Artigos - Temas livres
Recepção: 19 Julho 2018
Aprovação: 08 Outubro 2018
Resumo: No início dos anos 90, o Brasil foi o país pioneiro na adoção de modelos de transferências fiscais baseados em indicadores ecológicos (RING, 2008a). Portugal (SANTOS et al., 2012) e França (BORIE et al., 2014; SCHRÖTER- -SCHLAACK et al., 2014) também adotaram modelos de transferências fiscais semelhantes. Outros países, como Alemanha (RING, 2008b; SCHRÖTER- -SCHLAACK et al., 2014), Suíça (KÖLLNER; SCHELSKE; SEIDL, 2002) e Polônia (SCHRÖTER-SCHLAACK et al., 2014), já possuem estudos que simulam modelos de transferências fiscais ecológicas (TFE), seja teoricamente, ou já inseridos no processo político. A partir dessa contextualização, este artigo tem como objetivo fazer uma revisão da literatura existente, apresentando as similaridades e as diferenças entre os modelos de TFE. A principal contribuição deste estudo é apresentar o estado-da-arte da literatura internacional sobre a temática, com foco nas políticas para a conservação da biodiversidade.
Palavras-chave: Transferências fiscais ecológicas, políticas para a conservação da biodiversidade, Brasil, Portugal e França.
Abstract: In the early 1990s, Brazil was the first country to adopt models of fiscal trans- fers through the introduction of ecological indicators (RING, 2008a). Following the Brazilian experience, Portugal (SANTOS et al., 2012) and France (BO- RIE et al., 2014; SCHRÖTER-SCHLAACK et al., 2014) also adopted similar models of fiscal transfers. Other countries such as Germany (RING, 2008b; SCHRÖTER-SCHLAACK et al., 2014), Switzerland (KÖLLNER; SCHEL- SKE; SEIDL, 2002), and Poland (SCHRÖTER-SCHLAACK et al., 2014) al- ready have proposals for ecological fiscal transfers (EFTs) either theoretically simulated or already in the political process. Based on this background, this paper seeks to review the current literature on EFT and present similarities and differences between the experiences in these three countries. The main contri- bution of this study is to present the state-of-the-art international literature on this topic, focusing on protected areas for biodiversity conservation.
Keywords: Ecological fiscal transfers, biodiversity conservation policies, Portugal, Brazil, and France.
1 INTRODUÇÃO
No início dos anos 90 no Brasil, o estado do Paraná adotou um mecanismo de transferência fiscal entre estados e municípios utilizando critérios ecológicos por meio da transferência do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS). Logo após essa experiência, outros estados brasileiros adotaram mecanismos semelhantes, inserindo inclusive critérios sociais, como foi o caso do Estado de Pernambuco. Outros dois países, Portugal (SANTOS et al., 2012) e França (BORIE et al., 2014; SCHRÖTER-SCHLAACK et al., 2014), também adotaram mecanismos de transferências fiscais com base em critérios ambientais.
A literatura internacional passou a adotar o nome de Transferências Fiscais Ecológicas (TFE) (RING, 2008a; RING; BARTON, 2015), para esse instrumento de política pública, que no Brasil é conhecido popularmente pelos nomes ICMS Ecológico, ICMS Verde, ou ICMS Sociambiental. Muito já foi escrito sobre esse mecanismo no Brasil, seja em termos descritivos (MOURA, 2015; PAULO, 2009), como também recentemente em termos de avaliação de seus impactos. (SILVA JÚNIOR; SOBRAL, 2014). Por outro lado, ainda não existe na literatura nacional trabalhos que façam estudos comparativos de esquemas TFE entre países. Por essa razão é que este estudo realizou um recorte analítico da literatura internacional sobre a temática, com o foco na conservação da biodiversidade.
Outro ponto a destacar é que atualmente apenas o Brasil, Portugal e França adotaram esquemas de transferências fiscais utilizando critérios ecológicos, razão pela qual foram selecionados como base de análise político-estatal-institucional ao longo do trabalho. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo descrever as experiências na adoção das TFE no Brasil, Portugal e França, fazendo assim um estudo abrangente e descritivo acerca dos esquemas adotados. Adicionalmente, este estudo faz um breve comentário da literatura que trata dos esquemas de TFE já simulados teoricamente e/ou já inseridos dentro do processo político. Sendo assim, caracterizando-se como um artigo de revisão, a metodologia adotada baseou-se na leitura sistemática dos trabalhos citados ao longo do trabalho, e consequente análise crítica.
Este estudo está estruturado em mais seis seções. A próxima, aborda os conceitos básicos do federalismo fiscal e das transferências intergovernamentais. A terceira seção aborda temas sobre federalismo ambiental e suas inter-relações com instrumentos econômicos para a conservação da biodiversidade. A quarta seção aborda os conceitos básicos das TFE, com foco em políticas públicas para a conservação da biodiversidade. A quinta seção descreve as experiências internacionais na utilização das TFE, especificamente o caso do Brasil, Portugal e França. Esse capítulo também explora algumas propostas de TFE já em andamento em outros países, sejam teóricas e/ou aquelas já inseridas dentro do processo político. Por fim, a sexta seção faz uma conclusão dos principais pontos discutidos.
2 FEDERALISMO FISCAL E TRANSFERÊNCIAS FISCAIS INTERGOVERNAMENTAIS
A literatura do federalismo fiscal faz parte de um subcampo dos estudos das finanças públicas. De acordo com Oates (1999, p. 1120, tradução nossa), esta área de conhecimento “[...] explora os papéis dos diferentes níveis de governo e as formas como eles estão inter-relacionados através de instrumentos fiscais”. A literatura do federalismo fiscal, dependendo da perspectiva a ser adotada na análise das relações intergovernamentais, possui duas grandes abordagens teóricas: 1) normativa: e 2) positiva. (BOADWAY; SHAH, 2009; OATES, 1999, 2005).
Na perspectiva normativa, a literatura concentra-se em como as relações intergovernamentais deveriam ser em termos da economia do bem-estar, ou seja, explora situações ideias no que diz respeito à “[...] alocação e redistribuição de recursos na sociedade”. (BOADWAY; SHAH, 2009, p. 17, tradução nossa). Já na abordagem positiva, a literatura descreve como as instituições políticas real- mente funcionam, aproximando-se assim de estudos abordados pela Ciência Política, especialmente os da public choice. Nesse sentido, os estudos do federalismo fiscal em termos positivos se afastam da abordagem meramente normativa baseada na economia do bem-estar, pois levam em consideração o fato de que as decisões governa- mentais também são influenciadas pelos burocratas autointeressados (maximização de votos, por exemplo). (BOADWAY; SHAH, 2009; OATES, 2005).
Um ponto em comum que envolve ambas as abordagens, seja em países federados ou não, são as preocupações relacionadas com o dilema entre centralização versus descentralização das atividades governamentais. Um dos princípios conhecidos na literatura do federalismo fiscal é o da equivalência fiscal. (OLSON, 1969). Esse princípio tem origem nos estudos da public choice, e seu principal argumento é de que deve existir uma jurisdição separada para a pro- visão de cada bem público na sociedade. Olson (1969, p. 483, tradução nossa) explica que deve existir “[...] uma instituição governa- mental separada para cada bem coletivo com um limite único, para que possa haver uma correspondência entre aqueles que recebem os benefícios de um bem coletivo e aqueles que pagam por ele”. Nesse sentido, se uma jurisdição é responsável por um determinado bem público, o custo marginal decorrente do excedente produzido pela provisão do mesmo deve ser compensado por um benefício marginal de igual valor. Dessa forma, garante-se uma provisão ótima de bens públicos. (BOADWAY; SHAH, 2009; OLSON, 1969).
Atrelado ao princípio da equivalência fiscal, surge também na teoria do federalismo fiscal o problema do free rider. Isso ocorre quando uma jurisdição fornece um bem ou um serviço público que excede os limites atribuídos ao seu território sem receber nenhum tipo de compensação por isto, enquanto outras jurisdições se beneficiam positivamente desse bem e/ou serviço. Diante desse problema, e baseado na lógica da ação coletiva (OLSON, 1965), uma das formas de inibir o comportamento free rider é fornecer um incentivo positivo para cada jurisdição, de forma que as mesmas consigam perceber a importância de suas ações para a produção de um bem coletivo. Esse tipo de incentivo positivo pode se dar por meio de instrumentos econômicos baseados em transferências fiscais intergovernamentais.
As transferências fiscais intergovernamentais “[...] fazem parte do sistema de arranjos fiscais federais-estaduais que tem o objetivo de coordenar a tomada de decisão fiscal nos mais altos níveis de governo: federal e estadual”. (BOADWAY; SHAH, 2009, p. 306, tradução nossa). Elas também são utilizadas tanto em governos que adotam sistemas federados, como também em governos não federados. (BOADWAY; SHAH, 2009; OATES, 1999). As transferências fiscais intergovernamentais possuem dois tipos de classificações que variam de acordo com o propósito a ser atingido. A primeira, conhecida como transferência fiscal do tipo condicional ou eamarked, é realizada entre governos de diferentes níveis para suprir custos/ despesas decorrentes do fornecimento de bens e/ou serviços públicos específicos. Já a segunda, conhecida como transferência do tipo incondicional ou para propósito geral, são as transferências fiscais utilizadas “[...] para fornecer amplo apoio em uma área geral de despesas subnacionais.” (BOADWAY; SHAH, 2009, p. 307, tradução nossa).
3 FEDERALISMO AMBIENTAL E INSTRUMENTOS ECONÔMICOS PARA A CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE
As relações intergovernamentais também lidam com o problema da alocação ótima de bens públicos ambientais entre diferentes níveis de governo. Conforme varia a natureza do bem público ambiental a ser provisionado, altera-se também a responsabilidade do nível governamental. Oates (2001) apresenta três tipos de bens públicos ambientais com diferentes características: 1) bem público puro de natureza ambiental, que possui amplo alcance entre jurisdições, mais especificamente em âmbito nacional (como é o caso da provisão de ar puro); 2) bens públicos de natureza local, como é o caso da recolha e disposição de resíduos sólidos; e 3) bens públicos de natureza local, mas que possuem alcance entre jurisdições vizinhas. Esse último caso pode ser exemplificado pela inadequada disposição e recolha de lixo em um município, o que acaba gerando poluição do ar e dos mananciais em municípios vizinhos, uma externalidade negativa.
No primeiro tipo de bem público ambiental, a literatura aponta que a centralização das políticas ambientais em nível nacional tem como objetivo definir os padrões de qualidade ambiental que seriam mais adequados para todas as jurisdições (OATES, 2001), como é o caso das políticas nacionais de meio ambiente adotadas em vários países. No segundo tipo de bem público ambiental, os padrões ambientais são definidos mediante os padrões exigidos em nível local, ou seja, de acordo com o nível de geração de lixo em cada jurisdição. Neste caso, aplica-se o princípio da subsidiariedade, onde somente serão atribuídas funções para o governo de maior nível caso o governo de nível local não possa cumpri-las. (RING, 2002). Por fim, vários bens públicos de natureza ambiental que são atribuídos aos governos locais também acabam afetando o nível de qualidade dos bens públicos de responsabilidade de jurisdições vizinhas, como é o caso da criação de uma área destinada a proteção da biodiversidade.
Especialmente no segundo e no terceiro tipo de bem público ambiental, existem dois tipos de situação que podem ocorrer entre os governos locais: 1) competição entre as jurisdições vizinhas para atrair investimentos econômicos, o que acaba gerando o relaxamento do nível de qualidade ambiental, resultando em externalidades negativas (FREDRIKSSON; MILLIMET, 2002; MCCONNELL; SCHWAB, 1990; OATES, 2001); e 2) a geração de externalidades positivas decorrentes da provisão de um bem público em nível local. No último caso, isso acaba estimulando o comportamento free rider entre jurisdições. (LIST; BULTE; SHOGREN, 2002). Como estratégias para reduzir tais problemas, os governos acabam implementando um conjunto de instrumentos de políticas públicas, além dos tradicionais que são baseados no comando e controle. Trata-se das cooperações intergovernamentais (FEIOCK, 2008), como também dos instrumentos econômicos, por meio dos incentivos e compensações financeiras.
Ring e Barton (2015) descrevem que existem dois tipos de instrumentos econômicos que podem ser utilizados nas políticas de conservação da biodiversidade e na governança dos ecossistemas. O primeiro, tem o objetivo de internalizar externalidades negativas, baseando-se na utilização de tributação ambiental, taxas e encargos. Já o segundo, baseia-se em pagamento por serviços ambientais e nas transferências fiscais ecológicas, ambos com o objetivo de internalizar as externalidades positivas.
4 TRANSFERÊNCIAS FISCAIS ECOLÓGICAS
De acordo com Ring e Barton (2015), as TFE são as transferências fiscais intergovernamentais baseadas em critérios ambientais. O primeiro país a adotar esquemas de TFE foi o Brasil, no início dos anos 90. (RING, 2008a; SAUQUET; MARCHAND; FÉRES, 2014). Posteriormente, outros países adotaram modelos semelhantes, como foi o caso de Portugal (SANTOS et al., 2012) e França (SCHRÖTER-SCHLAACK et al., 2014). Um ponto importante a ressaltar é que esse instrumento de política pública, por se tratar de uma transferência fiscal intergovernamental, pode ser adotado tanto em países federados como também em países não federados. A literatura relacionada às TFE trata este mecanismo como sendo um instrumento de política pública voltado para políticas de conservação da biodiversidade, apesar de existir também uma variedade de aplicações práticas em outras dimensões políticas, como é o caso do estímulo ao gerenciamento de resíduos sólidos no Brasil. (PAULO; RING; CAMÕES, 2017).
Teoricamente, existem pelo menos três justificativas diferentes para a adoção das TFE em políticas para a conservação da biodiversidade. A primeira, explica que muitos países adotam o princípio da subsidiariedade para as políticas ambientais, situação em que os governos locais suportam os custos da conservação da biodiversidade. Nessa perspectiva, as TFE funcionam como um instrumento de compensação financeira. A segunda, baseada no princípio da equivalência fiscal (OLSON, 1969), explica que os governos locais que possuem área delimitada para a proteção da biodiversidade, devem ser compensados pelos benefícios que são usufruídos pelas jurisdições vizinhas (por exemplo: ar mais puro, água de uma nascente, entre outros). Já a terceira explica que quando os governos locais adotam uma área protegida, seja por vontade própria ou por imposição de um governo de maior nível, acabam perdendo a oportunidade de explorar economicamente aquele território. Nesse sentido, as TFE funcionam como um instrumento de compensação pela perda financeira que o governo local deixou de receber pela não exploração econômica daquele território.
Além dessas justificativas, a literatura das TFE também aponta a possibilidade desse mecanismo funcionar como um instrumento de incentivo para os governos locais na criação de mais áreas protegidas. Baseando-se na lógica da ação coletiva (OLSON, 1965), a ideia é a de que esse tipo de instrumento funciona como um incentivo positivo para cada município na produção de um bem público ambiental, tornando-se dessa forma importante a participação de cada jurisdição na produção do bem comum.
5 EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS
5.1 Brasil
No Brasil, as Transferências Fiscais Ecológicas têm como base a repartição do ICMS. De acordo com a Constituição Federal do Brasil, artigo 155º, esse imposto é de competência dos estados, e, conforme artigo 158, parte do que é arrecadado do mesmo deve ser obrigatoriamente transferido para os municípios. A Figura 1 demonstra como esta distribuição deve ser feita.
Do valor total arrecadado pelos estados proveniente do ICMS, setenta e cinco porcento pertencem aos mesmos. Vinte e cinco porcento devem ser repassados aos municípios mediante dois critérios:
1) três quartos, que corresponde a dezoito virgula setenta e cinco porcento dos vinte e cinco porcento que pertencem aos municípios, devem ser repassados, no mínimo, “[...] na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios.” (BRASIL, 1988); e 2) até um quarto, que corresponde a seis virgula vinte e cinco porcento dos vinte e cinco porcento destinados aos municípios, devem ser repassados de acordo com os critérios estabelecidos pela lei de cada estado. Baseado nesse último critério, até um quarto dos vinte e cinco porcento, alguns estados inseriram critérios ambientais para a transferência de parte do produto arrecadado do ICMS aos municípios.
O primeiro estado a adotar o esquema de transferência fiscal ecológica foi o Paraná no início dos anos 90. (RING, 2008a; SAUQUET; MARCHAND; FÉRES, 2014). Na sequência, São Paulo,Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Amapá, Rondônia, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Mato Grosso, Tocantins, Acre, Ceará, Rio de Janeiro, Piauí, Goiás, Paraíba, e Paraná criaram legislações para adotar também esquemas de TFE. Contudo, o estado da Paraíba ainda não implementou efetivamente as TFE em seu território devido a uma decisão proveniente de uma ação direta de inconstitucionalidade movida pelo governo estadual, que entendeu que havia incompatibilidade do esquema proposto com aquilo que reza a Constituição Federal. Dessa forma, existem efetivamente apenas dezesseis estados, entre os vinte e seis, com um esquema de TFE em andamento. A Figura 2 apresenta o atual estágio da distribuição espacial da adoção desse instrumento entre os estados.
Um ponto que merece atenção é que em muito desses estados, se observa uma grande diferença entre o tempo da promulgação da primeira legislação pelos governos estaduais e a sua efetiva adoção. (PAULO; CAMÕES, 2017). No caso do estado do Mato Grosso do Sul, por exemplo, a primeira legislação que instituiu o esquema de TFE foi no ano 1994. Porém, apenas no ano 2001 foi que ocorreu a efetiva regulamentação e consequente implementação do mesmo. Pode-se destacar também outros exemplos de grande demora entre a primeira legislação e sua efetiva implementação, como é o caso dos estados do Piauí e de Rondônia
No caso brasileiro, os esquemas de TFE foram sendo conhecidos popularmente por meio de nomes distintos. Em alguns estados, como é o caso do Rio de Janeiro, elas são conhecidas pelo termo ICMS Ecológico, enquanto que em Pernambuco, pelo termo ICMS Socioambiental. Ainda é possível encontrar o termo ICMS Verde, e Lei Hobbin Hood, no Estado de Minas Gerais. (RING, 2008a). Nesse último caso, o nome remete aos efeitos redistributivos que são característicos das TFE. Outro ponto importante a ressaltar no caso brasileiro é que os critérios adotados variam bastante entre os estados que possuem tais tipos de transferências fiscais. Existem dois principais critérios que são utilizados nas TFE no Brasil: unidades de conservação e gerenciamento de resíduos sólidos (ver tabela 1).
No que diz respeito ao critério relacionado com unidades de conservação (UC), alguns estados utilizam abordagens quantitativas (área da unidade de conservação) e qualitativas (condições físicas da UC) para mensuração da conservação da biodiversidade, como é o caso de Minas Gerais. Um ponto que a literatura das TEF aponta, é o potencial incremento dos custos de transação para os governos locais com a adoção de critérios qualitativos. (RING; BARTON, 2015; PAULO, 2017). Em relação ao critério relacionado com resíduos sólidos, alguns estados utilizam critérios relacionados ao estímulo à criação de aterros sanitários, unidades de compostagem, e a práticas de reciclagem entre os governos locais (como é o caso de Pernambuco).
5.2 Portugal
Portugal inseriu o esquema de TFE por meio da Lei de Finanças Locais (LFL) em 15 de janeiro de 2007. De acordo com Santos e outros (2012), a receita gerada por essas transferências correspondem, em média, a sessenta porcento dos orçamentos municipais. Isto pode ser explicado, segundo os autores, porque Portugal passa por um problema de baixa densidade populacional e com baixo nível de produção econômica, fazendo com que as TFE sejam extremamente importantes para os orçamentos locais.
As TFE também integram um conjunto maior de instrumentos de política pública para a conservação da biodiversidade. Com o objetivo de atingir as metas traçadas pela Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) aprovada durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro em 1992, foi criada a Rede Natura 2000. Compõem essa rede países da União Europeia, consequentemente incluindo Portugal. De acordo com o artigo sexto da LFL “[...] o regime financeiro dos municípios e das freguesias deve contribuir para a pro- moção do desenvolvimento económico, a preservação do ambiente, o ordenamento do território e o bem-estar social.” (PORTUGAL, 2007, p. 321), e, para isso, os municípios devem sofrer uma discriminação positiva no âmbito do Fundo Geral Municipal (FGM) devido a restrição do uso da terra pela adoção de áreas protegidas impostas pela Rede Natura 2000. A LFL também ressalta que os municípios são beneficiados por abrigarem áreas protegidas que não são incluídas no âmbito da Rede Natura 2000.
Em síntese, o artigo vigésimo sexto da LFL determina que a distribuição do FGM destinada aos municípios deve ser realizada da seguinte forma: a) cinco porcento de forma igualitária para todos os municípios; b) sessenta e cinco porcento em razão da população residente e das pessoas que dormem em estabelecimentos hoteleiros e em parques de campismo; c) vinte e cinco porcento em razão da área do município, ponderada por um fator relacionado com a amplitude do mesmo; d) três por cento em razão do município abrigar área protegida relacionada com a Rede Natura 2000; e) dois porcento em razão do município abrigar área protegida não incluída na Rede Natura 2000.
Em estudo recente, disponível ainda como um artigo para discussão, Droste e outros (2017) avaliam a hipótese de que a introdução das TFE neste país está incentivando os municípios possuírem mais áreas protegidas em seus territórios, levando também a um pro- cesso de descentralização das decisões de conservação da biodiversidade. Aplicando uma abordagem quantitativa por meio de séries temporais Bayesiana, os autores concluem que existe um resultado significativo na relação entre o incremento de áreas protegidas municipais e nacionais após a introdução desse mecanismo.
5.3 França
De acordo com Schröter-Schlaack e outros (2014), o modelo de TFE na França é baseado em uma dotação fixa transferida para os municípios que possuem em seus territórios parques nacionais e/ ou parques naturais marinhos. De acordo com os autores, as TFE foram introduzidas no sistema de transferência fiscal neste país no ano 2006, com o objetivo de compensar os custos que os municípios suportam pela criação e gestão de áreas protegidas. Por outro lado, segundo Borie e outros (2014) e Schröter-Schlaack e outros (2014), pelo fato do mecanismo das TFE considerarem apenas como sendo áreas protegidas os parques nacionais e os parques marinhos; apenas menos do que zero virgula cinco porcento dos municípios, até o mês de março do ano 2008, tinham recebido recursos proveniente desse instrumento de política pública. Esse percentual correspondia a cento e cinquenta municípios, dos 36.783, que eram elegíveis a receber o recurso correspondente das TFE.
O esquema francês de TFE também funciona como uma espécie de compensação aos municípios que possuem restrições no uso da terra pelas áreas protegidas na adoção de parques nacionais e/ou parques naturais marinhos associados a Rede Natura 2000. De acordo com Schröter-Schlaack e outros (2014), as TFE francesas baseiam-se, dessa forma, na ideia da solidariedade ecológica. Por outro lado, segundo os mesmos autores, devido ao esquema nesse país ainda ser bastante limitado em relação aos seus critérios ambientais, já existem debates em torno de expandi-lo com o objetivo de considerar também outras políticas ambientais.
5.4 Síntese dos Esquemas de Transferências Fiscais Ecológicas Adotados
Os modelos adotados de TFE entre o Brasil, Portugal e França diferem em alguns aspectos. No caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988 permite que cada estado adote seu próprio esquema de transferência fiscal para os municípios com base no produto arrecadado do ICMS, respeitando os limites já apresentados no item 5.1. Já no caso Europeu, tanto em Portugal como também na França, boa parte dos padrões ambientais já são estabelecidos pela Rede Natura 2000. Assim, as TFE adotadas no Brasil podem funcionar ao mesmo tempo como um instrumento de compensação e de incentivo para os municípios, enquanto que no caso Europeu, o incentivo fica muito limitado, figurando assim muito mais como um instrumento político de compensação financeira.
Outro aspecto relevante a ser observado é que, até o momento, a abrangência dos objetivos a serem alcançados por esse tipo de instrumento de política pública são diferentes. No Brasil, existe uma maior flexibilidade na adoção de critérios ambientais e sociais, enquanto que no modelo adotado em Portugal e na França há limitação na adoção dos mesmos. Nesses países, utilizam-se apenas critérios relacionados com áreas protegidas, parques nacionais e/ou parques naturais marinhos.
5.5 Propostas para Transferências Fiscais Ecológicas
Na Europa, a Polônia, a Alemanha e a Suíça já exploram teoricamente, e/ou já discutem dentro do processo político, modelos de instrumentos de transferências fiscais ecológicas. A Polônia possui um modelo de TFE inserido dentro do processo político. (SCHRÖTER-SCHLAACK et al., 2014). Baseado também nas diretivas apresentadas pela Rede Natura 2000, a proposta contempla um mecanismo de financiamento para os governos locais, no sentido de compensá-los pela restrição do uso da terra devido às áreas protegidas que existem em seus territórios relacionadas com a Rede Natura 2000. Por outro lado, uma das críticas relacionadas com essas diretivas, segundo os mesmos autores, é que as mesmas foram elaboradas de forma top down, ou seja, com pouca participação das comunidades locais. No caso da Alemanha, “[...] as transferências fiscais têm objetivos alocativos e distributivos, sendo este último fortemente desenvolvido.” (SCHRÖTER-SCHLAACK et al., 2014, p. 105, tradução nossa). Nesse sentido, as TFE propostas nesse país têm como base critérios ambientais para a conservação da biodiversidade. Por fim, na Suíça as TFE propostas são baseadas no estudo de Köllner, Schelske e Seidl (2002), e têm como objetivo integrar políticas de conservação da biodiversidade por meio de adoção de benchmarking ambientais entre os cantões suíços.
6 CONCLUSÃO
Este artigo teve como objetivo descrever as experiências de adoção das transferências fiscais ecológicas entre três países: Brasil, Portugal e França. Foi apresentada uma visão abrangente e descritiva acerca dos esquemas já adotados, assim como foi discutido brevemente os esquemas de TFE que já foram simulados teoricamente e/ou já inseridos dentro do processo político.
Em resumo, os instrumentos adotados diferem quanto à flexibilidade na adoção de critérios ambientais e sociais, sendo o Brasil o país que pode sofrer mais adaptações nesse sentido. A escala de abrangência e a importância para o orçamento dos governos locais também diferem entre os países. Por fim, é importante ressaltar que esse instrumento de política pública faz parte de um conjunto maior de instrumentos políticos, tendo sua contribuição para o alcance dos níveis desejados de conservação da biodiversidade basicamente em dois aspectos: incentivo e compensação financeira.
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