Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
LETALIDADE E SUPERENCARCERAMENTO: encadeamento de efeitos sociais em discursos e práticas no Sistema Penal Maranhense
Isabella Miranda Silva
Isabella Miranda Silva
LETALIDADE E SUPERENCARCERAMENTO: encadeamento de efeitos sociais em discursos e práticas no Sistema Penal Maranhense
LETHALITY AND OVER INCARCERATION: chaining of social effects in discourses and practices in the Penal System of Maranhão
Revista de Políticas Públicas, vol. 23, núm. 1, pp. 150-170, 2019
Universidade Federal do Maranhão
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Com o objetivo de problematizar e de normalizar o papel dos atores do sistema de justiça criminal no contexto letal do superencarceramento, o estudo analisa documentos públicos utilizados para contextualizar as mortes de 2013 no complexo penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, sob a perspectiva teórica da Criminologia Crítica. Por meio da orientação metodológica da Análise de Discurso Crítica (ADC), as análises realizadas, cotejadas com as teorias e perspectivas epistemológicas que conduziram o estudo, permitiram concluir que a articulação entre massacre e burocracia é o que sustenta a falta de escândalo com a supressão de direitos e, consequentemente, com as mortes estudadas.

Palavras-chave:MortesMortes,Complexo Penitenciário de PedrinhasComplexo Penitenciário de Pedrinhas,DiscursosDiscursos,Prática socialPrática social,CriminalizaçãoCriminalização.

Abstract: With the goal to problematize and normalize the role of the actors of the criminal justice system in the context of mass incarceration, it was analyzed public documents used to contextualize the deaths of 2013 in Pedrinhas penitenciary complex, São Luís, by the Critical Criminology theoretical perspective. Under the methodological perspective of the Critical Discourse Analysis (CDA), the performed analyzes, collated with the theories and epistemological perspectives that conduced the study, allowed to conclude that the connection between massacre and bureaucracy are what sustain the absence of outrage with the denial of rights and, consequently, with the deaths that were studied.

Keywords: Deaths, Pedrinhas Penitentiary Complex, Discourses, Social practice, Criminalization.

Carátula del artículo

Artigos - Dôssie Temático

LETALIDADE E SUPERENCARCERAMENTO: encadeamento de efeitos sociais em discursos e práticas no Sistema Penal Maranhense

LETHALITY AND OVER INCARCERATION: chaining of social effects in discourses and practices in the Penal System of Maranhão

Isabella Miranda Silva
Defensora Pública do Estado do Maranhão, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 23, núm. 1, pp. 150-170, 2019
Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 21 Janeiro 2019

Aprovação: 04 Abril 2019

1 INTRODUÇÃO

A partir do mapeamento de mortes de presos no sistema carcerário maranhense, procuro, neste texto, observar em que medida tais mortes se conectam entre si e com um padrão de funcionamento do sistema penal. Para compreender tal padrão, busco entender como se articula o contexto de demanda punitiva, traduzida em eficientismo penal e materializada, na prática, por índices prisionais que aumentam a cada ano e geram um quadro de superencarceramento. Discuto os conceitos de eficientismo penal e demanda punitiva partindo do referencial teórico da Criminologia Crítica, para melhor compreender em quais premissas teóricas se ancora a conjuntura superencarceradora no Maranhão.

Contextualizo as mortes de pessoas presas no Complexo de Pedrinhas em 2013, que desencadearam o peticionamento ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, por estarem relacionadas a um quadro de permanente violação a direitos humanos no interior das unidades prisionais. Analiso as circunstâncias em que se encontrava o sistema penitenciário maranhense e a relação entre as mortes e a superlotação prisional, não só em Pedrinhas, mas em todo o estado, identificada tanto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2013) como pela Corte Interamericana (2014).

Discursos e práticas de agentes e instituições do sistema penal trazem indícios e pistas que podem dizer sobre o contexto em que são proferidos. Condições de produção do discurso (FOUCAULT, 2014) sugerem possibilidades do dito e do não dito, conforme um contexto específico. Pretendi, então, levantar algumas dessas pistas, relacionadas a discursos institucionais relativos ao sistema de justiça criminal.

Para procurar por tais indícios e pistas, me utilizo, de maneira interdisciplinar, da Teoria do Discurso (FAIRCLOUGH, 2003; FOUCAULT, 2014; RESENDE; RAMALHO, 2006), problematizando efeitos sociais de discursos nas práticas processuais penais e de encarceramento. Trabalhando com a noção de gêneros discursivos (FAIRCLOUGH, 2003; MAGALHÃES; MARTINS; RESENDE, 2017), aponto haver um encadeamento de efeitos sociais: eventos sociais produzem textos e também são realizados a partir de elementos sociais textuais e não textuais. Assim, busco discutir, por meio do referencial criminológico crítico (ANDRADE, 2012, 2013; ANITUA, 2008; MALAGUTI BATISTA, 2011; PAVARINI, 2012; WACQUANT, 2003), relações discursivas e sociais entre a prática criminal eficientista, que leva ao superencarceramento, e as mortes de pessoas presas no Maranhão.

A partir do cotidiano de atuação do sistema penal como Defensora Pública, e interpelada pelo contexto social de constante crescimento do encarceramento no Maranhão, apresento, neste texto, parte de desenvolvimento de pesquisa de mestrado, em que busco orientar discussões sobre a inter-relação entre discursos e práticas de agentes e instituições do sistema penal e a conjuntura social de demanda punitiva ligada à experiência superencarceradora.

2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Contextualização: o caso de Pedrinhas no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Entre os dias 1 e 9 de outubro de 2013, 15 presos foram mortos no interior do complexo penitenciário de Pedrinhas, o maior centro de custódia de presos do Maranhão. Essas 15 mortes se somaram a outras 30, totalizando 45 mortes dentro daquela instituição carcerária, somente no ano de 2013; e 157 mortes de 2007 a 2013. (SOCIEDADE MARANHENSE DE DIREITOS HUMANOS; ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO MARANHÃO, 2013).

Desde 2006, diversos órgãos e entidades de defesa de direitos humanos, nacionais e estaduais, apontavam a situação de constantes violações a direitos nos cárceres maranhenses 9 SOCIEDADE MARANHENSE DE DIREITOS HUMANOS, 2014). Apesar de o quadro de violações já ser uma realidade em Pedrinhas há alguns anos, as 15 mortes de outubro de 2013 representaram, no entender das entidades, o estopim de vulneração a direitos humanos no contexto prisional maranhense, por conta de seus desdobramentos, repercussão e incapacidade do poder público em lidar de forma adequada com a situação. Assim, em 21 de outubro de 2013, requereram medida cautelar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, narrando, além dos fatos relacionados às mortes no interior do complexo penitenciário e suas reverberações, a permanente violência e desumanização a que eram submetidos os custodiados em Pedrinhas:

A solicitação de medida cautelar, aqui interposta, refere-se à reiteradas práticas de violações de direitos humanos cometidas contra detentos que encontram-se (sic.) no sistema prisional do Estado do Maranhão [...]. Tais violações consistem [...] em torturas, superlotação de estabelecimentos prisionais, inexistência de condições de salubridade dos locais de detenção, existência de organizações criminosas articuladas, falta de condições de trabalho e ressocialização, rebeliões, motins e, por fim, assassinatos e execuções dentro das unidades prisionais do Estado, principalmente no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, as quais ceifaram a vida de 153 pessoas no período de 2007 a 2013. (SOCIEDADE MARANHENSE DE DIREITOS HUMANOS; ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO MARANHÃO, 2013, p. 1).

A exposição dos presos a possibilidades de morte se dava tanto pelas condições subumanas de custódia, como pela extrema violência nas unidades prisionais. A precarização da vida das pessoas encarceradas se relacionava a uma crise estrutural no sistema penitenciário do estado (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011; SOCIEDADE MARANHENSE DE DIREITOS HUMANOS, 2014). Relatório de 2011 do Conselho Nacional de Justiça sobre os cárceres maranhenses descrevia o contexto letal e desumanizador, expondo a recorrente violência e o excessivo número de homicídios dentro dos estabelecimentos prisionais, alertando sobre os graves riscos a que estavam expostos permanentemente os custodiados. As Rebeliões ocorridas em 2010 dentro do complexo de Pedrinhas foram nomeadas de carnificina (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011) e mencionadas com bastante inquietude, pela possibilidade de sua reiteração.

No peticionamento à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em outubro de 2013, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Maranhão (OAB-MA) ressaltaram que os gestores estaduais, mais de três anos depois da publicação do relatório pelo CNJ, em 2011, não foram capazes de dar respostas efetivas, até mesmo em questões mais simples e emergenciais, o que teria concorrido para as novas mortes em 2013. A conclusão das peticionárias foi no sentido de que as prolongadas ações e omissões do Estado e a violação continuada aos direitos dos presos contribuíram decisivamente para o cenário de letalidade.

Em 16 dezembro de 2013, a CIDH emitiu medida cautelar. Nela, a CIDH solicitou ao Brasil que:

a) adote as medidas necessárias e efetivas para evitar a perda de vidas humanas e danos à integridade pessoal de todas as pessoas que se encontram privadas de liberdade do Complexo Penitenciário de Pedrinhas;

b) reduza de forma imediata os níveis de superlotação;

c) investigue os fatos que motivam a adoção destas medidas cautelares, evitando assim sua repetição (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2014, p. 5).

No entanto, durante a vigência da medida cautelar, mais 19 presos foram mortos em Pedrinhas, de dezembro de 2013 a agosto de 2014. Diante de mais mortes e da permanência de violação a direitos, a CIDH requereu à Corte Interamericana de Direitos Humanos medida provisória. No pedido se expôs que, em vez de fazer cessar as violações a direitos humanos de presos, como solicitado na medida cautelar, o Estado brasileiro não apenas foi incapaz de acabar com a contínua exposição de presos à violência e à morte, como as medidas por ele adotadas fizeram com que se tornasse mais grave o estado de violações.

A permanência da Força Nacional de Segurança Pública dentro do complexo penitenciário, de outubro de 2013 a fevereiro de 2014, foi questionada pela CIDH (2014, p. 2), que entendeu que “[...] não haveria impedido os fatos de violência antes descritos, mas ao contrário, gerou maus tratos contra os presos” A medida anunciada pelo governo do estado maranhense como aquela que garantiria maior segurança em Pedrinhas, na verdade, aumentou o rigor punitivo e a violência. A permanência e o aprofundamento do desrespeito a direitos fundamentais dos presos no Maranhão, com causas há muito sabidas e negligenciadas, foi rechaçada pela Corte Interamericana, que, em 14 novembro de 2014 emitiu medida provisória contra o Brasil.

Tanto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2013) como a Corte (2014) foram enfáticas em indicar que as mortes em Pedrinhas estavam diretamente relacionadas à superlotação, principal fator para o agravamento da disputa entre facções no interior do complexo penitenciário. Dentre as determinações da Corte – assim como as da CIDH – ao Brasil e ao estado do Maranhão, cumpria “[...] superar as causas da violência documentada no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, inclusive [...] medidas de redução da situação de superlotação e superpopulação.” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2014, p. 11).

A superlotação1 em Pedrinhas vinha sendo constantemente denunciada. Em fevereiro de 2008 (dois anos antes das rebeliões e mortes de 2010), a CPI do sistema penitenciário nacional identificou um abarrotamento de mais cem por cento em alguns dos estabelecimentos prisionais do complexo2.

Diferentes soluções eram propostas para a superlotação prisional. O relatório do CNJ (2011) de 2011 falava em “[...] sensibilizar todas as autoridades, especialmente as do Poder Executivo, sobre a necessidade de abrir mais vagas” no sistema penitenciário maranhense.

Ao realizar inspeção em Pedrinhas, após as mortes de 2013, a Comissão de Direitos Humanos do Senado reuniu-se com entidades representativas da sociedade civil, com finalidade de ouvi-las sobre as violações de direitos humanos. No entender das organizações, “[...] a superlotação, rivalidades entre os detentos, formação de organizações criminosas, a violência policial e a política de estado opressora intensificaram a violência dentro dos presídios maranhenses.” (BRASIL, 2014b, p. 3). O documento síntese da reunião indicava que apesar de o Maranhão possuir 0,98% da população carcerária nacional naquele momento, concentrava 26,5% das mortes de presos no sistema carcerário, e listava as reivindicações das entidades à Comissão do Senado, assim como as medidas que entendiam pertinentes para solucionar o problema da superlotação:

Dentre outras medidas, a sociedade civil enfatiza a necessidade de: Superação do modelo atual baseado na construção de presídios, investimento em alternativas penais e formas pacíficas de solução de conflitos. Reestruturação da administração da justiça criminal no Maranhão, com especial atenção para a execução penal. (BRASIL, 2014b, p. 4).

Nota-se uma descrença dessas entidades na construção de presídios como solução para o problema da superlotação prisional. Da mesma maneira, a crítica à organização da justiça criminal maranhense, indicando que o Poder Judiciário teria alguma responsabilidade sobre a questão. Em consonância com as vozes dessas entidades, sobre a problemática da superlotação carcerária, entendo relevante indagar: Qual o limite de se discutir apenas a criação de vagas e a responsabilização dos gestores, do Poder Executivo, sobre a questão prisional e não se questionar a respeito da operatividade da prática criminal judiciária, nesse contexto de mortes de encarcerados? Em que medida os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo e outros operadores do sistema de justiça criminal também não contribuiriam para a superlotação prisional em Pedrinhas e, consequentemente, para aquelas mortes?

Tais perguntas podem subsidiar a reflexão sobre o encadeamento de efeitos sociais em discursos jurídico-penais, ajudando na avaliação sobre como o contexto em que são produzidos tais discursos se articula com e, inclusive, sustenta seus conteúdos.

2.2 O paradigma repressivo em segurança pública e a demanda punitiva

A introdução da Força Nacional de Segurança no interior do complexo prisional, para buscar solucionar a constante violência em Pedrinhas, da mesma forma que apontar a construção de mais vagas e mais cárceres como resposta para a superlotação prisional, relaciona-se ao tipo de visão que hegemonicamente3 se construiu sobre as finalidades do encarceramento. Vera Andrade (2012, p. 286) entende que essa visão está ligada à predominância social de um eficientismo penal hegemônico, que implica uma “[...] longa saga do MAIS: mais leis penais, mais criminalizações e apenamentos, mais polícias, mais viaturas, mais algemas, mais vagas nas prisões, mais prisões provisórias e Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)”. Acrescenta a essa saga, no Brasil, “[...] a continuidade da histórica ‘Política criminal com derramamento de sangue’, MAIS mortes e vagas nos cemitérios” (ANDRADE, 2012, p. 286).

Aquilo que se tem chamado de crise penitenciária de Pedrinhas não é apenas uma crise. É consequência da adoção de um modelo de política criminal eficientista, calcado na utilização da pena e da repressão penal como resposta para o que se diz ser conjuntural. O que está em crise, para Andrade, é o próprio sistema penal irracional e deslegitimado.

A defesa oficial do sistema [penal] consiste justamente em apresentar sua crise como uma crise conjuntural (infraestrutural) de eficiência, ou seja, em atribuí-la a distorções conjunturais e de operacionalização do poder punitivo, negando-se solenemente a sua deslegitimação. Trata-se de uma leitura epidérmica da crise, inteiramente circunscrita ao marco […] periculosista/defensivista, e seus discursos de autolegitimação oficial do sistema penal, notadamente o de criminalidade. Focada no conceito estereotipado, seletivo e estigmatizante da criminalidade (da pobreza) da Criminologia etiológica, não apenas segue reproduzindo a ideologia da defesa social, atribuindo ao sistema penal a função real de luta contra a criminalidade por meio da pena de prisão, mas medindo a eficiência do sistema pelas estatísticas da criminalidade e da impunidade. (ANDRADE, 2012, p. 286).

Tal perspectiva, orientadora de um modelo repressivo de política criminal, é inculcada no imaginário social a partir da articulação de certos discursos, historicamente construídos e estabelecidos: desde saberes criminológicos e dogmático-penais – que se utilizam de fontes criminológicas racistas, positivistas (etiológicas) e importadas acriticamente – orientadores da produção de conhecimento sobre a aplicação do direito penal e processual penal nas universidades, que, consequentemente, se reverbera para entendimentos de operadores jurídicos sobre crime, até o papel desempenhado pelos meios de comunicação, que, em grande parte, dialogam com uma perspectiva populista, reprodutora do senso comum punitivo como solução para questões criminais. (MALAGUTI BATISTA, 2011).

Para se ultrapassar essa visão, calcada em um paradigma repressivo, é necessário,

[...] tanto em nível ideológico como simbólico, ultrapassar e redefinir os conceitos fundamentais e o senso comum que lhe dão sustentação: criminalidade (identificada com criminalidade de rua e da pobreza), violência (identificada com esta criminalidade) e segurança pública (identificada com segurança contra esta criminalidade). (ANDRADE, 2013, p. 335).

Por meio desse paradigma repressivo se legitima socialmente o discurso de que para conter a violência que a criminalidade de rua representa, assim como a criminalidade encarcerada como consequência da resposta estatal dada à criminalidade de rua, seria fundamental a violência de Estado, expressa tanto pela pena privativa de liberdade, que é exercida fora dos limites legais (em condições desumanizadoras), como pela contenção realizada pelas forças de segurança contra essa criminalidade – pela polícia, que buscaria combater, nas ruas, essa criminalidade, e pela penitenciária, ao segregar os responsáveis pela violência e pela criminalidade.

A utilização desse paradigma repressivo é uma das condições de produção de determinados discursos (FOUCAULT, 2014), orientados por uma visão punitivista, que permite e sustenta a consequente superlotação prisional e o superencarceramento, calcado em uma perspectiva eficientista-penal.

Apesar de as mortes em Pedrinhas terem sido noticiadas como uma guerra entre facções por grande parte da mídia brasileira, os motivos desses e de outros massacres no interior de unidades penitenciárias envolvem questões que impedem um debate mais profundo sobre as causas das mortes no sistema penitenciário e as alternativas para sua resolução. O ocultamento sobre o que torna possível essa quantidade de mortes, bem como seu contexto e as condições em que são produzidas, é consequência direta das narrativas hegemônicas sobre quem nossa sociedade entende como humano, que se alinham com as narrativas também hegemônicas sobre quem comete crime e deve ser criminalizado. A morte de indivíduos representados como não-pessoas é tolerada e até mesmo banalizada.

De forma similar ao que ocorreu em Pedrinhas em 2010 e em 2013, outras 113 mortes no interior de penitenciárias de diferentes estados brasileiros também tiveram lugar em janeiro de 2017.4 Alguns elementos se repetiam: condições de aprisionamento degradantes e subumanas; imputação, pelas autoridades públicas, das causas das mortes às organizações criminosas; superlotação carcerária nos presídios onde se encontraram os cadáveres. Por trás de conceitos como crime organizado se escondem e se naturalizam as circunstâncias que tornaram possíveis aquelas mortes:

[...] categorias como “narcotráfico” ou “organização criminosa” [são] definições que obscurecem os fios que nos levam à compreensão dos fenômenos tais como acontecem nos lugares. Quando a grande imprensa brasileira se refere a um massacre em nossas terríveis prisões, são noticiados os vínculos com essas duas categorias fantasmáticas que por si só explicarão os episódios sangrentos. Os presos morrem porque são do crime organizado e traficantes. Essa obliteração vai naturalizando o genocídio e tornando palatável ao público o espetáculo da desrazão degradante e assassina da nossa imutável política criminal (MALAGUTI BATISTA, 2011, p. 2).

Não pretendo, com este artigo, tratar das relações entre facções criminosas, mas da articulação do contexto desumanizador, que, inclusive, ensejou a criação desses grupos, dentro das unidades penitenciárias, com circunstâncias sociais em que estavam inseridas aquelas pessoas que morreram. Assim, busco debater em que medida se pode identificar esse paradigma repressivo nas políticas criminais, aplicadas pelos atores do sistema penal, em relação a essas pessoas mortas.

2.3 Superencarceramento e eficientismo na prática criminal

Ainda que as soluções anunciadas para o problema da superpopulação prisional passem corriqueiramente pelo discurso da criação de novas vagas, a superlotação carcerária em todo o país não é um problema de falta de vagas. Esta é uma consequência, ligada a uma lógica de superencarceramento: a superlotação existe porque se encarcera cada vez mais.

O número de pessoas privadas de liberdade aumentou cerca de 700 % de 1990 a 2016, saltando de cerca de 90 mil para mais de 726 mil. (BRASIL, 2017). No Maranhão se verifica o mesmo processo de expansão punitiva. O crescimento da população carcerária no estado foi de 31,6% entre 2007 e 2013 (BRASIL, 2014a). Houve aumento súbito do número de presos entre junho de 2012 e junho de 2013 – período imediatamente anterior às mortes aqui discutidas –, como se verifica a seguir.5

Apesar da diminuição do número de presos, de junho de 2013 a junho de 2014, após esse período, a quantidade voltou a crescer. Em vez de se fazer cumprir a determinação dos organismos internacionais de direitos humanos de reduzir os índices de encarceramento, observou-se exatamente o oposto. De 2013 a 2016, o número de encarcerados quase dobrou.

Em janeiro de 2013, período anterior ao peticionamento à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a taxa de ocupação nos presídios maranhenses era de 4.283 pessoas, para capacidade de 3.289 vagas, o que representava um déficit de 30,22%. Em outubro de 2016 o sistema carcerário do estado apresentava o pior percentual de falta de vagas desde as mortes de 2013: 54,68%.

A taxa de ocupação era de 7.915 presos, para 5.117 vagas. Em janeiro de 2015 houve pequena diminuição do déficit de vagas (passou-se a 25,52%), devido à construção de novas unidades prisionais. Entretanto, em junho de 2015 se verifica um crescimento abrupto da quantidade de presos (de 5.396 para 6.245), gerando um déficit de 45,27% de vagas. (MARANHÃO, [2017]) 6.

A figura a seguir indica o crescimento contínuo da quantidade de presos no estado. Assim, a estratégia de aumentar a oferta de vagas prisionais se mostrou incapaz de dar conta da redução da superlotação.


Figura 2
Quadro comparativo capacidade X ocupação no sistema penitenciário maranhense (janeiro de 2013 a outubro de 2016)
MARANHÃO. Secretaria Estadual de Administração Penitenciária. Unidades Prisionais. São Luís, [2017]. Disponível em: http://www.seap.ma.gov.br/instituicoes-prisionais/. Acesso em: 6 out 2017.

Em relação à determinação da Corte Interamericana (2014), precedida de recomendação no mesmo sentido pela CIDH (2013), para que fossem reduzidos os índices de superpopulação carcerária – que teriam contribuído de forma determinante para a chamada crise em Pedrinhas –, em 2015, ou seja, dois anos depois das 15 mortes que desencadearam o acionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, as entidades peticionárias chegaram à seguinte conclusão:

No que diz respeito à redução imediata da superlotação, Pedrinhas seguiu o rumo contrário. Com 2.186 presos no início de 2014, o complexo contava com 3.012 detentos no final de 2015. Para dar conta dessa recomendação, a resposta do governo maranhense tem sido a de abrir novas vagas, em lugar de incentivar o desencarceramento (CONECTAS DIREITOS HUMANOS, 2015, p. 15).

No início de 2017, a quantidade total de vagas prisionais em Pedrinhas era de 2.423, enquanto o número de presos era de 3.443 – o que representava um excedente de 1.020 encarcerados, cerca de 30%, em relação ao quantitativo de vagas no complexo penitenciário. Desses 3.443 presos, 1.659 eram provisórios, ou seja, sem condenação definitiva – correspondendo a 48% do total de encarcerados.

A proposta no sentido de abertura de novas vagas, no lugar do incentivo ao desencarceramento – como sugerido pelas peticionárias –, não era nova. Em 2011, o CNJ (2011, p. 14) também destacou o rápido preenchimento (portanto consequente insuficiência) de vagas recém- abertas no sistema penitenciário do estado: “As vagas abertas foram suficientes apenas para fazer frente ao acréscimo havido na população carcerária, que foi de 15,40%. A superlotação continua sendo o grande problema.”

A construção de novas unidades prisionais, com mais vagas nos cárceres, não leva necessariamente à redução do encarceramento. Sobretudo enquanto no momento da atuação concreta da criminalização secundária (ou seja, da efetiva repressão penal) se mantém uma perspectiva eficientista, que faz aumentar o número de pessoas presas.

O aumento constante dos índices de encarceramento liga-se a uma perspectiva relacionada à demanda punitiva de que nos fala Vera Andrade: a ideia de que a resposta para o alarma social ante a violência, representada pela criminalidade de rua, se traduza sempre em mais punição – normalmente voltada aos indivíduos que preenchem os estereótipos em que se funda o imaginário sobre quem pratica essa criminalidade de rua.

Em sentido similar ao proposto por Andrade em relação à demanda punitiva, Pavarini (2012, p. 75) destaca que “[...] no último vintênio do século passado, difundiu-se progressivamente um sentimento de insegurança social, que simulou por traduzir-se em uma demanda de maior severidade, à qual o sistema penal terminou por responder elevando o patamar de repressão”. O autor questiona: “Qual […] a origem do determinar-se deste novo clima social, que culmina por reclamar maior repressão e, portanto, maior encarceramento?” A resposta, entende estar nas “[...] exigências de governo da população excedente, consequentes às escolhas neoliberais, em um contexto de relações sociais marcadas pela globalização.” (PAVARINI, 2012, p. 76). O superencarceramento, portanto, a partir da visão de Pavarini (2012), é um processo que pode ser identificado como uma gestão de populações voltada para a contenção da pobreza. Prendem-se cada vez mais os excluídos que o neoliberalismo reproduz.

Ao estudar o crescimento das taxas de encarceramento no mundo a partir da sedimentação do ideário neoliberal, Wacquant (2003) articulou a redução do estado em diversos campos, sobretudo no social, com a ausência de um estado providência e incremento de um estado penal. Tal incremento se realiza principalmente por meio de uma contenção repressiva dos pobres, traduzida pelo recurso maciço e sistemático ao encarceramento. A nova gestão da miséria dá-se, então, pela criminalização da pobreza, nos discursos e nas práticas criminalizadoras. A predominância desse modelo produziu o que Wacquant (2003) denomina de onda punitiva, produzindo um processo de encarceramento em massa nunca visto na história da humanidade.

Vera Andrade (2013, p. 342) identifica um fluxo de demanda punitiva, alinhado ao eficientismo penal, e, da mesma forma que Wacquant, o relaciona ao neoliberalismo e à redução do estado social em contraposição à produção de uma hipertrofia penal:

Como o sistema de segurança pública não pode e não irá dar vazão a esse fluxo insano de demanda punitiva e de transferência de responsabilidades, é ele que aparece cada vez mais como ineficiente, voltando a demandar mais sistema, justo para compensar a anterior ineficiência. Sua hipertrofia, resultado da hegemonia do “eficientismo penal” (mais conhecido por Movimento de Lei e Ordem), e a política criminal dos contemporâneos Estados neoliberais vão tornando cada vez mais superpostos os limites entre a (des)ordem e a criminalidade. Exsurge daí a falácia da ideologia do Estado mínimo, pois ao Estado neoliberal mínimo no campo social e da cidadania passa a corresponder um Estado máximo, onipresente e espetacular no campo penal. Os deficits de dívida social e de cidadania são ampla e verticalmente compensados com excessos de criminalização; os deficits de terras, moradias, estradas, ruas, empregos, escolas, creches e hospitais compensados com multiplicação de prisões; a instrumentalidade da Constituição, das leis e dos direitos sociais, pelo simbolismo da lei penal; a potencialização da cidadania pela vulnerabilidade à criminalização (ao etiquetamento pela desordem e pela criminalidade).

O eficientismo penal, que a autora associa aos movimentos de lei e ordem, se caracteriza, em linhas gerais, pelo entendimento de que a resposta natural para criminalidade de rua seja a prisionização, operada pela polícia, e a consequente sentença criminal condenatória, operada pelo judiciário. O discurso de lei e ordem parte do entendimento de que se o sistema não funciona, ou seja, se não combate de maneira eficaz a criminalidade e não garante a ordem, é porque não é suficientemente repressivo. Seria necessário, então, fazer aumentar os níveis instrumentais e simbólicos de eficiência do sistema para otimizar o combate à criminalidade, acarretando maior intervenção punitiva: “[...] mais leis penais e criminalizações, polícia, juízes, prisões, controles eletrônicos, amplificação do medo e da sensação de insegurança, mais e mais segurança pública” (ANDRADE, 2012, p. 288). É sobre essas bases que se estrutura um eixo de continuidade de expansão do controle repressivo penal, gerador de um intenso reformismo eficientista e de um fluxo por demanda punitiva.

Tal perspectiva eficientista surge nos Estados Unidos, na década de 1970, identificada com teorizações centradas em uma criminologia da intolerância (ANITUA, 2008). Para Van der Haag (apud ANITUA, 2008), um dos teóricos dessa escola, a criminalidade seria uma doença infecciosa a ser combatida, considerando o criminoso alguém prejudicial à sociedade. Assim, preconizava a divisão da sociedade entre pessoas sadias, que não praticariam crimes, e pessoas doentes, que só pensariam na criminalidade. A justiça teria o dever de separar os dois grupos para não criar contágio pelo contato de pessoas infectadas com pessoas sadias. Declarando guerra contra o grupo doente, seriam eliminados o crime e o criminoso. Com a intenção de restabelecer a lei e a ordem, o movimento defendia a elaboração de novos tipos penais e a intensificação de cominações (aumento das penas mínima e máxima previstas por lei) nos tipos já existentes, a criação de leis especiais para certos crimes e a eliminação de garantias processuais. A máquina repressiva deveria, portanto, atuar com maior força.

James Wilson, autor de Pensando sobre o delito, de 1975, foi um dos precursores do chamado realismo criminológico ou realismo de direita, também relacionado aos movimentos eficientistas, calcados na lei e ordem. Esse livro seria a base de legitimação de mudanças nas políticas criminais que fariam disparar o número de pessoas presas nos Estados Unidos a partir da década de 1980. Dentre as mudanças nas políticas criminais estadunidenses nesse período, destaca-se o incremento na atuação policial, que teria a função declarada de “[...] restaurar a ordem nas grandes cidades, reduzindo a criminalidade.” (ANITUA, 2008, p. 780).

Ainda nos anos 1980, Wilson passa a atuar como assessor do presidente Ronald Regan e tem como uma de suas principais propostas a criminalização de pequenos delitos como furtos e outros crimes cometidos sem violência, e, também, a repressão a condutas que não se encaixariam como crimes, difundindo a teoria das janelas quebradas7, que buscava justificativa para “[...] deter os ‘suspeitos de sempre’ antes que eles cometessem algo mais sério.” (ANITUA, 2008, p. 782-783).

Nesse mesmo contexto estadunidense de políticas criminais preventivas, que “[...] viria[m] como consequência de não se deixar nenhuma janela quebrada, nenhuma mostra de descontrole sem castigo”, Anitua (2008, p. 782-783) indica que da teoria das janelas quebradas decorreria a técnica policial da tolerância zero.8 Tal técnica tem origem na campanha eleitoral para prefeito da cidade de Nova Iorque, quando Rudolf Giuliani declarou guerra à delinquência de rua. Anitua (2008) destaca como consequência dessa perspectiva o aumento em três vezes no número de detenções na cidade.

O modelo atuação policial novaiorquina foi difundida e tomada como referência na América Latina. As justificativas para uma nova criminalização da pobreza eram gestadas nas decisões macroeconômicas consubstanciadas por esse modelo punitivo, o que indica relações entre demanda punitiva, paradigma repressivo em segurança pública e necessidades de contenção dos de sempre, que o neoliberalismo impunha.

Anitua (2008) destaca que essa estratégia era baseada não somente em penas severas, estabelecidas abstratamente pelo legislativo e impostas concretamente pelo judiciário, mas também em diversas medidas repressivas para condutas que mesmo não se constituindo como crimes, mereceriam repressão policial. Assim, a repressão era legitimada e justificada como discurso de consenso, estabelecido cultural e socialmente.

No Brasil, essas perspectivas eficientistas igualmente atuam “[...] ampliando o espectro punitivo, impondo penalidades mais severas, flexibilizando as garantias [processuais penais], mas principalmente, fortalecendo o dogma da pena como solução por excelência para os conflitos humanos.” (MALAGUTI BATISTA, 2011, p. 102). Assim, pode-se se explicar o contexto de grande aumento da população penitenciária nacional de 1990 a 2016, conforme indicado pelos dados levantados no Infopen. (BRASIL, 2017). O Brasil, ao importar as políticas criminais mais duras do modelo estadunidense, teve sua população carcerária quintuplicada em cerca de 20 anos. E o que ocorre no Maranhão é também consequência dessa orientação político-criminal.

Ainda que se fale especificamente sobre o incremento punitivo e do expansionismo penal operado no período que coincide com o neoliberalismo, a partir da década de 1990 no Brasil, é certo, porém, que o paradigma que subalterniza, por meio da contenção operada pela criminalização, determinados contingentes populacionais, foi engendrado em nossa região muitos antes desse período. Na América Latina, assim como no Brasil e no Maranhão, em especial, muito antes do neoliberalismo, negros e indígenas são tidos como inferiores e assim se mobiliza um discurso criminológico e pretensamente científico que justificaria sua responsabilização penal diferenciada. (DUARTE, 2011, 2017).

Voltando para o contexto atual de superencarceramento, pode-se dizer que a hipertrofia e o expansionismo penal geram um movimento voltado a encarcerar mais, ação que se dá em diversas frentes. É o resultado de políticas criminais legislativas9, executivas10 e judiciárias11 recrudescedoras, ou redutoras de garantias, que, na prática, aumentam as possibilidades temporais de permanência no cárcere, contribuindo, assim, para o superencarceramento.

Encarcerar mais é um movimento que se dá no sentido de uma gestão populacional de corte definido. Assim, o que liga todos os amontoados de corpos de presos mortos não são apenas os motivos e as concretas possibilidades de mortes a que estão submetidos os encarcerados Brasil afora, mas, principalmente, suas etnias majoritariamente afroindígenas, exatamente o que permite, legitima e silencia um deixar morrer (FOUCAULT, 1999) colocado cotidianamente a essas pessoas. Não por acaso é uma maioria não-branca que povoa nossos cárceres12. Trata-se de mortes racializadas.

O expansionismo punitivo pode ser observado concretamente na maneira como opera o poder judiciário ao lidar com processos criminais. O grande número de condenações criminais e a utilização da prisão como regra13 – e não como exceção – gera superlotação carcerária e ausência de condições dignas de cumprimento de pena. Além de um aspecto quantitativo de expansão do sistema punitivo, que se traduz no crescente aumento do número de presos, há um incremento qualitativo em relação ao uso extremado do encarceramento, que se verifica na supressão de garantias fundamentais tanto no momento processual penal de (re)construção discursiva e probatória do crime e do criminoso, como na desumanizadora execução da privação de liberdade.

O superencarceramento, determinante para esse contexto de produção de cadáveres em larga escala, se relaciona, como visto, à lógica de eficientismo penal. A ideia de que a prisão funciona e é o instrumento apto a conter a criminalidade e a violência legitima o crescimento da população prisional em todo o país. Consequentemente, as agências do sistema penal operam voltadas a essa perspectiva eficientista. Assim, o papel desempenhado pelos atores do sistema de justiça criminal – agentes de polícia, promotores e magistrados – no desenvolvimento processual penal tem fundamental relevância nessa engrenagem que opera tendo o rigor punitivo como pressuposto e que desemboca no abarrotamento das prisões brasileiras, como ocorre em Pedrinhas e em tantas outras unidades penitenciárias do país.

A forma como funciona essa engrenagem burocrática e punitiva, assim como seu encadeamento com o contexto histórica e socialmente situado, opera efeitos sociais concretos. Entendo que as mortes no interior de Pedrinhas em 2013 podem ser entendidas como esses efeitos concretos, o que discuto no tópico a seguir.

2.4 Encadeamento de efeitos sociais nos discursos e nas práticas criminais: do adestramento burocrático às mortes no sistema carcerário

A Análise de Discurso Crítica, baseada, entre outras, na Teoria Social do Discurso, de Fairclough (2003), articula linguagem e sociedade a partir de uma relação dialética. “Textos são resultantes da estruturação social da linguagem, mas também são potencialmente transformadores desta estruturação.” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 51). Tal relação pode ser sintetizada na maneira como a ADC aborda o conceito de discurso: “[...] como um processo circular em que, por um lado, as práticas sociais influenciam textos, moldando o contexto e o modo como são produzidos, e, por outro lado, os textos influenciam a sociedade, moldando os pontos de vista daqueles/as que os consomem.” (RICHARDSON, 2007, p. 37 apud MAGALHÃES; MARTINS; RESENDE, 2017, p. 62).

Para a ADC, a linguagem é parte irredutível da vida social, havendo, portanto, uma relação circular entre discurso e estrutura social, em que o discurso molda a relação social, mas também é moldado e constituído por esta: “[...] questões sociais são, em parte, questões de discurso” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 27) e vice-versa.

Dessa forma, textos, como parte de práticas sociais situadas, podem influenciar, para além dos modos de compreensão da realidade, determinadas formas de ação social. Assim, textos também teriam efeitos sociais encadeados – textos produzem efeitos no mundo material –, e a análise desses efeitos também faz parte da análise discursiva.

O envolvimento de textos na construção de significados e o efeito causal de textos são questões que a análise textual não elucida sozinha. Magalhães, Martins e Resende (2017, p. 91) propõem que sejam analisadas as maneiras como sujeitos agem por meio de seus textos, bem como de que forma, em termos institucionais, “[...] as autoridades políticas posicionam-se em relação aos problemas apresentados”. Assim, se podem mapear eventos discursivos e não discursivos inter-relacionados em termos causais, o que pode ser extremamente útil para buscar compreender, em dados concretos, a relação interna entre linguagem e sociedade.

Se relacionamos essas noções com o objeto de discussão neste artigo, pode-se dizer que o contexto eficientista-penal, ancorado na demanda punitiva, dispersada por meio de textos dos domínios discursivos da lei e da ordem, gera como efeito o superencarceramento e, ainda, interpela e, em alguma medida, acarreta a reprodução de determinados discursos, materializados em peças processuais, pareceres e decisões judiciais. A prática processual penal se realiza de acordo com determinadas condições sociais – estabelecidas histórica e culturalmente – de produção desses discursos. Foucault (2014) propõe como ordem do discurso exatamente o que possibilita, em um dado contexto social, que práticas sociais operem de determinadas maneiras e gerem determinados discursos com efeitos concretos.

Textos e discursos (re)produzidos pelos atores do sistema de justiça criminal na prática processual trazem em si dialogicidade, acionando outras vozes presentes no contexto social específico onde são produzidos. A dialogicidade da linguagem pode ser analisada através do conceito de intertextualidade, ou seja, da presença de elementos de outros textos em um texto determinado14.

O uso da linguagem é ativo, “[...] sempre direcionado a fazer alguma coisa; e o modo como a linguagem realiza essa atividade é sempre relacionada ao contexto em que é usada” (RICHARDSON, 2007, apud MAGALHÃES; MARTINS; RESENDE, 2017, p. 75). Assim, o contexto social e a ação de produzir um texto determinado, materializando certos discursos (e não outros), estão sempre relacionados. O texto de uma sentença criminal, por exemplo, aciona dialogicamente outras vozes (oriundas, por exemplo, de domínios discursivos como os dos meios de comunicação, da universidade, da formação social racista brasileira) e se insere, portanto, num contexto socialmente situado.

Textos, por serem elementos de eventos sociais, têm efeitos causais e, desta forma, causam (ou ao menos têm a potencialidade de causar) mudanças sociais. Não se trata, porém, de uma causalidade mecânica, mas é preciso que se atente para as cadeias de textos e seus efeitos sociais mais amplos. Fairclough (2003) escreve que, como elementos de eventos causais, os textos possuem efeitos causais, ou seja, são capazes de provocar mudanças nos conhecimentos, nas crenças, atitudes e valores dos sujeitos sociais. Os efeitos que os textos podem vir a gerar vão desde a possibilidade de transformação em pessoas, até em ações, relações sociais e mundo material15.

Textos jurídicos, como os textos contidos em processos criminais, possuem a especificidade de pretender provocar determinados efeitos sociais. O processo penal busca, por exemplo, o estabelecimento de uma verdade discursivamente construída quanto à existência de um crime no mundo material (materialidade delitiva) e esclarecimento quanto a seu autor (autoria delitiva). Assim, o objeto do processo penal é uma pretensão acusatória (formulada, em regra, por meio de denúncia pelo órgão acusador, o Ministério Público), afirmando a existência de um crime, com a finalidade de que se concretize o poder punitivo estatal (operado pelo juiz) por meio da imposição de uma pena.

A articulação entre a análise de textos específicos e a análise de determinado contexto social onde esse texto é concebido leva à análise de cadeias intertextuais, em que a ação social do texto – ou seja, a ação social que o texto produz no mundo – analisado responde a outros textos, numa perspectiva dialógica e encadeada. Magalhães e outros (2017) destacam que essas respostas encadeadas podem ser outros textos ou, ainda, formas não textuais de ação.

Assim, a partir da articulação desses conceitos da Teoria Social do Discurso com a problemática anteriormente exposta sobre a chamada crise penitenciária em Pedrinhas e as mortes dela decorrentes, proponho o seguinte quadro analítico:


Figura 3
Sequência de eventos discursivos e não discursivos em relações causais
laborado pela autora.

O encadeamento de efeitos sociais, ou seja, a forma como cadeias textuais e não textuais geram efeitos, pode ser analisado na materialização discursiva dos processos criminais daqueles mortos em Pedrinhas. Assim, compreendo o processo penal como um sistema de condições históricas que possibilitam “[...] o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares.” (FOUCAULT, 2008, p. 147). As 15 mortes que geraram o peticionamento à CIDH e posterior condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos são acontecimentos singulares (eventos) que se conectam ao contexto em que foram produzidas. A análise dos fluxos processuais-institucionais, a partir da atuação encadeada entre polícia, poder judiciário e penitenciária, vai no sentido da proposição de Vera Andrade: “Há polícias que matam e há prisões que matam. Uma sentença condenatória à pena de prisão representa hoje uma sentença condenatória ao risco da pena de morte indireta” (ANDRADE, 2012, p. 167-168).

Ao descrever a operacionalidade das agências do sistema penal, Raul Zaffaroni (2012, p. 172) argumenta que os operadores do sistema de justiça criminal tendem a atuar a partir do que chama de “adestramento burocrático”, que qualifica como “[...] um modo de ver que é também um modo de não ver”. Assim, entende que a prática criminal é estruturada por um “[...] tratamento despersonalizado da burocracia com sua clientela.” (ZAFFARONI, 2012, p. 173). As mortes no sistema carcerário podem ser entendidas, portanto, a partir dessa perspectiva apontada por Zaffaroni (2012), em que a morte figuraria como uma das expressões desse tratamento despersonalizado, e a ideologia garantiria a reprodução social da ordenação que sustenta relações de poder, historicamente estabelecidas, e desse modo de ver que é um modo de não ver.

3 CONCLUSÃO

Com Resende e Ramalho (2006, p. 48), entendo que

[...] o julgamento de quanto uma representação é ideológica só pode ser feito por meio da análise do efeito causal dessa representação em áreas particulares da vida social, ou seja, por meio da análise de como as legitimações decorrentes dessa representação contribuem na sustentação ou na transformação de relações de dominação.

A partir da análise de um conjunto de documentos, pretendi contextualizar o quadro de permanente violação a direitos humanos praticada no interior do Complexo Penitenciário de Pedrinhas. Tal contexto é consequência direta do superencarceramento atualmente praticado no sistema penal brasileiro e, mais especificamente, também no Maranhão.

A partir da discussão criminológico-crítica, trabalhei as perspectivas nas quais se ancora essa prática superencarceradora, discutindo as noções de eficientismo penal e demanda punitiva. Superencarceramento, violações a direitos humanos e mortes de pessoas presas são questões que se articulam com perspectivas teóricas problematizadas pela Criminologia Crítica – referencial teórico de onde parto –, mas também se relacionam com questões ligadas à própria formação social brasileira e à maneira como se (re)produzem, inclusive textualmente, cotidianas desumanizações.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
ANDRADE, V. R. P. A Mudança do Paradigma Repressivo em Segurança Pública: reflexões criminológicas críticas em torno da proposta da 1º Conferência Nacional Brasileira de Segurança Pública. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, n. 67, p. 335-356, 2013.
ANDRADE, V. R. P. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
ANITUA, G. I. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
BOITEUX, L.; PÁDUA, J. P. A desproporcionalidade da lei de drogas: os custos humanos e econômicos da atual política do Brasil. Rio de Janeiro: CEDD, 2013. Disponível em: http://www.wola.org/sites/default/files/Drug%20Policy/Artigo%20desproporcionalidade%20Brasil_rev.pdf. Acesso em: 29 jun. 2015.
BRASIL. Congresso Nacional Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário. Brasília, DF, 2009. Disponível em: http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/2701. Acesso em: 5 out 2017.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional. - INFOPEN atualização - junho de 2014. Brasília, DF, 2014a. Disponível em http://www.justica.gov.br/noticias/mj- divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-tercafeira/relatorio-depen-versao-web.pdf. Acesso em: 22 jun. 2015.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN atualização - junho de 2016. Brasília, DF, 2017. Disponível em http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no- brasil/relatorio_2016_junho.pdf. Acesso em: 23 dez. 2017.
BRASIL. Senado Federal. Comissão de Direitos Humanos. Relatório da diligência realizada pela Comissão de Direitos Humanos do Senado ao complexo penitenciário de Pedrinhas. Brasília, DF, 2014b. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/ana-rita-apresenta-relatorio-sobre- situacao-do-presidio-de-pedrinhas. Acesso em: 25 maio 2016.
BRASIL. Superior Tribunal De Justiça. Súmula nº 582. Consuma-se o crime de roubo com a inversão da posse do bem mediante emprego de violência ou grave ameaça, ainda que por breve tempo e em seguida à perseguição imediata ao agente e recuperação da coisa roubada, sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 2015.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resolução 11/2013. Medida Cautelar nº 367-13. Assunto: Pessoas Privadas de Liberdade dentro do “Complexo Penitenciário de Pedrinhas” sobre o Brasil. Washington, D. C., 2013. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/MC367-13-pt.pdf. Acesso em: 10 mar. 2016.
CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Pedrinhas: o que o Brasil não respondeu. São Paulo, 2015. Disponível em: http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/34896-pedrinhas-o-que-o-brasil-nao- respondeu. Acesso em: 16 out. 2016.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório do III Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça. Brasília, DF, 2011. Disponível em http://www.cnj.jus.br/images/programas/mutirao-carcerario/relatorios/maranhao.pdf. Acesso em: 25 maio 2016.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 14 de Noviembre de 2014. Medidas Provisionales Respecto de Brasil. Asunto del Complejo Penitenciario de Pedrinhas. Washington, D. C., 2014. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/pedrinhas_se_01.pdf. Acesso em: 10 mar 2016.
DUARTE, E. P. Criminologia e racismo. Curitiba: Juruá, 2011.
DUARTE, E. P. Ensaio sobre a Hipótese Colonial: racismo e sistema penal no Brasil. In CARVALHO, S. de; DUARTE, E. P. Criminologia do Preconceito. Brasília, DF: Saraiva, 2017.
FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2014.
FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Editora Universitária, 2008.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MAGALHÃES, I.; MARTINS, A. R.; RESENDE, V. de M. Análise de discurso crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2017.
MALAGUTI BATISTA, V. Introdução crítica à criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
MARANHÃO. Secretaria Estadual de Administração Penitenciária. Unidades Prisionais. São Luís, [2017]. Disponível em: http://www.seap.ma.gov.br/instituicoes-prisionais/. Acesso em: 6 out 2017.
MIRANDA, I. A necropolítica criminal brasileira: do epistemicídio criminológico ao silenciamento do genocídio racializado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 135, ano 25, p. 231- 268, 2017.
PAVARINI, M. Punir os Inimigos. Curitiba: ICPC, 2012.
RESENDE, V. de M.; RAMALHO, V.. Análise de Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
SOCIEDADE MARANHENSE DE DIREITOS HUMANOS. Catirina. São Luís, 2014
SOCIEDADE MARANHENSE DE DIREITOS HUMANOS; ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO MARANHÃO. Solicitação de Medidas Cautelares para proteger a vida e a integridade pessoal dos detentos do Centro de Detenção de Pedrinhas, da CCPJ e da CADET. São Luís, 2013.
WACQUANT, L. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
ZAFFARONI, E. R. A palavra dos mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.
Notas
Notas
1 Ao se reportarem à CIDH, as peticionárias destacaram que a CPI do sistema penitenciário nacional de 2008, tratou sobre o problema da superlotação: “A superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário. [...] O resultado dessa barbárie é a elevada reincidência expressa em sacrifício de vidas humanas, desperdícios de recursos públicos, danos patrimoniais, elevados custos econômicos e financeiros e insegurança à sociedade” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2009, apud SOCIEDADE MARANHENSE DE DIREITOS HUMANOS; ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO MARANHÃO, 2014, p. 14).
2 A população prisional, à época, era de 5.258 presos, para 1.716 vagas (BRASIL, 2009, p. 146). Em 2011, relatório do CNJ trazia os seguintes números, em relação à superlotação carcerária no Maranhão: “Até dezembro de 2009 a população carcerária do Estado, entre presos provisórios e condenados, era de 5.222 pessoas, sendo que eram disponibilizadas apenas 2.733 vagas, o que resultava em um déficit de aproximadamente 2.400 vagas. Em dezembro de 2010 a população carcerária aumentou para 5.517 pessoas – quase 300 presos a mais em apenas um ano – representando acréscimo de 15,40%, sendo que a capacidade também foi ampliada, mas em apenas 391 vagas, totalizando 3.124 vagas disponíveis. Dessa forma, o Estado do Maranhão tem um déficit hoje de quase 2.400 vagas, ou seja, depois de um ano a defasagem continua a mesma. As vagas abertas foram suficientes apenas para fazer frente ao acréscimo havido na população carcerária, que foi de 15,40%. A superlotação continua sendo o grande problema” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011, p. 14).
3 Resende e Ramalho (2006, p. 43-44) destacam que “[...] ao retomar o conceito de Gramsci, Fairclough (1997) define duas relações que se estabelecem entre discurso e hegemonia. Em primeiro lugar, a hegemonia e a luta hegemônica assumem a forma de prática discursiva em interações verbais a partir da dialética entre discurso e sociedade – hegemonias são produzidas, reproduzidas, contestadas e transformadas no discurso. Em segundo lugar, o próprio discurso apresenta-se como uma esfera da hegemonia, sendo que a hegemonia de um grupo é dependente, em parte, de sua capacidade de gerar práticas discursivas e ordens de discurso que a sustentem”.
4 Em 2017, no dia 14 de janeiro, 26 presos foram encontrados mortos na Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. Quase todos decapitados. No dia 6 de janeiro, 31 presos foram mortos em Boa Vista, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, a maior de Roraima. No dia 2 de janeiro, 56 corpos de presos foram contabilizados no Amazonas, no complexo penitenciário Anísio Jobim (MIRANDA, 2017).
5 Esse quantitativo diz respeito à população carcerária maranhense concentrada tanto em unidades prisionais como em delegacias de polícia naquele período.
6 Verifica-se uma diferença de números comparando-se as figuras 1 e 2. A Secretaria Estaudal de Administração Penitenciária do Estado do Maranhão (SEAP-MA) contabiliza apenas os custodiados em unidades prisionais, não abrangendo, em tal quantitativo, os presos que se encontravam em delegacias de polícia. Assim, o número de encarcerados no estado, na realidade, é ainda maior que o trazido na tabela fornecida pela SEAP-MA.
7 A teoria das janelas quebradas (‘broken windows theory’) tinha por base a “[...] premissa de que ‘desordem e crime estão, em geral, inexplicavelmente ligadas, num tipo de desenvolvimento sequencial’, em que pequenos delitos, como vadiagem, jogar lixo nas ruas, beber em público, catar papel e prostituição, se tolerados, podem levar a crimes maiores.” (ANDRADE, 2012, p. 289).
8 Tolerância zero era a expressão utilizada para denominar essa técnica policial repressiva que pretendia deixar de tolerar “[...] qualquer violação às leis e, na realidade, aos códigos morais ultraconservadores que uma polícia relegitimada representaria.” (ANITUA, 2008, p.785). O autor aponta que a violência dos corpos policiais e de segurança, até mesmo privada, era um forte componente desse discurso simplificador que buscava se legitimar através da aceitação na opinião pública. Demonstração disso era o fato de que “[...] queixas por abusos policiais dobraram, o número de mortos por balas da polícia aumentaria em cerca de 35% e o número de pessoas mortas enquanto estavam sob custódia da polícia sofreria um incremento de aproximadamente 53%” (ANITUA, 2008, p. 786).
9 Como a atual política criminal de drogas que, concretizada normativamente na lei 11.343 de 2006, é responsável pelo encarceramento de quase 30% do total de presos brasileiros. Um dos fatores centrais para o crescimento da população prisional nos últimos anos é o aumento de presos por tráfico de drogas. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o tráfico, enquanto tipo penal, é aquele que mais criminaliza: do universo de 245.821 crimes pelos quais as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento, 55.920 correspondem ao tráfico, cerca de 30%. Desde 2005, o tráfico demonstra registros superiores aos demais delitos. De 2005 a 2012, o número de presos por tráfico mais do que triplicou no Brasil, verificando-se um aumento de 320,31% (BOITEUX; PÁDUA, 2013).
10 Como o Decreto natalino de indulto de 22 de dezembro de 2016 (Decreto nº 8.490) de Michel Temer, que excluiu a aplicação do instituto da comutação de penas e reduziu drasticamente as hipóteses de concessão de indulto – direitos prisionais estabelecidos em sede de execução penal que são medidas, respectivamente, de redução do tempo de permanência no estabelecimento prisional e de desencarceramento.
11 Exemplos de política criminal judiciária recrudescedora são jurisprudências como a súmula 582 do Superior Tribunal de Justiça, que praticamente acaba com a configuração da causa de diminuição de pena da tentativa no crime de roubo: “Consuma-se o crime de roubo com a inversão da posse do bem mediante emprego de violência ou grave ameaça, ainda que por breve tempo e em seguida à perseguição imediata ao agente e recuperação da coisa roubada, sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada.” (BRASIL, 2015).
12 A população brasileira é composta por 53% de pessoas negras (pretas e pardas), enquanto que no sistema penitenciário nacional o percentual de não-brancos chega a 64%. (BRASIL, 2017).
13 Demonstração de que no Brasil a prisão não é utilizada como exceção é o grande número de presos provisórios. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2015 apontava que 41% da população prisional era constituída por presos sem condenação definitiva. No Maranhão, esse índice segue sendo ainda maior, correspondendo a 66,4% do total de presos do estado em 2014 e 59% em 2016 (BRASIL, 2014a, 2017).
14 “Bakthin enfatizou a dialogicidade da linguagem, postulando que textos são dialógicos em dois sentidos: mesmo textos aparentemente monológicos, como os textos escritos, participam de uma cadeia dialógica, no sentido de que respondem a outros textos e antecipam respostas; o discurso é internamente dialógico porque é polifônico, todo texto articula diversas vozes” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 65).
15 Sobre a possibilidade de que textos e discursos tenham efeitos causais, é importante o conceito de gênero, de Fairclough (2003). O autor pontua que o discurso figura de três formas principais na prática social: através de gêneros, que têm a ver com modos de ação; discursos, que se relacionam a maneiras de representação; e estilos, que dizem respeito a modos de ser. Gêneros, discursos e estilos compõem a noção de discurso como ordenação semiótica em práticas sociais – o que Foucault chamou de ordem do discurso.

Figura 2
Quadro comparativo capacidade X ocupação no sistema penitenciário maranhense (janeiro de 2013 a outubro de 2016)
MARANHÃO. Secretaria Estadual de Administração Penitenciária. Unidades Prisionais. São Luís, [2017]. Disponível em: http://www.seap.ma.gov.br/instituicoes-prisionais/. Acesso em: 6 out 2017.

Figura 3
Sequência de eventos discursivos e não discursivos em relações causais
laborado pela autora.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc