus fios fortes de ligação com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Tivemos conhecimento da construção histórica do movimento de luta dos potiguaras de 1998 a 2016, inicialmente como biólogo estagiário do antigo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recurso do Mar (NEPREMAR) e atualmente com a segunda formação de Assistente Social e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (NEPPS) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Através de diversos estudos detectamos deterioração dos recursos naturais disponíveis (entropia), observamos, em termos sociais, um crescente fortalecimento da organização política e social interna, partindo tanto do esforço de algumas ou da maior parte das lideranças internas, como também pela ação dedicada da representação da FUNAI na Paraíba. Esta última, atuando através de uma estratégia participativa, tem subsidiado, mediado e apoiado o projeto de consolidação da identidade potiguara, por vezes até confundindo-se em suas estruturas (concretamente ou não, na medida em que boa parte do corpo de funcionários da FUNAI local são índios daquela etnia), de modo a gerar proveito mútuo no desempenho dos interesses organizacionais dos potiguaras.
A nossa organização social e nós conseguimos consorciar com administração do próprio governo, no caso com a FUNAI, e transformar essa política em uma política participativa. E hoje a gente tem um exemplo muito forte: em nível nacional das administrações da FUNAI que funcionam, é a de João Pessoa! E as demais são uma lástima, são lamentáveis as administrações que existem por aí. Aqui a gente conseguiu isso. Hoje a gente acompanha de fato quanto é que entra de recursos, quanto é que tem para trabalhar na educação, quanto é que tem para a área produtiva, combustível, transportes. A gente acompanha de perto. Nós temos o conselho de lideranças. Esse conselho é composto por todas as lideranças. Depois desse conselho nós temos também aí a comissão de gestão. A comissão de gestão é que gere. As propostas vêm do conselho de lideranças, a comissão de gestão acata e avalia e prioriza aquilo ali. E com isso a gente mostrou para o Brasil que instituição do governo tem como funcionar, é só querer e ter pessoas comprometidas. Porque na verdade a maioria das vezes o que a gente vê em administração são pessoas que não têm compromisso com nada e acaba com tudo. Aqui não! Aqui, a gente já tem dois exemplos muito fortes: um é a questão da própria administração da FUNAI que é mais nessa área da política para desenvolver alguma coisa, e outra questão da saúde. A questão da saúde, aqui também a gente trabalha. Tem uma equipe muito boa de acompanhamento. Aqui para a gente é mais fácil porque a gente dá só um povo. E essas outras administrações aí têm vários povos diferentes, com pensamentos diferentes, com interesses diferentes. Mas aqui ficou muito mais fácil para a gente, por causa disso (Informação verbal).13
No cerne da Teoria do pensamento social, direcionamos como metáfora ou modelo a Teoria Geral dos Sistemas, e podemos dizer que a entropia aqui é baixa, pelo menos em termos da ordem social. Isso se deve em grande parte ao caráter aberto do sistema sociedade potiguara, com seus canais de trocas simbólicas e materiais com a sociedade local e global, particularmente por intermédio da FUNAI. Um fator que facilita a comunicação entre os potiguaras e a FUNAI é a tradição recente, em que os chefes do posto indígena local são índios contratados pela FUNAI. Referindo-se às vantagens e desvantagens dessa tradição, Caboclinho faz referência ao tempo em que foi o cacique geral,
Ela vem desde os anos 90, por que nos outros anos anteriores eram pessoas de fora, funcionários da própria FUNAI. Nós tentamos fazer essa mudança porque aqui já tinha pessoas que têm capacidade de administrar um posto, que não é essa grande coisa, e que sendo índio daqui seria muito mais fácil da gente lidar com ele. Do que vir pessoas de fora e querer aqui, de uma certa maneira, tomar conta da situação. E a gente mudou isso..., mas aqui ficou muito mais fácil para gente por causa disso. É bom por um lado e ruim por outro, depende também. Por que num primeiro momento é bom. O cabra está ali perto de você, tá sempre te acompanhando e tal... quando o cara começa ter uma certa estrutura, eu diria até política, não é? E começa a ter uma estrutura também mais ou menos financeira, e aí ele já lhe esquece. E quando ele esquece, aí é ruim. Logo no início começa a trabalhar junto com o conselho de lideranças, com o Cacique Geral. Quando chega num certo ponto ele começa a fazer as coisas só. E aí o negócio começa a perder espaço, porque, queira ou não queira, só resolve algum problema aqui se estiver todo mundo junto. Eu mesmo como o Cacique Geral não tomo iniciativa individual. Para tomar uma iniciativa tenho de reunir todo mundo para resolver, para discutir, para ver qual é a melhor proposta que a gente vai apresentar. E os chefes do Posto da FUNAI daqui eles pecam por causa disso. É por isso que sempre tem que estar fazendo rotação. Chega um certo tempo: não, tu já parou. Tá bom... coloca outro. Mas sempre com atenção de colocar um índio. Sempre nesta visão (Informação verbal)14.
Mergulhando na análise do material coletado, sobre o processo de escolha de lideranças (caciques de aldeia) e do cacique-geral, entre os potiguaras, constatamos sua diversidade, tanto em termos históricos, como na atualidade. No desenvolvimento do diagrama das relações da aldeia Tramataia, o cacique Elias é enfático,
Quando um cacique não está mais atendendo... as demandas são muitas e tem que atender... tem que lutar e estar sempre junto das aldeias, entende? Se não, não funciona... a luta de uma aldeia é a luta de todas as outras, a gente se junta... assim não se articula mais... a gente se reuni e tira... aí saiu caboclinho e por uma decisão geral entra Sandro que está até hoje [...] (Informação verbal)15.
Vieira (2003), em seu artigo intitulado De “noiteiro” a cacique: constituição da chefia indígena Potiguara da Paraíba, além de trazer um histórico das mudanças recentes que ocorreram no processo de escolha dos líderes potiguara, relata uma importante tradição passada. Para se ter ideia da presença anterior da Igreja Católica, que resvala aos dias atuais, é importante lembrar que toda aldeia, mesmo aquelas mais simples e remotas, tem seu templo católico. Inclusive, duas das principais aldeias têm nomes de santos: São Francisco e São Miguel. (ANDRADE, 2008).
Nessa tradição, o noiteiro, responsável pela organização das festas religiosas da localidade, passou a ser o candidato natural ao posto de cacique da aldeia.
A atual organização (política?) das aldeias Potyguara guarda uma relação estrita com o ‘declínio’ da liderança tradicional. Segundo os relatos das pessoas mais idosas, existiam os ‘regentes’, também chamados de ‘tuxauas’, escolhidos pelo grupo levando em consideração o fato da pessoa ‘ser do Sítio’, isto é, residir na aldeia S. Francisco e ser reconhecido como ‘caboclo legítimo’... As opiniões nativas apontam para a atuação de caciques ‘locais’ a partir da necessidade de proteger e vigiar a terra indígena com a morte de Manuel Santana. Ao mesmo tempo, apontam a contraposição do comando de um único ‘tuxaua’ para a ‘descentralização’ da chefia decorrente do aumento populacional e, portanto, do crescimento do número de aldeias (VIEIRA, 2003, p. 85-91).
Partindo para a discussão que foi proporcionada a partir do diagrama das relações na aldeia, constatamos que todos os entrevistados apresentaram opinião positiva sobre a atuação recente da FUNAI, por vezes associada ao Governo Federal. Só os não-índios parecem conviver com a apreensão dos encaminhamentos do censo indígena, que já os coloca numa posição de exclusão de benefícios especialmente dirigidos aos índios, como por exemplo, um acesso diferenciado ao sistema de saúde da SESAI ou ao recebimento de cestas básicas de alimentos. Entretanto nem sempre foi assim.
Existe uma precarização instaurada no processo de trabalho na FUNAI e SESAI, que prejudica sua funcionalidade, do ponto de vista operacional das políticas públicas ofertadas no território. Vimos a necessidade de concurso público para os servidores desses órgãos estatais, uma vez que há necessidades básicas sendo negadas na aldeia pela insuficiência da prestação do serviço.
Com o aprofundamento da precarização promovida pelo capitalismo globalizado, que tem como mola reguladora a economia de mercado, vem caucionando o sucateamento dos órgãos públicos16 que ofertam políticas, programas e serviços. Na aldeia, observamos que os potiguaras, quando indagados sobre o que vem a ser proteção para eles, de imediato nos é colocada a relação homem/natureza com a mediação do trabalho na pesca artesanal, ou seja, estar protegido é ter acesso à pesca. Os serviços ofertados pela FUNAI e SESAI, que demonstravam altos graus de precariedade até o final dos anos 1970, a vocalização do território é clara, Jota indígena potiguara, relata: “Na época em que eu nasci, as mães eram levadas para a cidade vizinha que era Rio Tinto. E aí eu nasci lá em Rio Tinto, no hospital.” (Informação verbal)17. Jota ressalta, ainda, os dramáticos índices de mortalidade infantil dentro e fora do perímetro do território potiguara,
Somos quatro (irmãos). Éramos oito. Naquela época a mortalidade infantil era grande. A criança com uma simples febre, praticamente morria. E assim os maiores cuidados medicinais que se tinha eram os que vinham dos mais velhos.... Todos eles (faleceram) crianças. Se você perguntar a várias pessoas quantos filhos você teve, muitos é 10, 12, vivos são 4, 5, 6. E assim, naquela época, era uma mortalidade muito grande. Primeiro porque a vacinação era pouca e a assistência médica, principalmente, muito precária (Informação verbal)18.
Uma outra marisqueira e parteira de longa data D. Hilária, tem uma visão mais positiva quanto os serviços de saúde ofertados no território:
Já fazia muito tempo que eu trabalhava com trabalho de parto, não sabe? Aí não tinha tanta experiência. Fazia assim porque Deus é que me ajudava. Graças a Deus eu estou nessa idade. Mulher nunca sofreu na minha unha. Não senhor. Graças a Deus nunca apareceu não. Porque quando dava pra eu fazer eu fazia quando não dava eu levava pra maternidade. Graças a Deus mulher nenhuma sofreu no meu poder. Deus me livre meu Deus! (Informação verbal)19.
Referindo-se aos serviços de saúde ofertados pela SESAI na atualidade:
Olhe: melhorou 100%, porque eu lutei e aqui tem um posto médico que antes não tinha. Tem água que não tinha. Nós temos a cesta básica que não tinha. Esse mês ainda não chegou.... Veio o mês retrasado. Esse mês ainda não chegou a cesta básica ainda. E na saúde a doutora toda semana vem pra aí. Tem consulta pra criança, tem dentista. Tem tudo (Informação verbal)20.
Com relação a outros serviços ofertados no território, Dona Hilária coloca que sua aldeia tem sido favorecida:
[...] agora foi renovada a Bolsa Família. As mulheres vão receber a Bolsa Família. Aqui tem muito pouca que não recebe. As outras, tudo recebem. E deu uma melhora de tudo... Tem cuidado da saúde pela SESAI, pela FUNAI tem a sua cesta básica. Já tem qualquer coisa assim que o camarada... uma ajuda de uma ferramenta, uma enxada, uma foice. O que precisar: um veneno, uma coisa [...] (Informação verbal)21.
A garantia de proteção social especializada para o território indígena ocorre com a implantação do CRAS indígena na aldeia Camurupim, que de acordo com os depoimentos dos moradores da aldeia Tramataia, esse equipamento faz a diferença na vida das famílias indígenas, pois garante o acesso à proteção socioassistencial e possui na sua equipe de referência indígenas do território. Essa iniciativa pública gerou a oportunidade de solicitar documentação, se inscrever no Cadastro Único para Programas Sociais, denunciar violação de direitos, dentre outros serviços.
Destacamos que o diálogo com a FUNAI é fundamental para o sucesso do trabalho desenvolvido pelo CRAS, e para a consolidação do SUAS. O trabalho desenvolvido por ambos os órgãos estatais deve ser executado de forma acordada e planejada. Acreditamos que nenhuma política voltada aos povos indígenas possa estar apartada do diálogo com a FUNAI. E com a Política de Assistência Social não é diferente. Vários debates foram promovidos para aprofundar esse diálogo, no sentido de que a assistência social possa compreender o que a FUNAI já acumulou nesse processo histórico e que servirá para auxiliar nas estratégias e metodologias sociais a serem desenvolvidas no território para a garantia de proteção social.
2.4 Conexão: Aldeia Tramataia e IBAMA
Diante da capacidade de destruição provocada pelo modelo econômico capitalista, acontece, em contrapartida, aumento dos movimentos em todo o mundo a favor da proteção da natureza, juntamente com o crescimento de correntes ambientalistas detentoras de perspectivas diferentes da preservacionista22. Nesse contexto, os povos indígenas passaram a ser considerados importantes atores responsáveis pela proteção do ambiente natural no qual estão inseridos.
O IBAMA, por sua vez, está inserido no livro da história dos Potiguaras do litoral norte da Paraíba, com atuações negativas e outras positivas, conforme a concepção dos índios. Ao desenvolver as conversas junto aos pescadores artesanais, pontua-se fortemente a atuação negativa do IBAMA no ato de punir e proibir. Os moradores de Tramataia afirmam que a falta de conhecimento sobre como vivem, e de sua cultura, acaba complicando a relação com a aldeia; além disso, os funcionários do Instituto são de outras regiões do país e apresentam dificuldades na compreensão da cultura local.
Nos últimos anos houve uma mudança significativa no comportamento dos servidores do IBAMA no tocante às relações estabelecidas com os potiguaras, podendo, assim, ser identificadas nas falas dos moradores da aldeia.
Antigamente o IBAMA vinha aqui na aldeia sem querer saber de nada e isso gerou muitos perrengues e lutas feias aqui [...] Hoje eles pedem licença para entrar como vocês da universidade, avisam, perguntam se podem vir... é assim que aprendemos com os nossos antepassados a respeitar a casa do outro... o lugar onde a gente mora, a terra é a casa então temos que pedir licença (Informação verbal)23.
Hoje em dia existe conversa e debate para juntos encontrar caminhos para uma vida melhor com o meio ambiente com saúde porque se a natureza adoece o índio também fica doente (Informação verbal)24.
A nossa reflexão nessa conexão entre a aldeia e o órgão estatal IBAMA proporciona caminhos que apontam para a existência da noção de que homem e natureza não são independentes, visto que o vínculo entre eles constitui uma relação simbiótica, na qual ambos desempenham funções para a manutenção do meio, sendo as ações humanas, desenvolvidas nesse contexto, permeadas por diversos valores e regras, próprios da cultura pela qual são difundidas (ELLEN, 1997; DIEGUES, 2008).
Nessa perspectiva, buscamos nas ciências biológicas vários estudos da etnoconservação e consideramos que a produção do conhecimento neste viés se direciona para a classificação dos elementos naturais segundo os mitos, valores e visões de mundo das populações tradicionais, que no caso de nossa pesquisa são os povos potiguara da aldeia Tramataia. Ao cogitar esse sistema de classificação etnoecológico por meio da abordagem cognoscitiva, procuramos compreender o modo como esses elementos culturais influenciam ou até mesmo determinam o manejo dos recursos naturais, ao mesmo tempo que proporcionam sua conservação.
Na produção acadêmica de diversos países, podemos encontrar algumas ideias que colaboram com essa perspectiva, como o livro Global Biodiversity Assessment que reconhece, “[...] onde populações indígenas mantêm dependência com o meio ambiente local para a provisão dos recursos por longos períodos, eles têm frequentemente desenvolvido um interesse na conservação da biodiversidade.” (HEYWOOD, 1995, p. 1017). Baseando-se em Gadgil, Berkes e Folke (1993), o volume inclui exemplos de práticas tradicionais que conservam a biodiversidade: manutenção de áreas sagradas e outros refúgios ecológicos; proteção de determinadas espécies através de tabus e outros mecanismos; protegendo estágios críticos de vida; e usando a sabedoria local para conduzir o emprego do meio ambiente. (BERKES, 1999).
Nas conversas com pescadores potiguaras, elucidamos, a partir das falas, que a presença do IBAMA se faz necessária, uma vez que há investidas de todos os tipos de agentes que tentam realizar a depredação do meio natural. Esse controle é garantidor do equilíbrio de toda a APA do Mamanguape (PB). Uma pergunta foi feita na roda de diálogo: Se o IBAMA não existisse, como seria a vida dos potiguara? Houve uma inquietação entre todos os participantes.
Olha se o IBAMA não existisse não existia nada da natureza como conhecemos agora (Informação verbal)25.
Muita gente iria se aproveitar e mais uma vez os índios daqui iriam ser grilados (Informação verbal)26.
O marisco, peixes, camarão iria se acabar, porque iria ficar sem controle (Informação verbal)27.
Tem que se ter limites, a natureza precisa se refazer junto com os animais e plantas precisam se reproduzir, crescer para virar alimento e a vida se faz de novo, mas se pegar sem controle vai faltar e faltando vamos ficar com fome e mais pobres (Informação verbal)28.
Acho que devemos também ajudar o IBAMA a cuidar desse lugar lindo para que a geração futura possa viver aqui também, possa comer aqui também, possa morar aqui também, com a mesma alegria. Precisamos nos unir para ficar mais fortes IBAMA, FUNAI e povo potiguara que é guerreiro e sabe se organizar (Informação verbal)29.
Nessa perspectiva, o manejo desses recursos está diretamente ligado aos mitos, regras, valores e conhecimentos que definem a maneira e período como tais recursos serão utilizados, podendo ser considerados elementos culturais regulatórios, pois determinam as atitudes das pessoas perante o meio ambiente. (CULTIMAR, 2008). Nesse sentido, Lévi-Strauss analisa alguns sistemas de classificação dos recursos naturais por populações indígenas e sua relação com seus conhecimentos e manifestações sociais:
De fato, descobre-se mais, a cada dia, que, para interpretar corretamente os mitos e os ritos e, ainda, para interpretá-los sob o ponto de vista estrutural (que seria errado confundir com uma simples análise formal), a identificação precisa das plantas e dos animais que se mencionam ou que são utilizados, diretamente sob a forma de fragmentos ou de despojos, é indispensável. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 68).
A partir desses elementos, os índios potiguaras agem com o meio natural e desenvolvem seus sistemas tradicionais de manejo. Existe uma relação de respeito, gratidão, medo e cumplicidade com a natureza, o que se apresenta como causa direta da preservação ambiental das localidades nas quais as populações tradicionais habitam. Cunha (1992, p. 77) assinala a existência da indissociabilidade entre o homem e a natureza, já que o meio ambiente significa “[...] o meio essencial de sua sobrevivência social – fonte de sua vida e de sua identidade cultural – e, por conseguinte, significa a possibilidade de continuarem vivendo na história”. O IBAMA desempenha, como agente público, um papel fundamental na regulação do território.
Analisamos que a articulação entre meio natural e social, proporcionada pela etnociência, com enfoque na relação entre conhecimentos dos povos potiguara e conservação dos recursos naturais regulados pelo IBAMA, por meio de subsídios da etnoconservação, conduz a uma reflexão sobre a ideia de natureza como uma construção cultural de algumas sociedades humanas que, ao desenvolverem esta noção como algo externo, longínquo, digno de observação e contemplação, não considera que também são uma das partes desta natureza e que apresentam intensa dependência de todo o ciclo que é perpetuado constantemente nesse lugar.
3 CONCLUSÃO
A proteção social no território indígena potiguara ocorre de forma precária, mas apesar dessa retração do Estado no campo das políticas sociais, registram-se alguns avanços no campo da proteção. Na Previdência Social, os(as) potiguaras são incorporados(as) como segurados especiais, sendo-lhes assegurada a cobertura previdenciária quando incapacitados(as) para a atividade laboral na agricultura, carcinocultura, pesca artesanal, no mono-cultivo da cana de açúcar dentre outras.
Na política de Saúde, identificam-se maiores avanços e, em termos de normatização, o Sistema Único de Saúde (SUS) definiu uma política específica para a população indígena, instituída pela Lei nº 9.836, de 23 de setembro de 1999 (Lei Arouca), que estabelece o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, com uma estrutura própria do ponto de vista da gestão, dos serviços e dos programas com estratégias de incorporação dos potiguaras nos serviços ofertados.
Na assistência social, não há nenhuma citação na lei regulamentadora (Lei nº 8.742, de 7 dezembro de 1993 – Lei Orgânica de Assistência Social LOAS) que se refira especificamente à população indígena, mas prevê, em seus princípios e diretrizes, a equidade no atendimento. Apenas com a implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), a partir de 2004, é que são previstas ações específicas em nível da proteção social básica. Nos últimos cinco anos, foi implantado o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) indígenas, ou CRAS, em terra indígena, que está localizado na aldeia camurupim, vizinha à aldeia Tramataia, foco deste estudo.
Os programas de transferência de renda (Bolsa Família, PETI, Agente Jovem) tiveram uma expansão considerável para atender esse segmento, constituindo, assim, um campo de intervenção do (a) profissional de Serviço Social em plena ascensão. Esses avanços, porém, estão muito aquém das necessidades básicas e interesses dos povos indígenas do litoral norte da Paraíba.
A busca pela proteção acontece na luta e resistência potiguara, através da organização política; vemos como é forte o chamado para a reivindicação de direitos subsumidos pelos detentores do poder, ou melhor falando, os grileiros das terras indígenas. As 32 aldeias estão conectadas pelo elo organizacional das necessidades de vida e sobrevivência, possuem um cacique geral e cada aldeia possui um cacique local.
REFERÊNCIAS
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Notas