Artigos - Dôssie Temático
Recepção: 04 Julho 2018
Aprovação: 15 Outubro 2018
Resumo: Este artigo discute os direitos de povos tradicionais no Brasil, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento e titulação de seus territórios, contextuali- zando-os em meio às lutas históricas pela terra no país, que envolvem demais segmentos da classe trabalhadora. O artigo é parte dos resultados de projeto de pesquisa sobre conflitos socioambientais, realizado através do Programa de Ini- ciação Científica. Metodologicamente as informações são provenientes de pes- quisa bibliográfica e documental – esta última com dados coletados no Mapa de Conflitos e Injustiça Ambiental em Saúde no Brasil da FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz) e FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Edu- cacional). O resultado fundamental dessas reflexões mostra a participação do Estado brasileiro no processo de obstrução do acesso aos direitos legalmente instituídos para essa parcela da população.
Palavras-chave: Povos tradicionais, território, conflitos socioambientais.
Abstract: This article discuss the rights of traditional folk in Brazil, especially regarding the recognition and titling of their territories, contextualizing them in the midst of the historical struggles for land in the country that involve other segments of the working class. The article is part of the results of a research project on socioenvironmental conflicts carried out through the Scientific Initiation Pro- gram. Methodologically the information comes from bibliographic and docu- mentary research - the latter with data collected in the FIOCRUZ (Oswaldo Cruz Foundation) Conflict and Environmental Injustice in Health Map in Brazil and FASE (Federation of Organs for Social and Educational Assistance). The fundamental result of our reflections shows the participation of the Brazilian State in the process of obstructing access to legally established rights for this part of the population.
Keywords: Traditional folk, territory, socio-environmental conflicts.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem o objetivo de debater os direitos de povos tradicionais no Brasil, especialmente o do reconhecimento e titulação de seus territórios, contextualizando-os como parte das lutas sociais envolvendo demais trabalhadores que lutam pela terra no Brasil.
Sem deixar de lado suas particularidades, referidas a modos de vida que diferem da pretensa homogeneidade impressa pelo capitalismo, este texto se permite conectar tais particularidades a uma dinâmica que afeta o conjunto da classe trabalhadora mundial e está relacionada às necessidades de recuperação das taxas de lucro do capital em crise. Esse contexto insere países periféricos com abundância de recursos naturais, como o Brasil, na rota da pilhagem de recursos naturais necessários, em escala crescente, para reduzir os custos da produção capitalista. São muitas as evidências de que essa dinâmica, combinada com as características sócio-históricas do capitalismo brasileiro, atravessa a luta pelos territórios dos povos tradicionais que, sem perder a conotação de conflitos socioambientais, devem ser vistas como parte da luta pela terra e da luta de classes nesse país.
O artigo é organizado em dois itens e considerações finais, além desta introdução. No primeiro deles, situamos alguns conceitos importantes para a compreensão dos termos centrais dessa reflexão – quais sejam, território, povos tradicionais, entre outros – assim como as principais conquistas obtidas por esses sujeitos organizados na legislação brasileira após 1988. No segundo item discutimos dados sobre conflitos socioambientais envolvendo povos tradicionais identificados no Nordeste brasileiro até 2014, tentando caracterizar seus determinantes e conexões com a política macroeconômica dos governos brasileiros recentes. Nas considerações finais são realizados breves apontamentos sobre o objetivo geral do artigo, chamando atenção para a necessidade e atualidade de estudos que visibilizem os impactos socioambientais dos chamados grandes projetos de desenvolvimento para os povos tradicionais e demais frações da classe trabalhadora expropriada dos meios de produção e reprodução de sua própria existência.
2 CONTEXTUALIZANDO OS CHAMADOS “POVOS TRADICIONAIS” E SEUS DIREITOS NO BRASIL
A formação histórica do Brasil é carregada de uma multiplicidade geográfica e sociocultural que traz consigo uma diversidade de grupos abarcados no conceito de povos e comunidades tradicionais. Esse conceito, que teve seu reconhecimento oficial com a instituição da Política Nacional de Desenvolvimento dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), imprime carga política a um conflito socioambiental que é estrutural em nosso país: a luta por terra.
Little (2002), ao conceituar os povos tradicionais, faz uma crítica aos enfoques clássicos etnográficos e às categorias que utilizam para dar conta da diversidade desses grupos socioculturais.
Qualquer dessas combinações é problemática em razão da abrangência e da diversidade de grupos que engloba. De uma perspectiva etnográfica, por exemplo, as diferenças entre as sociedades indígenas, os quilombos, os caboclos, os caiçaras e outros grupos ditos tradicionais – além da heterogeneidade interna de cada uma dessas categorias – são tão grandes que não parece viável tratá-los na mesma classificação. (LITTLE, 2002, p. 252).
Por esse motivo, considerando sua imensa heterogeneidade dentro da concepção etnográfica, Little (2002) utiliza a perspectiva de análise antropológica da territorialidade. Nos termos do autor, não se trata de minimizar a rica heterogeneidade existente entre es- ses grupos e demais grupos sociais, ou reduzir a existência destes um único fator determinante. A compreensão de territorialidade tenta
[...] detectar semelhanças importantes entre esses diversos grupos – semelhanças que ficam ocultas quando se empregam outras categorias – vincular essas semelhanças a suas reivindicações e lutas fundiárias e descobrir possíveis eixos de articulação social e política no contexto jurídico maior do Estado-nação brasileiro. (LITTLE, 2002, p. 253).
Dentro dessa abordagem da territorialidade, o autor define os grupos tradicionais a partir das relações objetivas com o ambiente físico (forma de ocupação, uso, controle), assim como dos processos subjetivos que os particularizam. “O fato de que um território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos.” (LITTLE, 2002, p. 254). Portanto, a noção de território vai além do espaço físico no qual estes povos estão aloca- dos, sendo definida também pelas identidades e ideologias construídas coletivamente ao longo da história.
Consoante com essa perspectiva, o Ministério Público de Mi- nas Gerais também conceitua povos tradicionais a partir da relação destes como o seu território: “[...] os povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados que possuem condições sociais, culturais e econômicas próprias mantendo relações específicas com o território e com o meio ambiente no qual estão inseridos.” (MINAS GERAIS, [20--?], p. 10).
Compreendida a partir da territorialidade, a noção de tradicional, como supramencionamos, “[...] não se [reduz] à história e [incorpora] as identidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada, assinalando que as unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização.” (ALMEIDA, 2004, p. 9). Como se pode observar, é essa a noção que irá prevalecer no decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento do Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT):
Art 3º, inciso I - Povos e Comunidades Tradicionais [são] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (BRASIL, 2007).
Por territórios tradicionais a PNPCT define, em seu Artigo 3º, inciso II “[...] os espaços necessários à reprodução cultural, so- cial e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária”. (BRASIL, 2007). Nessa acepção podemos identificar alguns agrupamentos brasileiros enquanto povos tradicionais, a saber: povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, povos e comunidades de terreiro, povos ciganos, sertanejos, seringueiros, pantaneiros, comunidades do cerrado, quebradeiras de coco babaçu, caiçaras, fundo de fecho de pasto, ex- trativistas, faxinalenses, pomeranos etc. (MPMG, 2018) Contudo, estas denominações não se restringem às que aqui estão relaciona- das.
Visando amparar e fortalecer as políticas de proteção aos povos e comunidades tradicionais foi criado, no ano de 1992, o Centro Nacional de Populações Tradicionais, incorporado ao Ibama. Po- rém, somente em 18 de julho de 2000, com a promulgação da Lei nº 9.985 que regulamenta o Art. 225º da Constituição Federal de 1988 (CF/88) e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, vão aparecer explicitamente as denominações populações tradicionais e populações extrativistas tradicionais, além de relacionar os grupos às unidades de conservação (área de proteção ambiental e outras formas). (ALMEIDA, 2004).
No ano de 2002 o Brasil valida a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que foi instituída em Genebra (1989), e estabelece direitos de autoidentificação dos povos indígenas e tribais, como, também, da substituição do termo populações (que indica transitoriedade) pelo termo povos – que os caracteriza enquanto partes de uma nação com identidades, costumes e visão de mundo particulares, assim como pela relação diferenciada que mantêm com a terra em que vivem.
A partir disso, o autorreconhecimento de sua identidade é critério fundamental para o reconhecimento legal de um povo ou comunidade tradicional. Assim sendo, são os próprios integrantes que determinam se o grupo é ou não considerado como tradicional, o que lhe assegura uma série de direitos particulares. Por essa razão, quando nos referimos aos povos e comunidades tradicionais, não nos referimos apenas aos povos autóctones ou originários. Entendemos que a possibilidade do surgimento de novos grupos que se autorreconheçam como povos tradicionais, em diferentes contextos da nossa formação social deve ser também considerada juntamente com o peso conjugado dos elementos históricos e/ou do quadro natural que envolve a identidade coletiva desses sujeitos biologizados. (ALMEIDA, 2004).
Ainda sinalizando características que auxiliam na compreensão do que sejam esses povos, existem aspectos específicos relacionados à produção, à organização social do território que marcam seu modo de ser e de viver.
A relação de produção (plantio, pesca, caça, confecção de artesanato e extrativismo) está baseada na troca e/ou compartilhamento entre seus membros e, de um modo geral, a destinação ao mercado não é o seu objetivo primordial, vez que “[...] parte considerável da produção é destinada ao consumo e às práticas sociais (festas, ritos, procissões, folias de reis etc.), mantendo a unidade do grupo.” (MPMG, 2018, p. 11-12). Desse modo, a terra não é somente um lugar de relevância econômica, caracterizando-se, sobretudo, pela sua utilidade ritual, diferentemente da concepção de terra como mercadoria, que predomina crescentemente sob a vigência do capitalismo. “As relações específicas que esses grupos estabelecem com as terras tradicionalmente ocupadas e seus recursos naturais fazem com que esses lugares sejam mais do que terras, ou simples bens econômicos.” (MPMG, 2018, p.10).
Esses grupos organizam-se socialmente em torno de vários núcleos familiares cuja composição diversificada de parentesco (da própria comunidade ou inter-relacionando-se com outros grupos da região) não os impede de coabitarem juntos.
Cabe salientar que a conformação da família nesses contextos atende a necessidades morais, sociais, culturais e econômicas próprias, sobretudo porque a família é central na organização de toda a vida da comunidade. Não devemos separar família de território, pois em grande medida um território se constrói a partir da aglutinação de vários sítios familiares e de uma ancestralidade comum. (MPMG, 2018, p. 14).
Para tratar da forma como os povos tradicionais se relacionam com o seu ambiente biofísico, nos parece importante o conceito de cosmografia a partir do qual se entende que
A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele. (LITTLE, 2002, p. 254).
As relações que esses grupos estabelecem com a terra, portanto, além de ultrapassarem a lógica econômica preponderante, incluem forte dimensão simbólica. Como já foi sinalizado, é por essa razão que a terra assume a qualificação de território e é também por meio dele que a história e memória de cada um desses povos permanecem vivas. Há, entre esses povos e seu território, uma profunda ligação que independe das divisões geopolíticas instituídas pelo Estado. Os territórios podem, desse modo, abranger vários municípios, estados ou até fazer parte de dois ou mais países ao mesmo tempo.
O que nos leva a retomar o debate sobre o que sejam e como vivem os chamados povos tradicionais é a observação de como tem sido custoso no Brasil assegurar seus direitos sociais, ambientais, econômicos e culturais, apesar de esses estarem protegidos desde a promulgação do Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu a PNPCT em função do que já estava, por sua vez, determi- nado constitucionalmente. Cabe frisar que a Constituição Federal de 1988, em seus artigos 215 e 216, determina como dever do Estado proteger todas as formas de manifestações culturais, como também, promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, sejam estes bens de natureza material ou imaterial, abrangendo todos os povos que constituem a sociedade brasileira. Little (2002, p. 268) observa que:
A Constituinte de 1987-1988, fruto de uma década de mobilizações, debates e lobbying, representa um marco importante nesse período, na medida em que aglutinou muitos dos movimentos sociais e ONGs para a incorporação de novos direitos e de questões sociais e ambientais na nova Constituição. Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, distintas modalidades territoriais foram fortalecidas ou formalizadas. São os casos das terras indígenas e dos remanescentes das comunidades de quilombos.
De acordo com MPMG (2018, p.13), “[...] a construção e o reconhecimento formal de suas identidades e territórios está em pro- cesso”, mas sabemos que enfrentam muitos obstáculos com o avanço do capitalismo sob as fronteiras dos países em desenvolvimento (vastos em recursos naturais) – onde se localizam grande parte destas comunidades tradicionais.
Do ponto de vista histórico, [...] esses povos e comunidades são marcados pela exclusão não somente por fatores étnico-raciais, mas, sobretudo, pela impossibilidade de acessar as terras por eles tradicionalmente ocupadas, em grande medida usurpadas por grileiros, fazendeiros, empresas, interesses desenvolvimentistas ou até pelo próprio Estado. (MPMG, 2018, p.11).
São inúmeros os registros de restrição do acesso e da ocupação de territórios por esses povos. Veremos adiante que esse bloqueio gera problemas de diversas ordens e institui complexos conflitos socioambientais envolvendo múltiplas dimensões, não apenas econômicas. Vale ainda ressaltar que esse processo se constituiu historicamente no Brasil desde a promulgação da Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850, a chamada Lei de Terras. Essa
[...] estabelece a necessidade de registro cartorial e de documento de compra e venda para configurar dominialidade, [instaurando] uma diferença no acesso e manutenção da terra por comunitários no meio rural. A Constituição Federal de 1891 transferiu para os estados as ditas terras devolutas, sobre as quais até então não havia sido reclamada a propriedade, reconhecendo o “direito de compra preferencial” pelos posseiros. (MPMG, 2018, p. 11).
A instituição desse sistema legalizou a expropriação das terras daqueles segmentos populacionais sem recursos nem conhecimentos para registrá-las em cartório. Com o aval do Estado e uso de todas as formas de violência, promoveram-se os registros de imensas extensões territoriais em nome de quem podia pagar o valor de mercado e, consequentemente, a expulsão de seus ocupantes anteriores. Portanto, a interdição de acesso à terra aos segmentos trabalhadores e pauperizados do país com amparo na Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, transformou a terra em mercadoria e reforçou a concentração da propriedade privada e de terras nas mãos dos grandes latifundiários já constituídos, naquele momento da história brasileira, como segmento de classe dominante.
Sabemos o quanto a manutenção do latifúndio no Brasil é uma questão crucial para compreensão da dinâmica macroeconômica do país e do lugar que este ocupa na divisão internacional do trabalho sob o capitalismo, conforme teremos ocasião de discutir mais adiante. (MPMG, 2018, item 2). Faz-se necessário, entretanto, destacar que a demarcação fundiária no Brasil não foi um processo pacífico, sendo atravessado pelas lutas e resistências das populações expropriadas de seus espaços em nome da expansão de fronteiras, que legitima a hegemonia de um Estado-nação. (LITTLE, 2002). Esses conflitos abarcaram pequenos agricultores, organizados ou não em distintos movimentos sociais e também os povos e comunidades tradicionais, principalmente quando se trata das comunidades indígenas e quilombolas.
Para conter então os ânimos e frear as manifestações populares em torno dos conflitos por terra, o governo militar, através da Lei nº 4.504 de 30 de novembro de 1964, criou o Estatuto da Terra. Este não necessariamente visou realizar um programa de redistribuição fundiária no país. Ao contrário, o desenvolvimento agrário que, em tese, favoreceria o camponês, dá abertura para a expansão do agronegócio, mantendo-se ainda os mesmos padrões de concentração de terra e riqueza.
Embora envolvam, em primeiro plano, a luta pelo reconhecimento do território – e, nesse sentido, possuam uma dimensão que é comum à luta contra o latifúndio no Brasil – os conflitos vividos pelos povos tradicionais também devem ser encarados sob a ótica do preconceito étnico-racial que marca profundamente sua existência no contexto de uma sociedade que se torna cada vez mais urbanizada, apresentando dificuldades em lidar com a diversidade humana.
Não obstante os avanços nas políticas públicas e o reconhecimento legal da identidade destes povos, protagonizados por seus movimentos organizados, não se reduziram, até o momento presente, os obstáculos para o reconhecimento e titulação dessas terras tradicionais. Esses são, primordialmente, de natureza econômica, mas assumem uma aparência de burocratismo político e jurídico.
As dificuldades de efetivação destes dispositivos legais indicam, entretanto, que há tensões relativas ao seu reconhecimento jurídico-formal, sobretudo porque rompem com a invisibilidade social, que historicamente caracterizou estas formas de apropriação dos recursos baseadas principalmente no uso comum e em fatores culturais intrínsecos, e impelem a transformações na estrutura agrária. (ALMEIDA, 2004, p.10)
Observa-se que a ineficácia dos aparatos governamentais e a morosidade para a aplicabilidade dos instrumentos de reconhecimento e efetivação dos direitos estabelecidos constitucionalmente são reflexos de uma estrutura social elitista, que priva de direitos sociais e humanos significativos contingentes da população brasileira, incluindo-se aí os povos tradicionais. Nesse caso, o não reconhecimento de suas identidades lhes priva do acesso às terras. Isso, por sua vez, provoca uma alteração no regime tradicional modificando, de forma danosa, os modos de ser e de viver dessas comunidades que dependem da relação com os recursos naturais do território para sua reprodução material e simbólica, conforme já dissemos anteriormente.
Essas situações, portanto, tendem a se transformar em diversos conflitos socioambientais espalhados por todo território nacional. Conforme aponta a análise do Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil1 da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ, [20--?]): “Tais casos de injustiça ambiental atingem vastos territórios e inúmeros grupos populacionais, desde indígenas, quilombolas, extrativistas e pescadores, até pequenos agricultores e assentamentos da reforma agrária.”
Além dos fatores estruturais da constituição do capitalismo brasileiro, outro fato importante se relaciona à explicação de conflitos entre as diferentes forças sociais quando tratamos dos povos tradicionais: a falta de unanimidade em torno da expressão terra tradicionalmente ocupada.
Almeida (2004) chama a atenção de que uma das propostas para essa definição no momento da Assembleia Nacional Constituinte foi relacionar a expressão terras tradicionalmente ocupadas à noção de terras imemoriais, dando um peso ao fator historicista. Isso significaria que os povos e comunidades tradicionais deveriam ser identificados como povos autóctones, ou seja, somente teriam acesso à terra se comprovassem a sua ancestralidade, “[...] remontando ao período pré-colombiano [...]” (ALMEIDA, 2004, p. 12). Prevale- ceu, porém, o conceito exposto no Art. 231 da CF/88, que trata como terras tradicionalmente ocupadas a ocupação permanente da área.
Os problemas que envolvem a efetivação dos direitos desses povos, principalmente em relação à demarcação e reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas são observados por Almeida (2004) em duas situações. Em primeiro lugar, a implementação dos dispositivos constitucionais que envolvem a apropriação das terras indígenas e quilombolas. Sobre isso aponta, inclusive, o problema que existe a respeito do tipo de apropriação reservada a esses grupos. No caso dos grupos quilombolas, houve o reconhecimento das terras como propriedade definitiva. Já no caso dos grupos indígenas, a relação de apropriação ficou tutelada ao Estado, definindo o acesso à terra a partir da posse permanente, ou seja, as terras que estão sob a posse desse grupo são definidas como bens da União.
Não obstante esta distinção relativa a “dominialidade”, pode-se afirmar que ambas são consideradas juridicamente como “terras tradicionalmente ocupadas” seja no texto constitucional ou nos dispositivos infraconstitucionais e enfrentam na sua efetivação e reconhecimento obstáculos similares. (ALMEIDA, 2004, p. 11).
Um segundo grupo de problemas levantado por Almeida (idem) envolve áreas de uso comum de outros grupos tradicionais que são identificados a partir de suas diferentes atividades produtivas (aqui estão inclusos pescadores, seringueiros, quebradeiras de coco, mangabeiras etc.). Nesse sentido, o autor chama atenção para o peso político que os conflitos envolvendo a falta de efetivação dos direitos dos povos tradicionais pode ter na instituição das legislações locais (Constituições Estaduais) que regulamentam e definem as terras tradicionalmente ocupadas também para esses grupos.
A efetivação dos novos dispositivos da Constituição Federal de 1988, contraditando os velhos instrumentos legais de inspiração colonial, tem se deparado com imensos obstáculos, que tanto são urdidos mecanicamente nos aparatos burocrático-administrativos do Estado, quanto são resultantes de estratégias engendradas por interesses de grupos que historicamente monopolizaram a terra. Mesmo considerando a precariedade dos dados quantitativos disponíveis é possível asseverar que os resultados de sua aplicação pelos órgãos oficiais têm se mostrado inexpressivos, sobretudo no que tange às terras indígenas, às comunidades remanescentes de quilombos e às áreas extrativistas. (ALMEIDA, 2004, p. 11).
No caso dos indígenas, de acordo com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), os dados apontam que, até o ano de 2017, 42 terras estão em fase de delimitação, 73 estão sendo declaradas, 14 sendo homologadas e 435 terras já foram regularizadas, somando um total de 564 terras. (BRASIL, [20--?]). Com relação às comunidades remanescentes de quilombos, a Fundação Palmares ([20--?]) aponta que até o momento foram reconhecidas e expedidas 3.004 certidões de reconhecimento de terras quilombolas no Brasil. Com respeito aos extrativistas, segundo os dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA) no ano de 2018, um total de 333 reservas extrativistas foram legalizadas e estão sendo geridas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). (BRASIL, 2018).
Vale ressaltar que essas medidas de reparação dos danos causados com o modelo de colonização escravista são mínimas e ocorrem lentamente, considerando-se o uso econômico do monopólio da terra e seu papel na dinâmica da produção de riquezas do país. Veremos, a seguir, como os conflitos socioambientais envolvendo povos tradicionais são, na atualidade, resultantes desses processos macroeconômicos que indicam a ampliação do papel predatório do capital sob a natureza, especialmente em países periféricos, escondidos sob o mito da vocação agrária ou agroexportadora brasileira.
3 CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS ENVOLVENDO POVOS TRADICIONAIS NO BRASIL: dilemas não tão “novos” na formação social brasileira
O modelo econômico historicamente adotado pelo Brasil baseou-se na produção de bens primários e no agronegócio para exportação, tendo por base o monopólio da terra por um reduzido número de famílias. Essa tendência tem se renovado neste momento de crise mais recente do capital, a partir dos anos de 1970, quando refluem os investimentos externos diretos de capital internacional na produção industrial, especialmente aquela localizada em países periféricos.
Vale aqui um pequeno parêntese: a montagem do parque industrial no Brasil, ocorrida a partir de meados da década de 1950 e, com mais intensidade, nos anos da ditadura militar, teve caráter associado e dependente do capital monopolista. Com a crise econômica e o desinvestimento internacional essa industrialização tardia foi sistematicamente desmoronando e dando lugar ao que ficou conhecido como desindustrialização, ao longo dos anos 1980 e 1990.
É diante desse panorama que ressurge o discurso da vocação agrária inaugurando a chamada reprimarização da economia. (GONÇALVES, 2012). Embora não seja aqui o lugar para aprofundar esse debate, é importante que se diga que a agroexportação volta, ainda a partir dos anos 1990, a ser a principal responsável pelos resultados da balança comercial brasileira e isso, por sua vez, responde a interesses dos monopólios que enfrentam, na atual crise do capital, a iminente escassez de recursos naturais; ou seja, enfrentam uma crise que possui também uma dinâmica ambiental que, em última instância, pode colocar em risco a produção de mercadorias em função da redução de disponibilidade na natureza de algumas matérias primas essenciais.
No capitalismo contemporâneo, marcado pela busca incessante de ruptura das barreiras à expansão do valor, acentua-se a disputa pelos recursos naturais, dirigidas pelas transnacionais e pelos estados imperiais. Esta tendência é discutida por Foster e Clark (2006) a partir do conceito de imperialismo ecológico [...] [que] denuncia a desigualdade estrutural entre as nações do centro e da periferia do sistema. Embora este processo venha se reproduzindo desde a era mercantilista, o fato é que o saque hoje é global e se estende ao conjunto dos recursos naturais. O esgotamento ecológico, particularmente de algumas matérias primas, tem elevado os custos dos fatores de produção e obrigado os capitalistas a incrementarem as práticas predatórias em novos territórios. (SILVA, 2010, p. 90-91, grifos nossos).
Por isso, Gonçalves (2012) denomina esse momento como reprimarização: trata-se do retorno da centralidade econômica de bens primários para a economia brasileira. Mesmo tendo passado por intensivo processo de industrialização que modificou significativamente o perfil das exportações do país, observa-se agora um avanço no volume de exportações de produtos menos industrializados, levando-se em conta, inclusive, o aumento nas exportações de produtos básicos em detrimento dos semimanufaturados e dos manufaturados. Como afirma o Instituto de Economia Agrícola (IEA) (2011, p. 1) os “[...] perfis de agregação de valor mostram exportações crescentes, sendo que quanto maior a intensidade da transformação industrial menor o crescimento verificado”.
Esse processo só se explica pela dinâmica, posta na divisão internacional do trabalho, de reforço do lugar do Brasil como produtor de commodities para a exportação, limitando suas capacidades de desenvolver-se tecnologicamente:
No debate sobre comércio e desenvolvimento há destaque para o conjunto de problemas que são próprios as commodities: baixa elasticidade-renda da demanda; elasticidade-preço da demanda desfavorável; pequena absorção dos benefícios do progresso técnico; reforço de estruturas de produção retrógradas baseadas nas grandes propriedades, que gera concentração do excedente e do poder econômico; concentração da riqueza e da renda, que causa vazamento de renda e pouco dinamismo do mercado interno; restrição externa visto que commodities se caracterizam por alta volatilidade de preços e instabilidade da receita de exportação; rápida e profunda transmissão internacional dos ciclos econômicos; maiores barreiras de acesso ao mercado internacional; escalada tarifária; menor valor agregado; dumping ambiental com redução do nível de bem-estar social e riscos crescentes de litígios comerciais; e, dumping social com redução do nível de bem-estar social e riscos crescentes de litígios comerciais. (GONÇALVES, 2012, p. 4. Grifos originais).
Isso, por sua vez, não pode ser apartado da análise dos obstáculos citados acima para reconhecimento das terras dos povos tradicionais. A centralidade crescente da exploração dos recursos naturais para o capital – de forma mais intensa nos segmentos da mineração e da produção de energia – de algum modo envolve a utilização da terra como recurso.
Nessa dinâmica econômica, temos o Estado como o principal agente legitimador/deflagrador das disputas que envolvem territórios tradicionais no Brasil, as quais serão tratadas aqui como conflitos socioambientais. Little (2001) conceitua conflitos socioambientais como disputa entre grupos sociais derivados dos distintos tipos de relação que eles mantêm com o seu meio. Para esse autor três dimensões básicas devem ser consideradas: o mundo biofísico e seus múltiplos ciclos naturais; o mundo humano e suas estruturas sociais e o relacionamento dinâmico e interdependente entre esses dois mundos. Sendo assim, os conflitos socioambientais acontecem tanto no plano material quanto no simbólico, e estes dois planos estão estreitamente entrelaçados.
Para Acselrad (2004), os conflitos socioambientais surgem quando são envolvidos no mesmo espaço grupos sociais com modos diferenciados de visão, apropriação, significado e uso do território e quando um dos grupos é impedido de dar continuidade às formas sociais de apropriação desse espaço. Os conflitos socioambientais podem ser caracterizados, portanto, de um lado, pela disputa em torno do controle/uso dos recursos da natureza e, de outro, pelos impactos ambientais e sociais decorrentes de determinados usos.
Desse modo, seja por ação ou omissão, o Estado tem contribuído para a sua existência e reprodução em escala crescente, já que é ele o responsável por fazer valer a implementação dos direitos dos povos tradicionais estabelecidos na Constituição. Em outras palavras, na medida em que se compromete com setores do capital na garantia de condições para que se consolide a dinâmica da reprimarização, esse mesmo Estado obstaculiza a titulação das terras de povos tradicionais que fazem dela outro tipo e uso (GONÇALVES, 2012).
Os dados coletados através de pesquisa realizada no mapa da FIOCRUZ permitem uma melhor compreensão acerca desses conflitos da forma como estão dispostos pelo país. Nos deteremos, mais precisamente, à região Nordeste – espaço que foi objeto de pesquisa a partir da qual se originou o presente artigo2.
Até 2014 foram mapeados 158 conflitos socioambientais na região Nordeste. Destes, 107 conflitos envolvem, de alguma forma (embora não exclusiva), povos tradicionais, o que representa um número muito expressivo em relação à totalidade dos conflitos mapeados.
Esse dado torna-se ainda mais significativo quando destacamos a quantidade de conflitos envolvendo terra e/ou territórios tradicionais. Considerando-se esses dados por estado, destaca-se a Bahia, com 37 conflitos sendo que 81,08% destes correspondem a conflitos envolvendo exclusivamente terras e povos tradicionais. Em primeiro plano, talvez isso pudesse ser explicado pela extensão territorial, porém, avaliamos que essa variável não é suficiente, uma vez que observamos outro dado curioso, pensando-se a dinâmica dos estados. Proporcionalmente, o estado de Sergipe ocupa o primeiro lugar no ranking do percentual de conflitos envolvendo povos e terras tradicionais no Nordeste. Isso significa dizer que, apesar de ser o menor estado da região, tomando por base estes mesmos parâmetros, Sergipe apresenta 90,9% do total de 11 conflitos mapeados em suas fronteiras, envolvendo terras e populações tradicionais. O mesmo ocorre com Alagoas, que totaliza 15 conflitos, sendo 79,99% protagonizados por povos tradicionais em disputa por seus territórios. Esse dado supera outro estado de grande extensão territorial, o Maranhão, que possui 65,21% com esse perfil.
Embora na maioria dos casos pesquisados o mapa da FIOCRUZ não aponte, de forma precisa, as motivações que fazem surgir os conflitos, o mesmo oferece uma descrição do conflito que nos permite interpretar, através da classificação dos sujeitos categorizados e dos fatos ocorridos, que a terra é o elemento central dessas disputas.
Os referidos conflitos socioambientais envolvem questões políticas e econômicas que dizem respeito à remoção de povos tradicionais de seus territórios para utilização da terra e outros recursos naturais associados (como a água) para fins de monocultura extensiva ou implantação de empreendimentos úteis à dinâmica capitalista (extração de minérios, construção de portos, etc). De um modo geral, portanto, tais conflitos envolvem a luta pelo reconhecimento do território tradicionalmente ocupado, além de denunciarem as consequências do uso econômico dos recursos – como cercamentos, assoreamento dos rios, poluição, problemas de saúde e até mesmo perseguições e mortes. Nesse sentido é que entendemos não ser possível explicá-los sem referência ao processo de desindustrialização e reprimarização da economia brasileira – processo esse que vem se tornando cada vez mais comum entre os países latino-americanos ricos em recursos naturais.
Um cruzamento dos indicadores coletados no mapa da FIOCRUZ com o projeto de desenvolvimento econômico do país, que foi orquestrado no fim do governo de Fernando Henrique Cardoso e intensificado nos governos de Lula e Dilma com o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC I e II), nos leva a entender por que a terra ganha centralidade nesses conflitos. Podemos dizer mais: leva-nos a entender as razões de termos afirmado que o Estado é o principal agente/deflagrador desses conflitos socioambientais e os motivos de sua intensificação entre os anos de 2010 e 2014.
Nesse sentido, é importante recuperar, ainda que brevemente, um dos resultados da pesquisa realizada sobre conflitos socioambientais no Nordeste. Em 2010 o mapa da FIOCRUZ aponta a existência de 101 conflitos na região. Em 2014 esses conflitos chegam a 158, conforme já apresentamos; ou seja, houve um aumento de 57% no número de conflitos socioambientais na região num período de quatro anos (MAIA et al., 2018).
Isso tende a explicar por que não veem sendo tomadas medidas protetivas que regulamentem o uso dos recursos naturais e/ou que garantam a efetivação de direitos dos povos tradicionais, mesmo considerando que o aparato legislativo que versa sobre tais questões já está consolidado e reconhecido no Brasil. Para Macedo (2015, p. 181),
Apesar de a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais visar à promoção do desenvolvimento sustentável, priorizando o reconhecimento e garantia dos direitos territoriais, culturais e econômicos, os sucessivos conflitos observados nos últimos anos dão conta de que a realidade das práticas que se inserem no mais recente projeto desenvolvimentista se distancia cada vez mais desse ideal conciliador entre progresso e respeito à natureza.
Entendemos, portanto, que o ataque aos direitos destes povos, com foco em seus espaços de reprodução, tem ligação com a inserção subalterna e dependente do Brasil num cenário econômico mundial que legitima a abertura e desregulamentação da política macroeconômica dos Estados Nação atendendo a interesses do grande capital monopolista em crise. Esses fatores agravam a vulnerabilidade social dos povos tradicionais, promovendo um desenvolvimento falacioso que não atende às suas necessidades e é incompatível com seu modo de vida. Ademais, traz consequências para o conjunto da população, especialmente para as frações de classe imersas em graves processos de pauperização absoluta e relativa, uma vez que esse tipo de desenvolvimento se constitui calcado na exploração desenfreada dos recursos naturais; nos volumosos recursos acumulados à custa de incentivos fiscais; no investimento público em obras gigantescas que visam facilitar o escoamento da produção agroindustrial e a produção de energia elétrica para o consumo de multinacionais, a elevadíssimos custos socioambientais e, sobretudo, na disponibilidade de mão de obra barata, dentre outras matérias-primas que subsidiem a reprodução do capital com altas taxas de lucro. Nesse sentido, Macedo (2015, p.183) assevera que
Mais do que nunca, tornam-se necessárias leis capazes de regular a exploração do meio ambiente, bem como políticas públicas voltadas para o acesso mais justo aos recursos naturais e seus benefícios, sobretudo em tempos de capitalismo desregulado, das insaciáveis políticas de privatização dos bens da natureza que testemunham a sempre renovada vocação dos países periféricos como fornecedores de matéria prima, e a corrida desabalada destas nações rumo ao desenvolvimento. Não é bastante salientar que a convicção recente de que a exploração dos recursos ambientais pode cumprir este mister vem sendo estimulada como maneira eficaz para incrementar as economias emergentes.
Essas são algumas das questões envolvidas na lentidão burocrática que retarda o reconhecimento e titulação das terras tradicio- nalmente ocupadas no Brasil. Não obstante possam ser levantadas outras nuances explicativas para esse fato que digam respeito à configuração específica dos estados do Nordeste (ou de outras regiões que não foram abordadas nete breve artigo), é importante não perder de vista esses determinantes e, em decorrência disto, o fato de que os conflitos socioambientais envolvendo povos tradicionais devem ser vistos, sobretudo, como expressões da luta de classes no Brasil.
4 CONCLUSÃO
Tendo por base os dados levantados sobre conflitos socioambientais envolvendo povos tradicionais na região Nordeste, este texto problematizou alguns dos seus principais conceitos, características e determinações. Esperamos ter evidenciado, principalmente, como se dá a participação do Estado nesse processo de obstrução do acesso aos direitos legalmente instituídos para essa parcela da população, cujo modo de reprodução implica numa relação imprescindível com o território.
Ao invés de cumprir e fazer cumprir a Política Nacional de Desenvolvimento dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), o Estado age como financiador do projeto capitalista de desenvolvimento econômico que se reproduz com base na exploração do homem e da natureza. Esta, não conseguindo se recuperar nos ritmos que demanda o capital, produz uma falha metabólica na relação com os homens que faz com que o capitalismo busque sempre novos espaços para sua reprodução, usurpando terras/territórios e desmantelando, entre outras coisas, a cultura e a identidade histórica dos povos tradicionais.
Os dados tratados aqui, expõem um certo números de conflitos até o ano de 2014. Sabemos, contudo, que muitos conflitos surgidos durante e após esse período ainda não se encontram nesta estatística. Outros estudos ainda precisam estimar as inúmeras consequências dos projetos de desenvolvimento, como o PAC, sob os povos tradicionais e seus modos de vida. O exemplo mais conhecido até aqui tem sido a inundação do território indígena para a construção da usina de Belo Monte, mas outros tantos projetos similares estão em curso e seus impactos provocam conflitos socioambientais, evidenciando o quanto a luta pelo território, portanto, é herdeira direta da luta pela terra como uma das expressões da questão social mais persistentes e atuais da sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
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Notas