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ENTRE A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A JUDICIALIZAÇÃO

BETWEEN THE EFFECTIVENESS OF PUBLIC POLICIES AND THE JUDICIALIZATION

Clara Mafalda Pinto Bessa de Souza
Universidade Federal de Viçosa (UFV)., Brasil
Rita de Cássia Pereira Farias
Universidade Federal de Viçosa (UFV, Brasil
Andréia Queiroz Ribeiro
Universidade Federal de Viçosa (UFV), Brasil
Edna Lopes Miranda
Universidade Federal de Viçosa (UFV), Brasil

ENTRE A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A JUDICIALIZAÇÃO

Revista de Políticas Públicas, vol. 23, núm. 1, pp. 131-149, 2019

Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 21 Janeiro 2019

Aprovação: 04 Abril 2019

Resumo: Este artigo teve como objetivo analisar o acesso à justiça à população idosa, bem como as consequências sociais e políticas da não participação dos mesmos no contexto democrático. Utiliza metodologicamente a análise documental dos processos judiciais que tramitaram no Fórum da Comarca de Viçosa/MG, iniciados no ano de 2014. Os resultados apontaram para um largo fluxo de ações judiciais no âmbito do direito à saúde. Acrescenta, ainda, que os idosos viçosences encontraram dificuldades no que diz respeito à efetivação de políticas públicas e, por isso, recorreram ao recurso significativo à via judicial como forma de verem seus direitos pleiteados. Conclui que, além disso, os resultados também sinalizaram para um caminho percorrido da efetividade à judicialização, designadamente no âmbito do direito à saúde e em pedidos de internação para tratamento por dependência química.

Palavras-chave: Políticas públicas, Judicialização, Idosos.

Abstract: This article aimed to analyze access to justice for the elderly population, as well as the social and political consequences of their non-participation in the democratic context. It was used methodologically the documentary analysis of the judicial processes that processed in the Forum of the Region of Viçosa / MG, begun in the year 2014. The results pointed to a wide flow of lawsuits in the scope of the right to health. It is also added that elderly people encountered difficulties regarding the implementation of public policies and, therefore, they resorted to a significant recourse to the judicial process as a way of seeing their rights claimed. In addition, the results also indicated a path taken from effectiveness to judicialization, namely in the scope of the right to health and in requests for hospitalization for treatment by chemical dependency.

Keywords: Public policies, Judicialization, Seniors.

1 INTRODUÇÃO

Estamos diante da era do envelhecimento populacional como fenômeno mundial; o contingente de pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos tem crescido a passos largos e o Brasil não foge dessa realidade. De acordo com Veras (2003), o número de idosos no cenário brasileiro de 1950 até 2002 aumentou 700%, passando dos dois milhões para 15,4 milhões e, segundo projeções, um quarto dos brasileiros será idoso em 2060, o correspondente a 58,2 milhões de pessoas, 25,5% do total da população. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2018).

Esse é um tema que tem merecido várias discussões nas mais diferentes áreas, visto que, com esta nova realidade, urge rever a reforma previdenciária, não permitir que o avanço tecnológico represente uma diminuição do status social do idoso, incluindo-o e integrando-o nestas novas mudanças. Com isso, pretende-se discutir de que forma o governo e a sociedade civil têm se mobilizado na redução das desigualdades sociais, através da criação de políticas públicas e na garantia dos direitos da pessoa idosa como cidadão, bem como o seu legítimo acesso à justiça.

Se nos Estados democráticos modernos, o termo política pública está diretamente conectado com o conceito de cidadania, também o acesso à justiça, intimamente ligado à democracia, é uma questão de cidadania que deveria funcionar perpendicularmente ao funcionamento das políticas públicas e não em paralelo, onde o não funcionamento de um representaria a atuação do outro. Conforme Neri (2005), a cidadania deve ser pensada como o conjunto das liberdades individuais expressas pelos direitos civis e esses direitos só funcionam garantindo o acesso à justiça por todos os cidadãos através do bom funcionamento das políticas públicas a eles destinadas.

Dessa forma, este artigo teve como objetivo analisar o acesso à justiça, à população idosa do munícipio de Viçosa/MG, bem como as consequências sociais e políticas da não participação dessa população no contexto democrático. A relação dos idosos de Viçosa com a atividade cidadã parece residir não só na questão de violação de direitos, mas também na falta de entendimento sobre o processo de envelhecimento, o que refletiu na efetividade de sua participação nos espaços democráticos. Nesse sentido, a análise aconteceu à luz das normas estatuídas na Constituição sobre a prestação universalizada do serviço de saúde pública e do maior projeto de política pública do país, que é o Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, suscitaram os seguintes questionamentos: Será que a inefetividade das políticas públicas é a mola propulsora do processo de judicialização no Brasil? Encontra-se a pessoa idosa numa situação de vulnerabilidade no exercício e garantia dos seus direitos? É com base nessas premissas consubstanciadas no apoio literário, que as questões suscitadas nessa investigação serão debatidas a par dos resultados obtidos.

2 O ENVELHECIMENTO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS IDOSOS

Existem dois marcos no surgimento das políticas públicas: um na Europa e outro nos Estados Unidos da América. Na Europa a política pública surge com trabalhos baseados sobre o papel do Estado e do governo enquanto produtor de políticas públicas (SOUZA, 2006), num contexto pós Revolução Industrial, com as mobilizações operárias e de formação dos estados-nação da Europa Ocidental do final do século XIX (PIANA, 2009). Por sua vez, nos EUA, a introdução da política pública como ferramenta das decisões do governo é produto da Guerra Fria e da valorização da tecnocracia como forma de enfrentar suas consequências. Assim, na Europa, dava-se mais ênfase à análise sobre o Estado e suas instituições, enquanto que nos EUA esta área “[...] surge no mundo acadêmico sem estabelecer relações com as bases teóricas sobre o papel do Estado, passando direto para a ênfase nos estudos sobre a ação dos governos.” (SOUZA, 2006, p. 22). De acordo com esta mesma autora, discussões sobre o que o Estado faz ou deixa de fazer são debatidas desde a antiguidade. Entretanto, a atuação dos governos em relação às pessoas foi mudando em prol do desenvolvimento político da sociedade e das respectivas formas de governo. Dessa forma, a política pública revela-se mutável e ajustável à conjuntura social e política do seu tempo.

Mas, foi no século passado que, debater políticas públicas, ganhou espaço e visibilidade com o aprofundamento e expansão dos princípios democráticos. Nessa época, surgiu um novo olhar diante da política pública relacionado ao bem-estar dos indivíduos. Em 1960, com o livro The Civic Culture, Gabriel Almond e Sidney Verba introduziram o conceito de cultura política afirmando que os valores, crenças, sentimentos e conhecimentos eram importantes para explicar os comportamentos políticos adotados pelos indivíduos. O objetivo era entender a mutabilidade e a relação entre o conjunto dessas variáveis subjetivas dos atores sociais e o sistema político, já que o Estado passou a ter uma atuação direta em diferentes campos da vida cotidiana.

Com a crescente preocupação de uma melhor qualidade de vida para a sociedade, dentro das políticas públicas, surge a política social, a mais conhecida e a que mais suscita discussões acerca do tema. No entanto, ainda não existe uma definição precisa, sabendo-se que as políticas sociais são precisamente as que intervêm em diferentes áreas, como a saúde, educação, alimentação, previdência, transporte, garantia de direitos e do estatuto dos indivíduos enquanto cidadãos.

Se já vimos que as políticas públicas se adaptam ao contexto político da sua época, elas também se adaptam ao contexto social e demográfico. Dentro desse contexto, ainda que de forma mais lenta e tardia, é que começa a surgir uma preocupação crescente no cenário internacional e nacional sobre o envelhecimento populacional, com as novas demandas para o atendimento dessa crescente parcela da população.

Camarano e Pasinato (2004) assinalam que a abordagem sobre o envelhecimento populacional na agenda pública internacional ganhou maior destaque a partir da década de 1970. Segundo as autoras, o envelhecimento populacional ocorreu em um cenário socioeconômico favorável, permitindo, assim, a expansão dos sistemas de proteção social. Porém, as autoras ressaltam que no Brasil esse tema veio mais tardiamente a debate, estando ainda ocorrendo em meio a uma conjuntura recessiva e uma crise fiscal que têm dificultado a expansão do sistema de proteção social para todos os grupos etários.

No cenário internacional, a Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, ocorrida na cidade de Viena em 1982 e a Assembleia Mundial, ocorrida em Madri, no ano de 2002, promovidas pela Organização das Nações Unidas, foram dois dos marcos fulcrais para a inserção do envelhecimento no Estado Democrático de Direito e na agenda pública internacional. Mais tarde, na década de 1990 e, juntamente com outros movimentos que advieram dessas Assembleias, o tema do envelhecimento adquiriu maior visibilidade e entrou de forma mais expressiva nos países em desenvolvimento, como o Brasil. (CAMARANO; PASINATO, 2004).

Um dos grandes marcos das políticas de assistência ao idoso foi, designadamente, a Constituição Federal de 1988, que consagrou a assistência social como um direito do cidadão. Conforme Argolo e Furtado (2013), os direitos sociais na Constituição Federal são aqueles dispostos nos artigos 6° a 11° e correspondem a educação, saúde, trabalho, alimentação, moradia, lazer, segurança, previdência social e a assistência aos desamparados. No Art. 230°, como veremos seguidamente, é consubstanciada a assistência social à pessoa idosa:

A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. § 1.° Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares. § 2.° Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos e urbanos. (BRASIL, 1988).

Diante dessa premissa, confere ao Estado o dever de amparar os idosos, esperando-se assim uma ação articulada de todos os setores sociais e políticos para a proteção do idoso. Nesse sentido, a Constituição Federal foi “[...] a primeira medida que buscou compreender a complexidade do processo de envelhecer, tanto no âmbito pessoal quanto familiar” (MAFRA et al, 2014, p. 255) e acabou vinculando a rede de proteção social ao direito de cidadania, e não somente ao contexto estritamente social-trabalhista e assistencialista (CAMARANO; PASINATO, 2004).

É diante dos direitos instituídos pela Constituição Federal de 1988 que surge a Política Nacional do Idoso (PNI), Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994, que foi criada justamente para concretizar a garantia constitucional dos direitos sociais dos idosos, com o objetivo de lhes garantir autonomia, integração e qualidade de vida. Como ressalta Carvalho (2007), essa política resultou de inúmeras discussões e consultas ocorridas nos diversos estados, onde participaram idosos ativos e aposentados, professores universitários, profissionais da área de gerontologia e geriatria, a fim de elaborar um documento que se transformou no texto base da lei. No entanto, segundo Rodrigues e outros (2007), apesar de a legislação garantir a todos o direito e a cidadania, nas diretrizes da PNI existe uma grande lacuna decorrente da ausência de critérios que estabeleçam claramente a punição daqueles que descriminem e se comportam de forma injuriosa em relação à pessoa idosa. Além disso, como ressalta Teixeira (2008), a PNI continua sendo uma política social ainda vinculada às reformas neoliberais baseadas, como por exemplo, no princípio da setorialização das políticas sociais e na privatização da execução das ações, não havendo, portanto, um papel do Estado como verdadeiro promotor de direitos.

Ainda sobre a importância, mas também as lacunas da PNI, Dundes (2006, p. 35) afirma que:

[...] a Política Nacional do Idoso trouxe consigo várias conquistas, que servem para a construção de serviços e ações diferenciadas de atendimento ao idoso, concebido como sujeito de direitos. Essa política já está posta, mas é preciso transformá-la em prática profissional.

Dessa forma, e, seguindo as diretrizes da PNI, cabe à sociedade e entidades públicas o dever de assistir os idosos através da criação de locais de atendimento próprios, bem como oferecer profissionais preparados para esse atendimento.

Em relação à assistência judiciária, o texto constitucional prevê o rol das cláusulas que determinam o dever do Estado de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, não medindo esforços para sua concretização. (CAPPELLETTI; GARTH, 1998). Isso vem consubstanciar o reconhecimento do Estado em face da vulnerabilidade do cidadão, criando mecanismos e órgãos, tais como a Defensoria Pública, em razão da necessidade de ter um órgão protetor, que atenda, oriente e defenda, em todos os graus, os seus necessitados. De acordo com Fernandes (2008), é necessário que, ao passo que as leis são criadas, se propicie, também, um espaço de garantia e proteção social, nomeadamente quando atentamos a grupos vulneráveis, como o caso dos idosos, que permitam a esses cidadãos o conhecimento das políticas públicas para eles voltadas para que eles também estejam conscientizados dos benefícios da lei e possam, assim, usufruí-los.

Nesse contexto, o governo brasileiro, visando efetivar os direitos sociais dos idosos, criou, nove anos depois da criação da PNI, o Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 200, uma das principais políticas de direito do idoso. Na perspectiva de Rodrigues e outros (2007), esse Estatuto representa uma conquista na efetivação dos direitos sociais dos idosos, responsabilizando a família, sociedade civil e Governo na inclusão social dos mesmos. O Estatuto acrescentou novas diretrizes à PNI, consolidando os direitos já assegurados na Constituição Federal de 1988, principalmente no que diz respeito ao idoso em situação de vulnerabilidade e risco social, tal como dispõe o Capítulo VIII, da Assistência Social, no seu art. 36: “O acolhimento de idosos em situação de risco social, por adulto ou núcleo familiar, caracteriza a dependência econômica, para os efeitos legais”. (BRASIL, 2003).

Para Paz e Goldman (2006), a aprovação do Estatuto do Idoso constitui um avanço sociojurídico de alta relevância na defesa dos direitos da população idosa. Como o próprio nome sugere, é uma lei que promove a proteção social de uma população específica: o idoso. O estatuto tem, obviamente, em vista, a defesa dos interesses de um grupo socialmente desprivilegiado, o grupo de pessoas idosas, e é o instrumento jurídico formal mais completo para a cidadania do segmento idoso, na opinião dos referidos autores. Porém, estes reconhecem que são princípios que ainda estão muito longe de serem garantidos na realidade brasileira. Nesse sentido destacam que, se a Carta Magna de 1988 fosse realmente cumprida, talvez não fossem necessários inúmeros estatutos. Paz e Goldman (2006) ainda referem que, o estatuto não deve ser só socializado para os idosos, mas também para os profissionais que lidam com eles, para os familiares e para toda a sociedade.

Outro ponto que Paz e Goldman (2006) consideram é a questão da dificuldade de acesso ao Estatuto. Apesar dos inúmeros endereços eletrônicos que disponibilizam o conteúdo integral do Estatuto, como os do Senado Federal, da Associação Nacional de Gerontologia (ANG), da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), dentre outros, há uma grande dificuldade de acesso de uma grande parte da população que não dispõe de recursos eletrônicos, nem tem familiaridade em lidar com os mesmos. Essa dificuldade de acesso leva ao desconhecimento da lei por muitos, quer idosos, quer população em geral, o que é, visivelmente, um obstáculo na efetivação dos direitos que se tem vindo a abordar.

Verificam-se como aspetos positivos, o fato de ser uma lei especificamente determinada para uma população (os idosos) e, ao contrário do que foi criticado na PNI, no Estatuto existem os tais critérios que estavam em falta, postulados no seu artigo 43º, que punem legalmente quem ameace ou descumpra os direitos nele estatuídos.

Art. 43º- As medidas de proteção ao idoso são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violado:

I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II – por falta, omissão ou abuso da família, curador ou entidade de atendimento; III – em razão de sua condição pessoal. (BRASIL, 2003).

Assim, a implementação efetiva do Estatuto do Idoso só será possível se o Poder Público investir fortemente em políticas sociais. Reflexo desse investimento é, também, a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI), Portaria n. 2.528, 19 de outubro de 2006, que

[...] tem como finalidade recuperar, manter e promover a autonomia e independência dos indivíduos idosos, visando: I) promover o envelhecimento ativo e saudável; II) disponibilizar atenção integral e integrada à saúde; III) estimular às ações intersetoriais, visando á integridade da atenção; IV) prover recursos capazes de assegurar qualidade da atenção à saúde; V) instigar a participação fortalecimento do controle social; VI) formar e educar profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS); VII) divulgar a política em questão para profissionais de saúde, gestores e usuários do SUS; VIII) promover a cooperação nacional e internacional das experiências de atenção; e IX) apoiar o desenvolvimento de estudos e pesquisas relacionadas à saúde. (BRASIL, 2006)

No entanto, de acordo com as considerações de Mafra e outros (2014, p. 159), “[...] talvez tal lei não precisasse ser regulamentada e exigida, se o idoso não fosse marginalizado pela sociedade”.

3 ACESSO À JUSTIÇA E CIDADANIA

O mundo foi passando por alterações ao longo dos séculos na sua forma de conceber a sociedade. Como denominava Hobbes (1974), antes de o homem viver em sociedade viva num chamado estado de natureza. Ou seja, numa condição primitiva em que a força era o meio de resolução de conflitos. Foi com a adesão ao contrato social que a sociedade evoluiu até chegarmos ao dito Estado de Direito e desenvolvimento da vida social. É sob a égide desse Estado de Direito que o homem passa a conceder parte da sua liberdade ao aparelho estatal, deixando, portanto, de fazer justiça pelas próprias mãos e confiando ao Estado a capacidade de promover a paz social e o acesso à justiça e sua garantia a todos os cidadãos.

Obviamente que falar de justiça remete-nos a um debate da sociologia do direito que vem sendo palco de inúmeras abordagens críticas relacionadas aos avanços das sociedades, que têm evoluído e demandado cada vez mais um aparelho judiciário eficiente, mas também um aparelho estatal que proporcione e abra caminhos para a chegada até esse aparelho judiciário. É importante frisar que não é só a chegada ao judiciário que deve ser proporcionada, mas também que sejam assegurados todos os meios ao cidadão para que este, não só discuta a lesão do seu direito na esfera judiciária, mas que tenha todas as suas pretensões atendidas. Assim, o cidadão procura uma ordem jurídica justa que pleiteie os seus direitos e a sua proteção e garantia social.

De acordo com Cappeletti e Garth (1998), garantir o acesso à justiça aos cidadãos é garantir um direito social, uma democracia política que privilegie não só os direitos individuais, bem como os coletivos, sobretudo direitos para a população marginalizada e as minorias. É privilegiando essa linha de pensamento, que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 nos seus incisos XXXV e LXXIV deixou claro o acesso à justiça como um direito constitucional. Assim, garante que esta “[...] não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” bem como “[...] o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.” (BRASIL, 1988). Esse princípio, postulado como um direito fundamental, garante a qualquer cidadão o exercício de cidadania, instrumentalizado por meio da Defensoria Pública, que, nos termos do artigo 134º do documento supra, é uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a qual tem como função e objetivo a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados. Portanto, há uma grande importância no papel do Poder judiciário, pois é este que mantém a sociedade organizada, conferindo-lhe direitos e deveres e protegendo as leis que garantem aos cidadãos o acesso à justiça, assegurando que estes tenham suas necessidades satisfeitas sempre que necessário. O Estado de Direito não pode, em circunstância alguma, permitir desigualdades entre os seus cidadãos, nomeadamente no que tange ao acesso ao judiciário, sendo um direito e uma garantia de todos, independentemente do sexo, idade ou recursos financeiros.

Contudo, infelizmente, muitas vezes a justiça revela-se burocrática, elitista e morosa, o que acaba afrontando os preceitos fundamentais da Constituição da República. Enquanto que, aos olhos da lei “[...] todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza [...]”, na prática as limitações do acesso à justiça e o crescente descrédito no poder judiciário por parte da população são uma outra realidade. (BRASIL, 1988). Vale ressaltar que, o acesso à justiça não só como um direito fundamental, mas também como uma questão de cidadania à luz do princípio da inafastabilidade da apreciação judiciária.

Para Cappeletti e Garth (1998), o acesso à justiça está intimamente ligado à democracia e, por sua vez, este princípio democrático é o que consubstancia a ideia essencial do conceito de cidadania. Então, se a democracia é um conceito histórico que evoluiu a par da evolução das sociedades, também a cidadania se mostra um conceito mutante que nos permite várias interpretações. É com base nesse enquadramento de pluralidade do conceito de cidadania, que Reis (1999, p.16) traz “[...] a ideia de que a cidadania é intercambiável com consolidação democrática”, ou seja, o conceito de cidadania permeia uma pluralidade de interesses de acordo com os grupos, sectores e classes sociais da sociedade.

Portanto, ser cidadão é estar no mesmo patamar social que qualquer outro indivíduo, nomeadamente no acesso à justiça e na efetividade de todo e qualquer direito. Dallari (1998) acrescenta, ainda, sabiamente, que um direito só existe quando pode realmente ser usado. Essa premissa vai claramente ao encontro da ideia de Martins (1985) de que o Estado só existe graças ao Homem, completando-a e levando-nos a acreditar nesta via de mão dupla onde para haver Estado de Direito são precisos cidadãos e para ser-se cidadão tem que se ser um indivíduo possuidor de direitos. Não basta ao Estado elencar uma série de direitos; este precisa ter o condão de fornecer vias eficazes para a concretização dos mesmos.

Dessa forma, o acesso à justiça é mais do que um direito, é uma questão de cidadania. Quando se retira do cidadão este livre e igual acesso em razão do seu grupo, sector ou classe, estamos a criar um abismo social e a expor a vulnerabilidade de um Estado de Direito Social e Democrático, nascido de uma luta histórica que vingou ao longo da nossa evolução enquanto sociedade. No entanto, o acesso à justiça não é só uma questão jurídico-formal, mas é também um problema econômico e social. Ainda que o Princípio da Efetividade Processual apele a um aparelho jurisdicional rápido, igualitário e eficiente, a verdade é que é sabido que em quase toda a sociedade a Justiça tem que driblar uma morosidade processual que acaba por se distanciar dos princípios fundamentais do acesso à justiça. Acaba, portanto, sendo um processo lento e burocrático para o cidadão ver o seu direito lesado discutido juridicamente e as suas pretensões não sendo efetivamente atendidas.

Por isso, considera-se que, por um lado, é necessário garantir aos cidadãos meios legítimos para combater as injustiças, mas, por outro lado, o ideal seria vivermos numa sociedade onde a criação de leis e políticas sociais se bastassem por si mesmas. Mediante o apresentado, parece razoável fazer-se uma abordagem que demonstre a relação entre a judicialização e a efetividade das políticas públicas.

4 DA FALTA DE EFETIVIDADE À JUDICIALIZAÇÃO

Como foi preconizado no item anterior, o acesso à justiça é, antes de qualquer coisa, um exercício de cidadania pelo qual o indivíduo tem o direito de discutir judicialmente a lesão do seu direito. Esse direito, que tem vindo a ser garantido no Brasil por força da Constituição conquistou, realmente, força normativa e efetividade.

Há uma vigilância cada vez maior por parte do judiciário em não deixar que as normas constitucionais se limitem a um documento estritamente político e passem a desempenhar o seu papel de aplicabilidade no palco do Judiciário, mediante a atuação dos juízes e tribunais. Exemplo disso, é a jurisprudência relativa ao direito à saúde e ao fornecimento de medicamentos, pedidos de cirurgia, leitos de UTI, onde há intervenção do Poder Judiciário junto à Administração Pública para que o governo forneça medicamentos gratuitamente, visando cumprir os normativos constitucionais de prestação universalizada do serviço de saúde pública. (BARLETTA, 2010).

No entanto, o que ocorre é que essa prestação de serviços revela-se muitas vezes insatisfatória, particularmente no direito à saúde, por não haver um critério eficiente para determinar qual entidade estatal (Estado, União ou Município) deve ter o encargo da entrega de cada tipo de medicamento. Esse conflito, em vez de lograr um avanço na aplicação das normas constitucionais, acaba se tornando disfuncional na prestação jurisdicional, designadamente por sobrecarregar o Poder Judiciário, desorganizando os serviços administrativos e pondo em risco a continuidade e exequibilidade das políticas públicas. Ora, se as políticas públicas são os princípios norteadores de ação do poder público e se o casuísmo da jurisprudência impede o funcionamento das mesmas, deparamo-nos com o fato em que o excesso da judicialização das decisões políticas negligencia a efetividade dos princípios constitucionais.

No que diz respeito à prestação do serviço público de saúde, no Brasil, o fornecimento de medicamentos por ação judicial tornou-se uma prática rotineira, onde o número dessas demandas vem aumentando consideravelmente, levando a um crescimento desordenado de ações judiciais. (GOMES et al, 2014). Isso implica gastos públicos absurdos com grande impacto no país, que deveriam ser resolvidos pelos gestores do sistema de saúde nos setores municipal, estadual e federal. Assiste-se, portanto, a uma crescente judicialização da saúde, isto é, garantia de acesso a bens e serviços por intermédio do recurso a ações judiciais, particularmente no ramo da assistência farmacêutica. Essa situação acaba, muitas vezes, por violar o princípio básico da igualdade de acesso entre todos os cidadãos, sendo que, muitas vezes, o acolhimento dessas demandas traduz-se no estabelecimento de privilégios para os indivíduos que podem contratar um advogado.

Esse é, claramente, um quadro crítico no cenário da implementação de políticas públicas como a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) que prevê o direito de todos os cidadãos à assistência farmacêutica e, também, uma questão jurídica e moralmente difícil, pois, na prática, acaba por segregar o direito à vida e saúde de uns.

O SUS é a mais importante política pública no Brasil; foi criado pela Constituição Federal de 1988, onde está definido no artigo 6º como um direito fundamental dos cidadãos, assim como no artigo 196º que prevê o direito à saúde como um dever do Estado, e é regulado pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. A sua criação assentou na luta pela construção de um país mais justo e menos desigual, bem como na forma de se pensar a saúde e qualidade de vida como aspectos econômicos, sociais, culturais e biotecnológicos. São 3 os princípios doutrinários que conferem legitimidade ao SUS: a universalidade, a integralidade e a equidade. Além desses três princípios básicos para se pensar o SUS, é também necessário apontar outro aspecto como o direito à informação, que, segundo Vasconcelos e Pasche (2006) é um requisito importante, do ponto de vista democrático, para a vida do cidadão usuário do sistema. De acordo com os autores anteriormente referidos, é fundamental que as informações acerca da saúde individual e coletiva sejam divulgadas pelos profissionais da saúde, os quais são assim responsáveis pela viabilização deste direito.

No entanto, acredita-se que não basta a criação de serviços de saúde acessíveis e de qualidade sem que se imponha aos Estados a tomada de decisões acertadas que não esgarcem o já corroído tecido social. A questão, aqui, é complexa, sendo necessário perceber se a judicialização cria uma desigualdade ou apenas a mantém, pois o acesso ao judiciário deveria ocorrer apenas nas exceções, ao invés de se recorrer na regra.

Contudo, precisamos ter em mente que a judicialização de decisões políticas não vem renegar a importância do acesso à justiça como um princípio democrático. O que se coloca em questão, é o excessivo recurso ao Judiciário, sendo que este não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que se encontram na sua esfera de atuação, porém, também não tem que ser mais do que pode e deve. De acordo com Carvalho (2004), falar em judicialização requer bastante clareza naquilo a que nos referimos, pois uma coisa é a judicialização política de saúde, e outra é a garantia efetiva do direito à saúde pelo Poder Judiciário. Portanto, denota-se a importãncia de se encontrar parâmetros que justifiquem e legitimem a atuação judicial.

5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa que referencia este artigo centrou-se na relação entre o fenômeno do envelhecimento populacional e a efetivação de políticas públicas e direitos sociais que são voltados para o idoso, no município de Viçosa-MG. A escolha por este munícipio se deu em função de apresentar uma grande porcentagem de idosos; o número de pessoas com 60 anos ou mais representa 11,04% da população geral (MAFRA et al, 2014), corroborando os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que indicam 26,1 milhões de idosos no país, o que equivale a 13% da população. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010) .

A pesquisa buscou, então, averiguar a efetividade de políticas públicas voltadas para o idoso, em Viçosa, MG pelo viés das demandas judiciais, servindo-se de um estudo descritivo, com análise quantitativa dos dados, onde foi feito um levantamento dos processos judiciais que correm na Comarca do Fórum de Viçosa.

A intenção foi, não apenas quantificar as ocorrências, como também realizar uma análise mais aprofundada da relação entre o tipo de demandas e o perfil dos autores, à luz da oferta de Programas e órgãos responsáveis por apoiar os idosos viçosences, bem como comprovar a eficácia ou não na sua execução. Dessa forma, buscou-se, através de uma análise quantitativa, auferir o número de processos em tramitação e, através desse número, perceber e descrever o porquê e quais as principais demandas do idoso recorrer à via judicial ao invés de ter os seus direitos assistidos pelos respectivos órgãos de assistência social do seu Município.

Para a coleta de dados, utilizou-se metodologicamente da análise documental dos processos judiciais. As variáveis que orientaram a investigação foram as seguintes: número de solicitações por via judicial que correm no Fórum da Comarca de Viçosa, MG, caracterização do autor (idoso/a); órgão condutor da ação (Defensoria Pública da Comarca de Viçosa); ano de entrada da ação (2014) e que ainda esteja em tramitação, e, ações essas, exclusivas dos residentes do município de Viçosa. Não foi feita qualquer restrição relativamente ao tipo de demandas, exatamente a fim de se perceber quais as mais solicitadas. A coleta dos dados aconteceu mediante autorização da Defensoria Pública da Comarca de Viçosa, MG, no espaço onde a mesma atua a fim de selecionar apenas os processos cabíveis aos nossos critérios de avaliação. Os dados obtidos foram submetidos a análise estatística descritiva.

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados mostraram que, dos vinte e cinco processos que atenderam aos critérios de inclusão no estudo, verificou-se que vinte e dois correspondem à antecipação de tutela para obtenção de medicamentos pela Secretaria Municipal de Saúde (SMSA). Um dos processos trata-se de pedido para realização de cirurgia junto à mesma, e dois referem-se a pedidos de internação para tratamento de dependência química de filhos, resultantes de problemas de violência doméstica.

Há, no município de Viçosa, uma clara manifestação na área do direito de demandas relativas à saúde, designadamente no que diz respeito à assistência farmacêutica, que se associa ao crescimento exponencial de processos judiciais na área da saúde por todo o país. Porém, antes de se passar a uma análise mais aprofundada sobre a questão da judicialização da saúde, considera-se pertinente, para o entendimento da análise realizada, descrever, em primeiro lugar, qual a tramitação judicial de cada uma das ações resultantes deste estudo, desde a submissão do processo até seu desenrolar. Posto isso, para as ações correspondentes à obtenção de medicamentos, quando o pedido chega à Defensoria Pública da respectiva comarca, em primeiro lugar verifica-se se a receita médica traz a indicação do código da enfermidade (Classificação Internacional de Doenças - CID). Se não tiver, indica-se ao paciente (autor da ação) para solicitar ao médico relatório com essa indicação. Seguidamente, verifica-se se o medicamento prescrito consta da lista do SUS e se é fornecido pelo Poder Público.

Caso não seja, é solicitado ao médico um relatório indicando se outros medicamentos foram testados anteriormente e se existe alguma circunstância especial do paciente ou da enfermidade que leve à prescrição do medicamento fora da lista do SUS. Se o medicamento for fornecido pelo SUS, então, verifica-se nas listas do Município e do Estado se aquele medicamento é de atribuição de qual ente público (Município, Estado ou União) e, dessa forma, envia-se uma requisição àquele ente para informar por que razão o medicamento não está sendo fornecido. Geralmente é fixado um prazo de cinco dias para que o ente responsável responda à solicitação. Por fim, com a resposta ou não em mãos, propõe-se a ação judicial, geralmente contra o Município e o Estado, devido à solidariedade dos entes públicos, quanto ao dever de prestar serviço de saúde. Se o medicamento não constar da lista do SUS, propõe-se a ação tão logo obtenha o relatório atestando se outros medicamentos foram já testados e se existe alguma circunstância extraordinária para prescrição de um medicamento fora da lista do SUS.

Tratando-se de pedido para realização de cirurgia, é encaminhado pelo Defensor Público um ofício à secretaria de saúde, requisitando informações quanto ao agendamento e realização da cirurgia. Com a resposta, indica-se ao paciente que procure o médico e solicite relatório mencionando a urgência da intervenção cirúrgica, de modo que não poderia esperar pelo tempo de tramitação de um pedido de cirurgia pelo SUS. Havendo relatório com indicação de cirurgia, a Defensoria, em nome do autor, ajuíza a ação contra o Município e o Estado.

Quando se trata de ações para internação por dependência química, a grande dificuldade reside no fato desses pedidos serem feitos por terceiros. Portanto, nos casos de internação voluntária, a Defensoria entra em contato com a Secretaria Municipal de Saúde para encaminhar o paciente às clínicas conveniadas. Nos casos de internação compulsória, solicita-se relatório médico com indicação de internação para tratamento da dependência química, bem como recusa do paciente ao tratamento. São também solicitados documentos referentes a internações anteriores (se ocorreram) e eventuais boletins de ocorrência. A ação é ajuizada contra o Município e o Estado. No entanto, a grande dificuldade nesses casos é conseguir o relatório médico porque o paciente se recusa, inclusive, a comparecer à consulta médica, sendo que o médico não pode emitir relatório sem a presença do paciente. Assim, quando isso acontece, é pedido que seja feito um estudo domiciliar realizado pela equipe do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) ou do Programa Saúde da Família (PSF). Porém, sempre que a segurança do idoso esteja posta em causa, é comunicado ao Ministério Público e à Polícia, por parte da Defensoria, para tomarem medidas preventivas de acordo com o Estatuto do idoso, como por exemplo, afastamento do lar.

Os resultados da pesquisa mostraram que, embora o SUS tenha o dever de garantir ao cidadão o acesso universal e igualitário oferecendo serviços de prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, no Município de Viçosa, MG, os idosos enfrentam sérias dificuldades em terem esses seus direitos efetivados, conduzindo a uma judicialização da saúde no Município. Com isso, os idosos se veem obrigados a recorrer ao Judiciário como uma alternativa e forma de pleitearem os seus direitos, nomeadamente para obtenção de medicamentos ou tratamentos negados pelo SUS.

Importa ressaltar que a criação do SUS fomentou-se exatamente na prestação de serviços de saúde por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais da administração direta e indireta. De acordo com o artigo 6º da Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), entre as principais funções do SUS está a “[...] formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção.” (BRASIL, 1990). Ainda o artigo 7º do mesmo documento atribui prioritariamente a responsabilidade aos Municípios na execução das políticas de saúde em geral, e de distribuição de medicamentos em particular.

Portanto, se para o SUS todo cidadão é igual perante a lei e deve ser atendido de acordo com as suas necessidades, estes são resultados nada condizentes com o cenário teórico-legislativo. Seja no âmbito da assistência farmacêutica, pedidos de cirurgia ou leitos de UTI (entre outros), o direito à saúde é um direito constitucional e para a sua concretização é necessário que as políticas públicas de saúde sejam devidamente implementadas e fiscalizadas à escala coletiva (MARQUES; DALLARI, 2007). Segundo esses autores, a interferência do Poder Judiciário para deferir as ordens para o fornecimento de medicamentos que garantam os direitos dos cidadãos tem consequências orçamentárias de grande importância, pois os recursos são escassos e cabe às políticas públicas planejarem e manusearem a administração destes. Além disso, o recurso à via judicial para determinar o fornecimento do medicamento não avalia uma série de parâmetros importantes como, por exemplo, se aquele medicamento é o melhor em termos de relação custo/benefício, se o indivíduo precisa efetivamente do medicamento pleiteado ou se este não poderá ser substituído por outro no programa de assistência do SUS, bem como se o indivíduo tem ou não condições financeiras de pagar o tratamento.

No âmbito da investigação realizada pretendeu-se que todas as ações em análise fossem representadas por um órgão público como a Defensoria. A Defensoria do Estado de Minas Gerais, foi criada pela Lei Complementar nº 132, de 7 de outubro de 2009 e tem como função prestar assistência judicial às pessoas carentes do Estado. Consequentemente, a Defensoria Pública da Comarca de Viçosa tem a finalidade de assistir as pessoas necessitadas do seu município. Portanto, em relação à coleta de dados, o órgão condutor das ações interpostas pelos idosos viçosences foi a Defensoria Pública da Comarca de Viçosa.

Como referimos anteriormente, as políticas públicas devem ser implementadas à escala coletiva para que o acesso seja igualitário e universal. Ao compararmos os resultados desta pesquisa com estudo realizado anteriormente, como o de Terrazas (2008), percebeu-se que, entre 1998 e 2005, as decisões de solicitação de medicamento para tratamento de hepatite C no Estado de São Paulo, na Comarca da capital, corresponderam 98% dos processos individuais e apenas 2% a ações coletivas. Isso significou que, a maioria dos indivíduos recorreu à justiça particular, o que corroborou o fato de que pessoas com melhores condições socioeconômicas são beneficiadas pela intervenção do Poder Judiciário. Daqui se concluiu que, não só passamos da falta de efetividade à judicialização, isto é, além da ineficácia das políticas públicas, também nos deparamos com um tratamento diferenciado entre os indivíduos, o que não é compatível com a ideia de igualdade proposta pelo SUS.

Tratando-se de um setor populacional minoritário e de risco, como os idosos, essa realidade revelou-se ainda mais assustadora, nomeadamente por estarmos diante de pessoas não necessariamente com piores condições socioeconômicas, mas com menos acesso à informação, inviabilizando os princípios de equidade constitucionais e das políticas públicas.

Para obtenção de medicamento, doze ações foram intentadas contra a Secretaria Municipal de Saúde, três contra o Estado de Minas Gerais, cinco contra o Município de Viçosa e duas contra o Município e o Estado cumulativamente. Ainda nas políticas de assistência à saúde, encontrou- se o Município e o Estado como réus da petição no que se refere a um pedido de cirurgia. Nas ações para pedido de internação para tratamento de dependência química temos no banco dos réus o Município de Viçosa para uma das ações e o Estado de Minas Gerais para outra. Aqui configura-se uma outra problemática já mencionada quanto à questão específica da entidade competente, quer para a distribuição de medicamentos, bem como no âmbito das três outras solicitações. Designadamente no que concerne à atribuição de produtos farmacêuticos, a competência de União, Estados e Municípios não está explicitada nem na Constituição e nem na Lei. Isso provoca alguma confusão no que tange à definição de critérios que estabeleçam a repartição de competências.

Diante desse fato, os processos acabam por acarretar demasiados esforços e defesas, envolvendo diferentes entidades federativas, o que mobiliza uma quantidade desnecessária de agentes públicos. São esses excessos que colocam em causa a exequibilidade das políticas públicas, nomeadamente as de saúde, causando distúrbios na organização administrativa e impedindo que os escassos recursos públicos sejam devidamente destinados. Mais uma vez se confronta, neste estudo, com a problemática da falta de efetividade, cuja essência é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e indiretamente, que conduz à excessiva judicialização.

Nesse contexto, os resultados da pesquisa apontaram para um largo fluxo de ações judiciais no âmbito do direito à saúde. No entanto, o tema versado neste estudo envolve princípios e direitos fundamentais não só sobre a saúde, mas também sobre a vida e a dignidade da pessoa humana. Embora do universo investigativo se tenha extraído um pequeno número de ações relativas a outras causas, como os pedidos de internação por dependência química resultante de problemas de violência doméstica contra o idoso, não se pode negligenciar a sua importância. Porém, o cenário teórico-legislativo apresenta-se confuso e de difícil execução já que a solução para o problema não passa direta ou exclusivamente pelos autores das ações.

De acordo com o exposto sobre a tramitação processual das ações judiciais, o principal obstáculo do pedido de internação compulsória reside na dificuldade em se conseguir relatório médico pela ausência do paciente, sendo que o médico não pode emitir relatório sem a presença deste. Contudo, e à luz dos princípios universais aqui discutidos, o Estado tem a obrigação de reconhecer um direito pela norma jurídica, especialmente se se tratar de um direito fundamental como a vida e dignidade da pessoa humana. Por isso, o Estado tem que atuar no sentido de proteger o cidadão titular de tal direito, principalmente em se tratando de pessoa em estado de vulnerabilidade, caso dos idosos que necessitaram recorrer à via judiciária para fazerem valer os seus direitos constitucionais.

Ademais, de acordo com a Constituição Brasileira, no seu artigo 1º, III, existe o dever de tutelar a dignidade da pessoa humana, seja por interesses individuais ou sociais. Em toda e qualquer circunstância, mais do que os direitos à saúde e dignidade da pessoa humana, estamos diante de casos que podem trazer consequências drásticas, tanto para o dependente químico, como também para toda a sua família e para a sociedade. Assim, malgrado todos os esforços, a Defensoria solicita um estudo domiciliar realizado pelo CRAS ou PSF, o que acaba sendo burocrático e moroso, deixando, mais uma vez, os cuidados exclusivos à família, mesmo que o ambiente domiciliar se revele insano e ponha em causa o bem-estar e a vida dos demais.

Perante esses resultados, cumpre finalmente recuperar a visibilidade do idoso como o grande lesado dos seus direitos diante de uma ineficácia de políticas públicas com o dever de lhes garantir autonomia, integração e qualidade de vida. Estes, como grupo vulnerável que são, deveriam acima de tudo estar devidamente assistidos, pois a velhice é uma questão pública que exige atenção por parte do Estado (GUSMÃO; ALCÂNTARA, 2008) e mais do que princípios fundamentais norteadores, já existe uma série de outros documentos legislativos, além da Constituição, criados especificamente para dar voz às necessidades dos idosos e tutelarem o seu bem-estar e dignidade humana.

Parece que o forte recurso ao judiciário representa um fracasso das políticas públicas, levando a acreditar que, apesar da legislação garantir a todos o direito e a cidadania, nas diretrizes da PNI existe uma grande lacuna decorrente da ausência de critérios que estabeleçam claramente a punição daqueles que discriminam os idosos. Portanto, falta na lei, uma regulamentação criteriosa que puna os infratores e, além disso, tal como ressalta Teixeira (2008), as políticas públicas como o caso da PNI acabam por ser mais políticas sociais ainda vinculadas às reformas neoliberais baseadas, por exemplo, no princípio da setorialização das políticas sociais e na privatização da execução das ações, não havendo, portanto, um papel do Estado como verdadeiro promotor de direitos.

7 CONCLUSÃO

Após análise das ações judiciais intentadas por idosos do Município de Viçosa, MG, no ano de 2014, e orientadas pelo órgão da Defensoria Pública desta comarca, concluiu-se, primeiramente, que foi registrado um número elevado de demandas não atendidas junto aos órgãos representativos de idosos do Município. Os dados mostraram um caminho percorrido da efetividade à judicialização, designadamente no âmbito do direito à saúde e em pedidos de internação para tratamento por dependência química.

As ações judiciais relativas à aquisição de medicamentos ganharam destaque e permitiram evidenciar os efeitos da judicialização sobre a implementação e execução da política de saúde. No que diz respeito à atenção integral à saúde do idoso, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário e serviços de prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, os resultados mostraram que, os idosos do Município de Viçosa, MG, enfrentaram sérias dificuldades em ter esses seus direitos pleiteados. Por conseguinte, acredita-se na importância da intersetorialidade, isto é, na necessidade de diálogo entre o poder judiciário e a esfera de saúde como ação imperiosa para minimizar as ocorrências judiciais.

Os resultados revelaram, também, um problema na atribuição da competência a um ente público (União, Estado ou Município) para o tratamento do tipo de demanda em causa, o que levou a uma sobrelotação dos processos que, consequentemente, mobilizou uma quantidade desnecessária de agentes públicos. Diante do exposto, concluiu-se que não basta que os dispositivos legais garantam a atenção aos direitos sociais; é preciso, também, que atendam as demandas integralmente e, para isso, é necessária uma crescente fiscalização da exequibilidade das políticas públicas. Além disso, há uma necessidade de articulação entre as entidades governamentais e os próprios usuários, de forma a melhor entender, pela voz dos próprios idosos, quais os grandes obstáculos, dúvidas e dificuldades encontradas, bem como quais as suas necessidades e propostas, para juntos criarem uma maior consciência coletiva e um mesmo caminho harmonioso para todos.

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