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MATRICIALIDADE SOCIOFAMILIAR: tensões e contradições na assistência social brasileira
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1665-1682, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Mesas temáticas coordenadas


Recepção: 20 Fevereiro 2018

Aprovação: 06 Maio 2018

Resumo: Este trabalho busca problematizar algumas tensões e contradições encontradas na implementação do eixo da matricialidade sociofamiliar do Sistema Único de Assistência Social, que toma a família como unidade de intervenção da política pública. A partir de estudos bibliográficos e análises de dados secundários, o estudo aponta para o reforço da responsabilização das mulheres nos cuidados familiares e como a operadora em potencial dos serviços que ofertam proteção integral, vinculados ao cuidado. Conclui pela necessidade de ampliação dos estudos sobre masculinidades e feminilidades na implementação da proteção social de assistência social das famílias brasileiras.

Palavras-chave: Família, gênero, Assistência Social.

Abstract: This paper seeks to problematize some of the tensions and contradictions found in the implementation of the socio family matriciality of the Unified Social Assistance System, which takes the family as a unit of public policy intervention. Based on bibliographic studies and analysis of secondary data, the study points to the strengthening of women’s accountability in family care and as the potential operator of the services that provide comprehensive protection, linked to care. It is concluded that there is a need to expand studies on masculinities and femininities in the implementation of social protection of social assistance of Brazilian families.

Keywords: Family, gender, Social Assistence.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto das discussões da mesa temática apresentada na VIII Jornada Internacional de Políticas Públicas (JOINPP) em 2017, realizada em São Luís do Maranhão, que visou promover e articular discussões que abordavam uma caracterização ampla, ainda que incompleta, das transformações recentes na implementação da política de assistência social, realçando avanços e campos de tensões e contradições em sua inserção no sistema de proteção social brasileiro.

A assistência social no Brasil só ganhou status de política pública quando incorporada pelo sistema de Seguridade Social na Constituição Federal (CF) de 1988, junto com a Saúde e a Previdência Social. Está direcionada à população que dela necessitar devido aos ciclos de vida e contingências, sem contribuição prévia. A Constituição caracterizou a organização da política de assistência social, com financiamento da Seguridade Social, sob as seguintes diretrizes: descentralização político-administrativa entre as três esferas de governo; parcerias na execução das ações com as entidades beneficentes e de assistência social; e participação da população na formulação das políticas e controle das ações em todos os níveis de gestão.

Essa política pública foi regulamentada pela Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) em 1993 e pouco avançou na sua consolidação como direito de cidadania. Mesmo após sua regulamentação, permaneceu com ações fragmentadas e voltadas às parcelas mais empobrecidas da população. Paiva (2014) demonstra que a década de 1990 se consagrou pela tentativa de se organizar a assistência social nos moldes da LOAS, porém, a ofensiva neoliberal e a opção do governo federal determinaram a focalização das ações no combate à pobreza e na transferência da responsabilidade do Estado para entidades da sociedade civil no que tange à implementação da política de assistência social.

Desde 2005, a assistência social tem sido reorganizada pelo governo federal por meio do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), com a participação e pactuação dos demais entes federados, para a implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Este Sistema trouxe inovações para a gestão da política, com a criação de novos instrumentos e uso de tecnologias, novas formas de financiamento da proteção social da assistência social que garantiram a descentralização e certa autonomia dos entes federativos.

Este trabalho apresenta a estruturação da política de assistência social após a implementação do SUAS e debate algumas questões relacionadas ao eixo estruturante da matricialidade sociofamiliar e sua complexidade na operacionalização dos serviços e benefícios da politica de assistência social. Na última década, lembra-nos Alencar (2006, p. 63), a família tornou-se o elemento central da intervenção da política de assistência social, já que a LOAS tem como objetivo a proteção à família, determinando-a como um dos focos de atenção desta política pública:

[...] a proteção à família se tornou uma estratégia a ser considerada pela política de assistência social, enquanto alvo privilegiado dos programas sociais, e é nesse sentido que se tem a articulação de alguns programas, de garantia de renda mínima, por exemplo, que toma a família como unidade de intervenção.

Na atual configuração da política de assistência social, a matricialidade sociofamiliar relaciona-se diretamente aos serviços e benefícios afiançados pela proteção social básica e especial. A política de assistência social apresenta a família como a matriz de suas ações, de forma a compreender seu papel como “[...] mediadora das relações dos sujeitos e a coletividade, delimitando, continuamente os deslocamentos entre o público e o privado, bem como geradora de modalidades comunitárias de vida.” (BRASIL, 2004b, p. 41).

A família, como uma das primeiras instituições responsáveis pela socialização dos sujeitos, é um espaço de conflitos e nem sempre se constitui como lugar de proteção, sendo também espaço de violação de direitos. Para a execução da política de assistência social, incluir, portanto, a centralidade das ações sociassistenciais na família, é garantir a proteção aos seus membros e possibilitar o fortalecimento de suas potencialidades no cuidado e proteção social, independente das diferentes configurações que assume na vida cotidiana.

Conhecer as realidades das famílias nos contextos sociais em que vivem, facilita planejar ações que atendam suas demandas e as demandas territoriais, para além dos problemas individuais que chegam aos serviços. Essa é uma mudança de paradigmas no processo de focalização dos programas e serviços sociais, historicamente institucionalizados por segmentos (criança, adolescente, idosos, mulheres, etc.). Porém, este é um eixo controverso, que tem sido alvo de estudos que precisam de aprofundamento para garantir a ampliação de direitos e avanços no sistema de seguridade social.

2 SUAS: oferta de ações socioassistenciais e proteções sociais

O SUAS tem como objetivo transformar em ações diretas os pressupostos da CF e da LOAS, cumprindo uma nova, urgente e necessária agenda para a cidadania no Brasil. Procura integrar os governos federal, estaduais, do Distrito Federal e municipais em uma ação pública coletiva de garantia de direitos universais.

As ações preconizadas pelo SUAS são organizadas seguindo as referências de vigilância social e são ofertadas através da rede socioassistencial articulada em torno da proteção social que se divide em proteção básica – voltada a ações de prevenção e convivência familiar e comunitária - e especial – com serviços especializados para atendimento à violação de direitos e diversas formas de violência - e deve prever a existência de serviços, programas, benefícios e projetos. Essas ações devem garantir seguranças de acolhida, de convívio familiar e de sobrevivência, rendimento e autonomia.

A oferta da proteção social básica e especial e a organização do SUAS estão apoiadas em eixos estruturantes e subsistemas fundados na matricialidade sociofamiliar; na descentralização político-administrativa; na territorialização; nas novas bases para a relação entre Estado e sociedade civil; no financiamento; no controle social; no desafio da participação popular e dos usuários; na política de recursos humanos e na informação; e no monitoramento e avaliação.

Cada um desses eixos (e suas intersecções) possui um campo em disputas que envolvem conceitos, valores, interesses e que trazem diferentes perspectivas de implementação para a política de assistência social. Este estudo delimita o debate sobre o eixo de matricialidade sociofamiliar e o campo contraditório que inclui a família como alvo de proteção da política de assistência social, e seus desafios na perspectiva de garantia de direitos da população usuária.

São muitas as questões impostas por este eixo de estruturação da política. Mauriel (2010, p. 177) critica a centralidade da família, da forma como foi estabelecida pela PNAS, pois para a autora,

[...] as causas da pobreza aparecem desvinculadas dos seus determinantes estruturais, separando os indivíduos submetidos a essa condição de seus lugares no sistema produtivo, priorizando o cotidiano, passando a assistência a constituir um atributo individual para aqueles que “moralmente” têm direito ou potencialidade para se capacitarem.

Nesse sentido, entendendo que a política social deva ser um instrumento de transformação social, Paiva (2006, p. 7) caracteriza a efetiva participação da população como uma das perspectivas de superar a subalternização política, de exploração econômica e de exclusão sociocultural, porém ressalta um traço peculiar dessa política: “[...] a assistência social se organiza, enquanto campo reivindicatório de provimento das necessidades sociais, também a partir de inúmeros requerimentos individuais e privados”.

Como ação de governo, a política deverá atender a esses requerimentos individuais e privados, o que de fato ressalta, portanto, as contradições da política e sua natureza, sem cair nos extremos maniqueístas, onde a política é vista como o mal necessário para mediação e acomodação das classes subalternas. Por outro lado, incluir a família como foco da assistência social pode correr o risco de sua má interpretação e sua utilização conservadora e equivocada.

Nesse aspecto, Duque-Arrazola (2006) fornece uma rica contribuição, pois, como bem apontado pela autora, a Política de Assistência Social concretizada pelos serviços, benefícios e programas de renda mínima, tem atribuído um lugar central à família, idealizada como lócus da proteção por excelência. E quem realiza predominantemente essa proteção, em nome da naturalizada divisão sexual do trabalho, proporcionando a atenção, socialização e os cuidados da reprodução, é a mulher. Consequentemente, o sentido de família na política de assistência social, principalmente através dos benefícios de renda, é centrado na representação social da mulher que identifica e associa mulher e feminino à família, em função da reprodução e cuidado1.

Embora no discurso estatal o sujeito ativo de tais políticas seja a família, na realidade, este sujeito é a mulher, especificamente a mulher-mãe-esposa-dona-de-casa e/ou desempregada, cujas identificações sociais de gênero estão intimamente relacionadas com a reprodução e lugar prático e simbólico, tanto nos espaços privados, quanto nos públicos da produção e do emprego remunerado. Daí porque a figura feminina, a mulher / mãe / dona-de-casa fica diluída na expressão “família”, que assim a silencia. São as mulheres que passam a ser, de fato, as co-responsáveis dos programas de enfrentamento da pobreza [...] Desse modo, redimensiona-se a importância das mulheres na reprodução da sociedade de classes (DUQUE-ARRAZOLA, 2006, p. 243).

Nessa perspectiva, deve-se considerar que a inserção da mulher como unidade de atenção da política de assistência deve ser compreendida como uma estratégia ideopolítica e econômica do Estado, na medida em que se constitui em um meio de racionalizar e focalizar programas sociais e iniciativas que deveriam ser públicas e universais.

Ao analisar o sujeito feminino nas políticas de assistência social, Duque-Arrazola (2006) constatou o caráter sexuado e classista da reforma do Estado, intercedido pelas políticas neoliberais de proteção social, dentre elas a política de assistência social com os programas de assistência focalizados e seletivos, como os de renda mínima. “Neles, as mulheres-mãe passam a ser um insumo fundamental

– mão-de-obra gratuita ou extremamente barata – para o sucesso ou insucesso desses programas que constituem um eixo fundamental na articulação da ação do Estado.” (DUQUE-ARRAZOLA, 2006, p. 251).

Outra problemática levantada na implementação do eixo da matricialidade sociofamiliar na assistência social, vinculada à discussão anterior, é a culpabilização da família (ou da mulher) pela perda de valores morais. Quando a PNAS problematiza a proteção social especial e o trabalho que deve ser desenvolvido com as famílias em situações de risco, ela define como necessidade a construção de “[...] estratégias de atenção sociofamiliar que visem à reestruturação do grupo familiar e a elaboração de novas referências morais e afetivas [...]”. (BRASIL, 2004b, p. 37, grifos nossos).

Há uma tendência de que a política pública se constitua por serviços que moldem os comportamentos morais, transforme valores e culturas, além de atribuir somente à família a responsabilidade por seus membros. Os modelos de intervenções profissionais com as famílias reforçam muitas vezes a ideia de sua culpabilização e de fracasso, descolados da crítica de que apesar de suas particularidades, possuem uma identidade coletiva, inseridas em um processo de produção e reprodução que aumenta a desigualdade social, econômica, geracional e de gênero, sem as condições necessárias para sua superação.

3 MATRICIALIDADE SOCIOFAMILIAR OU CENTRALIDADE NA MULHER?

Segundo a PNAS o termo matricialidade sociofamiliar se refere à centralidade da família como núcleo social fundamental para a efetividade de todas as ações e serviços da política de assistência social. (BRASIL, 2004b).

A família, segundo a PNAS, é o conjunto de pessoas unidas por laços consanguíneos, afetivos e ou de solidariedade, cuja sobrevivência e reprodução social pressupõem obrigações recíprocas e o compartilhamento de renda e ou dependência econômica (BRASIL, 2009a).

Nesse sentido, a concepção da família como alvo central das ações do Estado, fundamenta-se no entendimento de que ela tem um potencial protetivo, bem como favorece o estreitamento de vínculos e a mediação entre os sujeitos e a coletividade. Assim, a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB/ SUAS) estabelece como diretriz a matricialidade sociofamiliar por considerar que:

[...] a família é o núcleo básico de acolhida, convívio, autonomia, sustentabilidade e protagonismo social; a defesa do direito à convivência familiar, na proteção de Assistência Social, supera o conceito de família como unidade econômica, mera referência de cálculo de rendimento per capita e a entende como núcleo afetivo, vinculado por laços consanguíneos, de aliança ou afinidade, que circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e de gênero (NOB/SUAS, 2012, p. 90).

Essa ênfase está ancorada na premissa de que a assistência social tem por objetivo a “[...] primazia à atenção às famílias e seus membros, a partir do seu território de vivência, com prioridade àquelas com registro de fragilidades, vulnerabilidades e presença de vitimação entre seus membros.” (NOB/SUAS, 2005, p.28). Ou seja, essas iniciativas tanto podem se constituir em ações protetivas que favoreçam a melhoria de suas condições sociais, como em ações que acabem por sobrecarregar e pressionar ainda mais essas famílias, exigindo que assumam novas responsabilidades diante do Estado e da sociedade. (COUTO; YAZZBEK; RAICHELIS, 2010).

Há um risco de reforço da culpabilização da família e de despolitização quando se observa a permanência de velhos padrões e expectativas da família burguesa quanto ao seu funcionamento e desempenho de papéis paterno e materno, independente do lugar social que ocupam na estrutura de classes sociais. (MIOTO, 2010).

Nesse contexto, a análise da matricialidade sociofamiliar enquanto eixo estruturante da política de assistência social, que busca romper com a fragmentação e individualização no atendimento aos usuários, nos permite detectar ambiguidades, ao tempo em que há um aumento da atenção estatal dirigida à família, é necessário ter consciência de que os serviços e programas de apoio sociofamiliar têm sido efetivados sob a ótica de uma cidadania invertida na qual é necessário, primeiro, comprovar o fracasso da família para, depois, a mesma ter acesso aos serviços de assistência, jurídicos ou de saúde. Portanto, na maioria das vezes, o que se coloca em questão são as condições da família e não os direitos do indivíduo. Por isso, a existência de tantos benefícios e programas cujo parâmetro é a renda familiar.

Concentrando sobre os benefícios direcionados às famílias, a LOAS prevê o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e os benefícios eventuais por natalidade e por morte. O art. 20º define o BPC como a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com sessenta e cinco anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover as próprias necessidades e nem tê-las provida por sua família. Os benefícios eventuais são direcionados às famílias cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo e o Programa Bolsa Família (PBF) também possui o acesso condicionado à renda.

Cabe sublinhar que, mesmo com os avanços obtidos pela Constituição de 1988, a regulamentação das diferentes políticas sociais pautou a família como canal natural na provisão do bem-estar, visando assegurar os direitos fundamentais inerentes à vida das pessoas que dela fazem parte.

Não obstante, corre-se o risco das mulheres tornarem-se representantes do seu núcleo familiar frente a essas políticas, pouco implicando o homem ou outra referência familiar nesse processo. Afirmando assim uma centralidade não apenas na família, mas uma centralidade na mulher-mãe. (CARLOTO, 2006). Essa perspectiva tende a reificar polarizações de modelos relacionados ao masculino/feminino, público/privado, cuidadora/provedor, em consonância com convenções sociais ditas tradicionais. (CARLOTO; MARIANO, 2012).

Vale destacar o estudo de Freitas e outros (2012) que também chama a atenção para o fato das mulheres serem as principais protagonistas nas políticas sociais brasileiras. Segundo as autoras, essa inviabilidade masculina revela que, pelo menos no que tange às políticas assistenciais, há uma clara demarcação que enfoca o papel feminino.

Nessa perspectiva, seguiu-se uma linha de percepção observando o significado do conceito matricialidade sociofamiliar para a política de assistência, bem como aos desdobramentos que isto tem apresentado para a garantia da oferta dos serviços à população.

4 MATRICIALIDADE SOCIOFAMILIAR NA PROTEÇÃO SOCIAL BÁSICA E ESPECIAL

A Tipificação Nacional de Serviços, organiza os serviços do SUAS, seguindo a hierarquização da proteção social básica (PSB) e proteção social especial (PSE) de média e alta complexidade, os quais se referem às ações voltadas para resguardar os cidadãos contra riscos pessoais e sociais inerentes aos ciclos de vida e atender necessidades geradas em diferentes momentos e contextos históricos marcados por uma multiplicidade de situações conjunturais e estruturais de ordem individual ou coletiva.

A PSB tem como objetivos trabalhar a prevenção de situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, sendo destinada às populações que vivem em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, às que passam por privações quanto à renda ou acesso a serviços públicos e às que vivenciam a fragilização de vínculos afetivos, relacionais ou de pertencimento. Elas se materializam a partir do desenvolvimento de serviços, programas e projetos locais de acolhimento, convivência e socialização de famílias e indivíduos, principalmente no âmbito dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). A PSB deve ofertar serviços relacionados às seguintes questões: a) proteção e atendimento integral à família; b) convivência e fortalecimento de vínculos; c) proteção social básica no domicílio para pessoas com deficiências e idosas.

São nos CRAS unidades públicas de base municipal localizadas em áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social– que os serviços acima mencionados são operacionalizados. Cabem aos Centros buscar articular tais serviços no seu território de abrangência desde a perspectiva de potencializar a proteção social.

Por sua vez, a Proteção Social Especial de Média Complexidade se propõe a oferecer os serviços listados a seguir: a) proteção e atendimento especializado a famílias e indivíduos; b) abordagem social especializada; c) proteção social a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de liberdade assistida (LA) e de prestação de serviços à comunidade (PSC); d) proteção social especial para pessoas com deficiência, idosos e suas famílias e e) proteção social especializada para pessoas em situação de rua. Os serviços e ações de Proteção Social Especial de Média Complexidade são geralmente realizados nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Esses equipamentos, como disposto na PNAS, visam propiciar orientação e convívio sociofamiliar e comunitário a famílias e indivíduos que tiveram seus direitos violados, mas cujos vínculos familiares e comunitários ainda não foramrompidos.

Já a Proteção Social Especial de Alta Complexidade está voltada para garantir serviços de proteção social integral (moradia; alimentação; higienização e trabalho protegido) para famílias e indivíduos que se encontram sem referência ou em situação de ameaça, necessitando serem retirados do seu núcleo familiar ou comunitário por terem tido os seus direitos violados e os vínculos familiares e comunitários rompidos. Os serviços pertinentes a esta proteção são, preferencialmente, desenvolvidos em instituições como casa-lar, abrigos, casas de passagem e centros de atendimento ao usuário de substâncias psicoativas. A este nível de proteção compete ainda a provisão dos serviços discriminados a seguir: a) acolhimento institucional (nas modalidades de abrigo institucional, casa-lar, casa de passagem e residência inclusiva); b) acolhimento em república; c) acolhimento em família acolhedora; d) proteção em situações de calamidades públicas e deemergências.

Dentre as ações e serviços oferecidos no âmbito da proteção social básica, procuramos, aqui, tecer algumas reflexões sobre as masculinidades como referência familiar no PBF. Esta discussão se alinha a pesquisas relativamente recentes que vêm tomando os homens e as masculinidades como objeto de estudo com base em um referencial de gênero e estabelecendo as implicações desse foco no campo da assistência social.

O PBF tem o objetivo específico de combater a fome e a miséria no Brasil, sendo, hoje, o principal programa do governo de prevenção da pobreza. Seu pressuposto central é o da transferência monetária direta, com a articulação entre as políticas de Assistência, Saúde e Educação para gerar aumento das condições de saúde, da escolaridade, evitar o trabalho infantil, entre outras.

Entretanto, faz-se necessário problematizar o desenho do PBF que determina: “§ 14. O pagamento dos benefícios previstos nesta Lei será feito preferencialmente à mulher, na forma do regulamento.” (BRASIL, 2004a). Tal prerrogativa reforça o papel feminino que tem como responsabilidade, entre outras: a) realização de Cadastro Único para inclusão da família no programa; b) atualização do referido cadastro sempre que ocorrer alguma modificação na situação familiar; c) recebimento do recurso repassado pelo programa; d) aplicação do recurso de modo a beneficiar coletivamente o arranjo familiar; e) o controle sobre crianças e adolescentes tendo em vista o cumprimento das condicionalidades do programa; e f) participação em reuniões e demais atividades programadas pela equipe de profissionais responsáveis pela execução e acompanhamento do programa.

Vale pontuar que tais condicionalidades vão contra a lógica de um sistema de assistência social a quem necessitar. Cria o estigma liberal de que os pobres são responsáveis pela sua pobreza e que, portanto, devem ser exigidos retornos para o apoio público conferido. (SOUZA, 2017).

Em que pese os avanços em termos de proteção social ocasionados pelo PBF, para Detoni e Nardi (2012) as políticas sociais brasileiras insistem em reproduzir um papel paternalista e de tutela sobre os sujeitos, estigmatizando e afirmando lugares já conhecidos nas relações de gênero que institui feminilidades e masculinidades.

Outro aspecto que cabe ser abordado é: quais as implicações da carência de estudos e debates sobre as masculinidades para a formação e o exercício profissional?

É a partir da própria dimensão de gênero que se advoga uma abordagem do masculino, uma vez que tanto homens quanto mulheres necessitam ser vistos em sua singularidade e em sua diversidade no âmbito das relações sociais mais amplas. (GOMES, 2008).

Em relação aos serviços da alta complexidade, destacamos a segurança de acolhida para crianças e adolescentes como sendo uma das estratégias direcionadas para os cuidados. Em especial, chamamos a atenção para os serviços de acolhimento familiar.

O acolhimento familiar está previsto como uma medida de proteção garantida pela Lei nº 12.010/2009 e visa atender crianças e adolescentes que necessitam ser afastados da família de origem e acabam sendo acolhidas por uma família temporária. Essa medida é de caráter provisório e excepcional e tem como objetivo o retorno familiar ou a inserção em família extensa ou substituta (FIGUEIREDO, 2016). A ideia do acolhimento em outra família é tentar garantir o cuidado, afeto, a convivência familiar e comunitária.

Essa prática do acolhimento não é algo novo, pelo contrário, se formos recuperar as diversas facetas da proteção social, identificaremos ações realizadas no cotidiano das relações sociais. A diferença aqui é a convocação por parte do poder público para que as famílias possam participar de um processo de acolhimento que compõe a política pública. Logo, o Estado é o mediador e executor desse processo visando garantir a proteção das crianças e adolescentes.

As famílias são cadastradas no programa e são acompanhadas por uma equipe técnica que deve averiguar todo o processo de acolhimento das crianças e adolescentes. De acordo com Figueiredo (2016, p. 5), as famílias acolhedoras são “[...] selecionadas, capacitadas e acompanhadas pela Equipe Técnica do Programa. O acompanhamento é sistemático, realizado através de visitas domiciliares e atendimentos (individuais ou em grupo) pela Equipe Técnica composta de Assistente Social, Pedagogo e Psicólogo”.

É importante destacar que há critérios estabelecidos pelo documento Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes em relação às características que devem ser observadas nas famílias que querem participar do programa:

• Disponibilidade afetiva e emocional;

• Padrão saudável das relações de apego e desapego;

• Relações familiares e comunitárias;

• Rotina familiar;

• Não envolvimento de nenhum membro da família com dependência química;

• Espaço e condições gerais da residência;

• Motivação para a função;

• Aptidão para o cuidado com crianças e adolescentes;

• Capacidade de lidar com separação;

• Flexibilidade;

• Tolerância;

• Pro-atividade;

• Capacidade de escuta;

• Estabilidade emocional (BRASIL, 2008, p. 50).

Não pretendemos aqui analisar a efetividade e a eficácia do programa e de suas múltiplas experiências nos diversos municípios. O que objetivamos é problematizar de que maneira uma dada concepção de família, de mulher e de cuidado é reproduzida por meio da viabilização desse modelo de proteção.

Nas características que devem ser observadas nas famílias durante o processo de avaliação, destacamos a aptidão para o cuidado com crianças e adolescentes. O que seria essa aptidão voltada para o cuidado a esse público? Existe aptidão para viabilizar o cuidado? Como se pauta esse cuidado? Qual o sentido desse cuidado?

Segundo o dicionário Aurélio, aptidão significa qualidade inata ou habilidade adquirida. Se formos retomar o debate das relações de gênero e a divisão sexual do trabalho, historicamente a apropriação dessa aptidão foi destinada para as mulheres, tornando-as cuidadoras devido à naturalização do mito do amor materno. (FERREIRA, 2014). Essas características solicitadas na avaliação das famílias e de seus componentes perpassam por uma determinada concepção de família, de gênero e de cuidado e necessita ser melhor observada para que não seja reforçada uma convocação por parte da política de assistência social para as mulheres executarem o trabalho de care2 sem remuneração, afirmando assim, um direito social por meio da perpetuação do cuidado feminino gratuito.

Figueiredo (2016), ao tratar sobre a experiência do programa Família Acolhedora no município de São Gonçalo, apresenta alguns exemplos de pessoas que compõem essa experiência. Ao exemplificar os quatro casos, a autora cita todas as pessoas no feminino demonstrando que no programa ocorre de certa forma a feminização do acolhimento familiar.

Por fim, na pesquisa realizada por Avelino (2014) sobre a Família Acolhedora do município de Belo Horizonte, a mesma identificou que 70% das famílias do programa possuíam renda familiar inferior a três salários mínimos e 80% representavam famílias monoparentais femininas. Além disso, a autora identificou a ocupação profissional das mulheres provedoras familiares e responsáveis pela guarda da criança acolhida e percebeu que todas eram envolvidas com profissões da área de saúde.

5 CONCLUSÃO

A política de assistência social passou por transformações recentes em sua forma de gestão e seu financiamento e, por isso, tem sido alvo de estudos diversos, pela importância que vem assumindo no rol de políticas sociais públicas brasileiras. O SUAS trouxe novos conceitos à política de assistência social e suas ações têm buscado fortalecer a concepção de política não contributiva do Sistema de Seguridade Social, destinada a um público amplo.

Os eixos que estruturam o SUAS têm sido estudados e pesquisados através de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, considerados campos de disputas políticas e ideológicas que delimitam valores, interesses e conceitos, que interferem nos processos de implementação e institucionalização de serviços e benefícios da política social de assistência e seu desempenho no sistema de seguridade brasileiro.

O presente trabalho objetivou suscitar a reflexão sobre alguns aspectos relacionados ao eixo denominado de matricialidade sociofamiliar. Longe de esgotar as possibilidades de uma análise crítica sobre este tema, nossa proposta foi levantar algumas questões que tencionam a efetivação da garantia de direitos universais e que garantam ações que rompam de fato com práticas conservadoras na proteção social das famílias da classe trabalhadora e que reforcem as estruturas de opressões/ exploração de classe, gênero e raça.

É extremamente importante compreendermos qual concepção de cuidado é adotada pelas diretrizes da política pública, uma vez que temos diversas teorias que abordam sobre o cuidado. Nesse sentido, um primeiro ponto que ainda precisa ser bastante debatido por aqueles que pensam e executam as políticas é concepção de cuidado. Já um segundo ponto diz respeito à defesa do care social como direito. É de extrema importância problematizarmos a necessidade do care ser uma responsabilidade pública. Por último, o terceiro ponto segue na direção da socialização do care como sendo uma responsabilidade coletiva e que não deve ser restrita às mulheres, às famílias e ao Estado, pois o cuidado é uma necessidade ontológica primária e todos necessitamos dele em diversos momentos de nossas vidas. A responsabilidade da execução do cuidado deve ser compartilhada, mas para isso é necessário superarmos as diferenças e opressões de classe, gênero, raça/etnia e a propriedade privada.

É a partir de uma perspectiva crítica e comprometida com um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero, que se defende a necessidade de incorporação da temática masculinidade na proteção social dos serviços e benefícios ofertados pelas políticas sociais.

Essa análise exploratória apontou a necessidade de ousarmos buscar estratégias que visem à ruptura com modelos prefixados que naturalizam desigualdades de gênero. As questões apontadas no correr do texto podem ser pensadas na intersecção entre: (a) a desconstrução de uma masculinidade tradicionalmente rígida e pouco reflexiva; (b) a revisão dos papéis socialmente construídos para mulheres e homens e, (c) a problematização em torno da relevância da temática masculinidade e proteção social para o Serviço Social.

Trata-se, na verdade, de incorporar um atendimento que vise o equilíbrio de gênero em todas as suas dimensões. É preciso avançar e empreender esforços para compreender os homens para além de debates que se restrinjam a discutir e reconhecê-los tão somente pela associação estreita com contextos de violência, desresponsabilização parental, sexual e reprodutiva. O acesso aos direitos não pode ser baseado numa oposição entre os sujeitos. Afinal, direitos humanos são universais e não podem excluir nenhuma pessoa ou comunidade.

Fica então, um grande desafio para a sociedade de modo geral. O processo necessário de mudança de comportamento na relação de gênero pressupõe um acolhimento do homem enquanto protagonista das políticas públicas e dos equipamentos da proteção social básica e especial. É importante ressaltar que a transformação precisa ocorrer nas esferas de reprodução dos valores sociais, como escola, família, meios de comunicação, igreja e sociedade em geral. Incluindo-se aqui os serviços de saúde. Assim, o processo de libertação de homens e mulheres de suas posturas cristalizadas só será possível num contexto de ampla ação coletiva, que possibilite uma revolução simbólica capaz de subverter a ordem socialmente imposta.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Sobre o debate do cuidado buscar Passos (2016).
2 Para maior aprofundamento sobre o trabalho de care, buscar Passos (2016).


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