Artigos - Dôssie Temático
Recepção: 06 Junho 2018
Aprovação: 28 Março 2019
Resumo: O artigo apresenta reflexões realizadas sobre o funcionamento da medida socioeducativa de Semiliberdade, como parte de uma proposta estruturada com base nas orientações nacionais, à luz das problematizações sobre o poder disciplinar de Michel Foucault e sociedade de controle de Gilles Deleuze. A medida de semiliberdade consiste na permanência do adolescente em uma casa, por um período de seis meses a três anos, sob a orientação e monitoramento de uma equipe profissional. As discussões mostram que as estratégias empreendidas na execução da medida apresentam uma concepção de política pública alinhada às novas concepções e valores na sociedade de controle, sem deixar de lado práticas da sociedade disciplinar. As práticas instituídas na Semiliberdade funcionam como um laboratório, inserindo os adolescentes em fluxos democráticos, configurando-se em uma espécie de malabarismo social.
Palavras-chave: Adolescentes, Políticas Públicas, Semiliberdade, Poder Disciplinar.
Abstract: This article presents considerations about the functioning of the Semi-liberty socio-educational measure, as part of a structured proposition based on national guidelines, in view of problematizations about Michel Foucault’s disciplinary power and Gilles Deleuze’s control society. The semi-liberty measure consists in an adolescent’s staying in a house for a period from six months to three years, under a professional team’s orientation and supervision. The discussions demonstrate that the strategies undertaken for the measure execution present a conception of public policy aligned with new conceptions and values in the control society, taking into account the disciplinary society practices. The practices, established in Semi-liberty, work like a laboratory by introducing adolescents to democratic flows, configuring a sort of social juggling.
Keywords: Adolescents, Public Policies, Semi-liberty, Disciplinary Power.
1 INTRODUÇÃO
Semiliberdade é uma medida socioeducativa em meio fechado, mais branda que a internação, executada na modalidade casa-albergue, envolvida com as políticas públicas de responsabilização e inserção social de adolescentes autores de atos infracionais. Nesta medida, o adolescente é acompanhado e orientado por uma equipe profissional, devendo ir à escola e fazer cursos profissionalizantes, mantendo a convivência familiar e comunitária.
Estudiosos da área do direito no Brasil, como Silveira (1971) e Muakad (1990), já defendiam a modalidade de semiliberdade como alternativa ao encarceramento para adultos, desde a década de 70, enfatizando os benefícios que tal aplicação traria ao indivíduo e à sociedade. As vantagens dessa modalidade estariam na preservação dos laços familiares e das interações sociais, do estímulo ao desenvolvimento do senso de responsabilidade, na possibilidade do trabalho como cidadão comum, no baixo custo e na diminuição da superlotação dos presídios.
Contudo, mesmo com esse tipo de defesa, a prevalência da medida é pequena. Na socioeducação, por exemplo, a internação é a principal modalidade de aplicação de sanção/responsabilização ao adolescente entre as medidas de privação de liberdade. O Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei de 2011 descreve que, naquele ano, o número de adolescentes que estiveram internados em regime fechado foi 13.362, enquanto na semiliberdade estiveram 1.918 adolescentes. (BRASIL, 2011).
Considerando esse contexto, realizou-se um estudo sobre semiliberdade cujo objetivo era refletir sobre o funcionamento institucional da medida, seus limites e suas possibilidades, a partir da problematização dos dados de um estudo de caso, correlacionando com os dados nacionais e a análise sobre a proposta socioeducativa vigente.
Nesse sentido, o presente artigo problematiza os limites, os vieses e os engajamentos do funcionamento institucional, tendo como referencial os conceitos de sociedade disciplinar de Michel Foucault e Sociedade de Controle de Gilles Deleuze. As problematizações feitas por Foucault e Deleuze servem como referencial analítico para examinar a proposta institucional lançada pelo governo do Estado do Paraná e pela legislação vigente, considerando tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) quanto o Sistema Nacional de Socioeducação (BRASIL, 2012).
O artigo inicia-se com um breve resgate da implantação de políticas públicas para adolescente autor de ato infracional no Brasil, seguida da apresentação do funcionamento da medida socioeducativa de semiliberdade, conforme dados e prerrogativas da lei levantados na pesquisa. Por fim, examinam-se as problematizações relacionadas ao funcionamento da medida de semiliberdade.
2 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL
Historicamente, as ações na área da infância e juventude estiveram voltadas para a tarefa de assegurar a coesão social (regulação e legitimação) pelo Estado, tendo como pilar uma filosofia punitiva e repressiva representada nos textos legislativos dos Códigos de Menores de 1927 e de 1979.
O Código de Menores, de 1927, focalizava a questão do adolescente autor de ato infracional, na época denominado de menor, dentro de um enfoque individualizante da resolutividade do problema e fortemente corretivo, calcado na ideia de educar e de disciplinar física, moral e civilmente. Conforme o texto Crianças Carentes e Políticas Públicas (1999), o objetivo principal das ações era “[...] combater o indivíduo perigoso, com tratamento médico acompanhado de medidas jurídicas.” (PASSETTI, 1999, p. 357), diante da fatalidade da orfandade e irresponsabilidades das famílias pobres, sem analisar os fatores estruturais vinculados ao problema.
Após o golpe de 1964, foi criado a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), dando início a um processo de ampliação dessas instituições em nome de uma nova formação política e social, entretanto, isso, de fato, nunca se concretizou. O período ficou marcado pelo afastamento compulsório da sociedade brasileira dos processos decisórios e de reprodução dos modelos anteriores na área da infância. A política voltada ao adolescente autor de ato infracional também ficou localizada no problema do menor e como solução foi feito um investimento massivo no processo de institucionalização. Esse enfoque ideológico ficou marcado por classificações como carentes, abandonados e infratores, e estava atrelada à execução da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que não eliminava as práticas tradicionais (atendimentos indiscriminados de crianças e adolescentes em regime fechado, internatos para menores carentes, e diversos outros métodos repressivos/correcionais). (PASSETTI, 1999).
Nesse processo histórico, observa-se a influência da política global no âmbito local atrelado ao trajeto de construção da política pública. Trata-se de um espaço marcado por uma dinâmica conflitiva de interesses dos diversos segmentos da sociedade (partidos políticos, movimentos sociais, relações internacionais etc.).
Com a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, a doutrina da situação irregular, expressa no antigo Código de Menores de 1979, é abolida e substituída pela doutrina da proteção integral, recomendada pelas Nações Unidas. A legislação delineada pelo ECA marca um avanço significativo no cenário da gestão de política pública na área da infância e juventude, propondo uma gestão democrática, por meio de diferentes conselhos, incluindo novos sujeitos na proteção dos adolescentes que passam a ser assistidos nas medidas socioeducativas, em contraposição às práticas repressivas do passado.
O Estatuto determina, como forma de responsabilização dos adolescentes, medidas socioeducativas que são aplicáveis apenas a adolescentes, considerados como aqueles indivíduos entre 12 e 18 anos incompletos, que cometeram um ato infracional. A aplicação das medidas socioeducativas está ligada à gravidade do ato, conforme posto no Art. 112º1 do ECA, podendo ser aplicada a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviço à comunidade, a liberdade assistida, a semiliberdade ou a internação. Durante o período de apuração dos fatos e enquanto aguarda a sentença de qual medida deverá cumprir, o adolescente poderá ficar até 45 dias em internação provisória, separado daqueles que cumprem a medida de internação.
Conforme o ECA, a advertência consiste em audiência própria para aplicá-la e a obrigação de reparar o dano aplica-se quando ele é ocasionado a um objeto, no intuito de que o indivíduo se sinta responsabilizado pelo ato. Já as medidas em meio-aberto, na prestação de serviço à comunidade, o adolescente deve realizar gratuitamente tarefas de interesse geral que beneficiem a sociedade, com caráter educativo, por um período não excedente a seis meses, junto às entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos similares. E na liberdade assistida, prevista no Art. 118º2 do ECA, o adolescente deve ser acompanhado, auxiliado e orientado semanalmente com atividades educativas e pedagógicas em dias determinados pelo programa e conforme a necessidade do caso.
Nas medidas em meio fechado, como a medida de semiliberdade, conforme Art. 120º3 do ECA, que pode ser estabelecida como medida primeira ou como forma de transição para o meio aberto, o adolescente fica na instituição durante a semana sob orientação de uma equipe profissional que atua 24 horas, podendo visitar a família nos finais de semana. O programa prevê atividades escolares, profissionalizantes e de lazer inseridas prioritariamente na comunidade, com contato direto na dinâmica social, cultural, econômica e familiar. A semiliberdade é uma alternativa ao regime de internamento, pois priva parcialmente a liberdade do adolescente, como exposto em manuais orientativos. (BRASIL, 2006; PARANÁ, 2010b).
Já a internação, prevista no Art. 121º4 do ECA (BRASIL, 1990), pode ser praticada em casos de atos infracionais mediante violência e/ou grave ameaça à pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves ou descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. Consiste na privação de liberdade do adolescente em local educativo que preconize a inserção escolar, profissionalizante e de lazer, bem como a manutenção dos vínculos familiares. Ainda conforme o Caderno de Semiliberdade (PARANÁ, 2010a), o adolescente permanece afastado da sociedade, tendo em vista um trabalho que fortaleça o protagonismo e potencialize as habilidades. Durante o processo socioeducativo, o educando será acompanhado por uma equipe multidisciplinar para participar de diversas atividades dentro da instituição que lhe auxiliem na montagem de um projeto de vida desvinculado da criminalidade.
Todas as medidas socioeducativas visam à inserção do adolescente em espaços e vivências saudáveis, preconizando os aspectos relativos à pessoa em desenvolvimento e com direitos a serem garantidos. No entanto, constata-se que a garantia da inclusão se dá pela via da exclusão e de novas formas de controle. De certa forma,
[...] sabemos que as sociedades parecem comportar-se sempre de dois modos opostos diante de quem é considerado perigoso: desenvolvendo um comportamento canibalesco, procuram absorver quem é percebido como hostil, na esperança, assim, de neutralizar a sua periculosidade através da inclusão no corpo social; ou, então, exasperando as práticas de uma verdadeira recusa antropêmica, vomitando tudo aquilo que é socialmente percebido como estranho. (PAVARINI, 2010, p. 308).
Como o Estatuto prevê medidas socioeducativas, sem no entanto concretizá-las, surgiu a proposta do Sistema Nacional de Socioeducação para suprir a lacuna da lei. Com base em um reordenamento da política pública nacional, estruturada a partir das ideias do ECA (BRASIL, 1990), foi aprovada, em 2012, a lei do Sistema Nacional de Socioeducação (SINASE).
O SINASE (BRASIL, 2012) atualmente configura-se na área socioeducativa de atenção ao adolescente autor de ato infracional como referência na efetivação das diretrizes do ECA, no que compete à efetivação dos direitos do adolescente, com critérios mais detalhados do processo socioeducativo e das ações que devam contemplar tal processo.
3 A SEMILIBERDADE
A semiliberdade surge como alternativa às prisões dentro do regime de confinamento totalmente fechado. Ou seja, faz parte do sistema prisional nascido em finais do século XVIII e no princípio do século XIX na Europa, como ferramenta principal no conjunto das punições em substituição aos suplícios do corpo. Michel Foucault (2012) já referenciava em Vigiar e Punir o termo semiaberto, como uma fase intermediária entre o regime totalmente fechado e o aberto que poderia passar o condenado. Neste regime, o preso poderia, por exemplo, trabalhar ao ar livre, como nas colônias. Era uma etapa de transição entre o regime fechado, com aparatos físicos que impedem a fuga e cerceiam a liberdade, e o aberto, sem qualquer aparato semelhante. Contudo, as reflexões sobre tal regime são escassas desde seu nascimento. Foucault faz referência três vezes ao termo semiaberto, termo que pode ser considerado análogo aos desdobramentos e às mudanças da instituição prisão no modelo de regime fechado.
Dentro dessas discussões verifica-se que o semiaberto estrutura-se dentro de um regime de progressão e de modulação da pena, proposto no contexto da reformulação das prisões em 1945. Quando Foucault resgata em Vigiar e Punir (2012) a obra De la reforme des prisons (1836), de Charles Lucas, o regime semiaberto apresentava-se como uma fase dentro do regime progressivo: um instrumento para adaptar e valorizar os condenados conforme os resultados de suas mudanças de comportamento e adequado ao grau de sua regeneração.
Para Foucault (2012), trata-se de um regime que também permite a multiplicação e a expansão do poder punitivo como princípio constituinte das prisões. Neste regime diverso, atores participantes do mecanismo punitivo não magistrados, nas várias instâncias, peritos psiquiatras ou psicólogos, educadores e funcionários da administração penitenciária que podem avaliar o processo penal do condenado e decidir sua modificação para um regime mais brando.
[...] desde que as penas e as medidas de segurança definidas pelo tribunal não são determinadas de uma maneira absoluta, a partir do momento em que elas podem ser modificadas no caminho, a partir do momento em que se deixa a pessoas que não são juízes da infração o cuidado de decidir se o condenado “merece” ser posto em semiliberdade ou liberdade condicional, se eles podem pôr um termo à sua tutela penal, são sem dúvida mecanismos de punição legal que lhes são colocados entre as mãos e deixados à sua apreciação [...]. (FOUCAULT, 2012, p. 24-25).
Embora ao traçar a história das prisões Foucault (2012) não tenha sido explícito sobre o surgimento da semiliberdade, ela é contemporânea às críticas históricas voltadas para o sistema prisional.
Com o passar dos anos, as reformas se ampliaram e a proposta de semiliberdade foi assumindo a tônica da racionalidade e da individualização científica. Considerando a historicidade do sistema prisional, pode-se pensar que a semiliberdade que apareceu discretamente como uma fase dentro do sistema penal, aos poucos se separou e se tornou uma nova modalidade de prisão.
Segundo os dados do Internacional Centre for Prision Studies, centro de pesquisa da King’s College London, os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo e a maior estrutura penitenciária. Segundo Adriana Dias Vieira (2007), dentre os dois milhões de pessoas cumprindo pena naquele país, quase 97 mil são adolescentes que cumprem sanções penais, podendo seguir a mesma penalidade que um adulto, haja vista o país não ter adotado a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança5.
Já na França, os adolescentes entre 13 e 15 anos gozam de uma presunção relativa a não responsabilidade penal, sendo a pena fixada diminuída a critério do juiz entre 16 e 18 anos, conforme dados do site do Ministério Público Francês de 2013. Conforme dados deste mesmo site e do artigo O Desenvolvimento da Pena e Liberdade Condicional nos Sistemas Prisionais Alemães e Franceses de Dunkel Frieder e Fritsche Mareike (2005), na França é previsto um sistema de semiaberto juvenil, com várias medidas de restrição de liberdade passíveis de revisão judicial como o modelo de residência, o centro educacional fechado ou a detenção. O primeiro consiste numa prisão domiciliar com monitoramento eletrônico; o segundo, uma alternativa ao encarceramento se o adolescente cumprir as obrigações a que está sujeito, por um período de seis meses em três fases, renovável uma vez, com o objetivo de construir um plano educacional adequado àquela pessoa com a tarefa de manter laços com a família; e o terceiro quando o juiz decide pela guarda do adolescente.
Seguindo as raízes dessa nova forma de julgar e punir, as convenções internacionais adotaram o regime semiaberto como alternativa ao regime fechado também na área da infância e da adolescência. No Brasil, os legisladores utilizam o termo semiliberdade e internação, respectivamente, para referir-se aos regimes semiaberto e fechado.
3.1 A semiliberdade no BRASIL
A história da Semiliberdade no Brasil está associada à história das políticas públicas voltadas à infância e adolescência no país, com pouco destaque nos delineamentos diferenciais desta medida em relação à internação, apesar de serem bastante distintas. Tanto o Estatuto quanto o SINASE (BRASIL, 2012) não foram muito específicos quanto à execução desta medida, que apesar de ser referenciada como uma forma de evitar o confinamento desnecessário do adolescente pela medida exclusiva de internação, ainda é pouco aplicada e recebe pouco investimento e ampliação dentro das prioridades estatais.
A literatura brasileira sobre a Semiliberdade não é vasta, mas algumas pesquisas são significativas sobre o tema. A pesquisa de Oliveira (2002) aborda a temática de inclusão social de adolescentes autores de ato infracional, apontando a medida de semiliberdade como uma alternativa atribuída pelos adolescentes para a gradativa mudança de vida desligada da criminalidade. Lopes (2006) observou, em sua pesquisa de mestrado sobre adolescência em semiliberdade, que a vivência institucional é tida pelo adolescente como uma alternativa à mudança, apesar de preservar a ambiguidade do semipreso versus semilivre.
Outros autores, como Mocelin (2007), por exemplo, descrevem o trabalho socioeducativo no Paraná em um ambiente de execução de semiliberdade e internação para adolescentes do sexo feminino, avaliando a sua contribuição para o afastamento, e não para a inclusão. Cercal (2007) já flagrou a existência da racionalidade neoliberal na elaboração e execução das medidas socioeducativas, pautadas numa inclusão compensatória. E Fuchs (2009), em sua tese de doutorado, opta em fazer um levantamento nacional sobre a garantia dos direitos dos adolescentes no cumprimento da semiliberdade entre 2004 e 2008, apontando as práticas institucionais que violam os direitos e desarticulam a vida desses adolescentes, não colaborando para o cumprimento da medida.
Os estudos mencionados de Oliveira (2002), Mocelin (2007) e Fuchs (2009), bem como os relatórios anuais dos levantamentos nacionais sobre o atendimento socioeducativo, convergem sobre o caminho para a superação dos obstáculos para o funcionamento da medida. Para eles, o caminho está na presença de trabalho intersetorial entre as políticas, na melhoria das condições institucionais, na adequação das estruturas físicas, na presença de regras claras, em ações de responsabilidade com o adolescente e em ações que atendam às necessidades e aos interesses daqueles na constituição de seus projetos de vida.
O que se nota nesses estudos é o foco na inclusão como reabilitação com o amparo da família dos adolescentes, mas uma inclusão excludente que preceitua “[...] que indivíduos são fortemente propensos a assumir condutas egoístas, antissociais e criminosas a menos que sejam inibidos de fazê-lo por controles robustos e eficazes, e recorrem à autoridade da família, da comunidade e do Estado para sustentar restrições e inculcar controle.” (GARLAND, 2014, p. 61).
3.2 Organização interna da semiliberdade
Qual é a atual estrutura da medida de semiliberdade para os adolescentes? A medida de semiliberdade é uma medida de restrição de liberdade que consiste na permanência do adolescente, por um período de seis meses a três anos, em uma casa, sob a orientação e monitoramento de uma equipe profissional. Durante esse período, ele receberá permissão para participar de atividades externas, com a obrigação de inserir-se na escola e ser ofertadas oportunidades de iniciação profissional a partir dos serviços e projetos sociais disponíveis na rede de atendimento externos ao programa. Quando o adolescente cumpre os acordos firmados durante a semana, poderá, no fim de semana, visitar a família, quando não, pode receber a visita dos familiares na unidade. (PARANÁ, 2010c).
As unidades executoras dessa medida apresentam-se como uma instituição moderna, baseada num modelo de gestão da infância e juventude privilegiada pelo conceito de uma casa ou um lar, que elege a família como o fundamento de sua organização. Trata-se de um espaço que demarca em sua estrutura física e nas estratégias pedagógicas (institucionais e intersetoriais) um dinamismo próprio e articulado com os preceitos e as orientações legais mais contemporâneas previstas pelo ECA (BRASIL, 1990), e mais recentemente pelo SINASE. (BRASIL, 2012). Consiste, pois, em uma instituição baseada no modelo ideal para o atendimento que preconiza a individualização e o vínculo com a família de origem e a comunidade. Tal modelo tenta colocar em funcionamento a ênfase na família para o atendimento no sistema socioeducativo.
As unidades destinadas a executar a medida de semiliberdade são instituições que atendem adolescentes entre 12 e 18 anos incompletos, podendo ficar até 21 anos incompletos, por determinação judicial devido ao ato infracional ter sido cometido ainda na adolescência. As estratégias institucionais devem oferecer condições que possam garantir a possibilidade de o adolescente abandonar as condutas infracionais e efetivar um projeto de vida em construção. (PARANÁ, 2010c).
Como estratégias institucionais, previstas na legislação, destacam-se o Plano Individual de Atendimento (PIA), o estudo de caso, o conselho disciplinar e as medidas disciplinares baseadas em códigos de normas. O PIA é um documento construído em conjunto com o adolescente e sua família que objetiva transcrever as intervenções a serem realizadas durante a medida socioeducativa para a construção efetiva de um projeto de vida do adolescente, desvinculado da criminalidade e utilizado para reavaliar o processo socioeducativo a cada seis meses. O Estudo de caso é uma reunião da equipe para avaliar o andamento das ações planejadas e fazer novos acordos e encaminhamentos ao judiciário e para a rede de atendimento. O conselho disciplinar, na unidade em estudo, se interliga com a avaliação semanal, pois este instrumental serve para avaliar as faltas disciplinares e suas possíveis sanções, contudo, é usado especialmente quando há faltas disciplinares graves6. E as medidas disciplinares são as sanções previstas aplicáveis, que se caracterizam pela perda de uma atividade de lazer ou até mesmo da visita à família no final de semana, sem comprometer atividades obrigatórias como escola e profissionalização.
As medidas disciplinares são exemplos de estratégias calcadas no modelo disciplinar e no formato judicial, previstas na legislação e que devem ser aplicadas quando os adolescentes cometem faltas disciplinares graduadas de leve a grave (BRASIL, 2006), devendo sempre prevalecer o caráter pedagógico sobre o sancionatório.
4 MONITORAR, CONTROLAR E PUNIR
Segundo o Levantamento Anual SINASE de 2014 (BRASIL, 2017), apesar do crescente aumento da medida de privação de liberdade, constata-se um aumento constante e regular de internamentos desde 2010, com predominância de 66% para a aplicação da modalidade de internação na modalidade de semiliberdade, que tem recebido novos incrementos nos últimos anos em alguns Estados. Os relatórios do Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo apontam essas mudanças, como a ocorrida entre 2008 e 2009, com um aumento de 10,5%, destacando-se o Espírito Santo, com aumento de 266%, e o Paraná, com 50%. (BRASIL, 2011).
Esses dados colocam em dúvidas as diferenças entre a internação e a semiliberdade e os seus previstos investimentos, seja financeira ou pedagogicamente. A pesquisa problematiza os dados sobre o funcionamento da semiliberdade a partir de pontos específicos do entrelaçamento entre objetivos e efeitos do funcionamento dessa medida, expressões de um caminho diverso das relações de poder, com movimentos de resistências, rupturas e reordenamentos, movimentos que promovem alterações nos fluxos, nos itinerários pertinentes ao campo dos micropoderes e da governamentalidade, ou seja, uma problematização acerca de uma variedade de condutas individuais e coletivas que não tem o Estado como ponto de origem.
A análise dos dados e observações realizadas na pesquisa mostram que a semiliberdade se diferencia de uma prisão convencional, se autoafirmando como uma ação que se intitula educativa, mas que se alicerça no controle e nos mecanismos de vigilância, como instrumentos de poder. O foco é na correção e não na punição, mas esta ocorre, se necessário. Como diz Garland, o pano de fundo é sempre a figura do sujeito criminoso e a sua punição. É uma realidade inescapável nesses ambientes. E esse correlacionalismo punitivo está enraizado em nosso sistema penal. Onde há correção, há punição. “Eles são retratados como indivíduos culpáveis, imerecedores e perigosos, que devem ser cuidadosamente controlados para a proteção do público e para a prevenção de outros crimes. Em vez de clientes carecedores de amparo, eles são vistos como um risco que deve ser administrado.” (GARLAND, 2014, p. 377).
O olhar vigilante dos socioeducadores vigiam as condutas, os gestos, as falas e os corpos dos adolescentes. Contudo, o monitoramento é prevalente, um instrumento de controle mais aberto, que envolve um distanciamento, ou seja, deve-se monitorar para ver se deve, ou não, vigiar. Neste caso, o olhar direciona-se às ações do adolescente externas à unidade, que não necessitam ou não deveriam ter a presença física do servidor da unidade.
Na semiliberdade, no sistema de casa albergue, as ações de monitoramento em geral se vinculam aos objetivos de vida dos adolescentes, à vida escolar, ao trabalho, ao esporte, à cultura, à família e às atividades na comunidade, e assim se amarram a uma rede de controle sutil. O poder disciplinar acompanha essa dinâmica de monitoramento praticado na semiliberdade, que se caracteriza por certo número de técnicas de coerção que exercem um enquadramento do tempo, espaço e movimento dos adolescentes, particularmente no que se refere aos gestos, aos corpos e às condutas.
Tal funcionamento institucional aproxima-se das discussões dos novos fluxos da sociedade de controle, com controles contínuos e a distância, mas sem abandonar práticas da sociedade disciplinar, no qual o corpo é segmentado por técnicas disciplinares em várias partes, que devem ser controladas para que ele se torne dócil e útil.
Nesse modelo institucional, há a possibilidade de o indivíduo sair sozinho sem vigilância direta, um processo de valorização das relações interpessoais e do apoio comunitário na inserção dos usuários. O filme Atmen (2011)7 ilustra tal perspectiva, ao narrar a história de um jovem condenado que, mesmo dentro do sistema prisional em regime fechado, pode, na fase de teste antes de sua audiência, como transição para a liberdade, sair para trabalhar, auxiliado pelo seu agente de liberdade condicional. Assim como no filme, na pesquisa pode-se perceber a rotina institucional do adolescente como segue no trecho de Nanci, servidora pública:
A proposta é ter atividades manhã, tarde e noite. Mesmo o adolescente estando na Casa, ele deve estar ocupado. Não pode ir para o quarto dormir, a tarde. TV é considerada uma atividade, mas não pode ficar a tarde inteira assistindo-a. O tempo é preenchido com educação, profissionalização, cuidados com a saúde corporal e bucal (ida ao médio e dentista) e com atividades de cultura, esporte e lazer no Centro da Juventude. (ATMEN, 2011).
No filme, porém, é apresentado o processo de responsabilidade dada ao adolescente como o compromisso de acordar, de organizar seus horários, de fazer suas atividades, que cabia ao jovem, conforme suas rotinas, avisar os guardas penitenciários sobre suas atividades externas da unidade, razão pela qual havia uma rigidez nos procedimentos de revistas corporais e no controle de abertura de portas com trancas. Já na pesquisa, o que se apresenta, mesmo em semiliberdade, é uma outra configuração. No formato do filme, percebe-se a perspectiva de uma organização da sociedade de controle discutida por Deleuze (2010).
Nesse viés, não seria mais necessário o confinamento e o enclausuramento para exercer o poder, mas um controle contínuo por meio das instituições intersetoriais públicas e privadas, que envolve os sujeitos numa teia que os protege e os controla. Nesse processo disciplinar, a alma é implicada e envolvida por inúmeros afetos que se intercruzam, sejam pelos vínculos familiares, comunitários, ou mesmo com a equipe, pela busca de um ambiente familiar. O que foi observado no formato atual da semiliberdade foi um processo de transformação ao longo dos anos entre o movimento da vigilância constante a prevalência do monitoramento como organização das rotinas e atividades externas para a avaliação semanal. Como se observa no relato abaixo de Darci, servidora pública:
Antes os procedimentos eram diferentes. Já fizemos várias tentativas, por exemplo, no controle da frequência dos adolescentes na escola. No início chegamos a ficar de plantão na escola, mas não deu certo houve situações de ameaça, assim as regras foram se alterando e os mecanismos de controle também. (ATMEN, 2011).
Esses fatores se associam às problematizações feitas por Deleuze referentes à sociedade de controle:
[...] a sociedade de controle seria marcada pela interpenetração dos espaços, por sua suposta ausência de limites definidos (a rede) e pela instauração de um tempo contínuo no qual os indivíduos nunca conseguiriam terminar coisa nenhuma, pois estariam sempre enredados numa espécie de formação permanente, de dívida impagável, prisioneiros em campo aberto. O que haveria aqui, segundo Deleuze, seria uma espécie de modulação constante e universal que atravessaria e regularia as malhas do tecido social. (COSTA, 2004, p. 161).
Verifica-se, no funcionamento da Casa de Semiliberdade, a presença constante do poder disciplinar atrelado à proposta pedagógica construída pelos executores da medida no Estado do Paraná, e a sua reprodução entre as estratégias institucionais e intersetoriais da Semiliberdade. Os instrumentos pedagógicos, tais como estudo de caso, PIA, avaliação semanal (na semiliberdade em estudo), ou conselho disciplinar, técnicas de monitoramento e vigilância, estabelecem uma correlação entre saber/poder intrínseco na função da instituição da semiliberdade. Também acopladas às estratégias intersetoriais, inserções na escola, trabalho, saúde, cultura, lazer, trabalho com a família e com a comunidade, entrelaçam a proposta pedagógica a outras instâncias de monitoramento e controle da vida dentro dos métodos da biopolítica8.
Além disso, cada uma das estratégias institucionais atreladas às intersetoriais funciona como disciplina, pois, como expressa Foucault (2012, p. 118), estas são compreendidas como “[...] métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade.” Isso está expresso na fala de alguns servidores. Para alguns, o objetivo da semiliberdade era adequar o adolescente ao convívio socia, ou que ele aprendesse a se comportar como a sociedade aceita.
No processo socioeducativo, evidencia-se uma valorização dos saberes psicológico, educacional, jurídico e social, por meio das ferramentas de estudo de caso e conselho disciplinar, numa trama que busca o consenso e pressupõe a articulação da verdade9. Isso sob a regulação de um sistema que sanciona e diz socioeducar, mas que está visivelmente preso a um sistema de relações de poder, que “[...] a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem.” (FOUCAULT, 1984, p. 14), entrelaçados aos objetivos socioeducativos, de forma a encontrar os problemas e apontar soluções, de maneira a facilitar o fluxo dos novos controles.
A avaliação semanal10, por exemplo, torna-se uma estratégia institucional que opera o poder disciplinar, que correlaciona o monitoramento, o controle, a punição e a recompensa. Alicerçada na regulamentação da SINASE (BRASIL, 2012), explicita o embate entre o regimento disciplinar versus sanções, que estão previstas de acordo com a gravidade da falta disciplinar.
Apesar de a avaliação não ser exatamente o proposto como conselho disciplinar, ela reproduz o exposto pela legislação sobre o regimento disciplinar e suas sanções, que devem ser classificadas e gradativamente sancionadas. Ou seja, se reproduz em menor escala o sistema jurídico numa microestrutura. Trata-se de um sistema que visa pesquisar a verdade e exercer um papel regulador e de controle na relação de poder entre os atores envolvidos; um sistema baseado na prática jurídica, que “[...] definiu a maneira pela qual os homens podiam ser julgados em função dos erros cometidos, a maneira pela qual se impôs a indivíduos determinados a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras [...]” (FOUCAULT, 2014, p. 133).
No Plano Individual de Atendimento, as estratégias intersetoriais são referendadas para serem articuladas de forma a regular a vida dos adolescentes. Trata-se de uma instituição que colabora, a partir de seus dispositivos de poder, suas redes, suas correntes, suas intermediações e seus pontos de apoio, na constituição de subjetividades no campo individual e coletivo. Neste sentido, os adolescentes da semiliberdade não são apenas corpos a serem adequados, mas um conjunto da população a ser enquadrada, que necessita de intervenção a fim de ser controlado, normalizado não só no campo individual, mas também no coletivo. Ou seja, por meio de uma estratégia pedagógica individual, estão embutidas uma lógica e uma proposta política de inserção de controle social em diversas políticas. Apesar de não se efetivar uma mudança concreta para o adolescente, a sua inserção dentro do campo do controle das políticas já é uma intervenção e objeto da política, no caso da biopolítica: dos adolescentes em conflito com a lei.
A proposta da semiliberdade, interligada à política socioeducativa, busca uma regularidade a partir de suas inserções, como expressam os próprios objetivos da medida, expressos no SINASE (BRASIL, 2012), em seu Artigo 2º. As suas estratégias institucionais e intersetoriais compõem a biopolítica como estratégia de organização da vida do adolescente a partir de seus projetos. Assim, o alvo é o grupo de adolescentes autores de atos infracionais, com vistas a uma média, a um equilíbrio desse grupo problemático que necessita ser curado, recuperado e disciplinado. Trata-se de um poder contínuo, científico, que visa manter a vida, controlar os acidentes, as eventualidades, as deficiências.
No que se refere às inserções dos adolescentes e à construção do PIA, percebe-se uma oscilação de garantia dos direitos e à inclusão de novos itinerários (programas) de controle social. Esses novos itinerários nem sempre garantem mudanças reais de condições de vida, sejam materiais ou de outras instâncias, mas que os incluem numa rede de controle e monitoramento populacional. Os adolescentes e suas famílias são atraídos com o discurso da garantia de direito, convocados a participar, mas são mínguas as escolhas. Ao serem oferecidas, as escolhas já estão pré-determinadas. O que os dados parecem mostrar é que a escolha está condicionada ao usuário participar dos novos itinerários de controle, o que sugere uma teatralização democrática que garante o discurso de inclusão social.
A disciplina, por outro lado, não é abandonada. Apresentando-se como um método que visa estabelecer a relação entre saber e poder, ela assume uma nova roupagem na semiliberdade, sem deixar de lado a raiz que a criou. Como diz Foucault (2012, p. 144), “[...] o poder disciplinar não esgota o poder de punir”. Trata-se de
[...] uma forma de organização do espaço e de disposição dos homens no espaço visando otimizar seu desempenho, bem como é uma forma de organização, divisão e controle do tempo em que as atividades humanas são desenvolvidas, com o objetivo de produzir rapidez e precisão de movimentos. (DUARTE, 2008, p. 48).
A semiliberdade, com suas estratégias pedagógicas, permite a continuidade do ciclo de invenção de técnicas de poder ao mesmo tempo em que vai formando um saber que faz referendar algumas verdades, destruir outras e construir novas. Contudo, o ciclo não é linear, mas descontínuo, uma vez que o poder é frágil e as resistências aparecem; há uma quebra de ciclo quando ocorrem novos ajustes.
Ou seja, apesar de o modelo aparentar ser moderno, familiar e estar focado na garantia de direitos, com cunho prevalentemente pedagógico, cerca de 74,6% de 135 atendimentos de adolescentes não finalizaram a medida na unidade estudada. O modelo apresenta fragilidades e inconsistências, mesmo considerando toda a organização disciplinar, as novas configurações das relações de poder, a excelência do modelo, a nova configuração arquitetônica e percentuais consideráveis de inserções nas diferentes políticas durante o cumprimento da medida.
O poder disciplinar não é absoluto na condução das relações de poder dentro da instituição. Há resistência por parte dos adolescentes, por meio de vários comportamentos, não somente enquanto estão na instituição, mas quando saem e não se submetem aos planos traçados.
Deve-se ponderar que, como as relações de poder são dinâmicas, quando esta muda outros mecanismos são acionados. Se os espaços ocupados têm métodos similares, aparecem novas resistências e expressões que multiplicam as possibilidades, na grande maioria não correspondendo ao adolescente idealizado pela instituição e aos fluxos não controláveis.
5 CONCLUSÃO
As estratégias institucionais e intersetoriais da semiliberdade estão calcadas em preceitos modernos de constituição do adolescente universal, sujeito de direitos, constituindo-se num laboratório de uma prisão moderna. Conforme Passetti (2008), trata-se de um laboratório e um novo modelo de regulação da vida num novo modelo de prisão, o da casa-albergue, semelhante a um lar, dentro dos princípios denominados de prisão a céu aberto.
A semiliberdade, sem abandonar as práticas do poder disciplinar, funciona “[...] por simultaneidade, justaposição, dispersão, proximidade e distância formando redes.” (PASSETTI, 2004, p. 153). Ela rompe com as fronteiras da internação representada pelos muros e grades, oferecendo estratégias pedagógicas, uma nova arquitetura e uma ação socioeducativa centrada somente dentro da unidade. Na semiliberdade, a ação pedagógica acontece para além da unidade, estabelecendo novos fluxos e interações diretas e indiretas do adolescente com novos espaços sociais controlados. Ou seja, o adolescente é liberado do confinamento territorial rígido e pode circular pelos espaços sociais.
Conclui-se que a disciplina e as normas empreendidas na semiliberdade são contrárias ao fluxo real do movimento histórico, dinâmico e intenso dos adolescentes institucionalizados na semiliberdade. A individualização do atendimento precisa de instrumentos e ferramentas coletivas de inserção desses adolescentes, em que pese sua vida desde a tenra infância.
Com novas frentes de atuação e baseadas em estratégias para inserção em fluxos de controle contínuo, a proposta da semiliberdade não abandonou o modelo de vigilância do regime disciplinar, mas ampliou suas estratégias acopladas ao regime do controle – um controle exercido pela simulação familiar e com a garantia de direitos, mas que ainda visa ao conformismo e à aceitação de uma dada condição, como o trabalho informal para pessoas sem a instrução almejada pelo modelo de sociedade. A docilização do corpo, uma forma específica de relação de poder, ainda é uma referência, mas engendra novos fluxos de controle tidos como humanizados.
O funcionamento da semiliberdade vai além das questões apontadas nas pesquisas de Maria Cecília Rodrigues de Oliveira, intitulada Processo de Inclusão Social na Vida de Adolescente Autor de Ato Infracional (2002), e de Andréa Márcia Santiago Lohmeyer Fuchs, intitulada Telhado de Vidro: as intermitências do atendimento socioeducativo de adolescentes em semiliberdade (2009), e vai além do Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei. (BRASIL, 2012). Essas pesquisas apontam as dificuldades decorrentes da ausência de trabalho intersetorial, de melhoras institucionais, de conhecimento dos custos, de espaços físicos adequados, de regras claras, de ações de responsabilidade com o adolescente, de ações que atendam às necessidades e aos interesses dos adolescentes na constituição de seus projetos de vida e das ações integradoras com outras políticas sociais e socioassistenciais.
A análise pela ótica Foucaultina permite inferir que o objetivo da medida socioeducativa, ultrapassa a lógica da inserção social, ou mesmo, a concretização dos objetivos dos adolescentes e de seus planos de vida. As problematizações colocam em cheque a construção de mecanismo de disciplinarização e de controle, e sinalizam para questões de ordem biopolítica.
A semiliberdade, sem romper com a lógica prisional, da adequação, da correção, continua por associar a figura do adolescente a um transgressor e delinquente, vinculando-o a suas vulnerabilidades11. Tais questões ainda parecem justificar as estratégias institucionais disciplinares para adequação dos corpos dóceis12 e intersetoriais, referendadas pela inserção em diversos programas de outras políticas públicas, que até o momento servem para o controle e monitoramento da vida dos adolescentes em conflito com a lei e não como garantidoras de direitos. Ou seja, em prol do sujeito de direito universal amarra-se o adolescente a uma teia de controle e monitoramento, transformando o espaço educativo num laboratório que engendra novas relações de poder ligadas ao monitorar, controlar e punir.
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Notas
Autor notes
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