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BOLSA FAMÍLIA X SALÁRIO NA REPRODUÇÃO SOCIAL DE FAMÍLIAS POBRES EM BELÉM (PA)
BOLSA FAMÍLIA X SALÁRIO NA REPRODUÇÃO SOCIAL DE FAMÍLIAS POBRES EM BELÉM (PA)
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, núm. 2, pp. 1029-1046, 2018
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 10 Maio 2018
Aprovação: 26 Outubro 2018
Resumo: Este artigo apresenta os principais resultados e análises, provenientes de uma dissertação concluída no ano de 2015, cujo objetivo foi o de compreender como as rendas do trabalho e do Programa Bolsa Família (PBF) se combinam ou se conflitam na reprodução social dos beneficiários e se a percepção da renda do PBF os afastam do trabalho. O método adotado foi o crítico-dialético. Para isso, realiza uma pesquisa qualitativa, com a utilização de entrevistas semies- truturadas com beneficiárias e trabalhadores do PBF de Belém (Pa). A principal conclusão do estudo é que as famílias estudadas tendem a combinar a renda proveniente de distintas formas de trabalho à renda do PBF no processo de reprodução social, preferindo a primeira, devido o valor moral atribuído e que as percepções do PBF oscilam entre o favor clientelista e o direito cidadão.
Palavras-chave: Trabalho, Programa Bolsa Família, reprodução social.
Abstract: This article presents the main results and analysis from master’s thesis com- pleted this year, whose aim was to understand how the incomes of labor and Family Grant Program combine or conflict in the social reproduction of the be- neficiaries and the perception of income GMP take the beneficiaries away from work. The method adopted was the critical-dialectical, qualitative research, for which was used semi-structured interviews with beneficiaries and workers of Bolsa Familia Belém (Pa). The main conclusion is that the studied families tend to combine the income from various forms of work with the income of Family Grant Program in the process of social reproduction, preferring the first due to assigned moral value and that perceptions about the program range between please patronage and the citizens right.
Keywords: Work, Bolsa Família Program, social reproduction.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta os principais resultados de uma dissertação em que a problemática principal ancorou-se nas seguintes questões: como os usuários do PBF no seu processo de reprodução social relacionam a renda proveniente do trabalho (formal ou informal) e aquela recebida do PBF? O PBF afasta as famílias da busca ao trabalho?
A intenção da pesquisa foi analisar qual a relação existente entre a renda do trabalho (salário) e a renda transferida pelo Programa Bolsa Família na reprodução social dos usuários do PBF no município de Belém (Pa). O método histórico-dialético foi escolhido por favorecer a compreensão do fenômeno numa perspectiva de totalidade, ultrapassando a imediaticidade para alcançar o concreto pensado como uma síntese de multiplas determinações. (MARX, 1982a).
O instrumento mais coerente com o método escolhido para a realização da pesquisa foi a entrevista semiestruturada, que permite o aprofundamento da apreensão qualitativa do fenômeno estudado. Os sujeitos escolhidos foram usuários e técnicos do PBF de três Centros de Referência de Assistência Social (CRAS)1 de Belém, ligados à Fundação Papa João XXIII (FUNPAPA)2, por se acreditar que as falas de pessoas inseridas no problema de pesquisa são reveladoras dos processos e determinações que se ocultam no fenômeno.
Os sujeitos entrevistados foram cinco técnicos, dois Cadastradores e onze usuárias do PBF, ligados aos CRAS Terra Firme, Jurunas e Cremação. As usuárias foram escolhidas com auxílio dos técnicos, mediante as variáveis: tipo de trabalho (formal/informal) e tipo de família (monoparental/nuclear).
Em todas as entrevistas, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi apresentado, lido e assinado; a gravação realizada, quando autorizada, e as próprias entrevistadas escolheram seus pseudônimos3.
A sistematização e estudo das entrevistas obedeceram à técnica de análise de conteúdo, a fim de compreender as falas no seu contexto próprio, com foco sempre na profundidade da informação para que se obtivesse resultados com maior rigor possível.
Para Bardin (1977), a análise de conteúdo é uma forma metodológica que permite a utilização de vários instrumentos para a coleta de dados. No caso desta pesquisa, adquiriu-se a informação a partir das falas do emissor que, por intermédio da entrevista, a referida mensagem se transformou em texto sistematizado, sendo que, após a transcrição das entrevistas gravadas ou não, foi possível demonstrar, assim, a realidade do objeto pesquisado em sua imediaticidade. Isso serviu de base para a construção de categorias analíticas que respaldam as conclusões deste trabalho (particularidade).
A organização deste artigo está delimitada em três tópicos: o primeiro discute as categorias trabalho e reprodução social, desde a perpectiva lukacsiana da ontologia do ser social; o segundo trata do Programa Bolsa Família no âmbito da política de Assistência Social; e o terceiro apresenta a análise de algumas percepções dos usuários e técnicos4 do PBF sobre a relação entre a renda do trabalho e a renda do PBF.
2 TRABALHO E REPRODUÇÃO SOCIAL
O trabalho é o meio de relação que se estabelece entre homem e natureza: “[...] Como criador de valores de uso [...] uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de socie- dade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana.” (MARX, 1988, p. 50).
Para Iamamoto (2011), o trabalho é uma atividade que utiliza de matérias, produtos, força e meios de trabalho para suprir e criar novas necessidades, conforme as conjunturas, colocando o papel dos indivíduos na sociedade.
Segundo Lessa (1996, p. 3): “[...] Três são os momentos decisivos da categoria trabalho: a objetivação, a exteriorização (Entäusserung) e a alienação (Entfremdung) [...]”. A objetivação representa o processo em que o homem racionaliza sua existência, formulando seus interesses para com o seu trabalho; a exteriorização faz parte da execução desse objetivo, quando a natureza do homem torna-se mais socializável; e a alienação é o processo incorporado a partir do momento que o homem não se identifica mais com o produto do seu trabalho, tornando-se estranho ao processo de produção e reprodução.
As categorias centrais da ontologia do trabalho se expressam pela capacidade teleológica5 (prévia ideação) de transformar a natureza por meio do trabalho e a diferenciação do homem (ser humano) com a natureza (inorgânica e orgânica), o que o torna um ser que efetiva a práxis6. Por ser uma atividade autocriativa, a práxis prefigura a realização do ser social ou ser humano-genérico por meio do alcance do reino da liberdade e da atribuição dos seguintes pressupostos: os homens precisam estar em condições de viver para fazer história, ou seja, precisam satisfazer suas necessidades naturais básicas; e a satisfação dessas necessidades requer o trabalho, produção da vida material. Após satisfeitas todas as suas necessidades, o homem produz novas necessidades (primeiro ato histórico) por meio da re- produção social da vida, ou seja, por meio da interconexão entre os próprios homens. (LESSA, 1996).
A práxis tem um caráter subjetivo, delegado pela capacidade teleológica, e outro objetivo, que corresponde à capacidade de ação. Para ele, somente com o ser social, a práxis se efetiva de fato, porque ela é determinada por meio da relação do homem com a natureza, tornando as ações humanas dotadas de sentido, de valor. (LUKÁCS, 1983). Assim:
[...] A reprodução, enquanto categoria ontológica, diz respeito tanto à esfera de mediações particularizadas que faz de cada movimento histórico o momento da elevação do ser humano a patamares cada vez mais elevados de sociabilidade, como também às formas concretas, particulares, de existência das categorias universais do ser social. (LESSA, 1995, p. 8).
A reprodução, proveniente da sociabilidade do trabalho, é responsável pela diferenciação de esferas ontológicas do ser que, além de manter relações conscientes entre si, mantém uma relação específica com a natureza. A reprodução social subtende as relações de distinção entre as ações teleológicas e causais, bem como a expressão de valores construídos, muitas vezes, arbitrariamente.
Os valores, segundo Lessa (1995), são puramente sociais e tendem a crescer na medida em que avança o processo de sociabilização. Nas relações orgânicas ou naturais, os desdobramentos são repetições das condições do ambiente; já nas sociais, os desdobramentos da reprodução social dependem do processo de execução do trabalho.
O trabalho acompanha a história humana porque é condição essencial de formação do ser. Knapik (2005) afirma que, historicamente, o trabalho foi visto como castigo. A palavra trabalho vem do latim Tripalium nome de um instrumento de tortura que forçava os escravos a trabalhar. O trabalho como dignificante é uma incorporação do modelo capitalista de produção. Por isso, o processo de construção da sociedade burguesa iniciou uma forma de renovação dos padrões sociais de desenvolvimento do trabalho, sendo que a implantação do sistema de mercado foi inexoravelmente ligada à dominação e apropriação da natureza e do homem pelo capital. O homem, se assim procedesse, estaria, a partir de então, instaurando o sistema capitalista de produção e reprodução social, subordinando todos os elementos sociais aos padrões de mercado.
Conforme Batista (2014), a brutalidade envolvia o trabalha- dor no movimento de vigiar as descobertas mecânicas e vender as suas forças de trabalho com a ilusão de que estão trabalhando livres das amarras do capital. Sem o trabalho, a vida humana não se re- produziria, mas quando a vida humana se resume exclusivamente ao trabalho, este se torna um esforço penoso que aprisiona e uniteraliza os indivíduos. Essa é a dupla dimensão presente no processo de trabalho sob a égide do capital, conforme Polanyi (2000, p. 198) explica:
[...] Separar o trabalho das outras atividades da vida e sujeitá-lo às leis do mercado foi o mesmo que aniquilar todas as formas orgânicas da existência e substituí-las por um tipo diferente de organização, uma organização atomista e individualista. Tal esquema de destruição foi ainda mais eficiente com a aplicação do princípio da liberdade de contrato. Na prática, isto significava que as organizações não-contratuais de parentesco, vizinhança, profissão e credo teriam que ser liquidadas, pois elas exigiam a alienação do indivíduo e restringiam, portanto, sua liberdade. Representar esse princípio como o da não interferência, como os liberais econômicos se propunham a fazer, era expressar simplesmente um preconceito arraigado em favor de uma espécie definida de interferência, isto é, que iria destruir as relações não-contratuais entre indivíduos e impedir a sua reformulação espontânea [...].
A apropriação do trabalho pelo mercado é a mesma forma de apropriação do homem, que deve se deixar dominar pelos padrões do mercado, vendendo sua força de trabalho para sobreviver e incor- porar valores, baseados na concepção de que o trabalho assalariado é o trabalho útil nessa sociedade, fundamento da cidadania econômica e a garantia da participação na produção social. Ou seja, o objetivo era instituir a civilização do trabalho e seu status de qualificação da identidade social.
Na atualidade, a forma de dominação capitalista do trabalho ampliou-se, então, em condições explícitas para o precariado como uma nova camada social essencial para a existência da forma global de capitalismo contemporâneo. (ALVES, 2012). Assim, as relações de trabalho se complexificam na medida em que o capitalismo avança. Isso torna as relações e a classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2006) diversificada; torna o trabalho central na expansão da forma social de reprodução valorativa do trabalho alienado; e permite que as relações sociais sejam submissas ao desenvolvimento do trabalho.
Nesse contexto, define-se o salário como a retribuição do valor de uso do trabalho enquanto capacidade humana. Para Marx (1982b), o salário é a redução do valor de troca a uma expressão comum: o preço da utilização da força de trabalho que, por sua vez, não é uma criação das relações capitalistas. Ocorre que o volume do salário não é de natureza constante, baseia-se na lei da economia que rege a manutenção do trabalhador e de sua família, ou seja, o preço da mercadoria é estipulado pelo valor do salário.
“O caráter ilusório do salário deriva do fato de que a condição sob a qual ele é pago é o assentimento em realizar uma certa quantidade de trabalho, ao passo que o que realmente está sendo comprado e vendido é a força de trabalho do operário [...]” (MARX apud BOTTOMORE, 2012, p. 331). O valor da mercadoria é definido, conforme a quantidade de força de trabalho despendida em sua produção; já o lucro, por sua vez, é obtido, mediante a venda da mercadoria somado ao valor de trabalho não pago ao trabalhador, descontando-se o valor gasto para manutenção e compra de máquinas e matérias primas.
Assim, para Marx (1982b), os salários se modificam em valores opostos aos lucros, quando um cresce o outro reduz e, isso, influencia o valor da mercadoria e, certamente, a condição de sobre- vivencia do trabalhador, tornando-se, portanto, uma renda enganosa, uma vez que ela somente é paga, após um dia de execução do trabalho, mas não corresponde a todo esse período.
Cabe considerar que o pefil predominante dos usuários do PBF revela que a sua inserção no mercado de trabalho é predominantemente informal e precária, devido principalmente ao baixo nível de formação, o que determina uma relação de elevada exploração do trabalho, desproteção e/ou desemprego e baixíssimos rendimentos. Essa realidade credencia esse segmento populacional ao direito a políticas de transferência de renda.
3 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: assistência social através de Transferência de Renda Condicionada
A pobreza nem sempre foi alvo de proteção estatal. As necessidades humanas básicas eram atendidas por redes primárias de proteção como as famílias ou aldeias, por exemplo, em que o atendimento assistencial dependia de critérios como o pertencimento comunitário e/ou a inaptidão para o trabalho. Os primeiros esforços estatais de atendimento à pobreza no mundo ocidental datam do século XVIII, quando a sociedade salarial estava em desenvolvimento e regeu a principal forma de reprodução social, considerada digna para a sobrevivência por intermédio da generalização do trabalho assalariado. Dessa forma, inaugurou-se uma série de obrigações sociais e políticas para o Estado, que serviram de base para a execução de Políticas Sociais em vários países ocidentais e na América Latina, dentre eles, o Brasil. Essa primeira experiência foi conhecida como Welfare State (CASTEL, 2012; PEREIRA, 2011).
Dessa maneira, desenvolveu-se a noção de ampliação da cidadania7, como a expansão dos direitos sociais e desenvolvimento das ações de Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência Social) no segundo pós-guerra. Isso, principalmente, em alguns países europeus, onde houve avanço das ações de proteção social com base em direitos. Com essas ações desenvolveram-se os Programas de Transferência de Renda na forma de ação estatal de combate à pobreza. Nessa experiência se incorpora a ideia de condicionalidade, em que se busca combinar a transferência de renda com a inserção dos beneficiários em outras políticas sociais (GIOVANNI; SILVA; YAZBEK, 2011).
Essas experiências de Programas de Transferência de Renda orientaram-se na perspectiva de redistribuição da riqueza socialmente produzida, direcionados para pessoas extremamente pobres (indi- gentes), com ênfase para cobertura de crianças e jovens por serem mais vulneráveis. Os objetivos dos Programas de Transferência de Renda e dos demais programas de Políticas Sociais são o de realizarem distributivamente a ampliação da cidadania, tendo em vista a superação da pobreza e a diminuição das desigualdades sociais.
A ampliação da abrangência dos Programas de Transferência de Renda ocorreu, principalmente, a partir dos anos 1990 com a renovação tecnológica no mundo do trabalho, orientada pela internacionalização da economia e sob a hegemonia do capital financeiro.
[...] Daí decorrem situações que demandam ações do Estado para a proteção do amplo contingente de trabalhadores que passam a vivenciar o desemprego estrutural ou a precarização do seu trabalho, ampliando e disseminando a pobreza, tanto nos países em desenvolvimento como nos países de capitalismo avançado. (GIOVANNI; SILVA; YAZBEK, 2011, p. 15).
No Brasil, essa proposta avança no ambiente de expansão de direitos sociais, onde a Constituição de 1988 consagra a Assistência Social como um novo direito cidadão e dever estatal, tensionando a velha cultura assistencialista. A aprovação da Lei Orgânica (1993), da Política Nacional8 (2004) e do Sistema Único de Assistência Social (2004) demonstra a existência de avanços normativos, programáticos e sociais nesse período, comprovados com uma pequena redução da pobreza e da desigualdade social. (PEREIRA, 2011). Mas ao mesmo tempo, a implantação do projeto neoliberal, no Brasil desde Collor/FHC, tensionou tais avanços reduzindo seus impactos, mas não impedindo as conquistas. (COUTO, 2010).
Os Programas de Transferência de Renda, em nosso país, foram sendo construídos desde o projeto de lei do senador Suplicy em 1991, passando pelo Programa Fome Zero do Governo Lula em 2004, culminando com o recente Brasil sem Miséria de Dilma (2013). Nesse processo, as prioridades de proteção social foram evoluindo e concentraram-se no combate à fome, à participação na escola e na rede pública dos serviços de saúde, tendo em vista a interrupção do ciclo da pobreza e tendo a família como centro da ação.
A culminância do processo de implantação do Programa de Transferência de Renda no Brasil foi a fusão de vários programas criados nos governos FHC, como os programas: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), Auxílio-Gás, Cartão-Alimentação. Estes, unificados, geraram o Programa Bolsa Família. (GIOVANNI; SILVA; YAZBEK, 2011).
Conforme os dados oficiais do Ministério do Desenvolvimen- to Social, enquanto Programa de Transferência de Renda, como pro-posta de Renda Mínima de Cidadania, tem dois objetivos principais: erradicar as necessidades materiais que causam fome e estimular o desenvolvimento das famílias por meio do estímulo à capacitação e trabalho especializado. Por ser uma proposta apoiada e estimulada pelos mecanismos internacionais, o PBF tem como condicionalidades estímulos para inserção das famílias nas Políticas Públicas de direito.
As condicionalidades envolvem a participação da família de forma efetiva nas Políticas Sociais da Saúde e Educação Públicas, conforme a faixa etária e condição de desenvolvimento. Os critérios de acesso envolvem a comprovação de que as famílias estão em situação de pobreza ou extrema pobreza (recebem valores per capita de R$ 89,01 a R$ 178,00), conforme a renda per capita de até um quarto de salário mínimo. Para se cadastrar é necessário que a família esteja inscrita no Cadastro Único dos Programas Sociais.
Os valores atualizados do recebimento do Benefício financeiro são: Benefício Básico (R$ 89,00), Benefícios Variáveis a serem acrescentados conforme as condições e inserções na família de pessoas Gestanes, Nutrizes, Crianças e Adolescentes de 0 a 15 anos no valor de R$ 41,00 por cada pessoa nestas condições, podendo somar no máximo a R$ 205,00 (5 benefícios/mês). Há ainda um benefício destinado a cada jovem entre a faixa etária de 16 e 17 anos no valor de R$ 48,00, podendo a família acumular até dois benefícios.
No governo Dilma, a proposta do PBF foi ampliada e integrada ao Plano Brasil Sem Miséria. Este plano engloba a valorização da particularidade das diversas regiões do Brasil, a integração dos diferentes órgãos regionais e nacionais, com capacidade de gerir soluções coerentes com cada realidade, com cada caso de miséria apresentado, conforme as regiões.
O plano foi implantado em 2011 por meio do Decreto n. 7492/11, com o objetivo de elevar a renda, propiciar ocupações, ampliar o acesso e participação nos serviços públicos das famílias mais pobres do país por meio da inclusão produtiva, acesso aos serviços de Políticas Sociais e a garantia de transferência de renda (PBF) para o alívio imediato da pobreza extrema, articulando-o com as demais Políticas Sociais.
Assim, o PBF se estabelece num amplo campo de tensões em que se enfrentam o imperativo de reprodução social dos segmentos mais pobres da sociedade sob a égide da acumulação do capital, num mercado de trabalho cada vez mais seletivo e precarizante. Esse programa coloca em jogo históricas lutas por direitos sociais, transferindo renda sem contrapartida de trabalho àqueles segmentos. Como repercute e é compreendida nas famílias beneficiárias do programa o encontro de rendas de fontes diferentes (trabalho e política social)?
4 A RELAÇÃO/TENSÃO ENTRE A RENDA DO TRABALHO E DO PBF PARA/ENTRE OS SUJEITOS DA PESQUISA
[...] o grande dilema da proteção social capitalista de ontem e de hoje, seja o de como lidar com o exército de reserva criado pelo próprio sistema para se reproduzir; ou de como fazer para evitar que os pobres aptos para o trabalho, mas sem trabalho, ao serem protegidos como sujeitos de direitos, fiquem “mal acostumados” e deixem de se guiar pela ética capitalista, de acordo com a qual só o trabalho enobrece o homem e o livra da miséria material e moral. (HIGGINS apud PEREIRA, 2013, p. 643, grifo do autor).
Neste tópico são apresentados os principais resultados e análises da pesquisa de campo realizada e que incidem diretamente no dilema que envolve a proteção social estatal, mediante a transferência de renda e a renda do trabalho, conforme exprime essa epígrafe.
Para facilitar a exposição e o contraste entre as visões foi utilizada a seguinte categorização dos informantes:
- beneficiários:
– Dona de casa/chefe de família;
– Dona de Casa/família nuclear;
– trabalhadora informal/chefe de família;
– trabalhadora informal/família nuclear;
– trabalhadora formal/família nuclear; e trabalha- dores do PBF:
– técnicos (assistentes sociais (02), psicólogos (03) e
– cadastradores (03). E para realizar a análise e comparação de suas percepções sobre as duas categorias analíticas, eixos da dissertação: renda do trabalho e renda do PBF.
No que tange à renda do trabalho há convergência entre as tendências de pensamento entre os beneficiários; é perceptível que tanto as que trabalham formalmente quanto as que trabalham informalmente acreditam ser o trabalho a condição essencial de subsistência. Uma curiosidade é que somente aquelas que não têm trabalho formal é que acreditam ser o trabalho um valor, uma forma de dignidade. Talvez isto aconteça pelo fato de elas considerarem que trabalho é apenas o formal e, como não o tem, valorizem-no com afinco. Isso também pode ser verificado na tendência que afirma o trabalho formal como um interesse ainda não alcançado.
A questão do trabalho ser uma alternativa para não se envolver com drogas e criminalidade está presente no discurso do senso comum de uma forma geral, mas nas entrevistas, somente uma usuária do PBF citou essa questão, uma vez que a criminalidade é presente em seu cotidiano. Os direitos à segurança e a possibilidade de consumo, trazidos pelo ato de trabalhar, estão presentes em muitas entrevistas e são valorizados tanto para as que trabalham informalmente ou formalmente.
Todas as categorias de beneficiárias afirmam-se orgulhosas por serem mulheres trabalhadoras, por não ficar parada e nem esperando cair do céu. A autoafirmação como alguém que busca melhorar de vida faz parte do seu modo de pensar, faz-nos perceber que o trabalho, para as beneficiárias, é valorizado como possibilidade de uma vida melhor e de contribuição na renda familiar; porém, a organização do trabalho na sociedade atual dificulta que elas alcancem o mercado de trabalho formal.
Por vários momentos, as informantes demonstraram tristeza por não terem um trabalho digno para responder às necessidades de suas famílias, revelado nas verbalizações constantes de que elas são honestas, viradas, que não ficam esperando a ajuda de ninguém, que correm atrás no ímpeto de melhorar suas vidas.
Isso permite afirmar que o trabalho formal, para as beneficiá- rias, representa a segurança de se alcançar um salário, e de que não são ociosas por receberem a renda do PBF. Mesmo que essa renda ocupe uma posição complementar para a maioria, e central para as outras, em sua reprodução social. Isso não ocorre porque elas são acomodadas, e sim porque não alcançam o mercado de trabalho for- mal, devido à conformação e as seletividades perversas do mercado de trabalho capitalista contemporâneo.
Quando se trata teoricamente do assunto, é constatado que o trabalho, na perspectiva ontológica, transforma o ser biológico em um ser social por meio do processo de reprodução social, advindo da forma como o ser social produz seus meios de subsistência e se relaciona com a natureza, ou seja, a forma como o homem produz reflete a forma como ele se reproduz socialmente. O trabalho, portanto, quando se afasta desta perspectiva, torna o homem cada vez mais mecanizado. (ANTUNES, 2006).
No caso das beneficiárias, elas estão fortemente aprisionadas à alienação que o PBF é um não trabalho, que não são capazes de reconhecer que a renda que recebem advém da mediação do seu próprio trabalho na sociedade. Logo, estão alienadas das relações que produzem a reprodução social dessas beneficiárias.
Quanto às percepções das beneficiárias sobre o PBF, verificou-se que elas reconhecem-no como um auxílio na criação dos seus filhos e, muitas vezes, como única alternativa de sobrevivência diante da miséria em que se encontram. Isso é reconhecido por elas como um ponto positivo no programa, mesmo que o visualizem como uma complementação da renda, visto que manifestam interesse em realizar trabalhos remunerados, em serem assalariadas ou autônomas, além de admitirem que o valor da renda do programa não é suficiente para suprir todas as necessidades de suas famílias.
A noção de que o valor do PBF deve ser investido na capacitação profissional de seus filhos é uma esperança para essas mulheres, principalmente para as que exercem trabalhos informais e/ ou são donas de casa, para que os filhos tenham mais chances de se inserir no mercado de trabalho, uma vez que elas não tiveram essa oportunidade. Esse ponto da análise, além de evidenciar que as beneficiárias não são ociosas por receber o PBF, ainda as coloca em um patamar inferior na reprodução social comparável aos inúteis para o mundo, conforme Castel (2012).
É importante ressaltar que as beneficiárias defendem que o valor da renda do programa deveria aumentar porque não supre as necessidades de suas famílias. Assim, é recorrente a comparação da renda do PBF com o salário mínimo, um patamar muito almejado pelas beneficiárias. As beneficiárias que não têm trabalho formal valorizam intensamente o salário mínimo; este é visto como garantia de que não se vai passar fome, de que se alcançará um patamar aceitável no atendimento às necessidades básicas e outras. Esse é um fator importantíssimo nessas considerações porque se compara a duas categorias importantes: a do princípio da menor elegibilidade (PEREIRA, 2011) e a do caráter ilusório e mistificado do salário. (MARX, 1982b).
As beneficiárias que trabalham informalmente e são chefes de família são as que dão destaque para o fato de o PBF contribuir para o acesso às outras Políticas Sociais (intersetorialidade) e para o cuidado com os filhos, assim como oferece possibilidades de acesso a cursos profissionalizantes e ao mercado de trabalho, como alternativas para ascensão social, visto que são as únicas fontes e referências para as suas famílias e sem compreender que a falta de acesso ao mercado de trabalho é uma questão estrutural.
Ainda a mesma categoria de beneficiárias reconhece que é necessário combater as fraudes porque elas atribuem o merecimento da renda ao critério da necessidade, da pobreza e consideram também que é necessário levar em consideração as particularidades das famílias na execução das ações do programa, uma vez que, em muitas situações, elas já se sentiram excluídas nos serviços oferecidos pelo programa.
Sobre o sentimento de vergonha por se encontrarem recebendo o PBF, identificou-se que ele existe, mas as usuárias justificam que as pessoas que demonstram preconceito diante da sua inserção no programa, assim o fazem porque não dependem deste e têm boas condições, ou seja, não conhecem a realidade da pobreza de perto. Isso ratifica o que Martins (1982) afirma sobre as classes não capitalistas, são as que mais colaboram para o desenvolvimento do modo de pensar das classes capitalistas, principalmente por acreditarem que somente os beneficiários mais necessitados devem depender da proteção estatal e que estes, ainda, são inferiorizados.
Quanto à visão dos profissionais e cadastradores do PBF a respeito do PBF e de suas tensões, houve uma diversificação de opiniões. Houve profissionais que fizeram uma análise de que o PBF não estimula a ociosidade, mesmo que a sociedade assim o qualifique (Informações verbais)9, e houve profissional que afirmou que os beneficiários do PBF são acomodados e que, caso o programa se extinguisse, eles escolheriam o lado do crime para sobreviver, porque, segundo ela, estariam “[...] acostumados a ganhar dinheiro fácil” (Informação verbal)10.
Porém, os profissionais tenderam a identificar que os beneficiários procuram o programa, motivados por suas condições precárias de sobrevivência. Analisam o programa como um avanço, reconhecem que há fraudes e que ele deve ser executado com mais qualidade. Identificam, ainda, que o trabalho informal na realidade das famílias do PBF por uma cultura, por uma forma de vida ou até mesmo para não perder o programa (Informação verbal)11. Essa questão é um ponto crítico da análise porque, conforme o que foi identificado na fala das beneficiárias, o trabalho informal não é uma opção, é uma imposição estrutural.
A assistente social 1 afirma que uma das falhas do PBF é o não investimento em capacitação profissional. (Informação verbal)12. Essa afirmação também contribui para a crítica do discurso de que os beneficiários são ociosos, mas evidencia que os profissionais não possuem a análise sobre a forma como o trabalho está incorporado na sociedade. Conforme discutido no item 1 deste trabalho.
No que tange às respostas que tratam de cidadania, é perceptível que os profissionais reduzem seus discursos apenas à discussão de direitos e que os beneficiários estão evoluindo na visualização da categoria, porque brigam por seus direitos. É claro que esta é uma dimensão essencial da cidadania, mas ainda há um percurso a se alcançar, tendo em vista que as outras nuances dessa categoria, como a participação social, por exemplo, ainda não existe na reprodução social das entrevistadas.
A Assistente Social 1 identifica que um dos problemas do programa é que o encaminhamento para o mercado de trabalho é falho, porém, isso não é uma prerrogativa direta do programa; já a Psicóloga 1 afirmou que os beneficiários são acomodados, a partir da ideia de que eles sempre vão procurar “[...] algo que estejam dando.” (Informação verbal)13. Essas análises reforçam a ideologia de que a autonomia do cidadão somente pode ser oferecida pelo trabalho as- salariado e não pela aquisição de direitos, por intermédio da medição de Políticas Públicas Sociais e reforça também a culpabilização/ individualização da pobreza. Ambas as tendências de pensamento se ancoram no discurso neoliberal.
5 CONCLUSÃO
O tempo atual é tempo de retração de direitos conquistados em prol da lógica mercantil. Até mesmo em tempos de capital global, o desenvolvimento da sociedade mundial e a aproximação das culturas que ela preconiza, torna-se um desafio para as formas de proteção social e para a ampliação do trabalho explorado, visto que a interação entre diferentes realidades pode favorecer a submissão ao mercado ou abrir as mentes das pessoas para a dura realidade que o capitalismo impõe (JESSOP, 2013).
O fortalecimento da ética do trabalho, nos tempos atuais, está atribuindo à proteção social a perspectiva de mérito, poder de consumo e fortalecendo a lógica comercial. A proteção social está passando por um processo de laborização e monetização. (PEREIRA, 2011).
Nesse momento, ressalta-se que o presente estudo buscou trazer elementos preliminares para pensar a antiga tensão entre trabalho e proteção social no capitalismo na particularidade do PBF em Belém (PA), confirmando algumas teses aqui expostas e focando nas questões: como as rendas provenientes do trabalho e do PBF são relacionadas no processo de sobrevivência dos mais pobres? O programa os afasta do trabalho tornando-os ociosos?
Na análise dos dados da pesquisa de campo foi verificado que ambas as rendas são valorizadas pelos beneficiários, mesmo que a renda proveniente do salário seja a preferida, tendo em vista a posição moral e social que este ocupa, como garantidor do bem estar, da dignidade e da cidadania. Porém, na maioria das vezes, os beneficiários não têm como conseguir um trabalho formal, recorrem ao trabalho informal, precarizado e lutam para manter a renda do PBF com o intuito de complementar e manter a sua sobrevivência e de sua família, assim como ampliar suas possibilidades de consumo e de alcançar uma vida melhor, materialmente falando.
O trabalho é um valor social e moral para as beneficiárias, ainda que muitas não reconheçam, e o PBF é valorizado por essas famílias e pelos profissionais que trabalham com ele em razão de atender diretamente às situações de pobreza e facilitar o acesso às outras Políticas Sociais, assim como a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho.
Em síntese, é possível estabelecer algumas conclusões preliminares ao objeto estudado:
• A percepção predominante dos beneficiários sobre a sua reprodução social é de inferiorização em uma sociedade que valoriza mais as pessoas que vivem da renda do trabalho, mesmo reconhecendo a importância que a renda do PBF tem nas suas vidas.
• O usuário do Programa Bolsa Família não é ocioso, é um trabalhador que não tem espaço no mercado de trabalho formal diante das novas configurações que ele assumiu na história.
• Os sujeitos trabalhadores do PBF oscilam entre a valorização do benefício como um direito e alguns que o percebem de forma assistencialista.
• Os profissionais reconhecem a realidade de miséria vivida pelos usuários do PBF, ratificam a importância do PBF na reprodução social dos usuários.
• Alguns profissionais reproduzem o discurso neoliberal de que o PBF estimula a ociosidade afastando-os do trabalho.
As conclusões parciais a que se chegou, por intermédio desta pesquisa, revelam o difícil momento que vivem as conquistas das classes que vivem do seu trabalho, em particular, aquelas que sequer têm acesso ao mercado de trabalho que, apesar de reconhecidamente importante para a elevação da qualidade de vida dos países pobres, dada a crise mundial estrutural, põem em risco esse patrimônio que precisa ser defendido sob pena da barbarização das relações humano-sociais.
REFERÊNCIAS
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Notas