Resumo: O artigo discute as raízes ideológicas do debate acerca da organização e gestão dos sistemas previdenciários na sociedade capitalista contemporânea. Nesse sentido, duas perspectivas se destacam: a “perspectiva conservadora” e a “pers- pectiva das demandas por seguridade social”. Também aborda como esse deba- te influencia no atual projeto de Reforma do Sistema Previdenciário brasileiro.
Palavras-chave:EconomiaEconomia, sistemas previdenciários sistemas previdenciários, setor público setor público, mercado mercado, cidadania cidadania.
Abstract: The article discusses the ideological roots of the debate about the organization and management of social security systems in contemporary capitalist society. In this sense, two perspectives stand out, the “conservative perspective” and the “perspective of demands for social security”. It also discusses how this debate influences the current project of Reform of the Brazilian Social Security System.
Keywords: Economy, social security systems, public sector, market, citi- zenship.
Artigos - Dôssie Temático
O DEBATE PREVIDENCIÁRIO CONTEMPORÂNEO: “perspectiva conservadora” versus “perspectiva das demandas por seguridade social”
Recepção: 26 Fevereiro 2018
Aprovação: 05 Novembro 2018
Desde a década de 1990, diversos governos vêm tentando reformar o sistema previdenciário brasileiro. A última, denominada reforma da previdência, que tramita no Congresso Nacional – PEC nº 287/2016 – na qual, até fevereiro de 2018, contava com quatro versões1, constitui-se a mais recente.
A pedra angular da atual reforma são as mudanças normativas, as quais não foram alteradas nas quatro versões apresentadas. Essas mudanças podem ser agrupadas em três regras gerais, a saber: a extinção conceitual da Previdência Rural; a mudança na fórmula de cálculo do valor dos benefícios da Previdência Social e da Previdência dos Servidores Públicos, com objetivo de rebaixar todos eles em valor recebido, ao mínimo de 20 pontos percentuais comparativamente aos valores atuais; e, a introdução compulsória do regime privado de Previdência Complementar aos Servidores Públicos dos Estados e Municípios em até dois anos.
Com isso, a proposta da atual reforma do sistema previdenciário brasileiro coroa os esforços do mercado financeiro, que desde o primeiro governo FHC (1995-2002), passando pela reforma de 2003, no primeiro governo Lula (2003-2006), procura abocanhar fatia significativa da poupança forçada dos trabalhadores. Mas, mais do que isso, a atual reforma destrói a política social de Estado, construída a partir da Constituição de 1988.
O objetivo deste trabalho é resgatar as raízes ideológicas do debate sobre a organização e gestão dos sistemas previdenciários na sociedade capitalista contemporânea. Assim, duas perspectivas se destacam: a perspectiva conservadora e a perspectiva das demandas por seguridade social.
O debate entre essas duas vertentes, em sua maioria, situa-se em torno de questões relacionadas à criação de sistemas previdenciários e dos custos econômicos inerentes à sua manutenção. Destaca-se que a importância dada aos custos econômicos dos sistemas de previdência relaciona-se aos efeitos macroeconômicos que o seu financiamento em regime de solidariedade exerce sobre a formação de poupança, o nível de investimento e, principalmente, sobre a distribuição de renda.
São duas visões distintas. Para a Perspectiva Conservadora os sistemas previdenciários são uma compensação necessária, dado o caráter imperfeito dos mercados. Por essa ótica, os sistemas de previdência não representam um direito adquirido. Já, para a Perspectiva das Demandas por Seguridade Social os sistemas previdenciários são uma conquista, resultado de concessões necessárias à legitimação do sistema capitalista que leva à ampliação de direitos, principalmente os sociais. Por essa ótica, os sistemas de previdência são resultado de conquistas sociais históricas e por isso representam um direito adquirido.
Na Perspectiva Conservadora, em termos microeconômicos, prevalece o ideal do Homo Economicus Liberal maximizador e otimizador. Mais precisamente, o homem Walrasiano que é hedonista, utilitarista e individualista. Nessa perspectiva, assume-se como dada a distribuição de renda e não se leva em consideração a evolução histórica dos valores individuais e sociais; ou seja, os indivíduos, mesmo os mentalmente incapazes, são os melhores juízes de si mesmos; por isso, todas as decisões são tomadas individualmente, dado que todos os agentes têm conhecimento de todas as possibilidades possíveis e não existe incerteza quanto ao futuro.
Do ponto de vista macroeconômico, o impacto que o gasto previdenciário tem sobre a economia como um todo é demarcado pela discussão dos aspectos atuariais, financeiros, contábeis, orçamentários e demográficos, da questão e da eficiência produtiva, bem como da consideração que fazem do gasto não como um direito à cidadania, mas como uma compensação financeira social pelas falhas decorrentes dos mercados, a fim de possibilitar certa coesão e estabilidade social do sistema capitalista.
Ou seja, assume-se como hipótese, que os efeitos macroeconômicos do gasto previdenciário são sempre negativos, dado que na aferição dos custos não se levam em consideração as externalidades positivas decorrentes do gasto previdenciário.
Na Perspectiva das Demandas por Seguridade Social os sistemas previdenciários, e por consequência, os direitos previdenciários, são resultados do desenvolvimento do tecido social que se move via luta de classes. Nessa perspectiva, é a ampliação dos direitos, resultado de conquistas históricas da classe trabalhadora que explica o surgimento dos sistemas previdenciários, principalmente os desenhados tendo como pilar de financiamento a solidariedade inter e intrageracional.
Entre as explicações apresentadas para o aparecimento de sistemas previdenciários, tal perspectiva elenca como principais: a) o aprofundamento do processo de industrialização, que fez surgir novos riscos sociais que deverão ser cobertos pela ação protetora do Estado; b) os sistemas previdenciários como resultado de um sistema de legitimação do sistema capitalista; c) os sistemas previdenciários como resultado da ampliação progressiva de direitos – dos civis aos políticos e dos políticos aos sociais; d) os sistemas previdenciários como resultado da capacidade de mobilização da classe trabalhadora e; e) os sistemas previdenciários como resultado do aparelhamento das estruturas institucionais do Estado capitalista.
Dado esse contexto, é interessante responder aos seguintes questionamentos. Primeiro: o que leva (ou o que levou) o sistema capitalista de produção a criar programas obrigatórios de proteção contra os riscos que surgem quando o trabalhador envelhece, ou decorrentes da sua atuação no mercado de trabalho? Existem muitas explicações para esse questionamento, mas para nossos objetivos alinhamos as explicações em conformidade com as duas perspectivas teóricas adotadas para este trabalho.
O segundo questionamento é: como essa disputa teórica, programática e ideológica influencia no debate sobre o sistema previ- denciário brasileiro.
Na próxima seção é apresentada uma classificação para a justificativa de criação de sistemas previdenciários e nas duas seguintes trata-se especificamente da Perspectiva Conservadora e da Perspectiva das Demandas por Seguridade Social, respectivamente. Por fim, nas considerações finais, discutem-se as influências no atual debate previdenciário brasileiro.
Segundo Ferreira (2007), as justificativas para a existência de sistemas previdenciários, em geral são classificadas em três tipos: 1º - existem porque os governos são benevolentes e paternalistas; 2º - existem porque os governos são benevolentes e buscam corrigir as ineficiências dos mercados; e 3º - existem porque são resultados de pressões e de coalizões entre eleitores.
Está claro que no contexto das classificações acima as razões 1 e 2, ou seja, os sistemas previdenciários existem, ou foram concebidos no capitalismo, porque os governos são paternalistas e benevolentes, e, por isso, buscam corrigir as ineficiências ou falhas dos mercados, alinham-se à Perspectiva Conservadora. Isto é, parte-se da premissa de que os mercados não são capazes de garantir proteção satisfatória ao trabalhador durante toda a sua vida. Esta é a premissa basilar que fundamenta o pensamento conservador acerca da questão.
Por outro lado, a terceira razão alinha-se à Perspectiva das Demandas por Seguridade Social e mostra-se histórica e sociologicamente muito mais consistente que as duas primeiras, dado o caráter classista da sociedade capitalista e a necessidade de representação e a disputa política que é evidente, apesar de muitas vezes velada, nas casas legislativas.
Conforme Ferreira (2007), os dois primeiros argumentos dão origem a teorias normativas; isto é, o mundo do dever ser. Numa perspectiva normativa, a previdência seria um bem meritório oferecido por governos paternalistas que gostam de intervir na alocação de recursos, com vistas a incentivar o consumo. (FERREIRA, 2007).
Dentro desse contexto explicitado pelo autor, basta que a previdência se torne um produto atrativo (lucrativo), para que o setor privado assuma o papel de fornecer à sociedade a proteção necessária – o que já acontece! – Pelo menos ideologicamente nos mercados privados de previdência. No entanto, como bem meritório, enquanto não se torna atraente para o setor de previdência privada oferecer o nível de proteção desejada pela sociedade, cabe ao Estado cumprir esse papel. Por isso, o governo é caracterizado como paternalista e benevolente.
Como os objetivos do governo não são exclusiva e diretamente os mesmos do mercado privado, os programas previdenciários oferecidos pelos governos, em sua maioria, são financiados via repartição e garantem a proteção individual por meio da participação na forma de contribuições definidas.
Para Ferreira (2007), prevalece no mundo esse modelo de previdência (de contribuição definida e financiado via regime de re- partição) porque os programas são sempre criados em circunstâncias em que predominam informações assimétricas, o que leva os ofertantes e demandantes a problemas de seleção adversa nos mercados de anuidades. O autor ainda destaca que, somadas a essas circunstâncias, ainda existe o risco moral no caso de indivíduos que podem agir como caronas e se aposentar cedo demais.
Uma segunda justificativa que está em acordo com as razões 1 e 2 apresentadas anteriormente, é que devido as gerações mais jovens apresentarem retornos médios de capital humano maiores que os retornos médios auferidos pelos mais velhos, justifica-se a intervenção do governo, criando compensações para que os indivíduos de capital humano mais baixo saiam do mercado de trabalho.
Ou seja, na ausência de altruísmo intergeracional, deve o Estado estabelecer sistemas previdenciários de repartição e trabalhar como coordenador, regulador e centralizador de um contrato intergeracional implícito, para que se reduzam os custos de transação, de maneira que sejam transferidos dos mais jovens, aos mais velhos, parte do rendimento produzido. (FERREIRA, 2007; TAFNER, 2007).
Uma terceira justificativa, agora numa perspectiva positiva, ou seja, do ponto de vista do mundo que é, os sistemas previdenciários existem devido a conflitos distributivos intra e intergeracionais. Assim, é a escolha pública que deve decidir o grau e a forma de redistribuição de renda inter e intragerações consideradas aceitáveis. (FERREIRA, 2007; FREITAS, 2008; TAFNER, 2007).
Ainda do ponto de vista positivo, há uma quarta justificativa, qual seja, os sistemas previdenciários seriam criados pela eficiência de grupos de interesse. Por essa ótica, os sistemas previdenciários em regime de repartição são maioria porque concentram os benefícios em poucos e distribuem os custos com toda a sociedade (ESPING-ANDERSEN, 2003; MADRID, 2003).
Seguindo a premissa basilar, numa perspectiva estritamente conservadora e de mercado, como dito anteriormente, os sistemas previdenciários são criados porque o mercado não é capaz de gerir os riscos sociais dele originários, o que ocorre porque mercados perfeitamente liberalizados, ou não existem, ou não são capazes de garantir a todos os cidadãos, sem intervenção governamental, proteção suficiente, no que tange aos riscos sociais no período ativo no mercado de trabalho e nem no período de aposentadoria. Dessa maneira, a intervenção governamental é motivada pelo desejo, a princípio, de atenuar a pobreza.
Para Holzmann, Packard e Cuesta (2001), com o envelhecimento das populações, a urbanização e a globalização, os idosos terão menos acesso a redes de segurança informais no âmbito das famílias e comunidades. Afirmam que o desenvolvimento econômico não é capaz de, em tempo hábil, permitir aos indivíduos acumularem ativos reais e financeiros, que os fariam menos vulneráveis à pobreza na velhice.
Os autores entendem que na esmagadora maioria os idosos do mundo dependem unicamente das formas tradicionais familiares de proteção na velhice, e das estratégias por elas utilizadas para garantir estabilidade de renda. Essas estratégias assumem diversas formas, a exemplo de famílias maiores, preferência por filhos do sexo masculino, migração rural-urbana ou internacional de membros em condições de trabalhar, casamentos estrategicamente planejados, aquisição de ativos reais e financeiros, entre outras.
Em resumo, segundo eles, por essa razão, o Banco Mundial (BM) propôs um sistema previdenciário multipilar, composto por um pilar obrigatório universal gerido pelo governo (minoritário em termos de cobertura e volume de recursos), um pilar obrigatório capitalizado pelo setor privado e um facultativo na forma de previdência complementar, para proporcionar aposentadorias adequadas à população trabalhadora e proteção contra os riscos econômicos, demográficos e políticos ao apoio e à renda previdenciária. (HOLZMANN; PACKARD; CUESTA, 2001).
Quais são então as justificativas microeconômicas, segundo a Perspectiva Conservadora, que justificam a intervenção governamental, no que tange à criação de sistemas previdenciários obrigatórios? Entre as explicações em nível microeconômico, duas chamam a atenção: a primeira é que os agentes individuais são míopes e a segunda é que estes são imprevidentes. Ou seja, aparentemente a racionalidade do Homo Economicus ou mais precisamente a racionalidade liberal não se aplica aos indivíduos quando o assunto é a aposentadoria.
Miopia individual é aquela situação em que os agentes individuais não conseguem prever de forma adequada a necessidade de consumo futuro, e, por isso, não poupam o que necessitariam poupar se o cálculo estivesse correto. O que é um contrassenso, dado que para os conservadores os agentes são racionais.
De acordo com a hipótese das expectativas racionais, as expectativas são formadas com base em todas as informações relevantes disponíveis sobre a variável que está sendo prevista. Além disso, afirma que os indivíduos utilizam as informações disponíveis de maneira inteligente; ou seja, compreendem como as variáveis que observam afetarão a variável que estão tentando prever.
Por esse lado, não se justificam as influências de informação assimétrica, porque os agentes usam as informações disponíveis, nem as explicações que se voltam aos possíveis efeitos deletérios que a existência de programas estatais em regime de repartição teria sobre a formação de expectativas dos agentes individuais, conforme explicado por Thompson (2000), James (2001), Barr (2001) e Mitchel (2001).
Por outro lado, a imprevidência, situação em que os agentes não poupam propositalmente de forma adequada, em que, os membros folgados, intencionalmente, acabam prejudicando os membros precavidos e racionais, não reflete como afirmado por Thompson (2000), o comportamento irresponsável e desajustado do agente individual. Isto porque, de acordo com a economia neoclássica, o nível de utilidade do consumo presente é mais elevado que o nível de utilidade do consumo futuro, e, pela teoria da preferência intertemporal, conforme retomado pela Escola Austríaca, não seria racional adiar o consumo presente em troca de um possível consumo futuro.
Apesar disso, para Thompson (2000), os agentes individuais são imprevidentes e não trabalham poupando de forma adequada para o período da velhice, por isso, deve o Estado impor a disciplina da poupança previdenciária para que os membros prudentes da sociedade não sejam prejudicados pelos membros folgados, de uma maneira que se reduzam as incertezas decorrentes de quando cada agente é responsável pelo próprio futuro.
Ferreira, discordando da afirmativa anterior, defende que as pessoas poupam pouco não por miopia ou racionalidade limitada, mas porque contam com recursos previdenciários ou programas de renda mínima quando se aposentam. (FERREIRA, 2007). O autor entende que quando o governo oferece programas previdenciários sem a exigência de contribuição prévia, sem vínculo atuarial e financeiro, o mesmo acaba transmitindo informações e criando incentivos que inibem a formação de poupança previdenciária individual.
Segundo James (2001), envelhecer é algo previsível, por isso, uma grande parcela dos recursos usados no período da velhice deve ter origem no autosseguro, pessoas poupando para si mesmas, deslocando seu consumo dos anos produtivos, consumo presente na juventude, para o período improdutivo, consumo futuro na velhice. No entanto, como falta visão – problema da informação assimétrica – o Estado deve exigir que seja obrigatória a poupança previdenciária nos moldes multipilar.
Holzmann, Packard e Cuesta (2001) discordam de James (2001) e afirmam que para as pessoas mais pobres o consumo presente é mais importante que a possibilidade de consumo futuro. Para os autores, a miopia, a incapacidade de reconhecer a utilidade futura, também explica a maior prioridade atribuída ao consumo imediato.
Numa outra vertente, Barr (2001) argumenta que no período da velhice somente dois caminhos são capazes de dar segurança aos idosos. O primeiro caminho seria acumular a produção corrente e usar a poupança formada para suprir as necessidades de consumo futuro, prática que entre suas deficiências, a incapacidade de lidar com as incertezas é a mais evidente, devido principalmente à mudança constante nas preferências dos agentes. O segundo caminho seria trocar a produtividade presente por um direito sobre a produção futura, o que pode ocorrer via a formação de poupança individual de longo prazo, que seria consumida no futuro, sendo usada para adquirir bens e serviços, ou por via fiduciária aplicada aos filhos ou ao governo.
Para o autor, as dificuldades de acumular a produção presente impõem, como caminho mais seguro, garantir um direito sobre a produção futura. Pois, os pensionistas não estão interessados em dinheiro, mas no consumo. O dinheiro é irrelevante a menos que haja produção para os pensionistas adquirirem. (BARR, 2001).
Assumindo como verdadeira a miopia e a imprevidência, estes argumentos presumem que muitas pessoas em idade de trabalhar não cuidariam do futuro voluntariamente. Assim, um ponto essencial para o êxito da implementação de um programa de previdência social é que o governo esteja disposto e tenha condições de obrigar indivíduos e organizações a contribuir. (THOMPSON, 2000).
Para Mitchel (2001), é o trabalhador quem deve focar na prevenção dos riscos de pobreza na velhice, pois o indivíduo é quem deve ser responsabilizado pelo acúmulo de recursos necessários a financiar as necessidades de consumo no período inativo. A autora afirma que a pessoa e sua família podem se aposentar mais tarde e economizar mais por contra própria, assim diminuindo a chance de um consumo insuficiente na velhice, de forma que os sistemas previdenciários lidem somente com o risco individual, o risco nacional2 e o risco decorrente das aplicações nos mercados de capitais (MITCHELL, 2001).
No entanto, apesar de focalizar no indivíduo, a autora dá importância a políticas públicas que otimizem a produtividade dos trabalhadores, pois entende que a redução do risco individual de pobreza na velhice reside na melhoria da educação e alfabetização financeira do trabalhador, melhorando seus ganhos e taxas de poupança no decorrer da vida. Dessa forma, o investimento no capital humano, segundo ela, é a chave para qualquer programa de desenvolvimento, mas a possibilidade de escoamento no programa para idosos pode não ser muito apreciada. Assim, reformas tais como tributária e a racionalização da previdência pública, também terão efeitos positivos sobre os incentivos para os trabalhadores participarem do setor formal e a capacidade dos empregadores em contratar e manter seus funcionários. (MITCHEL, 2001).
Em relação ao autosseguro proposto por Mitchel, James (2001) argumenta que apesar de produzirem problemas relacionados à elevação dos custos administrativos e à necessidade de mecanismos de regulação que podem distorcer os investimentos, a criação de regimes baseados no autosseguro tende a melhorar a eficiência econômica.
Mitchel (2001) ainda argumenta que a criação de sistemas previdenciários obrigatórios do governo é também motivada pela insuficiência ou ausência de instrumentos no mercado financeiro e pelo desejo de proteção dos recursos estatais contra o risco moral e comportamento oportunista de agentes mal-intencionados.
Para Thompson (2000), além da miopia, imprevidência, risco moral, outro fator que justificaria a criação de sistemas previdenciários obrigatórios está associado às incertezas do ambiente macroeconômico, qual seja, a incapacidade que os agentes individuais têm de projetar com certa margem de segurança o futuro.
Em resumo, para os conservadores, é o agente econômico individual quem deve se preparar para o período da aposentadoria; como este é míope e imprevidente e o comportamento do mercado é incerto, cabe ao Estado a responsabilidade de corrigir essas falhas e obrigar os indivíduos a contribuírem para fundos específicos de aposentadoria. A previdência, portanto, não é um direito, e sim um instrumento de compensação financeira, dado os limites do mercado.
No caso brasileiro, o atual projeto de Reforma da Previdência, liderado pelo Executivo e arquitetado pelo mercado financeiro, tem como principal programa ideológico as premissas da Perspectiva Conservadora.
Como foi dito, o núcleo central da atual reforma são as mudanças normativas, com impactos diretos na Previdência Rural; no valor dos benefícios da Previdência Social e da Previdência dos Servidores Públicos; e, a introdução compulsória do regime privado de Previdência Complementar aos Servidores Públicos dos Estados e Municípios, já que os Servidores Públicos Federais foram obrigados a essa mesma regra, quando da Reforma Previdenciária de 2003.
Todas essas mudanças possuem como principal característica a responsabilidade individual de cada cidadão, a sua própria sustentação financeira, o que, por conseguinte, estimula, segundo seus defensores, via capitalização no sistema previdenciário privado, o aumento de sua renda.
Dessa forma, seria eliminado – no entender dessa perspectiva – o desestímulo à contratação no mercado de trabalho, pois os encargos sociais seriam ou eliminados de todo ou sensivelmente diminuídos, o que permitiria aumentar a competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional, aumentando as exportações.
Por fim, reconhecem que o mercado não é totalmente perfeito, de forma que alguns indivíduos são submetidos a situações de carência, admitindo, portanto, a ação assistencial do Estado, financiada através da receita de impostos.
Na Perspectiva das Demandas por Seguridade Social os sistemas previdenciários surgem em meio a demandas sociais mais amplas motivadas pelo aprofundamento do processo de industrialização; pelas necessidades de legitimação do sistema capitalista; pela luta por ampliação progressiva de direitos; pela mobilização da classe trabalhadora e pelo aparelhamento das estruturas institucionais do Estado Capitalista. Por isso, na Perspectiva das Demandas por Seguridade Social, a criação de sistemas previdenciários vincula-se ao surgimento do fenômeno histórico, econômico, social e cultural que dá origem ao que ficou conhecido como Welfare State.
Muito além de questões puramente técnicas, e vinculadas aos mecanismos de mercado e à busca constante da eficiência econômica, por essa ótica são abordadas questões históricas, resultado da luta de classes e envolvem desde princípios filosóficos até questões políticas relacionadas aos embates que deram origem à sociedade tal como a conhecemos hoje.
O fenômeno do Welfare State é resultado do nascimento dos primeiros programas previdenciários; sua história firma-se a partir de finais do século XIX, com a emergência das organizações sindicais e políticas dos trabalhadores ao lado do começo das políticas sociais nos países ocidentais de industrialização avançada, inicialmente previdenciárias e acidentárias do trabalho; perpassa o período em que prevaleceram as ideias keynesianas, dos anos 1940 a 1970, quando os dois choques do petróleo e o crescimento da dívida pública levam à negação do modelo keynesiano, revitalizando correntes teóricas de matriz liberal (monetaristas e novos clássicos), até chegar aos dias atuais com muitos retrocessos, mas mantendo a essência do que foi conquistado pelas classes trabalhadoras (DEAN, 2008; DELGADO; PORTO, 2007; FARIA, 2007; FIORI, 1995; KERSTENETZKY, 2012; MERRIEN, 2007)
Dentro desse contexto, é perfeitamente coerente aplicar ao fenômeno particular (previdenciário) as mesmas teorias que explicam o fenômeno geral (Welfare) dada a forte correlação existente entre ambos.
O desenrolar do Welfare State ocorreu de forma desigual, por isso, o conceito de Seguridade Social como o conhecemos – um conjunto integrado de ações previdenciárias, assistenciais e de saúde que visa à proteção contra os riscos sociais não cobertos por instituição tradicionais como as famílias – em diversos momentos históricos, e, em razão de aspectos regionais, foi influenciado por fatores e princípios filosóficos que estavam alinhados com os acontecimentos e com os interesses de grupos de poder dominantes a cada época.
Isso implica a existência de tipologias de Welfare State, como abordado por Richard M Titmuss (1974) e Esping-Andersen (1990). Tais tipologias evidenciam, na verdade, o nível de proteção social colocado à disposição da sociedade por parte do Estado.
Para Hill, a seguridade pode ser entendida como uma ação coletiva para proteger os indivíduos contra a insuficiência de renda. (HILL, 2006). Efetivamente, essa só pode ocorrer via ações organizadas pela sociedade civil ou implementadas pelo governo na forma de poupanças individuais (previdenciárias) ou seguros mútuos contra desemprego, doença ou velhice. (DEAN, 2008).
Dessa forma, segundo Dean (2008), a Seguridade Social ainda pode ser entendida como um regime de pensões na forma de seguro social – caso americano, ou como um conjunto de ações de previdência e assistência seletiva – caso inglês, em que a essência do Estado de Bem-Estar reside na proteção oferecida pelo governo na forma de padrões mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação e educação, assegurados a todos os cidadãos como um direito político, não como caridade. (FARIA, 2007; WILENSKY, 1975).
Assim, os custos econômicos dos referidos sistemas ficariam a cargo do trabalhador, que arcaria contribuindo compulsoriamente no primeiro caso (americano), para o fundo que garantiria o seguro social a que estes teriam direito, ou, no segundo caso, (inglês), a sociedade arcaria com o custo, pagando impostos de base ampla e o trabalhador contribuiria sobre seus rendimentos.
Esses dois extremos – o caso americano e o caso inglês – apresentam pontos de convergência. O primeiro é o lugar de primazia do direito ao trabalho e ao emprego; o segundo é a existência da democracia e a busca por justiça social e bem-estar em uma sociedade desigual. Pois, nos dois casos, afirmar-se o trabalho e, particularmente, o emprego, significa garantir poder a quem originalmente é destituído de riqueza. Desse modo, consiste em forma eficaz de distribuição de renda e de poder desigual na sociedade capitalista, de forma que a justiça social surge da ação do Estado através de políticas públicas garantidoras e redistributivas – previdenciárias e assistenciais – bem como das relações sociais que afirma o direito ao trabalho como essencial. (DEAN, 2008).
Ou seja, ao Estado caberia como função principal garantir um nível mínimo de participação individual na produção nacional, o que só seria possível com a inclusão de programas de pleno emprego. (FARIA, 2007). No entanto, mesmo assumindo forte papel redistributivo e dando importância à centralidade do trabalho, prevalece sobre o indivíduo, dado o cumprimento de tarefas socialmente elaboradas, a responsabilidade para com o provimento dos recursos destinados ao financiamento seguridade, na forma de contribuições para os sistemas de aposentadorias e os subsídios às políticas assistenciais destinadas às crianças.
Diversas formas de Welfare State acampam, portanto, entre esses dois extremos. No caso americano temos um sistema seletivo e condicional e no caso inglês um sistema de proteção genérico e universal, os quais fornecem distintos graus de segurança. Em ambos os casos os serviços sociais seriam a resposta às necessidades individuais ou coletivas, garantindo a sobrevivência das sociedades (FARIA, 2007).
Segundo Dean (2008), dois princípios nortearam a criação dos sistemas de proteção social e a concepção dos Estados de Bem-Estar Social. O primeiro baseado em uma abordagem hedonista converte-se no século XIX em utilitarismo, e na ideia de que cabe aos tomadores de decisões políticas a promoção da felicidade para o maior número possível de pessoas
Essa filosofia, por definição, justificava o ato de infligir dor a qualquer indivíduo que ameaçasse a felicidade da maioria. (DEAN, 2008). Sob esse princípio nascem sistemas previdenciários e de proteção social seletivos, condicionados à contribuição prévia que tem por objetivo alcançar os pobres e os miseráveis; estes, por sua vez, vêm acentuando a dimensão contributiva em seus sistemas de Seguridade Social, o que historicamente é a marca registrada do modelo bismarckiano. (DELGADO; PORTO, 2007).
O segundo princípio, baseado em abordagem eudaimônica, converte-se no século XIX, devido à influência da ética deontológica kantiana em noções de direito moral universal, segundo o qual todas as pessoas têm direito ao bem-estar, como também ninguém deve prestar-se como instrumento de felicidade de outrem. Sob esse princípio nascem os sistemas previdenciários e de proteção social universal em que as medidas sociais estendem-se para além do mercado de trabalho, o que se tornou uma característica tradicional dos Estados de Bem-Estar-Social beveridgiano. (DEALGADO; PORTO, 2007).
Historicamente e para fins heurísticos, pode-se atribuir às origens dos princípios de assistência social ou de redes de proteção social à era das Poor Law’s e às origens da segurança social ou os princípios de proteção social universalistas à era do Estado do Bem-Estar Social. A distinção costuma ser associada à diferença de abordagem ideológica. A assistência social e a prestação universal são equiparadas a uma combinação de conservadorismo social, por um lado, e/ou de social democracia, por outro, dependendo da abrangência da cobertura e do equilíbrio da ênfase. (DEAN, 2008).
Faria (2007), tratando das tipologias do Welfare State e de regimes de Políticas Sociais, afirma que apesar de uma série de controvérsias em torno delas, dois modelos são facilmente identificáveis e os demais são variâncias ou combinações destes. O primeiro é o modelo bismarckiano e o segundo é o modelo beveridgiano.
O modelo bismarckiano tem origem com as políticas sociais do Chanceler alemão Otto von Bismarck, que as pôs em prática entre 1883 e 1889, em resposta principalmente à ameaça socialista. A principal característica do modelo bismarckiano é seu caráter seletivo ou corporativo e seu propósito explícito de pacificar os operários industriais, minar a organização trabalhista e promover a paz social, o que seria conseguido via a criação de um seguro social contra acidentes de trabalho, invalidez, doença e amparo na velhice. Assim, a Alemanha bismarckiana tornou-se um paradigma para a análise do Welfare State como forma de manipulação bonapartista, isto é, com intervenção preventiva de elites precavidas contra o crescente poder do operariado. (FARIA, 2007).
Para Dean (2008), a tradição bismarckiana, no que diz respeito à seguridade social, acabou por caracterizar os regimes de previdência social corporativa na Europa continental.
O modelo bismarckiano é considerado um sistema de seguros sociais com características semelhantes às dos seguros privados. Os direitos, em forma de benefícios, destinam-se quase que exclusivamente aos trabalhadores assalariados e aos seus respectivos dependentes econômicos, sendo que o acesso a eles é geralmente condicionado a contribuições prévia e os seus valores são definidos pelos valores das contribuições prévias realizadas. O financiamento, em geral, é feito mediante participação dos trabalhadores com base na folha de salários e, em menor escala, por meio do orçamento fiscal. (SILVA, 2011).
Posto isso, os programas eram celetistas ou corporativistas e seus únicos beneficiários eram os trabalhadores industriais (FARIA, 2007; FIORI, 1995; SILVA, 2011). Ademais, funcionava na forma de solidariedade forçada, pois externalizava e pretendia manejar os custos econômicos decorrentes do combate aos riscos sociais fora do Estado, ao mesmo tempo em que promovia o direito social, mantinha livre seu orçamento. (SANTOS, 2008).
É importante lembrar que, tanto a prática quanto a lei básica, a obrigação do Estado com a provisão de bem-estar e com a manutenção da renda era complementada pela ênfase nas obrigações das associações ou grupos privados (principalmente empregadores e sindicatos), das famílias e dos próprios indivíduos com seu próprio sustento. Não se tratava, em absoluto, da obrigação de nivelar as condições de vida dos indivíduos ou da criação de uma rede de seguridade mínima e universal. (FARIA, 2007).
Já o modelo beveridgiano de Estado de Bem-Estar Social tem por marca fundamental “[...] um sistema nacional, universal e gratuito de assistência.” (FIORI, 1995, p. 4) e seguia os passos de Keynes, posto que a seguridade social também era entendida como um mecanismo macroeconômico capaz de assegurar estabilidade, em que bem-estar social e trabalho possuem vínculos indissociáveis, de forma que no modelo beveridgiano os mecanismos de seguridade se adequavam às características do mercado de trabalho da época, tentando associar uma perspectiva humanista a uma lógica administrativa. (FARIA, 2007).
Segundo Silva (2011), é consenso no meio acadêmico o entendimento de que o conceito atual de Seguridade Social foi desenvolvido e cunhado, no que ficou conhecido como Plano Beveridge de Seguridade Social, publicado em 1942 na Inglaterra. Constituiu uma reorganização e recomposição de medidas dispersas de proteção social já existentes na Inglaterra, acrescidas de medidas direcionadas para a ampliação e consolidação dos planos de seguro social e da uniformização de benefícios e da criação de novos benefícios de auxílio. Os novos benefícios criados foram o seguro acidente de trabalho, o abono (ou salário) família e o seguro desemprego. Os auxílios sociais criados foram: auxílio-funeral, auxílio-maternidade, abono nupcial, benefícios para esposas abandonadas, assistência às donas de casa enfermas e auxílio-treinamento para os que trabalhavam por conta própria.
Dentro desse contexto, o plano alinhado com as políticas keynesianas objetivava, antes de tudo, o combate à pobreza, mas traziam fortes elementos que direcionavam a manutenção do pleno emprego, pois afirmava que nenhum plano de seguro social seria bem-sucedido ou satisfatório se existisse desocupação em massa. (SILVA, 2011).
O plano, quando implementado, reforçava o esforço para o pleno emprego, isto porque contemplava como objetivos a unificação das políticas de proteção social e o caráter universal da cobertura das necessidades básicas dos trabalhadores. (MARSHALL, 1967; PEREIRA, 2002; SILVA, 2011).
Do ponto de vista do financiamento, o modelo beveridgiano difere do modelo bismarckiano ao exigir recursos da sociedade como um todo, na forma de impostos arrecadados pelo Estado, de contribuições diretas dos cidadãos (empregados e empregadores), o que se fazia necessário devido à universalidade de cobertura, a prestação de benefícios sem a exigência de testes de meios, ao caráter distributivo do programa e principalmente pela alocação de recursos do orçamento fiscal no financiamento da proteção social. (SILVA, 2011).
Para Faria (2007), o Plano Beveridge concebia um Estado de Bem-Estar cuja principal função seria compensar os indivíduos pela perda de salários.
Do ponto de vista do Bem-Estar, Arretche argumenta que a adoção do seguro social compulsório e do Serviço Nacional de Saú- de, cobrindo, com garantia estatal, os riscos inerentes à vida coletiva para todos os membros da sociedade, representou o encontro defini- tivo da sociedade inglesa com o bem-estar. Tal produto, cujos traços centrais se encontram acabados, ainda que sujeito a contínuo movi- mento, não é dependente de correntes de pensamento ou partidárias. As sucessivas alternâncias entre Partido Trabalhista e Conservador no poder têm pequena influência no curso do processo, ainda que possam ter influência sobre a ênfase no caráter estatal ou privado, voluntário ou compulsório de determinados programas. Assim, não é o Governo Trabalhista no poder, por exemplo, que explica o advento do Estado de Bem-Estar Social em 1946, mas as forças sociais propulsadas pela guerra. As duas guerras (bem como a depressão) são, contudo, incidentes que vieram a acelerar a evolução lógica do sistema, dado que criaram um sentimento nacional de solidariedade propício ao desenvolvimento de programas de proteção social. (ARRETCHE, 1996).
No caso brasileiro, não obstante o caráter conservador do Congresso Nacional, à época da Constituinte, as forças progressistas conseguiram impor um modelo de seguridade social pautado pelos princípios da cidadania.
Esse princípio foi o mesmo que orientou a universalização da proteção social dos países capitalistas desenvolvidos, após a Segunda Guerra Mundial e mesmo durante os anos de 1970 e 1980. Ainda que as economias desses países começassem a apresentar problemas ao final da década de 1970, principalmente devido à retração do crescimento econômico, à elevação das taxas de desemprego, ao surgimento de déficits fiscais e ao aumento do nível de preços, os sistemas de proteção social ampliaram seu campo de ação, incorporando novos segmentos em sua cobertura. Os exemplos mais característicos dessa fase são: o fato de passar a ser reconhecido como desempregado o trabalhador sem emprego que nunca trabalhou e o surgimento de programas de renda mínima, animados pelo princípio da cidadania e não entendidos como uma mera ação assistencial.
Para garantir os direitos do cidadão no campo da seguridade social, os constituintes estabeleceram um esquema de financiamento com recursos provenientes dos orçamentos das áreas federal, estadual e municipal, e de contribuições sociais, calculadas sobre o salário, o faturamento e o lucro líquido. (BRASIL, 1988, art. 195).
Saliente-se que os constituintes também defendiam que as fontes de financiamento da seguridade social não seriam distintas de seu conceito. Em outras palavras, consideravam, ao ser eleita a cidadania e não o mérito como a referência para o direito à proteção social, estabelecido que a sociedade deveria, a cada ano, discutir e definir de que forma seria realizada a partilha do conjunto de re- ceitas previstas para a seguridade social. Isso significa dizer que os constituintes se colocaram contra o estabelecimento de vinculação de receitas no interior da seguridade social. A única exceção ficou por conta do PIS/Pasep, que passou a ter uso exclusivo do programa seguro-desemprego e do pagamento do abono PIS/Pasep, sendo 40% de sua arrecadação destinada a empréstimos realizados pelo BNDES às empresas. (MARQUES; BATICH; MENDES, 2003).
O objetivo do estudo foi abordar a questão previdenciária a partir de duas perspectivas distintas, quais sejam, a Perspectiva Conservadora e a Perspectiva das Demandas por Seguridade Social. Como visto, o debate em sua maioria situa-se em torno de questões relacionadas à criação de sistemas previdenciários e dos custos econômicos inerentes à sua manutenção.
Observou-se, também, que a importância dada aos custos econômicos dos sistemas de previdência relaciona-se aos efeitos macroeconômicos que o seu financiamento em regime de solidariedade exerce sobre a formação de poupança, o nível de investimento e principalmente sobre a distribuição de renda.
Para a Perspectiva Conservadora, os sistemas previdenciários são uma compensação necessária, dado o caráter imperfeito dos mercados; por essa ótica os sistemas de previdência não representam um direito adquirido.
Para a Perspectiva das Demandas por Seguridade Social, os sistemas previdenciários são uma conquista histórica, resultado de concessões necessárias à legitimação do sistema capitalista que leva à ampliação de direitos, principalmente os sociais.
Na Perspectiva Conservadora, em termos microeconômicos, assume-se como dada a distribuição de renda e não se leva em consideração a evolução histórica dos valores individuais e sociais, ou seja, os indivíduos, mesmo os mentalmente incapazes, são os melhores juízes de si mesmos, por isso, todas as decisões são tomadas individualmente, visto que todos os agentes têm conhecimento de todas as possibilidades possíveis, e não existe incerteza quanto ao futuro.
Na Perspectiva das Demandas por Seguridade Social, os sistemas previdenciários, e, por consequência, os direitos previdenciários, são o resultado do desenvolvimento do tecido social que se move via luta de classes. Nessa perspectiva, é a ampliação dos direitos resultado de conquistas históricas da classe trabalhadora que explica o surgimento dos sistemas previdenciários, principalmente os desenhados, tendo como pilar de financiamento a solidariedade inter e intrageracional.
O debate está longe de terminar. Mas, com a rápida transformação nas estruturas da economia mundial e na sociedade contemporânea, a luta político-ideológica entre essas duas perspectivas tende a ser cada vez mais acirrada.
No Brasil, como foi dito, o projeto da atual Reforma da Previdência é uma defesa do neoliberalismo como modo de regulação da sociedade e a destruição da política social do Estado. Isso fica claro ao analisar as três regras gerais apontadas anteriormente.
No que toca à Previdência Rural, a extingue conceitualmente, pois a desvincula do conceito de trabalho em regime de economia familiar, explícito no texto constitucional original (BRASIL, 1988, art. 195, parágrafo 8), vinculando-a à contribuição compulsória na safra, que ficaria atribuída ao produtor rural individual. Assim, desaparece o regime de economia familiar e, principalmente, sua forma de contribuição atual sobre a comercialização da produção, quando esta houver.
O impacto da reforma nos trabalhadores rurais é direto; ou seja, ficam excluídos da Previdência Rural todas as categorias de agricultores familiares, incluídas no conceito vigente, que não tenham capacidade contributiva na safra, isto é, agricultores do semiárido, povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e toda agricultura de subsistência, que por razões mercantis ou sazonais não alcançassem no ano safra o ganho de excedente monetário. Em resumo, os excluídos são os mais pobres, que constituem a esmagadora maioria dos atuais Segurados Especiais do regime de economia familiar.
Quanto ao rebaixamento geral do valor dos benefícios, uma vez aprovada a reforma, afetará todos os trabalhadores segurados da Previdência Social e da Previdência do Serviço Público com salários de contribuição acima do salário-mínimo, pois vai arrastar consigo toda a legislação regulamentar de outros benefícios, tais como, Auxílio-Maternidade e Auxílio-Doença, que têm regras próprias de cálculo do seu valor. De acordo com a nova regra da Emenda Aglutinativa, de 05 de fevereiro de 2018, tudo deverá ser rebaixado a 70% do salário médio de contribuição ao longo da vida laboral, a partir dos 15 anos de contribuição, bem abaixo dos 85% hoje vigentes e para um período mais próximo da atualidade do salário de contribuição.
No que se refere ao regime privado de Previdência Complementar para os Servidores Públicos estaduais e municipais, de acordo com o discurso oficial, o objetivo é o corte de privilégios dos servidores públicos, que além de receberem salários mais altos, se aposentam com uma renda muito superior vis à vis à dos trabalhadores do setor privado. Assim, os servidores públicos passariam de um regime de repartição estatal de ativos e inativos do presente, para um regime privado de capitalização no futuro.
Qual é o impacto dessa regra? Na verdade, amplia fortemente o gasto público líquido dos entes estatais incluídos por 30 a 35 anos, bem como vai requerer mais cortes de serviços públicos, tendo em vista suprir os Fundos Privados constituídos.
Mas, acima de tudo, pode-se afirmar que essa regra descaracteriza totalmente o que se pode definir como Previdência, o papel do que se entende como Previdência Complementar e que não se destina prioritariamente aos servidores públicos. (DELGADO, 2018).
Pode-se demonstrar o argumento anterior fazendo uma leitura da Lei 12.618/2012, vigente atualmente, que instituiu o regime privado de Previdência Complementar, baseado no artigo 202 da Constituição Federal e nas Leis Complementares (nº 108 e nº 109) de 2001.
Na respectiva Lei, o sistema é definido como de contribuição definida, e agora compulsória para Estados e Municípios, mas de benefício não definido. Caracteriza-se estritamente pela capitalização individual das contas de um Fundo, cujo rendimento depende da aplicação em longo prazo da poupança financeira realizada pelo seu grupo gestor.
A única garantia imposta pela lei vigente é de que o operador financeiro desses Fundos ganhe uma comissão, descontada no momento da contribuição, independente do resultado da capitalização. E, também, de que todos os ônus sobre os resultados adversos, seja por má gestão do Fundo, seja por crise econômico financeira externa, serão de exclusiva responsabilidade dos contribuintes – no caso em igual medida, dos servidores públicos aderentes e dos entes estatais a que estejam vinculados.
Essa caracterização confere à poupança financeira individual, assim constituída, o caráter de uma aplicação financeira de risco, sem qualquer garantia que complementará o valor da aposentadoria, sem também qualquer princípio de mutualidade inerente a essas contas (o que sobra na conta de uma pessoa, não supre o que falta na conta de outra); e os resultados financeiros somente estarão positivamente garantidos na lei para os operadores financeiros. Daí porque não se pode falar em Previdência Complementar, segundo o conceito de Previdência Social, como as pessoas a entendem.
Por sua vez, o mais grave à introdução compulsória desse sistema é que ele impõe um custo fiscal exacerbado; no caso, aos Estados e Municípios forçados a adotá-lo. Isto porque esses entes terão que transferir compulsoriamente as contribuições patronais e as contribuições que os servidores fazem acima do teto do Regime Geral da Previdência Social (RGPS, atualmente em R$ 5.356,00) diretamente para as contas privadas dos Fundos instituídos, perdendo, portanto, uma importante fonte de arrecadação do antigo sistema. Mas este continuará integralmente responsável por pagar as aposentadorias e pensões já acumuladas, o que no caso de crise fiscal pré-existente, requererá corte de despesas orçamentárias a serviços públicos, para suprir os Fundos Privados recém-constituídos.
Em conclusão, as duas primeiras medidas examinadas – amputação da Previdência Rural e redução real significativa no valor dos benefícios – são a captura dos recursos dos pobres da Previdência Social para atender ao voraz apetite da acumulação financeira, enquanto que a introdução compulsória da Previdência Privada aos entes federados que ainda não aderiram é a captura dos recursos de fundo público, oriundo de contribuições da classe média funcional, para construção de Fundos de capitalização de risco, sem nenhuma garantia de complementariedade e ainda com impactos fiscais apre- ciáveis durante 30 a 35 anos. (DELGADO, 2018).