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SOBRE A POLISSEMIA DA VIOLÊNCIA DE ESTADO NO BRASIL: apontamentos para sua análise e compreensão
ON THE POLLSEMY OF STATE VIOLENCE IN BRAZIL: notes for its analysis and understanding
SOBRE A POLISSEMIA DA VIOLÊNCIA DE ESTADO NO BRASIL: apontamentos para sua análise e compreensão
Revista de Políticas Públicas, vol. 23, núm. 1, pp. 232-245, 2019
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 21 Janeiro 2019
Aprovação: 04 Abril 2019
Resumo: O artigo pretende explorar a polissemia das interpretações sociológicas acerca da violência e suas implicações para a conformação do campo temático sobre o assunto no país. Nessa perspectiva, o texto busca compreender, a partir de uma análise bibliográfica da literatura internacional e nacional, o potencial interpretativo dos diferentes registros analíticos que se debruçam sobre o fenômeno. Explorando as modalidades da violência e as interpretações sociológicas que ganham visibilidade em nosso último período ditatorial (1964-1985) e em nossa experiência democrática recente, a violência pode ser apreendida desde o evidente, o fatual, onde ações ou condutas que se ajustem ao perfil da perturbação de limites são consideradas violentas, e/ou desde seu significado, onde qualificações e julgamentos emergem a partir das relações que lhe dão formato e expressividade.
Palavras-chave: Violência, Estado, Polissemia, Brasil.
Abstract: The article intends to explore the polysemy of sociological interpretations about violence and its implications for the conformation of the thematic field on the subject in the country. From this perspective, the text seeks to understand, from a bibliographical analysis of the international and national literature, the interpretative potential of the different analytical records that investigate the phenomenon. Exploring the forms of violence and sociological interpretations that gained visibility in our last dictatorial period (1964-1985) and in our recent democratic experience, violence can be grasped from the obvious, the factual, where actions or behaviors that fit the profile of the disturbance of limits are considered violent, and / or since their meaning, where qualifications and judgments emerge from the relationships that give it shape and expressiveness.
Keywords: Violence, State, Polysemy, Brazil.
1 INTRODUÇÃO
Explorando as formas como a violência aparece veiculada no discurso radiofônico, Bezerra de Menezes (1982) adverte-nos com relação às interpretações que sublinham a atualidade do fenômeno. Para o autor, antes de tornar-se preocupação de cientistas sociais, a violência e os conflitos foram trabalhados, com seriedade e esmero, em tratados de filosofia e obras da literatura mundial. Aproximando-nos da produção literária luso-brasileira, Menezes reproduz um trecho do Sermão do Bom Ladrão escrito por Padre Antônio Vieira (1608-1697) em 1655.
Não são só ladrões os que cortam bolsas, ou espreitam os que vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos. (VIEIRA, 1959 apud BEZERRA DE MENEZES, 1982, p. 13).
Os argumentos de Bezerra de Menezes (1982), respaldados pela literatura de Vieira, colocam em xeque as representações socialmente consagradas sobre o fenômeno e dão visibilidade às armadilhas interpretativas que podemos encontrar em nossas trajetórias investigativas, aguçando o olhar sociológico. Como destaca o autor, quando falamos sobre violência não nos reportamos a um fenômeno novo, muito menos unívoco em suas manifestações, representações e narrativas explicativas.
Para Alba Zaluar (2004), as percepções dos limites e perturbações de acordos tácitos e regras que ordenam as relações sociais seriam fundamentais para a compreensão dos eventos que poderiam ser socialmente e sociologicamente apreciados como violentos. Yves Michaud (1989) considera que essas perturbações não se limitariam ao emprego e/ou ameaça do uso da força física, pois os danos individuais e coletivos associados às múltiplas formas de violência atravessariam nossas experiências morais, simbólicas, culturais e econômicas.
Diante das múltiplas manifestações do fenômeno e da polissemia associada às suas interpretações, pretendemos explorar, no presente artigo, pautado em uma análise bibliográfica, algumas abordagens sociológicas que atuam na conformação do campo temático sobre o assunto no país, ajudando-nos a imaginar a violência em suas diferentes possibilidades e efeitos. Buscando contemplar essa proposta, o texto que segue foi dividido em quatro partes.
Inicialmente, nos debruçaremos sobre a clássica compreensão weberiana do monopólio da violência e sua relação com a formação dos Estados Nacionais modernos. Em um registro weberiano atualizado por Wieviorka (1997), o fenômeno no Brasil emerge associado à incapacidade dos Estados Nacionais de salvaguardarem para si e seus agentes autorizados os recursos associados ao monopólio da violência e das armas. O segundo momento do texto é permeado por reflexões acerca da nossa história ditatorial recente (1964-1985) e da violência política associada às dinâmicas de funcionamento das formas estatais autoritárias. Nessa perspectiva, as violações cometidas durante as ditaduras militares latino-americanas, que resultaram no desaparecimento forçado e na morte de milhares de pessoas, coexistem com uma violência legítima capaz de se contrapor a um Estado ilegítimo e ilegal (ZALUAR, 2004). A terceira etapa do trabalho projeta a compreensão do fenômeno para o registro da cidadania, termo recorrentemente acionado nos esforços empreendidos para a construção de uma democracia brasileira pós-regime ditatorial (1985). Em seus jogos seletivos de presenças e ausências o Estado brasileiro não apenas distribui mal suas riquezas e recursos, pois também elege como vítimas preferenciais da violência policial os membros das classes populares do nosso país. Após esse momento, em nossas palavras finais, apresentaremos algumas considerações acerca daquilo que buscamos explorar ao longo do artigo.
2 ESTADOS NACIONAIS E MONOPÓLIO LEGÍTIMO DA VIOLÊNCIA
Reportando-se à atualidade das questões que envolvem a violência e suas múltiplas interpretações, Sérgio Adorno (2002, p. 273) considera que “[...] na história do moderno pensamento ocidental, o conceito de violência nasce atrelado ao pressuposto antropológico da absoluta autonomia do indivíduo”. Sob essa perspectiva analítica, uma variedade significativa de situações associadas a restrições ou danos às autonomias individuais poderiam ser representadas como manifestações da violência. Adorno considera que esse tipo de argumento seria problemático, devido, entre outras questões, à impossibilidade teórica e prática de uma distinção entre poder, coação e violência, já que nessas interpretações não teríamos como distinguir poder legítimo e ilegítimo, o justo e o injusto. (ADORNO, 2002).
Os problemas relacionados a esse tipo de argumentação teriam sido equacionados através da fórmula weberiana que identifica “[...] o estado com o monopólio da violência” (ADORNO, 2002, p. 274)1. Interessado nas dinâmicas e engrenagens que fazem funcionar o Estado Moderno, Max Weber (1999) o define sociologicamente através de um meio específico que lhe seria próprio, a coação física.
[...] Hoje, o Estado é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território – este, o “território”, faz parte da qualidade característica -, reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima, pois o específico da atualidade é que a todas as demais associações ou pessoas individuais somente se atribui o direito de exercer coação física na medida em que o Estado o permita. Este é considerado a única fonte do “direito” de exercer coação. (WEBER, 1999, p. 525-526).
Os argumentos de Weber nos permitiriam vislumbrar uma “[...] forma de organização social onde os governantes têm a sua disposição grupos de especialistas que estão autorizados a usar a força física em emergências e também a impedir outros cidadãos de fazerem o mesmo.” (ELIAS, 1993, p. 162).
Explorando os fundamentos justificativos internos e os meios externos sobre os quais se apoia a dominação do Estado, Weber (1999, p. 528-529) considera que:
[...] No fim vemos que no Estado moderno de fato há a concentração em um ponto supremo da disposição sobre todos os recursos da organização política, que mais nenhum funcionário é proprietário pessoal do dinheiro que desembolsa ou dos prédios, das reservas, dos instrumentos ou da maquinaria bélica de que dispõe. No “Estado” atual, está, portanto, completamente realizada – isto é essencial para o conceito – a “separação” entre o quadro administrativo, os funcionários e trabalhadores administrativos, e os meios materiais da organização.
O monopólio legítimo da violência, associado na chave interpretativa weberiana a um componente territorial e a relações de dominação, não é apreciado como uma invenção sociotécnica qualquer, emergindo como um dos meios externos que garantem a reprodução do Estado como associação política. Frente à pretensa monopolização da violência nas mãos dos Estados Nacionais, as perturbações dos limites e regras agenciadas por sujeitos e coletividades a quem é vedado o exercício da coação física considerada legítima modulam as representações sobre a violência, associando-a indiscriminadamente à sua modalidade criminal.
Críticas significativas aos argumentos de Weber (1999) foram desenvolvidas, até certo ponto, na tentativa de atualizar seu pensamento, por pesquisadores que se dedicam à compreensão das atuais dinâmicas da violência em nossas sociedades. De olho nas mudanças das manifestações tangíveis do fenômeno, das formas cotidianas de significar e apreciar essas manifestações, e, dos esquemas interpretativos que o tomam como objeto de estudo, Michel Wieviorka (1997) imaginava, no final do século passado, estarmos diante de um novo paradigma da violência. Para o autor francês, nesse novo paradigma da violência estaria em jogo, entre outras situações, a validez de interpretações consideradas clássicas, especialmente a weberiana, que associam o fenômeno à sua dimensão estritamente estatal e política.
Wieviorka (1997) considera que em nosso arranjo contemporâneo os fenômenos associados a violências infrapolíticas e metapolíticas nos obrigariam a reconhecer o transbordamento da violência para além de um espaço relacional do tipo político e sua instrumentalização articulada a objetivos privados e fragmentários, não inscritos, inicialmente, no campo clássico da política ou em planos para uma tomada do poder do Estado. Experiências ligadas ao controle e à acumulação de recursos econômicos, aos fenômenos racistas e xenófobos ao longo do globo e as lutas por ‘acréscimo de sentido’ de indivíduos e coletividades (WIEVIORKA, 19997) teriam deslocado de maneira sensível as interpretações sociológicas acerca da violência, seus espaços e instrumentalizações.
Privilegiando os entrelaçamentos das dimensões sociais, políticas e culturais da vida social contemporânea, Wieviorka (1997) vislumbra um arranjo social que não se modula unilateralmente por um espaço relacional do tipo político, nos instigando a refletir sobre a validade dos instrumentais teóricos e metodológicos de Weber para a compreensão da violência e suas modulações no presente.
Adorno (2002, p. 278) nos adverte que Wieviorka toma como contexto referencial para suas argumentações:
[...] sociedades ocidentais capitalistas que compõem o chamado mundo desenvolvido. Não têm por referência o Estado em sociedades que, embora sob a égide do Ocidente moderno, não teriam ainda concluído – se é que devessem fazê-lo ou vão ainda fazê-lo – suas tarefas de modernização econômica e política, inclusive a consolidação da democracia social, como é o caso da sociedade brasileira.
Analisando nosso arranjo particular, o autor nos motiva a pensar sobre:
[...] como se coloca o monopólio estatal da violência em sociedades que jamais lograram, em sua história social e política, alcançá-lo efetivamente e que certamente não o lograrão imersos que se encontram na avalanche do processo de globalização, seja lá o que isto signifique? E, mais, se considerarmos as tradicionais ausências de claras fronteiras entre o público e o privado, entre as atribuições estatais de controle público da violência e o largo espectro de recurso à violência privada como forma de resolução de conflitos nas relações sociais e interpessoais? E, se ainda acrescentarmos a esse quadro o rápido desenvolvimento do mercado privado de segurança que acentua ainda mais os obstáculos para lograr o monopólio estatal da violência? (ADORNO, 2002, p. 279).
As respostas a essas perguntas envolvem uma série de variáveis e, como destaca Adorno (2002), o debate está apenas começando. O conhecimento acumulado até o momento, em termos gerais, nos permitiria considerar que: as práticas representadas como violentas sofreram uma série de transformações ao longo das últimas três décadas, devido, entre outros motivos, aos avanços tecnológicos recentes e o surgimento das redes de crimes transnacionais; e, os sentidos e significados associados hoje à violência entrecruzam alegorias históricas e temas emergentes, podendo envolver desde finalidades econômicas privadas até questões relacionadas à identidade e as lutas por reconhecimento 2.
Em um contexto dinâmico de transformações e permanências, estudiosos dedicados à compreensão da violência no Brasil destacam, de maneira recorrente, um débil monopólio das armas e da violência como uma situação favorável à difusão de práticas consideradas violentas no processo de resolução de conflitos interpessoais e execução de crimes no país. Falaríamos, num registro weberiano atualizado por Wieviorka (1997), de uma violência gestada nos interstícios da incapacidade dos Estados Nacionais de salvaguardarem para si e seus agentes autorizados os recursos associados a uma monopolização da violência. Nesse momento, ao Estado é outorgada uma parcela de responsabilidade, não como o algoz de uma violência rotineiramente perpetrada, mas como uma instituição que falha na sua pretensão de monopolização da violência considerada legítima e cria as condições de possibilidades para a ocorrência rotineira de práticas violentas em seu território.
3 ESTADOS DITATORIAIS E VIOLÊNCIA POLÍTICA
De olho nas experiências mundiais recentes, outra forma de imaginar a violência, também associada às dinâmicas do funcionamento das formas estatais modernas, tem o potencial de alargar as análises sociológicas sobre o fenômeno. Yves Michaud (1989, p. 30) considera que os períodos de violência política podem ser caracterizados:
[...] pela instauração de jurisdições de exceção que pronunciam uma justiça expeditiva e caricatural, pela hipertrofia da área de ação policial que se torna um Estado dentro do Estado (prisões preventivas, sequestros, detenções arbitrárias, desaparecimentos) e pela extrema generalidade da ameaça [...].
Na América do Sul, especialmente na Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, são inúmeras as narrativas sobre as experiências desse tipo de violência vinda de cima, que em suas jurisdições de exceção pronunciam uma justiça expeditiva e caricatural.
O jurista Belisário dos Santos Jr. (2001, p. 89-90) considera que as violações cometidas durante as ditaduras militares latino-americanas, que resultaram no desaparecimento forçado e na morte de milhares de pessoas, não foram acidentes históricos ou fatos isolados, pois houve uma:
[...] violência sistemática contra os direitos do homem, executada por agentes do Estado com autorização, conivência ou ordem expressa de seus superiores. Métodos idênticos de controle e desaparecimento de membros da oposição foram aplicados por meio da criação e do fortalecimento de eficientes mecanismos de repressão política e de coordenação entre as diversas polícias políticas. Todo esse aparato, como inúmeras vezes foi denunciado, serviu a um sistema de apropriação e manutenção do poder, instrumentalizado pela doutrina de segurança nacional, mediante seus conceitos básicos, o de guerra interna e de inimigo interno. Cada povo sofreu as consequências da ocupação militar de seu espaço físico e político. Em cada opositor se identificava a figura de um inimigo do Estado a ser combatido, neutralizado e, se necessário, eliminado.
Referimo-nos a uma violência, sobretudo física e psicológica, perpetrada pelos agentes do Estado com a autorização, conivência ou ordem expressa de superiores. Práticas violentas que se inserem na dinâmica dos jogos políticos e estratégias de controle, onde posições ideológicas e partidárias ganham contornos e são apreciadas sob o crivo da guerra e do inimigo interno.
No Brasil “[...] foram levantados os nomes de 257 mortos e 169 desaparecidos por ‘motivos políticos’, vítimas da ditadura instalada em 1964.” (TELES, 2010, p. 253). Para o advogado Fábio Comparato (2001, p. 61):
A expressão “crimes políticos”, obviamente, designa os crimes contra a segurança nacional, definidos e apenados sucessivamente, durante o período de tempo determinado na lei n. 6.683, pela lei n. 1.802, de 1953, pelo decreto-lei n. 314, de 1967, e pelo decreto-lei n. 898, de 1969.
Em nome da segurança nacional, supostos crimes políticos foram reprimidos através de inúmeras prisões ilegais, torturas, desaparecimentos forçados e/ou assassinatos. Analisando as dinâmicas de visibilidade e ocultamento que envolviam a legitimação social do regime ditatorial então vigente, Janaína Teles (2010, p. 256) aponta que:
Entre os anos de 1969 e 1971, o Estado de exceção constituiu uma rede de unidades secretas, em relação ao seu próprio quadro legal, do aparato repressivo. Em julho de 1970, o ministro do Exército, Orlando Geisel, definiu que o Exército assumiria o comando das atividades de segurança e, dois meses depois, criou os Destacamentos de Operações de Informações-Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Tal rede se formou em decorrência da necessidade constante da ditadura de buscar a legitimidade e a sua institucionalização por meio da aplicação seletiva do poder coercitivo sobre a sociedade civil.
Nesse arranjo, nos deparamos com uma violência perpetrada pelo Estado ditatorial brasileiro contra os opositores do regime (COMPARATO, 2001), “[...] que se ergueram contra a ditadura e que morreram por um ideal de justiça” (MORAES, 2001, p. 105). Se para os debates sobre desigualdades socioeconômicas emerge na literatura social um termo como o da redistribuição e para questões identitárias noções como a do reconhecimento, para as vítimas das ditaduras latino-americanas e seus familiares o tripé verdade, justiça e reparação é recorrentemente acionado na condução de suas demandas políticas, jurídicas, morais e econômicas.
O direito à verdade articula-se às apurações das circunstâncias em que ocorreram os fatos e esclarecimento da autoria das torturas, mortes e desaparecimentos forçados, ou seja, a uma investigação idônea e célere sobre o que realmente ocorreu durante o último período ditatorial brasileiro (1964-1985). O direito à justiça gira em torno do estabelecimento e aplicação efetiva das punições aos responsáveis por esses eventos. Trata-se, sobretudo, de demandas pela aplicação rápida e eficiente de uma lei justa e de uma luta contra a impunidade dos autores intelectuais e materiais dos crimes do regime. Nesse terreno os debates são controversos e estão longe de um consenso, especialmente quando estão em pauta discussões sobre a possibilidade da responsabilização civil e penal do Estado brasileiro e seus agentes. Através das demandas por reparação, que envolvem registros materiais e simbólicos, têm-se pleiteado, entre outras coisas, indenizações por danos morais e materiais e ressarcimentos relativos às despesas econômicas com doenças, funerais e viagens, sobretudo quando os corpos dos desaparecidos são encontrados.
Imaginada sob o crivo das experiências ditatoriais, a violência emerge associada, por um lado, às ações organizadas e sistémicas dos Estados e seus agentes, e, por outro, aos impactos e ressonâncias que produz na vida dos familiares e amigos de assassinados, torturados e/ou desaparecidos. Para além das experiências imediatas que ganham visibilidade quando o ato dramatizado do fenômeno se processa, a violência política na América Latina produziu inúmeras situações de luto e sofrimento, criando as condições de possibilidades para a transformação desses sentimentos em combustível para a luta dos movimentos sociais contemporâneos em prol dos Direitos Humanos.
3.1 Estados autoritários e violência contestatória
Analisando as mudanças nas formas como os cientistas sociais abordam a temática da violência, um dos eixos explicativos através dos quais o autor se refere a um novo paradigma da violência, Wieviorka (1997) nos conduz a um instigante debate acerca das transformações pelas quais as apreciações sociológicas do fenômeno passaram no último século.
Se após a II Grande Guerra Mundial (1939-45) manifestavam-se esforços para a construção de uma abordagem total da violência, equacionada através de noções tais como conflito e crise3, hoje as interpretações sobre o fenômeno tenderiam a incorporar outros processos e variáveis em suas narrativas explicativas. Para compreender a violência dos nossos tempos, segundo Wieviorka (1997), deveríamos nos precaver contra possíveis dissociações analíticas traçadas entre o registro do sistema e o dos atores e interpretações que focam seu olhar de maneira unilateral naquilo que é desfeito e/ou liquidado. Em um espaço internacional onde os jogos políticos, caracterizados por conflitos sistêmicos e mediações institucionais, são ressignificados, a proliferação de uma gama difusa de violências infra e/ou metapolíticas, articuladas a particularismos econômicos e/ou a identidades étnicas e/ou culturais, exige do olhar sociológico uma renovada maneira de pensar seu objeto e relações.
Traçando um panorama do campo temático no Brasil, Alba Zaluar (2004) aponta que nos estudos da década de 1970 a violência não aparecia associada de maneira restrita às ao crime e às práticas ilegais. Nesses estudos, que dedicaram especial atenção aos processos de emergência dos movimentos sociais e suas ações, tratava-se de compreender uma violência legítima contra um Estado ilegítimo e ilegal. Uma violência popular que alimentaria as lutas por uma cidadania a ser construída, uma espécie de “[...] efeito da desordem instaurada pelo poder ilegítimo do Estado e pelo capitalismo selvagem” (ZALUAR, 2004, p. 230). Essa maneira de imaginar o fenômeno teria ganhado mais adeptos, segundo a autora, durante o período ditatorial (1964-1985) e na década de 80, consolidando- se através dos estudos sobre a “[...] brutalidade oficial, militar e estatal, ou paraestatal, clandestina e oficiosa, das organizações paramilitares que continuaram a exercer o terror de Estado” (ZALUAR, 2004, p. 231)4.
O discurso predominante era o de que os verdadeiros problemas e questões seriam evidentemente a miséria crescente, o desemprego, a falta de serviços públicos eficientes, em especial no setor da saúde e da educação, e a ausência de políticas sociais, tudo isso entendido como violência perpetrada pelo Estado contra a população necessitada. (ZALUAR, 2004, p. 233).
Nessas interpretações iniciais sobre o fenômeno não se diferenciava teoricamente uma violência de caráter mais estrutural, daquela utilizada para denunciar os desmandos e atrocidades do poder militar, pois em ambos os discursos as denúncias das deficiências e problemas do Estado pareciam deslizar para o centro dos debates.
Como fenômeno social e objeto sociológico, a violência, em seu novo paradigma, deve ser apreendida através das relações espaciais e temporais que modulam suas manifestações, pois nesses momentos representações e significados são agenciados, reproduzidos e atualizados. A violência pode ser definida desde o evidente, o fatual, onde ações ou condutas que se ajustem ao perfil da perturbação de limites são consideradas violentas, e/ou desde seu significado, onde qualificações e julgamentos emergem a partir das relações que lhe dão formato e expressividade. Nesse jogo interpretativo em que se inscreve a Sociologia, devemos levar em consideração em nossas análises o ponto de vista sob o qual a violência é engendrada e percebida, destacando as normas, sujeitos e experiências envolvidos nesses processos.
4 VIOLÊNCIA POLICIAL E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
O termo cidadania tem sido recorrentemente acionado nos esforços empreendidos para a reconstrução, ou como alguns preferem construção, da democracia brasileira pós-regime ditatorial (1964-1985). José Murilo de Carvalho (2008) considera ter-se tornado rotineiro o desdobramento da categoria em suas dimensões civis, políticas e sociais a partir dos argumentos desenvolvidos por Theodor Marshall (1967), reveladores das aproximações e distâncias das nossas experiências históricas das idealizações que envolvem a imaginação de regimes governamentais mais justos e igualitários.
Os direitos civis seriam os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. Podem ser desdobrados nas garantias de ir e vir, escolher o próprio trabalho, manifestar o pensamento, organizar-se, ter respeitada a inviolabilidade do lar e correspondência, não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, e, entre outros, não ser condenado sem o devido processo legal. São os direitos cuja garantia se baseia na existência de uma justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos. Para Carvalho (2008, p. 9), “[...] são eles que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liberdade individual.” Os direitos políticos:
[...] se referem à participação do cidadão no governo da sociedade. Seu exercício é ilimitado a parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado. Em geral, quando se fala de direitos políticos, é do direito do voto que se está falando. [...] os direitos políticos tem como instituição principal os partidos e um parlamento livre e representativo. São eles que conferem legitimidade à organização política da sociedade. Sua essência é a ideia de autogoverno. (CARVALHO, 2008, p. 9).
Versando sobre os direitos sociais, o autor considera que:
Se os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a participação no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. A garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo. [...] Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdades produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A ideia central em que se baseiam é a da justiça social. (CARVALHO, 2008, p. 10).
Analisando o processo de formação de uma democracia à brasileira, sob a ótica das normatizações e efetivas garantias dos direitos inscritos na lei, Teresa Caldeira (2000) considera que a democracia no Brasil incorporou um caráter disjuntivo no caminho que percorreu, enquanto Carvalho (2008) afirma que nos encontramos democraticamente em uma encruzilhada, devido, entre outros fatores, à falta de equilíbrio nos acessos às dimensões inclusivas da cidadania observadas em nossa história.
Apreciando o arranjo democrático brasileiro como disjuntivo, Caldeira (2000) quer chamar nossa atenção para os processos contraditórios de simultânea expansão e desrespeito aos direitos da cidadania, processos que de fato marcam muitas das experiências democráticas no mundo atual. Para a autora, “[...] a cidadania brasileira é disjuntiva porque, embora o Brasil seja uma democracia política e embora os direitos sociais sejam razoavelmente legitimados, os aspectos civis da cidadania são continuamente violados.” (CALDEIRA, 2000, p. 343). Em nosso trajeto histórico rumo à democracia:
[...] primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular5. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peças decorativas do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, (a base da sequência de Marshall), continuam inacessíveis a maioria da população. (CARVALHO, 2008, p. 220).
Identificando um significativo avanço nos acessos às esferas políticas e sociais da cidadania e uma débil garantia dos seus aspectos civis, Carvalho (2008) considera que estes últimos poderiam ser considerados retardatários na longa trajetória da construção democrática brasileira.
Rotineiramente desrespeitados, os direitos civis da cidadania no Brasil não seriam violados apenas por sujeitos para os quais não é reservado o exercício do monopólio legítimo da violência, mas também, e de forma recorrente, por representantes das agências estatais encarregadas de lidar com a violência e a criminalidade em nossa sociedade. Paulo Sérgio Pinheiro (2000, p. 11) pondera que:
Durante as transições democráticas na América Latina nos anos 80 havia a grande esperança de que o fim das ditaduras significasse a consolidação do Estado de Direito. [...] No entanto, quando as sociedades latino-americanas passaram por transições de ditaduras para governos civis, as práticas autoritárias de seus governos não foram afetadas por mudanças políticas ou eleições: sob a democracia prevalece um sistema autoritário, incrustado em especial nos aparelhos de Estado de controle da violência e do crime.
Importante notar, como bem destaca o autor, que essas práticas autoritárias, resultado de nosso legado histórico e de períodos ditatoriais recentes, “[...] se abatem de preferência sobre as maiorias que constituem as populações pobres e miseráveis, precisamente aqueles setores que são os alvos do arbítrio, da criminalização e da discriminação.” (PINHEIRO, 2000, p. 13). Os laços históricos entre Estado de Direito e autoritarismo, segundo Pinheiro, não seriam superados por completo em nosso regime democrático, já que:
[...] os pobres e os membros marginalizados da sociedade têm sido sistematicamente alvos do mau tratamento do sistema judicial como um todo (Judiciário, polícia, prisões) pelo uso ilegal e arbitrário da força, em flagrantes violações dos direitos humanos, como na “legalidade autoritária”6. (PINHEIRO, 2000, p. 13).
As camadas populares do país seriam as vítimas preferenciais das práticas ilegais e autoritárias agenciadas pelo braço operante do Estado brasileiro encarregado de lidar com a violência e a criminalidade. Vivemos, nesse registro interpretativo, numa democracia constitucional que ao mesmo tempo em que reserva aos pobres assentos preferenciais em espetáculos de violência e criminalidade, insiste em manter impunes os crimes cometidos por seus representantes e agentes.
Avaliada sob a luz da cidadania, a violência revela as falhas e brechas dos Estados Nacionais contemporâneos, especialmente aqueles que se pretendem democráticos, na sua tarefa de salvaguarda dos direitos e deveres constitucionais. Em meio a uma trajetória histórica de recorrentes desrespeitos aos direitos civis da cidadania, criminosos e agentes da lei reproduzem um quadro difuso de violência (BARREIRA, 2008) que tende a se abater perniciosamente sobre as camadas populares dos grandes centros urbanos brasileiros.
5 CONCLUSÃO
Dando linhas finais aos nossos argumentos, creio podermos considerar que o fenômeno da violência é polissêmico em seus efeitos, múltiplo em suas manifestações (ZALUAR, 2004) e ambivalente em suas percepções. (FREITAS, 2003). Em suas interpretações não encontramos apreciações consensuais acerca de suas formas e ocorrências, deparando-nos com estudos que ora privilegiam sua plasticidade e dramaticidade empírica, ora sua presença silenciosa e latente, porém eficaz e duradoura. “Do mesmo modo, o mal a ela associado, que delimita o que há de ser combatido, tampouco tem definição unívoca e clara. Não é possível, portanto, de antemão definir a violência como positiva e boa ou como destrutiva e má.” (ZALUAR, 2004, p. 228). Reafirma-se, dessa forma, a impossibilidade de “[...] uma sociologia integrada da violência capaz de propor uma teoria unificada satisfatória, que permita abraçar simultaneamente os níveis da personalidade e do individuo, os da sociedade, do Estado, e do sistema de relações internacionais." (WIEVIORKA, 1997, p. 25).
Atrelada às reflexões sobre a formação dos Estados Nacionais e seu monopólio legítimo, a violência revela-se como um dos meios externos decisivos para a dominação social e sua reprodução. Nesse quadro, o fenômeno pode ser associado à emergência e manutenção dos Estados contemporâneos tanto quanto às perturbações dos limites e regras agenciadas por sujeitos e coletividades, a quem é vedado o exercício da coação física considerada legítima. Práticas de controle e modalidades criminais entrelaçam-se na conformação das representações sociológicas sobre a violência na sociedade brasileira, traçando os contornos da centralidade do crime em nosso sistema de justiça, veículos midiáticos e senso comum.
Para além dessa clássica chave interpretativa onde o controle e o crime ganham a centralidade dos debates, a análise sociológica nos mostra que outros caminhos podem ser percorridos quando o fenômeno da violência entra em questão. Levando em conta as dimensões estruturais e institucionais de nossas sociedades, o fenômeno aparece articulado no Brasil a práticas perpetradas pelos representantes da lei durante nosso último regime ditatorial (1964-1985), a formas “legítimas de violência” agenciadas “[...] contra o Estado ilegítimo e ilegal” (ZALUAR, 2004, p. 230) que se instaurou no período, e, a uma distribuição seletiva, historicamente prejudicial, dos serviços estatais e seus benefícios à população do país. Estados de violência, muitas vezes escamoteados quando seus atos dramatizados ganham visibilidade e atenção, revelam a complexidade das experiências sociais associadas à violência e a extensão do alcance de suas possíveis interpretações.
Como fenômeno social e objeto sociológico, a violência pode ser apreendida desde o evidente, o fatual, onde ações ou condutas que se ajustem ao perfil da perturbação de limites são consideradas violentas, e/ou desde seu significado, onde qualificações e julgamentos emergem a partir das relações que lhe dão formato e expressividade. Em meio a uma trajetória histórica de recorrentes desrespeitos aos direitos civis da cidadania, criminosos e agentes da lei reproduzem um quadro difuso de violência que exige dos analistas sociais considerações sobre questões estruturais tanto quanto sobre o ponto de vista sob o qual é engendrada e percebida, destacando-se normas, sujeitos e experiências envolvidas nesses processos.
REFERÊNCIAS
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Notas