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CONGRESSO CONSERVADOR E AMEAÇAS AOS DIREITOS DOS QUILOMBOLAS

André Augusto Brandão
Universidade Federal Fluminense – UFF, Brasil
Amanda Lacerda Jorge
Universidade Federal Fluminense – UFF, Brasil

CONGRESSO CONSERVADOR E AMEAÇAS AOS DIREITOS DOS QUILOMBOLAS

Revista de Políticas Públicas, vol. 22, núm. 2, pp. 711-731, 2018

Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 04 Fevereiro 2018

Aprovação: 04 Outubro 2018

Resumo: No contexto da retomada conservadora observada no plano sociopolítico brasi- leiro, uma onda de ataques às incipientes garantias alcançadas pelos quilombo- las e indígenas tem início. No legislativo, a chamada bancada ruralista instaura, em 2016, uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar os processos de titulação territorial destes grupos. O relatório final votado em 2017 ques- tiona os direitos dos quilombolas e propõe o indiciamento de dirigentes dos movimentos sociais. Neste artigo, tomamos como alvo a parte do referido re- latório final da Comissão Parlamentar de Inquérito que se dedica à questão quilombola. Nosso esforço analítico se voltou para a compreensão das bases discursivas que sustentam argumentos favoráveis e contrários aos direitos ter- ritoriais desse grupo.

Palavras-chave: Quilombolas, direitos territoriais, conservadorismo.

Abstract: In the context of the conservative recovery observed in the Brazilian socio- political plane, a wave of attacks on the incipient guarantees reached by the quilombolas and natives begins. In the legislature, the so-called ruralist bureau establishes in 2016 a Parliamentary Commission of Inquiry to investigate the processes of territorial titration of these groups. The final report voted in 2017, questions the rights of quilombolas and proposes the indictment of leaders of social movements. In this article, we focus on the part of the final report of the Parliamentary Commission of Inquiry that is dedicated to the quilombola issue. Our analytical effort turned to the understanding of the discursive bases that sustain arguments favorable and contrary to the territorial rights of this group

Keywords: Quilombolas, territorial rights, conservatism.

1 INTRODUÇÃO

O Brasil vive desde 2016 sob o impacto de forte retomada conservadora no campo das relações políticas em geral e das práticas estatais em particular. Este quadro tem gerado consequências para as comunidades negras que se organizam politicamente em torno de uma identidade quilombola. Neste artigo, partindo de pressupostos teórico-metodológicos, oriundos do pensamento social crítico, ela- boramos uma análise de conteúdo do relatório final da CPI FUNAI INCRA II, que foi aberta no Congresso Nacional Brasileiro em final de 2016 e teve seu relatório conclusivo publicado em outubro de 2017.

Mas antes de nos voltarmos para essa questão central do artigo – as lógicas discursivas que vêm sendo utilizadas no âmbito do legisgativo para deslegitimar os incipientes direitos que foram conquistados pelos quilombolas – devemos abordar, ainda que de modo introdutório, a emergência deste sujeito de direitos. Tal procedimento, que constitui quase uma praxe na pesquisa que se propõe algum nível de reflexividade (BOURDIEU, 2003), é fundamental para demarcar que o objeto de nossa investigação não é aqui tomado como um dado, que sempre esteve lá e em dado momento foi descoberto, mas sim como um produto de relações intensas entre campos, agências e agentes que disputam o poder de dar sentido à realidade social e, mais do que isso, disputam a legitimidade de emitir o parecer verdadeiro acerca desta.

Pois bem, a partir da Constituição de 1988, as comunidades rurais com presença de contingentes populacionais negros se tornaram parte das preocupações das políticas de regularização fundiária e das políticas sociais, em geral, no Brasil. Isto porque no aparato científico, jurídico e legislativo que foi criado a partir deste ponto, tais comunidades tiveram a possibilidade de se autoidentificar como quilombolas ou remanescentes de quilombos.

O que estamos afirmando é que em 1988 emerge uma questão quilombola, que mobiliza a agenda do Estado ao criar sujeitos de direitos etnicamente definidos. É possível, de forma breve, resgatar o momento desta criação. Como resultado da atuação de parlamentares ligados a seguimentos variados dos movimentos negros, a Constituição de 1988 contém um artigo que garante a titulação dos territórios de grupos que foram nomeados, naquele texto, como remanescentes de quilombos. Trata-se do artigo 68º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que pretendia garantir o acesso a terra para estes novos sujeitos. Tal artigo 68º, no entanto, foi redigido de forma imprecisa: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (BRASIL, 1988).

Essa imprecisão é produto do fato de não existir, quando da finalização da Assembleia Nacional Constituinte, em 1988, uma definição minimamente institucionalizada de quem seriam os quilombolas, remanescentes das comunidades dos quilombos, ou do que são comunidades dos quilombos. Também é ambíguo o texto constitucional ao não definir objetivamente quem é o sujeito do direito ao território: o indivíduo remanescente de um quilombo ou as comunidades?

2 A QUESTÃO QUILOMBOLA NO BRASIL: luta pela afirmação de direitos sociais e ataques conservadores

2.1 Direitos sociais e comunidades quilombolas

De acordo com o dicionário Aurélio (2001), a palavra quilombo significa: refúgio de escravos fugidos. Podemos afirmar que dentro deste quadro, até então, eram os historiadores e arqueólogos os produtores do conhecimento sobre esses grupos, relacionados a um passado distante e folclórico. Mas, a emergência de novos agentes sociais, produtores de conhecimento, estaria prestes a mudar as ideias e os conceitos, tecidos até então, sobre o que seria um quilombo.

É claro que esses grupos carregavam nomes diferentes, de acordo com o seu lugar de origem: na América Espanhola eram conhecidos como palenques, nas colônias inglesas, como marrons, nas francesas eram denominados como gran marronage e, no Brasil, os seus membros também eram conhecidos para além de quilombolas como calhambolhas, ou mocambeiros (REIS; GOMES, 1996).

Em nosso país, os primeiros estudos que tomaram como objeto os quilombos, teceram considerações variadas sobre estes1. Nesse cenário, foram considerados por alguns como um grupo de resis- tência contra o sistema, e, por outros, como pequenas Áfricas que haviam se instalado no país, como uma sociedade com costumes e símbolos próprios, servindo até mesmo como emblema de luta “[...] paralelamente à ascensão dos movimentos de esquerda, num primeiro momento, e dos movimentos negros num segundo.” (REIS; GOMES, 1996, p. 12).

Dessa forma, o quilombo, como objeto de estudos, estava re- lacionado ao passado, e a um modo de vida próprio, produzido por grupos homogêneos e de mesmo fenótipo. O Quilombo de Palmares era retomado pelos estudiosos, que se interessavam pela questão, como a principal representação da luta contra a escravidão e opressão do sistema que se instalou no Brasil até 1888.

Foi esse imaginário social sobre a história dos quilombos no Brasil, como símbolo de resistência cultural e política, que desenhou o cenário onde emergiu o artigo 68º do ADCT. Isso quer dizer que a formulação desse dispositivo legal estava relacionada aos resquícios de um passado histórico, ao trazer como sujeitos de direitos aqueles que seriam considerados remanescentes das comunidades dos quilombos. Ou seja, o texto redigido e aprovado pelos constituintes que institui o texto do Artigo 68º do ADCT beneficiaria tão somente os moradores dos antigos quilombos – ligados à ideia de fuga e isolamento geográfico – e os seus descendentes.

O imaginário social presente neste momento pressupunha que parte dos escravos, uma vez tendo encontrado a liberdade, tinham se tornado camponeses e, com uma organização social diferenciada, carregavam em seu modo de vida elementos que comprovariam sua

descendência a partir dos antigos quilombos. Assim, o próprio território em que se encontravam teria sido no passado uma réplica do Quilombo de Palmares. A ideia de patrimônio histórico parecia estar instalada na cabeça dos constituintes que construíram e aprovaram tal dispositivo. Mas seria fácil reconhecer uma comunidade remanescente de quilombo a olho nu? Melhor dizendo, será que havia– entre os quilombolas – diferenças culturais herdadas do passado que poderiam ser facilmente identificáveis por qualquer observador externo? (O’DWYER, 2005).

Frente às lacunas que despontam no artigo 68º do ADCT, tem início uma longa disputa acerca da possibilidade e da forma de operacionalização do mesmo. Na década de 1990, é instituído pelo Estado um formato interpretativo que produziu enorme restrição em torno do rol de comunidades com presença de população negra, que poderia pleitear o direito hipoteticamente assegurado pelo texto constitucional.

Essa interpretação – produzida no então governo Fernando Henrique Cardoso, que se ancorava em forças conservadoras ligadas ao agronegócio e se afastava de qualquer base popular – vai se consolidar no Decreto nº 3.912/2001, que normatizava o artigo 68º do ADCT. Assim, treze anos depois da Constituição, o primeiro esforço de regulamentação dos direitos territoriais deste grupo segue no sentido de manter inalterada a intensamente concentrada estrutura fundiária nacional. O ponto fundamental desse dispositivo legal de 2001 se ancorava na perspectiva de necessária comprovação da ocupação do território pleiteado por uma dada comunidade negra entre o ano de 1888 (quando foi oficialmente extinta a escravidão no país) e o ano de 1988 – quando da promulgação da Constituição Federal. Mais do que isso, uma comunidade quilombola deveria ser reconhecida somente se existissem provas objetivas de um remoto passado de formação de quilombos no período colonial ou imperial.

Em paralelo a isso, estudos realizados no campo das ciências sociais que tomavam como objeto as comunidades negras de base rural, desde fins dos anos 1990, buscavam construir uma narrativa alternativa àquela que se apoiava na noção de quilombo como uma reminiscência de um passado de fuga da escravidão.

Como acentua Arruti (2006, p. 81), no artigo 68º do ADCT, o termo remanescentes utilizado anteriormente para conceituar grupos indígenas (no processo de luta pela demarcação de suas terras), “[...] marcou a expectativa de encontrar, nas comunidades denominadas negras rurais, formas atualizadas dos antigos quilombos”. A expectativa era que estas representassem o exótico, o isolamento, um grupo homogêneo ou ainda uma pequena África. Nesse senti- do, a teia de discussões, que estava sendo construída na década de 1990, se sustentava em pontos que já haviam sido refletidos durante a consolidação de direitos voltados para os remanescentes indígenas. O objetivo era tirar partido das: “Relações (materiais, simbólicas e analógicas) entre populações indígenas e populações negras, seja enquanto chaves classificatórias, seja enquanto populações históricas submetidas/rebeladas, ou enquanto novos sujeitos políticos criado- res de cultura.” (ARRUTI, 1997, p.9).

Isso porque, a inclusão dos indígenas no código de direitos do Estado, também passou por discussões sobre a imprecisão de designá-los como ancestrais daqueles indígenas do início da história do Brasil. Foi neste momento, que a fórmula remanescente se fez presente, para classificar a presença do estado de índio nos grupos indígenas existentes na modernidade, reconhecendo perdas culturais, mas, não negando o seu direito a ter direitos. (ARRUTI, 1997).

Essa interpretação foi progressivamente construída, principalmente no campo da antropologia e passou a indicar que tais comunidades negras rurais possuíam formatos próprios de organização e uso do território e dos recursos naturais que lhes possibilitavam construir fronteiras de autodiferenciação em relação às populações do entorno. Seria tal diferença que teria possibilitado a essas comunidades se autorreconhecerem como quilombolas, iniciando assim, processos de etnogênese.

Tal argumentação se apoiou desde o início no paradigmático escrito Os grupos étnicos e suas fronteiras, de Fredrik Barth (2000). A conhecida argumentação Barthiana rejeita a noção de gênese identitária pelo isolamento social dos grupos. Ao contrário disso, propõe que processos de diferenciação dependem de contextos interativos nos quais são elaboradas e negociadas autoclassificações e classificações subjetivas do outro – com a consequente construção de alte- ridades. O resultado seria o estabelecimento de grupos étnicos como derivação de fronteiras simbólicas geradas em situação interacional. Tais fronteiras – que seriam étnicas neste sentido barthiano – teriam marcadores sociais específicos que, uma vez construídos, são incorporados dinâmica organizacional dos grupos.

Os elementos que vão diferenciar um grupo étnico serão aqueles definidos por seu próprio núcleo, ou seja, aqueles elementos identificados como significativos. Nessa perspectiva teórica, os grupos sociais levam em consideração – pela impossibilidade mesmo de ignorar – a forma como os que lhes são externos o categorizam. Assim, a sua própria autodefinição somente ganha sentido na medida em que se refere a essa definição externa.

Por consequência, as características e limites entre os grupos étnicos não correspondem necessariamente a características objetivas, passíveis de identificação e registro direto. As diferenças seriam aquelas que o próprio grupo apropria como fundamentais para demarcar o pertencimento a dada identidade. Os grupos étnicos seriam, portanto, formas de organização construídas por relações intersubjetivas e não objetivas. O fundamental nessa perspectiva seriam as fronteiras, e não as diferenças culturais externamente identificadas.

Pensando as comunidades negras rurais segundo essa pers- pectiva, é possível afirmar que quilombolas não podem ser identificados por supostos traços culturais que os diferenciariam – na medida em que estes podem mesmo não estar disponíveis. A identificação deve advir das fronteiras étnicas que o grupo forjou. Nestas fronteiras é que se fundamenta a autoclassificação. Mais especificamente, por serem grupos étnicos, os quilombolas se autodefinem por critérios próprios, construídos intersubjetivamente. A elevada diversidade de situações sociais e históricas que ensejam o surgimento e a permanência das comunidades passa a não ter importância para sua identificação.

Apesar da variabilidade, esses grupos seriam homogeneamente étnicos, porque definiram a existência de uma fronteira simbólica a lhes separar dos outros. Com isso, ficaria justificada uma unidade de sentido entre as comunidades negras que aderiam à classificação quilombola. Ainda mais importante é que também ganha justificativa teórica a autoidentificação do grupo como critério único para atestar a sua existencia.

Em linhas gerais, como mostra Jorge (2016), essa narrativa ancorada nas categorias barthianas será difundida nas ciências sociais brasileiras a partir de 1994. Jorge (2016) elabora um exaustivo inventário dos formatos interpretativos que a questão quilombola ganha na antropologia brasileira a partir deste momento, apontando como as produções chanceladas pela própria Associação Brasileira de Antropologia caminharam de forma homogênea, com maior ou menor densidade teórica, nas sendas abertas pela noção barthiana de etnicidade.

Se o que importa para a definição de quilombola é o formato organizacional e as fronteiras simbólicas construídas a partir da interação, as comunidades remanescentes de quilombos não seriam somente originadas de processos de fuga de escravos, mas também formadas a partir de variadas formas históricas, como por exemplo:

a) ocupações por escravos e ex-escravos de áreas abandonadas pela exploração econômica; b) ocupação de áreas doadas a famílias de ex-escravos ou mesmo compradas por estes, e posterior resistência a iniciativas de expulsão ou apropriação da terra e; c) comunidades oriundas de processos de migração de grupos negros que fugiam de calamidades naturais. Tais formatos descritos acima, por certo não esgotam as possibilidades de produção identitária, dos grupos que constituíram as comunidades quilombolas atuais e que estariam demandando a titulação definitiva de seus territórios. De fato, as comunidades quilombolas estariam em processo de constituição pela via de amplos e incontáveis processos de etnogênese.

A ação coletiva das comunidades negras rurais, que tivera início pouco antes da finalização da Constituição Federal de 1988, passará a acionar a identidade quilombola e a constituir um movimento social de base nacional, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), criada em 1996. Esse movimento se engaja, junto com os cientistas sociais, na disputa política pela ampliação do sentido interpretativo do artigo 68º do ADCT e pelo alargamento do sentido da categoria legal remanescentes das comunidades de quilombos.

A chegada ao poder em 2003, de uma coalização política mais sensível às demandas dos grupos populares organizados, vai alterar a trajetória de interpretação do direito à titulação definitiva dos territórios quilombolas. Embora os governos Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) não tenham em qualquer medida estabelecido rupturas mais profundas em relação ao agronegócio, produziram políticas que respondiam, em parte, a demandas de movimentos sociais que tinham no acesso à propriedade fundiária parte importante de seus objetivos estratégicos – como os trabalhadores sem terra, os indígenas e os quilombolas. No caso destes últimos, o mais importante lance nessa direção foi a edição em 2003, do Decreto Federal 4.887, de 20 de novembro, que efetiva uma nova regulamentação do artigo 68º do ADCT, seguindo uma linha interpretativa oposta à regulamentação restritiva anterior.

Em resumo, o decreto de 2003 se aproximava da interpretação barthiana, que vinha sendo defendida pelos cientistas sociais e pelo movimento quilombola nascente e institui a autodefinição da própria comunidade como critério suficiente para atestar a caracterização do grupo como remanescente de quilombos. Na medida em que os elementos comprobatórios da remota origem em fugas de escravos que datariam de – pelo menos – cerca de 100 anos e da permanência em território amplamente disputado e pressionado por igual período, deixam de ser critério para a titulação dos territórios, um número muito maior de comunidades passa a ter o direito subjetivo a terra. O efeito distributivo do Decreto nº 4.887/2003 é evidente. Parcelas maiores da concentrada estrutura fundiária nacional poderiam trocar de mãos e ser apropriada por populações negras, pobres e socialmente vulneráveis, que viviam nas franjas da estrutura capitalista.

Os setores organizados do agronegócio, amplamente representados no congresso nacional, reagem imediatamente e por meio de um partido do campo da direita política (atualmente denominado partido Democratas), e ingressam, em 2004, com ação na suprema corte brasileira, arguindo a inconstitucionalidade do decreto. Somente em fevereiro de 2018 o julgamento foi concluído, tendo o STF validado a constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003.

2.2 Avanço conservador e agenda antiquilombola no Congresso Nacional

A eleição presidencial de 2014, que ocorreu em clima de intensa polarização entre os campos progressistas e conservadores da política nacional, levou por fim a eleição para mais um mandato, da candidata do Partido dos Trabalhadores (PT). No entanto, o executivo federal passa a ser de imediato alvo de intensa pressão dos setores sociais e partidos políticos ligados ao campo da direita. Na medida em que estes obtiveram ampla e majoritária representação parlamentar, não foi difícil paralisar completamente o governo e impor, em início de 2016, um golpe parlamentar com anuência da suprema corte.

Como mostra Jorge (2016), desde o primeiro dia do afastamento da presidente eleita, o governo interino passou a atuar na questão quilombola. Ao fim da tarde do dia 12 de maio, a medida Provisória nº 726/2016 retirava a responsabilidade pelos processos de titulação deste grupo, da alçada do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O novo responsável por tais ações seria o recém-criado Ministério da Educação e Cultura, que não carregava qualquer estrutura operacional para dar conta da tarefa. A conclusão óbvia era que se tratava de uma estratégia de paralisação ou postergação dos processos de titulação.

A rapidez com que esta alteração foi realizada nos indica que os “quilombolas” e suas terras já haviam se consolidado como uma preocupação por parte dos grupos políticos de sustentação do golpe parlamentar e do novo governo. A bancada ruralista, sempre posicionada no espectro à direita do Congresso Nacional e com penetração em todos os partidos que compõem a base do governo interino, provavelmente já buscava no primeiro dia da gestão Temer inserir no ordenamento estatal, modificações que paralisariam os processos de titulação das comunidades quilombolas, mesmo os que já estivessem em curso. (JORGE, 2016, p. 241-242)

A resistência do movimento quilombola e dos cientistas sociais que atuam junto a esse grupo foi rápida. Com intensa mobilização nas redes sociais e denúncias via web, a pressão levou o governo a publicar – sete dias depois – uma retificação da Medida Provisória nº 726/2016 retornando ao INCRA a responsabilidade pelos proces- sos de regularização fundiária.

Mas a vitória foi logo solapada por nova alteração, realizada via Decreto Presidencial nº 8.780/2016, de 27 de maio de 2016, que retira do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) as secretarias que tinham como objeto elementos de ordem fundiária. Tais secretarias e mesmo o próprio INCRA são então vinculados à Casa Civil da Presidência da República.

Desde então os processos de titulação territorial e regularização fundiária das comunidades quilombolas encontram-se paralisados, mas a pressão dos parlamentares do campo conservador se avoluma. O lance mais recente foi a aprovação do Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)2 FUNAI e INCRA II. Proposta em agosto de 2016 por um conjunto amplo de deputados federais, muitos ligados à Bancada Ruralista, a CPI foi instalada em outubro do mesmo ano. O objetivo era a “[...] investigação de fa- tos relativos à Fundação Nacional do Índio – FUNAI e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA”. (BRASIL, 2017, p. 13).

Não há no texto, que define objeto da CPI, qualquer referência às comunidades quilombolas. No entanto, o relatório final traz um capítulo de 149 páginas intitulado A CPI INCRA/QUILOMBOS. A análise desse material - tomado como uma peça discursiva produzida por agentes com forte penetração na formulação de políticas públicas - nos possibilita compreender o conjunto de argumentos utilizados para consolidar uma determinada interpretação acerca do que seriam os quilombolas e, por consequência, de quais são os direitos fundiários desse grupo.

Para chegar aos argumentos utilizados pelos congressistas na CPI, é necessário voltar bastante ao passado. Vejamos: em 1642, a coroa portuguesa criou um Conselho Ultramarino (ativo até 1833) que deveria funcionar como um tribunal para regular negócios, litígios e assuntos em geral, pertinentes aos territórios de além-mar. Almeida (2002) encontrou uma resposta emitida por esse órgão a uma consulta acerca do que seriam os quilombolas. A tal resposta é minimalista e descritiva. Um quilombo seria “[...] toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. (ALMEIDA, 2002, p. 59).

Há uma forte influência dessa descrição de meados do século XVIII sobre a forma como os dois mais importantes e conhecidos dicionários brasileiros da língua portuguesa caracterizam o significado do vocábulo quilombo. O Aurélio Século XXI (2001, p. 575) se refere a “Esconderijo, aldeia, cidade ou conjunto de povoações em que se abrigam escravos fugidos”. Já o Houaiss (apud BRASIL, 2012 p. 39) aponta para “1. Local escondido, geralmente no mato, onde se abrigavam escravos fugidos; 2. povoação fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divisões e organização”.

O que vemos é que permanece da definição de 1740 a descrição de uma dada formação social que teria como marca a fuga do cativeiro. O escravo fugido aparece tanto no texto de 1740, quanto nos verbetes de ambos os dicionários citados. Permanece também a perspectiva de isolamento. No texto de 1740 vemos a referência à fixação dos fugitivos em parte despovoada. Já o dicionário Houaiss cita local escondido, geralmente no mato.

Esses elementos descritivos referentes à caracterização dos quilombos se transformam em alicerces para um conjunto de interpretações que abundam no relatório final da CPI INCRA-FUNAIII. Tais interpretações pretendem construir uma definição verdadeira do que seriam os quilombos hoje, que se opõe frontalmente a uma caracterização mais ampla e menos datada desses grupos.

O relatório final, que estamos tomando como peça discursiva, elabora argumentos em torno de três direções interligadas: a crítica radical ao Decreto nº 4.887/2003 e a tentativa de provar a existência de fraude legal em dois processos de titulação de comunidades localizadas no estado do Rio Grande do Sul.

A primeira direção, de fato, consiste na desconstrução do Decreto nº 4.887/2003, que já vinha sendo alvo dos partidos do campo da direita desde sua emissão. Nessa perspectiva, a eleição do critério de autoatribuição3, como elemento chave para a demarcação do que seriam as comunidades remanescentes de quilombos, traria um conteúdo inconstitucional.

Isso porque tal critério promoveria uma configuração na qual a manifestação do grupo interessado pela terra já lhes garantiria o direito subjetivo à propriedade fundiária. O relatório aponta a neces- sidade de comprovação da remanescência (BRASIL, 2017, p. 1628), o que corresponderia a verificar no presente a permanência de elementos característicos do quilombo que teria se constituído durante o período colonial ou imperial.

Passando à margem da construção discursiva elaborada pelas ciências sociais no Brasil, os congressistas apontam que o comando constitucional previsto no artigo 68º, do ADCT, seria restritivo em sua aplicação a “[...] quem efetivamente remanesça de um quilombo.” (BRASIL, 2017, p. 1633). Ou seja, o direito à propriedade seria limitado a indivíduos ou grupos vinculados a um dado local geográfico no qual teria existido “[...] uma comunidade formada por escravos fugidos.” (BRASIL, 2017, p. 1746).

O tema da fuga de escravos é recorrente como vemos, mas também a perspectiva de continuidade histórica. A definição de quilombola que o relatório pretende construir como verdade, pelo menos para efeito jurídico, remonta à resposta do Conselho Ultramarino de 1740, mas, além disso, elide três fatores fundamentais.

O primeiro é que essas comunidades não estão isoladas4 e, portanto, ressignificaram elementos culturais, religiosos e organizacionais ao longo do período maior ou menor de sua existência. Por consequência, traços culturais que remontem a um quilombo original podem não mais existir.

O segundo elemento é que parte significativa dessas comunidades vivem há décadas intenso processo de pressão sobre seus territórios, o que gerou situações de restrição das áreas utilizadas, expulsão, impedimentos à circulação etc. Fica claro que a permanência no território não é um simples ato de vontade das comunidades. Em dadas configurações, essa possibilidade não existiu. Muitas comunidades foram desfeitas e somente após a Constituição de 1988, com a garantia subjetiva da propriedade, é que os grupos que remanesciam dessas áreas passaram a reivindicar seu retorno.

O terceiro elemento diz respeito ao fato de que a emergência de quilombos durante os séculos de escravidão negra no Brasil, bem como as relações da população negra com o mercado e o Estado após o fim da abolição, foram muito diversas no conjunto do país e mesmo dentro de regiões mais específicas. Daí a importância de complexificar o significado do termo quilombo, na direção dos elementos que conformam os modos organizacionais e o estabelecimento, pelas próprias comunidades, de fronteiras simbólicas que resultam em um formato nativo (mas não originário) de identidade.

Esse conjunto de desconsiderações redunda numa forte crítica aos cientistas sociais que estariam produzindo a atualização do conceito de quilombo ao promover uma interpretação inconstitucional. O problema dessa crítica reside em duas presunções. A primeira é que entendimentos derivados da resposta dada pelo Conselho Ultramarino em 1740 teriam validade a priori, pois podem ser encontrados até mesmo nos dicionários. A segunda é que o legislador, ou seja, aqueles que redigiram e aprovaram a Constituição Federal brasileira de 1988, teriam como norte, ao nomear os remanescentes das comunidades dos quilombos, exatamente este sentido dicionarizado.

Assim, o Decreto número 4.887/2003, ao incorporar “[...] parte da doutrina antropológica contemporânea” (BRASIL, 2017, p. 1714), possibilita que sejam inseridos no rol de sujeitos de um direito à propriedade “[...] grupos étnicos, ainda que não tenham, no passado, se refugiado da escravidão.” (BRASIL, 2017, p. 1714). No limite, o Artigo 68 do ADCT, ao ser interpretado por meio desta lógica menos restritiva, possibilitaria que qualquer parcela do território nacional poderia acabar sendo desapropriada para atender a grupos minoritários ainda que não quilombolas.

No entanto, a adesão do Decreto nº 4.887/2003 à noção de autodefinição, tal como detalhada no parágrafo primeiro do seu artigo 2º, “[...] a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.” (BRASIL, 2003), também se apoia na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Os agentes que defendem a legalidade dessa forma de caracterização, se referem ao inciso 2 do artigo 1º dessa Convenção, onde encontramos a afirmação da consciência da identidade como critério para determinar os grupos aos quais se aplicariam os direitos e garantias ali definidos. Por derivação, seria este elemento que justificaria a auto identificação como critério váli- do para assegurar o direito à propriedade fundiária dos quilombolas no Brasil.

O relatório da CPI Funai-INCRA II, porém, questiona tal lógica argumentativa, propugnando que a chamada consciência da identidade não pode prescindir de uma dada comprovação, ou de algum tipo de controle de legitimidade. Nessa perspectiva, a adesão de indivíduos ou grupos a uma identidade quilombola não os tornaria verdadeiros quilombolas. Mais uma vez, o conceito colonial de quilombo é sacado como único passível de validade. Partindo desse princípio interpretativo, o Artigo 68º do ADCT somente poderia reconhecer e proporcionar a propriedade fundiária aos grupos que remanescem em local que teria comprovadamente sido locus de refúgio à escravidão (BRASIL, 2017, p. 1746).

A autoidentificação como critério normativo para a definição do que seriam os quilombolas pode ser justificada por argumentos que derivam da leitura barthiana acerca dos grupos étnicos e das fronteiras simbólicas, ou por analogia com a Convenção 169 da OIT. Porém, na perspectiva do Relatório Final CPI FUNAI-INCRA II, esse critério ensejaria a possibilidade de fraudar a legislação e entregar a propriedade definitiva de um território para grupos ou indivíduos que não remanescem da condição de quilombola. Para impedir que isso ocorresse, deveria a legislação indicar a necessária verificação por parte do Estado dos requisitos constitucionais. (BRASIL, 2017, p. 3093).

Na medida em que o que efetivamente está em jogo nese processo é a propriedade fundiária no Brasil, o relatório enfatiza que frente ao alargamento do conceito de quilombo com o qual opera o Decreto nº 4.887/2003, é possível que o Estado esteja cometendo injustiças ao produzir propriedade fundiária para grupos que não comprovam origem em escravos fugitivos, lançando mão da retirada do direito de posse ou propriedade de indivíduos não autodeclarados quilombolas que ocupavam aqueles espaços quando a Constituição de 1988 foi finalizada.

Em torno desse ponto - a desconstituição de direitos de não quilombolas, para a constituição da propriedade da terra para grupos autoidentificados como quilombolas - o relatório busca comprovar o caráter fraudulento de dois processos de titulação territorial. O primeiro referente à comunidade de Morro Alto, situada nos municípios de Maquiné-RS e Osório-RS; e o segundo referente a comunidade de Rincão dos Negros em Rio Pardo-RS

Nos dois casos o Relatório Final da CPI aponta que pesquisas referentes as comunidades, realizadas por equipes coordenados por professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, já estavam finalizadas antes da abertura dos processos de titulação territorial. Tais pesquisas foram tomadas pelo INCRA como laudos an- tropológicos e incorporadas ao processo administrativo aberto para a titulação.

Especificamente no caso da comunidade de Morro Alto, o relatório histórico, geográfico e antropológico foi finalizado em 2004, sendo resultado de um convênio entre a universidade e o governo do estado do Rio Grande do Sul. Em paralelo, o INCRA abrira, também em 2004, o processo que poderia gerar a titulação definitiva da área. Em reunião realizada em abril de 2005 a equipe designada incorporou o laudo ao processo, mesmo sem existir previsão anterior para tal ato, uma vez que entendeu que o mesmo atendia adequadamente os requisitos demandados para o processo. Os parlamentares criticam de forma veemente o procedimento:

Assim, inexistente qualquer convênio, houve o acatamento puro e simples de um trabalho acadêmico realizado anteriormente. Na verdade, o que houve foi uma ilegal transplantação de um viciado laudo antropológico acadêmico aos procedimentos do Incra, o que foi feito sem qualquer análise de mérito pela Equipe Técnica desig- nada para tal. (BRASIL, 2017, p. 1659).

O Relatório Final da CPI denuncia uma relação intrínseca entre os pesquisadores e as lideranças tanto do movimento negro local, quanto da própria comunidade que demandava titulação. Na perspectiva dos parlamentares, essa proximidade pode ser atestada pela forma como os trabalhos foram conduzidos na área. Na medida em que o território é habitado por famílias autoidentificadas como quilombolas (organizadas em uma associação específica) e por famílias não autoidentificadas, havia um litígio claro ali, que transbordava para a definição da comunidade como remanescente de quilombo ou não.

A proximidade dos pesquisadores com as lideranças do movimento quilombola local teria gerado um viés ao laudo. Isso porque eram guiados por tais lideranças e teriam evitado coletar dados das famílias brancas. Obviamente os parlamentares lançam mão, somente, de depoimentos para fazer tais afirmações; mas há uma indefectível cobrança por imparcialidade dos pesquisadores frente à disputa territorial em andamento. Como vemos no trecho abaixo:

O Grupo de Trabalho designado para reconhecer (ou não) a comunidade em Morro Alto como remanescente de quilombo agiu, desde o início, de forma absolutamente parcial e, por interesses pessoais ou ideológicos, conduziu todo o procedimento com o prévio intuito demarcatório, ainda que esta não fosse a real situação daquele território. (BRASIL, 2017, p. 1667).

Mas o ponto fundamental do ataque do Relatório Final da CPI, ou seja, a possibilidade de titulação da área reivindicada pela comunidade de Morro Alto, encontra-se mais uma vez na disputa acerca do significado verdadeiro dos que seriam os remanescentes de quilombo nomeados na Constituição Federal brasileira de 1988. O laudo produzido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul indica que a comunidade teria sido originada de um processo no qual uma proprietária de escravos doara a seus ex-escravos, pela via de um testamento, uma determinada área que compunha sua fazenda. O referido testamento, assinado por Rosa Osório Marques data de 1886 e comprovaria que a comunidade estaria ali pelo menos desde esta data.

Esse elemento comprobatório, porém, é utilizado pelos parlamentares exatamente para negar a possibilidade de existência prévia de um quilombo naquele território. Argumentam que se os ex-escra- vos tivessem ganho parte de uma fazenda e ali se fixado, não teriam, por conseqüência, fugido do cativeiro e constituído um quilombo. Como aparece no Relatório: “Se alguns escravos ganharam a terra, por qual razão formaram um quilombo em sentido estrito do termo? Assim, o próprio argumento levantado pelos reivindicantes fere de morte suas reivindicações.” (BRASIL, 2017, p. 1712). A ênfase é novamente no conceito colonial e dicionarizado de quilombo, que é afirmado como único legitimo e válido, conceito que a priori deveria ser utilizado para a interpretação do texto constitucional.

Os elementos discursivos utilizados pelos parlamentares se repetem quando se referem ao caso da comunidade Rincão dos Negros, situada em Rio Pardo-RS. Nesse caso, em 2006 foi produzido o Relatório Sócio, Histórico e Antropológico da Comunidade Quilombola Rincão dos Negros, como resultado de convênio específi- co assinado entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o INCRA. No entanto, o processo para demarcação e titulação do território da comunidade somente foi aberto pelo INCRA em junho de 2011, com a nomeação de uma comissão. Na primeira reunião realizada por esta, o relatório de 2006 foi incorporado ao processo, mais uma vez, porque houve entendimento de que o mesmo correspondia adequadamente às exigências requeridas para um laudo antropológico.

Sucedem-se, no Relatório Final da CPI, as mesmas acusações de imparcialidade e adesão dos pesquisadores à demanda do movimento quilombola, o que teria ensejado uma situação na qual moradores não autoidentificados como quilombolas teriam sido evitados na coleta de dados para composição do laudo.

Também no caso de Rincão dos Negros, é a referência a um testamento redigido por uma proprietária de terras e escravos que teria dado origem à comunidade5. Mais uma vez os parlamentares apontam a existência de uma incompatibilidade entre esta narrativa e a possibilidade de existência pregressa de um quilombo na área – uma vez que não teríamos ali um refúgio de escravos que abandonaram o cativeiro.

Frente a isso, os parlamentares argumentam que os autores do estudo que foi incorporado pelo INCRA ao processo seriam adeptos de um conceito de quilombo que não teria cobertura legal. Tendo como base unicamente a conhecida mimetização da noção de qui- lombo com a existência de escravos fugidos, o laudo afirma: “[...] a norma constitucional e infralegal não admite, para fins de aplicação do art. 68 ADCT, o reconhecimento de um ‘quilombo’ que não esteja relacionado a um local no qual, no passado, serviu de refúgio à escravidão.” (BRASIL, 2017, p. 1746). É claro que a aparente elevada certeza que caracteriza esta afirmação não possui mínima sustentação. Não há qualquer definição legal de quilombo ou de remanescente de quilombos no aparato legal ou no aparato normativo brasileiro. Há sim, uma disputa, que se encontra aberta hoje no Supremo Tribunal Federal.

O relatório final da CPI pretende afirmar uma determinada forma de conceber os quilombolas como única legitima. Por isso se refere aos pesquisadores que produziram a caracterização da comunidade de Rincão dos Negros como, no mínimo, equivocados:

[…] os dois antropólogos que compuseram a Equipe responsável pela elaboração do estudo em “Rincão dos Negros” são adeptos de uma corrente dentro da antropologia que desvincula o termo “quilombo” de seu significado originário (ligado à comunidade formada por escravos fugitivos) para abranger outras minorias. (BRASIL, 2017, p. 1757).

O significado originário a que os parlamentares fazem referência de fato, não existe; o que existe são significados em disputa. Alguns mais antigos do que outros, mas não é por antiguidade que se definem os valores e as nomeações tomadas como socialmente legítimas em determinado contexto sociohistórico.

Após a tentativa de desconstrução da validade do Decreto nº 4.887/2003 e dos processos de titulação das duas comunidades tomadas como exemplo de aplicação equivocada do artigo 68 do ADCT, o Relatório Final da CPI propõe os termos de um projeto de lei que deveria regular, uma vez aprovado, a aplicação dos direitos fundiários previstos na Constituição de 1988 para os remanescentes de quilombos. O conteúdo da proposta nada carrega de novo. Trata-se somente da consolidação de um conjunto de argumentações diretamente informadas pela definição colonial do que seria um quilombo. Definição esta que já havia sido base para normativa federal produzida durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e que fora expurgada do aparato legal durante o governo Lula.

De início, a proposta dos parlamentares considera como remanescentes de quilombos “[...] a comunidade que permaneceu, até 05 de outubro de 1988, em local o qual serviu de refúgio à escravidão, preservando traços culturais da época, ainda que modificados.” (BRASIL, 2017, p. 3102). Já o território passível de titulação deve corresponder àquele “[...] efetivamente ocupado quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, não se estendendo a áreas não ocupadas ou cuja ocupação cessou anteriormente ou se iniciou após essa data.” (BRASIL, 2017, p. 3102). Por fim, além de considerar a autoidentificação, “[...] deverá o Incra proceder à verificação dos traços culturais e da data da ocupação territorial.” (BRASIL, 2017, p. 3104).

Como vemos, essa proposta dos parlamentares radicaliza o uso do conceito colonial de quilombo e, ao detalhar os procedimentos que competem ao governo federal, gera restrições ainda maiores do que aquelas vigentes antes do Decreto nº 4.887/2003. O rol de comunidades passíveis de serem abarcadas por tal normativa seria mínimo, assim como o quantitativo de terras que poderiam ser redistribuídas para as comunidades negras, etnicamente constituídas, que estão espalhadas pelo território brasileiro.

3 CONCLUSÃO

O relatório final da CPI foi aprovado, apesar de intensa oposição dos parlamentares vinculados aos partidos que ocupam o espectro mais a esquerda do congresso nacional. Há no relatório, inclusive, a solicitação ao Ministério Público Federal (MPF) de indiciamento de 15 antropólogos e de dirigentes de Ongs que se articulam com movimentos sociais.

A minuta de projeto de lei, à qual fizemos referência, ainda não entrou em discussão no parlamento brasileiro e não ocorreu até o momento manifestação do executivo federal nessa direção. No entanto, no contexto atual de avanço conservador sobre a gestão do Estado, é possível que essa tramitação ocorra em futuro próximo.

Vale lembrar que o conteúdo total do relatório se volta não somente para os direitos fundiários das comunidades quilombolas, mas também para os indígenas e para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No que tange especificamente aos quilombolas, objeto deste trabalho, a base argumentativa do relatório é o que nomeiam como significado original do termo quilombo. Resta perguntar por que o significado com validade constitucional seria aquele referido à fuga de escravos? Essa pergunta fica sem resposta.

O problema é que o significado do texto constitucional referido aos remanescentes de quilombos é exatamente o que está em disputa no Brasil desde 1988. Em torno da definição deste circulam cientistas sociais, congressistas, políticos, agências estatais, grupos de interesse, ONGs, associações produtivas e movimentos sociais. Pelo que verificamos até agora, é possível levantar a hipótese de que este significado - que somente pode mesmo derivar de interpretações informadas pela adesão a interesses políticos, econômicos, a valores morais ou a opções teóricas – se manterá ainda por largo período na deriva, flutuando ao sabor de uma movimentação pública mais ampla, que aponta para momentos de maior ou menor tendência à validade e aceitação de políticas sociais distributivas.

REFERÊNCIAS

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ARRUTI, J. M. A emergência dos “Remanescentes”: notas para o diálogo entre indígenas e quilombolas. Mana, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 7-38, oct. 1997. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo. php?pid=S0104-93131997000200001&script=sci_arttext. Acesso em: 4 ago. 2010.

ARRUTI, J. M. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. São Paulo: Edusc, 2006.

AURÉLIO, B. de H. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

BARTH, F. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: ______. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. p. 25-67.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

BRASIL. (Constituição 1988). Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. In: ______ . Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 3.239-9 de 2004 em face do Decreto nº 4887/2003. Voto relator Cesar Peluso. Brasília, DF, 2012. p. 1-64. Disponível em:<http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/1459_ADI3239 Voto.pdf>. Acesso em: 6 out. 2018.

BRASIL. Congresso Nacional. Relatório Final da CPI FUNAI-INCRA 2. Brasília, DF, 2017.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2003. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/ D4887.htm. Acesso em: 1 jun. 2011.

JORGE, A. L. O Processo de construção da questão quilombola: discursos em disputa. Rio de Janeiro: Gramma, 2016.

O’DWYER, E. C. Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício profissional da disciplina? In: LEITE, I. B. (Org). Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: Co-edição NUER/ ABA, 2005.

REIS, J. J.; GOMES, F. dos S. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Notas

1 Segundo Reis e Gomes (1996), reflexões mais sistemáticas sobre os quilombos no Brasil aparecem a partir de 1930, nos estudos de Nina Rodrigues e Edson Carneiro, com interpretações de viés mais culturalista.
2 A Comissão Parlamentar de Inquérito é formada por Deputados Federais ou Senadores da República, com função de fiscalização, investigação ou de um fato determinado relativo a aspectos constitucionais ou a questões de ordem legal, econômica ou social.
3 O Decreto nº 4.887/2003 em seu art. 2º indica: “Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
4 A literatura histórica mostra que muito antes do fim oficial da escravidão negra no Brasil os quilombos existentes, mesmo originários da agregação de escravos fugitivos, mantinham com maior ou menor ênfase, relações comerciais com a sociedade mais ampla. Ver Reis e Gomes (1996).
5 Esta repetição da mesma origem, com detalhes semelhantes (um testamento, redigido por uma mulher) apesar de as comunidades em pauta estarem a aproximadamente 300 quilômetros de distância, nos possibilita pensar em um mito de origem compartilhado por comunidades negras rurais daquela região. É claro que estamos somente apontando uma hipótese que demandaria estudos mais amplos e aprofundados.
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