Artigos - Temas livres
ACOLHIMENTO COM CLASSIFICAÇÃO DE RISCO EM SAÚDE: estudo em Unidade de Pronto Atendimento de Fortaleza
TRIAGE IN HEALTH CARE: study in an Emergency Care Unit in the city of Fortaleza
ACOLHIMENTO COM CLASSIFICAÇÃO DE RISCO EM SAÚDE: estudo em Unidade de Pronto Atendimento de Fortaleza
Revista de Políticas Públicas, vol. 23, núm. 1, pp. 303-322, 2019
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 08 Agosto 2018
Aprovação: 28 Março 2019
Resumo: Este artigo tem o objetivo de compreender a trajetória de constituição da proposta de acolhimento com classificação de risco na dinâmica da rede de saúde. É um recorte de uma pesquisa qualitativa sobre a organização das redes de atenção à saúde. O presente enfoque foi produzido a partir de uma Unidade de Pronto Atendimento de Fortaleza, Ceará, mediante utilização das técnicas da observação flutuante e entrevista semiestruturada com profissionais e usuários do serviço; procede, também, de exame de fontes documentais referentes ao tema. Aponta, ainda, que os protocolos previstos pelo Ministério da Saúde foram implantados. Entretanto, conclui que a ideia de acolhimento trazida inicialmente pela Política Nacional de Humanização é modificada em função das práticas gerenciais que dominam a organização dos serviços de saúde no país.
Palavras-chave: Política de Saúde, Sistema Único de Saúde, Redes de Urgência e Emergência, Acolhimento com Classificação de Risco.
Abstract: This article aims to understand the path of constitution of the triage proposal in the dynamics of the health network. It is a cut of a qualitative research on the organization of health care networks. The present approach was produced from an Emergency Care Unit in Fortaleza, Ceará, using the techniques of floating observation and semi structured interview with professionals and users of the service, as well as documentary sources related to the subject. The protocols foreseen by the Ministry of Health were implemented. However, the Idea of Triage initially brought about by the National Humanization Policy is modified according to the managerial practices that dominate the organization of the health services in the country.
Keywords: Health Policy, Unified Health System (SUS), Urgency and Emergency Networks, Triage.
1 INTRODUÇÃO
Os processos de criação e a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil despontaram por força da sociedade e com o propósito de mudança do modelo hospitalocêntrico, curativo, biomédico e particularista, hegemônico. A Constituição Federal de 1988 e a Lei Orgânica da Saúde de 1990 trouxeram a obrigatoriedade de instituição de um sistema diverso, de caráter universalista, contemplando também a promoção e a prevenção dos agravos à saúde, cujas diretrizes fundamentais são a descentralização das ações e serviços, o atendimento de forma integral e a participação da comunidade no processo, por meio do controle social.
Desde então, o maior desafio desse novo sistema já em seu vigésimo sétimo ano de funcionamento ainda é o da universalização do atendimento. Nessa esfera, as dificuldades são muitas a despeito das buscas empreendidas – não sem conflitos internos no próprio campo da saúde, na disputa por distintos projetos e poderes; assim como os conflitos mais gerais próprios de uma sociedade de classes, desigual como a nossa, a repercutir intermitentemente no referido campo –, e das várias estratégias propostas e/ou testadas com esse intuito.
Segundo se realça, a criação do SUS é fruto da luta pela Reforma Sanitária, mas sua instituição não ocorreu mediante rupturas. (LEVCOVITZ, 1997). As inovações foram se formando dentro de velhas estruturas arcaicas ineficientes, plenas de vícios, frutos de um Estado patrimonialista e uma cultura política autoritária, clientelista e paternalista. Paim (2008), fundamentado em Gramsci, denominou esse processo de revolução passiva, ou seja, conservação e mudança. Mesmo assim, as escolhas para a construção do SUS propiciaram avanços na sua organização e funcionamento. Então, o setor saúde se transforma num imenso laboratório de inovações em diferentes dimensões da organização, gestão e atenção à saúde.
Apesar disso, o atendimento universal de qualidade e em tempo oportuno ainda permanece como utopia, embora diante dos avanços jurídicos e dos muitos passos já percorridos na busca de um modelo de atenção capaz de promover a integralidade do cuidado.
Aqui o modelo de atenção é entendido como um conjunto de saberes e práticas utilizados para resolver problemas e atender necessidades de saúde individuais e coletivas, bem como o modo de organizar e administrar um sistema de serviço de saúde (TEIXEIRA, 2003). Entre as estratégias para o atendimento universal, destaca-se, para fins de discussão no presente artigo, o dispositivo do acolhimento com classificação de risco no contexto das redes de atenção e, mais especificamente, no contexto da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE). Este dispositivo teria, segundo Brasil (2010), a finalidade de articular e integrar os equipamentos de saúde no sentido de ampliar e qualificar o acesso humanizado e integral aos usuários em situação de urgência/emergência.
Para a produção do artigo, apoiou-se em pesquisa sobre a temática da Organização das Redes de Atenção à Saúde. O projeto se insere na rede de pesquisadores do Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Política, Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, que envolve diversos centros de pesquisa do país.
O presente recorte visa explicitar a trajetória de constituição da proposta de acolhimento com classificação de risco e seus percalços no cotidiano de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). A metodologia consistiu em pesquisa documental, como também em pesquisa empírica realizada na UPA do bairro Conjunto Ceará, cidade de Fortaleza, com a utilização das técnicas da observação flutuante (PÉTONNET, 2008) e a entrevista semiestruturada. Quanto aos procedimentos éticos, seguiu-se a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde, CAAE 3645341.40.0000.5534.
Este artigo consta de três partes: a primeira discute o acolhimento desde as experiências iniciais, sua absorção ao Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) e redimensionamento durante a transformação deste programa na Política Nacional de Humanização (PNH); a segunda situa o acolhimento com classificação de risco na dinâmica da rede de atenção à saúde, especialmente na de urgência e emergência; a terceira consiste em análise sobre o acolhimento com classificação de risco na UPA ora mencionada.
2 PROPÓSITOS DO ACOLHIMENTO EM SAÚDE: um processo lento e tortuoso
As primeiras noções de acolhimento em saúde no Brasil começam a ser pensadas paralelamente ao debate sobre a necessidade de humanização dos serviços assistenciais de saúde, mormente nas instituições hospitalares, na década de 1990, diante da enorme insatisfação da população com o atendimento recebido.
No período, em decorrência de mudanças na ordem econômica, institucional e estrutural do sistema capitalista que buscava estratégias de superação da sua longa crise, bem como em razão de redefinições do papel do Estado, vivenciavam-se no país os efeitos perversos e devastadores de um projeto societário de cunho neoliberal, o qual se expressava em todas as esferas da vida em sociedade. Nesse contexto, as condições de saúde e as do atendimento não ficariam imunes a essas mudanças e, consequentemente, ocasionariam perdas aos segmentos sociais que mais recorrem ao SUS, os mais pobres.
Na verdade, a ideia de humanização no campo da saúde constituía uma resposta às inúmeras críticas da população usuária do SUS, algumas das quais sistematizadas por meio de pesquisas empreendidas para medir o nível de qualidade do sistema, ao mesmo tempo em que servia de mote para desqualificar o serviço público, reforçando o argumento para a política de privatizações do projeto neoliberal. E é dentro desse campo de contradições que a humanização é tema da 11ª Assembleia Nacional de Saúde. Nesse momento, também, nasceu o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar, como projeto piloto em vários hospitais da rede pública de saúde. (BRASIL, 2001a).
É importante realçar: tanto a formulação da noção de acolhimento com classificação de risco como as tentativas da sua efetivação ocorreram de modo processual e paulatinamente à medida que também transcorria uma reorganização do Estado e da administração pública em perspectiva gerencial. Ao mesmo tempo, impunha-se a necessidade de efetivar a organização dos serviços de saúde em conformidade com a Lei Orgânica da Saúde (LOS), entretanto, condicionando-a à perspectiva de racionalização de recursos. Nesse contexto, se explicita ainda o imperativo de organização da demanda de modo a direcionar a população usuária do sistema aos setores de atendimento adequados às queixas apresentadas, ou seja, os serviços de nível primário, secundário ou terciário integrantes do sistema de saúde do país.
Destaca-se que as experiências piloto do PNHAH efetivadas no país eram recobertas com o manto de uma suposta ética. Em geral, restringiam suas justificativas à necessidade de humanização da assistência hospitalar em si, mas omitiam a perspectiva eminentemente restritiva de gastos, considerada a principal tônica das políticas voltadas à proteção social, entre elas, as de saúde naquele período. Ao envolver-se no manto da ética o programa (pois, na verdade, o PNHAH não era, de fato, uma política pública) deslocava a responsabilidade da humanização para o mero atendimento individual dos profissionais, sem levar em conta suas reais condições de trabalho, sobretudo as contratuais e nem mesmo as condições de saúde.
Assim, as experiências piloto eram vitrines nas quais havia uma maquiagem a demonstrar as virtudes e o sucesso da proposta de reforma do Estado com restrição de gastos. Não se descarta, porém, sua utilização por interesses sociais contrários: assim como elas se prestavam a esse papel, também se prestavam como espaço de criatividade, de alianças com segmentos sociais, políticos e entre profissionais de vertente crítica que atuavam no cotidiano do trabalho. Cabe enfatizar: os setores de serviço social de alguns hospitais participantes protagonizaram esse processo, contudo, em visão crítica e a favor da humanização dos serviços, compreendendo, com Martinelli (2011, p. 4), tratar-se de desafio cotidiano e imperativo ético na “[...] construção de uma prática competente, na qual o valor humano, a qualidade de vida e a dignidade da morte fossem alicerces fundantes e objetivos comuns para toda a equipe”.
Em novo ciclo político (FIALHO, 1999), iniciado no país em 2003, mesmo sem abandonar sua vertente neoliberal, o Estado brasileiro propicia algumas reformas sociais e possibilita o estabelecimento de pactos pela saúde (BRASIL, 2006a, 2006b) e a transformação do PNHAH em Política Nacional de Humanização. Volta-se, pois, para todo o sistema da atenção à gestão, cujo intuito seria impregnar uma cultura humanizadora em toda a rede de saúde. (BRASIL, 2004). Naquele contexto, de acordo com a PNH, o acolhimento é concebido como:
[...] modo de operar os processos de trabalho em saúde de forma a atender a todos que procuram os serviços de saúde, ouvindo suas demandas e assumindo, no serviço, uma postura capaz de acolher/escutar e pactuar respostas mais adequadas ao usuário. Busca ainda, orientar, quando for necessário, o paciente e a família em relação a outros serviços de saúde para a continuidade da assistência e estabelecimento de articulações com esses serviços, garantindo a eficácia desses encaminhamentos. A avaliação e classificação de risco é um processo dinâmico de identificação dos pacientes que necessitam de tratamento imediato, de acordo com o potencial de risco, agravos à saúde ou grau de sofrimento. (BRASIL, 2004, p.14).
Nessa perspectiva, o acolhimento com classificação de risco é eleito como importante dispositivo no processo de organização dos níveis de assistência à saúde, como modo de viabilizar o acesso dos usuários aos serviços de saúde. Para o MS, este consiste na recepção do usuário, desde sua chegada, responsabilizando-se integralmente por ele. Cabe à equipe responsável ouvir suas queixas e permitir-lhe expressar suas preocupações e angústias e, ao mesmo tempo, colocar os limites necessários, garantindo atenção resolutiva e articulação com outros serviços de saúde para a continuidade da assistência. (BRASIL, 2004).
Posteriormente, em 2007, com base nessas determinações do MS, os responsáveis pela implementação da política de saúde no município de Fortaleza mobilizaram-se no sentido de operacionalizar o aludido dispositivo. Para tal, o reafirmam como instrumento de humanização nos serviços de saúde e buscam reorganizar os fluxos de atendimento.
Entretanto, essa operacionalização do dispositivo tem seus percalços. Há investimentos no uso de técnicas e instrumentos à semelhança dos utilizados no mundo da produção industrial e da administração pública gerencial, minimizando aspectos importantes que serão mencionados na terceira parte deste artigo, ao se tratar das condições reais em que transcorre o referido acolhimento em situações de emergência, cuja compreensão requer, inicialmente, situá-lo segundo a concepção de Redes de Atenção à Saúde (RAS) adotada pelo MS, particularmente a Rede de Urgência e Emergência.
3 AS REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE, A REDE TEMÁTICA DE URGÊNCIA E EMERGÊNCIA E O ACOLHIMENTO COM CLASSIFICAÇÃO DE RISCO
Desde as primeiras décadas do século passado, as RAS vêm sendo propostas em países que, a exemplo do Reino Unido, as priorizaram quando da elaboração do Relatório Dawson, resultante de intenso debate sobre mudanças no sistema de proteção social daquele país, após a primeira Guerra Mundial. Mais recentemente, a lógica de redes como via para a reestruturação dos sistemas de saúde assimila outros marcos decorrentes da Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE; ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2011).
Evidentemente, tais propostas ganham corpo à medida que também se prenuncia uma sociedade em redes facultada com o avanço das tecnologias, embora somente ao final do século XX para o início do XXI as reflexões a este respeito venham se ampliando. Especialmente com Castells (2000), que define redes como formas de organização social, do Estado ou da sociedade, intensivas em tecnologia de informação e baseadas na cooperação entre unidades dotadas de autonomia, cujos elementos comuns seriam: relações relativamente estáveis, autonomia, inexistência de hierarquia, compartilhamento de objetivos comuns, cooperação, confiança, interdependência e intercâmbio constante e duradouro de recursos. Entretanto, como admitem Castells e Cardoso (2005), bem com Villasante (2002), esse paradigma seria uma condição inevitável, mas não satisfatória numa perspectiva de reelaboração de organização social.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 já aponta para a organização dos serviços de saúde em rede regionalizada e hierarquizada. Neste prisma, a normatização sobre RAS trata-a como estratégia que procura romper com a fragmentação da atenção e da gestão da saúde e melhorar o funcionamento do SUS em seu âmbito político-institucional.
Compreender a distância entre universalidade do acesso, integralidade da atenção e universalização do atendimento requer uma entrada na dinâmica das RAS, tendo em vista sua proposta ser, em essência, condizente com os princípios doutrinários do SUS.
Todavia, só recentemente percebe-se no país uma ampliação do debate, de modo mais consistente sobre o tema – tanto do ponto de vista institucional, rico em contradições e ambiguidades, como sob a perspectiva acadêmica, apesar de nem sempre oferecer uma análise crítica, limitando-se, não raras vezes, em repetir o teor das propostas oficiais.
Embora algumas características das RAS já se desenhassem desde a instituição do SUS, elas avançam com a Norma Operacional de Assistência à Saúde em 2001, o Pacto pela Saúde em 2006 e outras normatizações subsequentes. Contudo, as diretrizes para sua organização e fundamentos conceituais e operativos essenciais para sua implementação formalizam-se somente ao final de 2010, consoante Portaria do Ministério da Saúde, nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Além disso, o Decreto nº 7.508, de 28 de setembro de 2011 que regulamenta a Lei Orgânica da Saúde, assim como a Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2012) reafirmam o desafio à medida que apontam caminhos operacionais. Trata-se de estratégia voltada a superar a fragmentação da atenção e da gestão, porquanto formaliza as Regiões de Saúde e propõe melhorar o funcionamento político- institucional do SUS. (BRASIL, 2010).
No Brasil, a inspiração para a RAS veio também de proposta organizada no âmbito da OPAS (2010) a qual se pauta na equidade e na integralidade destinada a uma população definida, aproximando-se, por conta disso, das redes regionalizadas dos sistemas públicos. Assim, com base nessa proposta, Oliveira (2014), com suporte nas reflexões de Mendes (2011), elenca um conjunto de atributos essenciais. Destes, seis relacionados ao modelo assistencial (população e território definidos, extensa rede de estabelecimentos de saúde, APS universal como porta de entrada e integradora/coordenadora da atenção, prestação de serviços especializados em locais apropriados, de preferência em ambientes extra-hospitalares, existência de mecanismos de coordenação assistencial e atenção centrada na família); três ligam-se à governança e estratégia (sistema de governança único para toda a rede, participação social ampliada, ação intersetorial); quatro dizem respeito à organização e gestão (gestão integrada dos sistemas de apoio clínico, administrativo e logístico, recursos humanos suficientes, competentes e comprometidos com a rede, sistemas de informações potentes, integrando todos os membros da rede, gestão baseada em resultados); e um relacionado à alocação de recursos e incentivos (financiamentos adequados e incentivos financeiros alinhados com as metas da rede).
A versão proposta no Brasil, especialmente dos elementos que a constituem – a população, a estrutura operacional e o modelo de atenção à saúde – pode ser mais bem compreendida mediante o conceito de condições de saúde definido por Mendes (2008, 2010, 2011)1 e reafirmado pelo Ministério da Saúde. (BRASIL, 2010). Em razão dos propósitos deste artigo, prioriza-se entre os elementos ora mencionados a noção de modelo de atenção, o qual segundo o autor ora referido deve operar na lógica da classificação de risco.
Denominada Modelo de Atenção às Condições Crônicas (MACC), a proposta de Mendes (2011) para o SUS inclui cinco níveis de intervenção, referentes a: promoção da saúde, prevenção das condições de saúde, gestão das duas tipologias de condições de saúde mencionadas, e gestão de caso. Estes níveis de intervenção integrariam os seguintes componentes: a população, os focos das intervenções de saúde e os tipos de intervenção
Vale ressaltar que em situações de urgência e emergência, a APS se desloca do seu papel de coordenadora dos fluxos e contrafluxos e passa a ser mais um dos pontos de atenção, sob a responsabilidade exclusiva da RUE. (BRASIL, 2010; MENDES, 2011).
Sete diretrizes orientam o processo de implementação das redes, as quais intentam ser coerentes com o Pacto pela Saúde e com as políticas de saúde vigentes. Dizem respeito ao fortalecimento dos seguintes aspectos: da APS como instância coordenadora do cuidado e do ordenamento da organização das redes de atenção estratégicas; do papel dos Colegiados de Gestão Regional (CGR) no processo de governança da RAS; da integração das ações de âmbito coletivo da vigilância em saúde com as da assistência em âmbito individual e clínico, socializando o conhecimento necessário à implantação e acompanhamento da RAS e o gerenciamento de risco e de agravos à saúde e da política de gestão do trabalho e da educação na saúde na RAS. Referem-se ainda à implementação do Sistema de Planejamento da RAS; ao desenvolvimento dos Sistemas Logísticos e de Apoio da RAS; e ao financiamento do sistema na perspectiva da RAS. Esse conjunto de diretrizes, conforme Brasil (2010), visa enfrentar problemáticas relacionadas à fragmentação das ações e serviços de saúde, além de representar uma reafirmação dos elementos constitutivos das RAS.
Conforme se destaca, com base em fontes oficiais, mediante pactuação entre representantes dos distintos entes do pacto federativo, na esfera da Comissão Intergestora Tripartite, em 2011, foram eleitas redes prioritárias de atendimento, tais como: Rede Cegonha, cuja atenção se voltaria à gestante e à criança até 24 meses; Rede de Atenção Psicossocial, com ênfase para o enfrentamento do Álcool, do Crack, e de outras Drogas; Rede de Atenção às Doenças e Condições Crônicas, iniciando-se pelo câncer (a partir da intensificação da prevenção e controle do câncer de mama e colo do útero); Rede de Cuidado à Pessoa com Deficiência e a Rede de Atenção às Urgências e Emergências.
Em síntese: no país, as RAS seriam arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado. (BRASIL, 2010). De acordo com o documento ora referido, a implementação aponta para mais eficácia na produção de saúde com melhoria na eficiência da gestão do sistema de saúde no espaço regional, e contribui para o avanço do processo de efetivação do SUS. De mais a mais, a transição entre o ideário de um sistema integrado de saúde conformado em redes e sua concretização passaria pela sua construção permanente nos territórios, o que possibilitaria conhecer a real importância de uma proposta de inovação na organização e na gestão do sistema de saúde.
Ainda segundo o mesmo documento e a Portaria no. 1.600, de 7 de julho de 2011, que reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a RUE, sua finalidade é articular e integrar todos os equipamentos de saúde com o objetivo de ampliar e qualificar o acesso humanizado e integral, de forma ágil e oportuna, aos usuários em situação de urgência/emergência nos serviços de saúde.
Nessa compreensão sobre redes de atenção em saúde que, embora reconheça os desígnios da economia de recursos para custear uma oferta satisfatória de serviços de saúde, os idealizadores do dispositivo acolhimento com classificação de risco admitem a importância da sua adoção no processo de organização dos níveis de assistência à saúde, como modo de viabilizar o acesso dos usuários aos serviços de saúde. Consistiria na recepção do usuário, desde sua chegada, responsabilizando-se integralmente por ele: ouvir suas queixas e permitir-lhe expressar suas preocupações e angústias, porém colocando os limites necessários e garantindo atenção resolutiva e articulação com outros serviços de saúde para a continuidade da assistência. (BRASIL, 2004).
Em contato com a dinâmica de funcionamento das RAS no município de Fortaleza, propiciada pela pesquisa que deu suporte a este artigo ou mediante inserção profissional dos seus autores na área de saúde ou ainda na condição de usuários desses serviços, admitem-se as reflexões de Fleury e Ouverney (2007). Segundo afirmam, a proposta de redes de saúde direciona-se à administração de políticas e projetos com escassez de recursos e complexidade de problemas, na qual haveria interações entre agentes públicos e privados nos níveis centrais e locais, como também crescente demanda por benefícios e por participação cidadã. Entretanto, considera-se necessário desmistificar a ideia de escassez de recursos, quando na verdade eles são fartamente empregados em outras políticas que não lidam diretamente com as vidas.
Ao assumir perspectiva distinta, Mendes (2011) com fundamento em Agranoff e Lindsay (1983) admite que a gestão eficaz das redes implica: trabalhar rotineiramente na produção de consensos; operar com situações em que todos os atores ganhem; harmonizar os decisores políticos e administrativos; negociar as soluções; e monitorar e avaliar permanentemente os processos.
4 O ACOLHIMENTO COM CLASSIFICAÇÃO DE RISCO NA UPA DO BAIRRO CONJUNTO CEARÁ/FORTALEZA
O contexto de insatisfações com a lotação das emergências dos hospitais do SUS ensejou a instituição das unidades de pronto atendimento 24 horas, como um serviço de nível secundário de suporte à rede de urgência e emergência. Conforme a Portaria GM/MS no. 342, de 4 de março de 2013, estabeleceram-se pactos e fluxos com o objetivo de garantir o acolhimento aos pacientes, intervir em sua condição clínica e contrarrefenciá-los para os demais pontos de atenção da RAS, quando necessário. (BRASIL, 2013).
No caso específico da UPA do Conjunto Ceará, é uma unidade de Porte II. Segundo a portaria ora referida, este tipo de unidade de saúde deve possuir, no mínimo, 11 leitos destinados a pacientes em observação e ter capacidade de atendimento médio de 250 pacientes por dia. Ademais, deve situar-se em área de abrangência populacional de 100 a 200 mil habitantes. Financiada com recursos próprios do Estado do Ceará e do Ministério da Saúde, a UPA em referência é gerida pelo Instituto de Saúde e Gestão Hospitalar (ISGH) por meio de contrato de gestão e adota a perspectiva de administração gerenciada. (CRUZ; COSTA, 2016).
O Conjunto Ceará, como apontam os dados do Instituto Brasileiro de Geografa e Estatística (IBGE, 2010), abriga uma população superior a de 141 dos 184 municípios cearenses, ou seja, 42.894 habitantes, sendo 19.848 homens e 23.046 mulheres. Conta com 12.223 domicílios particulares ocupados, com média de 3,51 moradores por domicilio. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM-B) do bairro é 0,361724536, o rendimento médio é em torno de 3 salários mínimos e no tocante aos serviços de saúde, dispõe de 4 unidades Básicas de Saúde, 1 Hospital de Atenção Secundária e a Unidade de Pronto Atendimento 24 horas.
4.1 Vozes dos profissionais sobre redes de saúde e acolhimento com classificação e avaliação de risco
Embora os profissionais da UPA operacionalizem os fluxos de trabalho em conexão com os demais serviços de saúde, há opiniões sobre o desconhecimento da proposta de organização dos serviços em rede, conforme exemplificam relatos a seguir: “[...] Assim ... eu sinceramente desconheço esse movimento da Secretaria de Saúde sobre a organização de rede, repete pra mim [...] pois eu desconheço essa modificação que tá acontecendo.” (Informação verbal)2.
Eu andei lendo um pouco sobre a RAS. Fiz o preparatório de concurso público [...] mas nunca me aprofundei muito [...] mas assim conheço algumas coisas [...] até porque a gente tá na saúde tem que tá sempre estudando, não só a saúde mas tudo. Mas assim, estou sempre lendo, até porque a gente precisa entender alguma coisa [...] pra poder intervir (Informação verbal)3.
Os relatos indicam não haver capacitações sobre RAS no tocante à implantação da rede temática de urgência e emergência. Ficam evidenciadas a falha e a ausência de elementos essenciais na formação profissional e na educação permanente dos profissionais interlocutores da pesquisa.
No entanto, outro entrevistado apresenta uma compreensão mais aproximada ao que preconiza o MS sobre o sistema em rede, mas ao mesmo tempo salienta os obstáculos enfrentados pelos usuários, principalmente quando necessitam de serviços especializados:
Assim, muito superficial por conta que existe o trabalho da Unidade Básica de Saúde que faz o primeiro atendimento e faz os encaminhamentos pra os atendimentos especializados no caso de saúde mental e outras categorias, outras necessidades que o usuário tem no sentido de dar continuidade, o atendimento, acompanhamento em relação à integralidade que o SUS tanto enaltece e trabalha nesse sentido. [...] Vejo que existe muita falha nesse sentido aí, porque o usuário do SUS vai pra Unidade Básica de Saúde pra receber atendimento [...] é feito um tipo de triagem, ele precisa dar continuidade ao tratamento numa unidade especializada e na verdade ele demora anos até esperando esse atendimento. No caso dele precisar de um neurologista é uma dificuldade porque ele não vai conseguir esse atendimento com o neurologista com a especialidade que ele tá necessitando. (Informação verbal)4.
Mesmo diante das diferentes posições dos profissionais, observou-se que eles atuam segundo uma dinâmica condizente à da Portaria GM/MS no 1600/2011, por exemplo, quando providenciam os encaminhamentos necessários para a garantia de atendimento da demanda do usuário. Entretanto, não parecem reconhecer-se como colaboradores, cuja atuação se concretiza em rede de atenção, apesar de todos os seus percalços.
Conforme já mencionado com base em documento do MS, as redes temáticas devem se organizar a partir da necessidade de enfrentamentos de vulnerabilidades, agravos ou doenças que acometam as pessoas ou as populações. Contudo, além dos posicionamentos e percepções dos profissionais, evidenciou-se que a população busca os diferentes serviços seguindo outra lógica e não aquela estabelecida pelo sistema, o qual atribui determinadas responsabilidades aos diferentes pontos de atenção, segundo exemplificado no relato de um entrevistado que afirma: “[...] Quando a UPA foi criada, ela foi criada pra urgência e emergência [...]. Então a gente tá recebendo também [...] pacientes de atenção primária [...] e assim a gente acaba recebendo o paciente, porque não pode mandar o paciente de volta.” (Informação verbal)5.
4.1.1 Conexões, fluxos e comunicações entre a UPA e a rede de saúde
Embora as conexões entre a UPA e a rede de saúde sejam efetivadas satisfatoriamente, são quase imperceptíveis pelos profissionais que as vivenciam na realidade singular da UPA pesquisada e no contexto de fragilidades da rede de saúde de Fortaleza, como expressa uma entrevistada:
[...] nosso fluxo não depende necessariamente de outra instituição, mas não existe nenhum fluxo até porque a gente é porta aberta [...]. Então, assim alguns pacientes lá da Atenção Básica [...] do posto de saúde muitas vezes eles não recebem certo atendimento lá e procuram aqui. Muitas vezes o médico faz o encaminhamento [...] e a gente recebe aqui, mas não tem nenhum fluxo firmado [...]. Por exemplo, o que a gente não faz aqui são poucas coisas, tipo vem uma pessoa atrás de um atestado pra fazer educação física, a gente não dá isso aqui, então a gente pede que procure um médico do posto de saúde (Informação verbal)6.
Conforme observado, as singularidades das conexões e fluxos da UPA em discussão repercutem nas tomadas de decisões da população em situações nas quais emerge a necessidade de atendimento. Os usuários entrevistados em geral afirmam ter dificuldade de compreensão sobre esses fluxos e não raras vezes confundem as particularidades do atendimento ofertado por essa unidade de saúde. Em ocasiões como esta ora relatada, o profissional de serviço social é acionado por outros membros da equipe para tomar as medidas necessárias.
4.1.2 O acolhimento com classificação de risco no atendimento da UPA
Até pouco tempo, de acordo com os profissionais entrevistados, ao buscarem um serviço de urgência e emergência as pessoas eram atendidas por ordem de chegada. Havia uma espécie de triagem que não tinha o mesmo intuito do acolhimento com classificação de risco, fato que ocasionava graves prejuízos à saúde, pois aumentava o risco de mortes aos que necessitavam de atendimento imediato e eficiente. Uma das formas encontradas para modificar este quadro foi, segundo o MS (BRASIL, 2004), a proposição e adoção do dispositivo acolhimento com classificação de risco, elemento integrante da PNH.
Cabe realçar: a habilitação ao trabalho de classificação de risco requer do profissional de enfermagem a realização do curso Sistema Manchester de Classificação de Risco, o qual, segundo entrevistados, é ministrado pelo Grupo Brasileiro de Classificação de Risco.
Ao comparar modelos de protocolos de conduta, Cordeiro Júnior, Torres e Rausch (2014) afirmam que o mais utilizado no país é o de Manchester, que trabalha com algoritmos e discriminadores chaves, associados a tempos de espera simbolizados por cores. Está sistematizado em vários países da Europa e o mecanismo de entrada é uma queixa ou situação apresentada pelo paciente.
Todos os profissionais da área de enfermagem da UPA afirmam ter feito o referido curso – ofertado pelo ISGH –, visto tratar-se de condição para que o/a enfermeiro/a execute o trabalho de classificador. Ressalta-se, no entanto: o curso é destinado especificamente aos profissionais da área de enfermagem, mas o setor de serviço social também presta acolhimento, porém o faz admitindo que o indivíduo é socialmente inserido e sob a ótica dos direitos sociais, situando-o no contexto de funcionamento da rede, da UPA e demais serviços socioassistenciais.
Não obstante os percalços do atendimento como, por exemplo, a demora ocasionada por falhas nos fluxos e a enorme demanda por serviços que não se adequariam ao perfil de UPA (Gráfico 1) gerando, inclusive o acréscimo da cor branca no atendimento, o acolhimento é visto pelos entrevistados como de suma importância. Nesse âmbito, destacam-se tanto a classificação de risco em si como outros aspectos relacionados à condição humana, da qual o aplicativo jamais daria conta.
Algumas percepções dos profissionais entrevistados sobre o acolhimento com classificação de risco, a despeito da magnitude de casos atendidos apesar de nem todos serem condizentes com o perfil de UPA, sobretudo os 4.600 brancos, são exemplificadas a seguir:
[...] o acolhimento com classificação de risco trabalha com a questão da gravidade do paciente, a prioridade são os pacientes mais graves [...] os vermelhos, que merecem atendimento imediato, o laranja que é um paciente também muito grave que em média espera 10 minutos, os amarelos, aí vêm os verdes e os azuis que são pacientes que têm perfil de atendimento de Posto. Porque a questão do problema de saúde que ele está apresentando já não se caracteriza como urgência e emergência [...]. Como a gente sabe que existe essa falha nos postos de saúde, aí, o usuário procura a UPA porque querendo ou não a UPA, mesmo demorando, esse paciente é atendido. Ele realiza os exames necessários naquela oportunidade [...] e de uma forma geral ele resolve o problema naquele dia. Enquanto no Posto de Saúde ele vai ter que ir lá agendar uma consulta que demora um mês ou mais [...] o exame da mesma forma. Então, apesar da demora que existe tempo de espera na UPA, eles [...] preferem a UPA a aguardar o atendimento no Posto de Saúde (Informação verbal)7.
É importante esse acolhimento [...] o contato com o paciente e entender as vulnerabilidades que a gente sabe que o paciente tem, ele procura a unidade não só pelo fato do problema de saúde [...] que a gente sabe que saúde não é só o estado de bem-estar físico, mas emocional também é importante. Então esse contato direto com o paciente e entender as angústias dele, entender as vulnerabilidades que ele tá passando, orientar sobre como é o procedimento da classificação de risco é algo importante até pra que o paciente chegue na Unidade e entenda o funcionamento, então a gente está sempre fazendo esse acolhimento [...] os pacientes [não classificados segundo o protocolo] sempre estão com o serviço social [...] orientando, sobre normas e procedimentos da Unidade e a gente sempre faz isso porque a Unidade é sempre muito lotada [...]. O paciente procura muito o Serviço Social, pra perguntar sobre a classificação [...] a gente sempre orienta e caso piore o estado de saúde [...] retornar pra uma reclassificação [...] porque só o enfermeiro pode fazer isso, até fazer com que eles entendam que nós não podemos mudar a pulseira do paciente, nós não podemos fazer essa reclassificação (Informação verbal)8.
Na verdade, inexiste uma visão consensual dos informantes da pesquisa sobre acolhimento como atendimento diferencial, humanizado, com escuta qualificada, foco na gravidade e utilização da triagem na porta de entrada do serviço de urgência. Embora eles destaquem o dispositivo em si, referem também a questão da sensibilidade profissional como função primordial no atendimento. Ao mesmo tempo, argumentam tratar-se de proposta excelente e que requer segurança na atuação profissional, conforme relato de um entrevistado:
[...] acolhimento com classificação de risco envolve uma questão que é a de você ter que olhar além, é você ter uma sensibilidade pra aquilo que está fazendo, porque todo mundo vai chegar, a pessoa já tá debilitada então eu tenho que me colocar no lugar do outro, pra entender mais ou menos o que o paciente tá querendo me passar e eu não julgar em momento nenhum (Informação verbal)9.
Há, entretanto, questionamentos sobre o acolhimento com classificação de risco, como ilustrado nas palavras de um dos entrevistados:
É importante, mas penso assim, como é que a gente diz, porque às vezes eu vou dar exemplo de um caso, tem uma paciente que está com os mesmos sintomas de outro paciente, às vezes a mesma paciente vem à tarde e depois vem à noite porque são equipes diferentes, com os mesmos sintomas eu até olhei no sistema [...] No cadastro, no atendimento pessoal anterior dela e ela recebe fichas diferentes, cores diferentes, então acho particularmente não acho que seria uma máquina dessa, um programa que serviria pra avaliar o paciente, tá? Eu acho que se você tem um profissional qualificado, quando é da classificação, se ele foi capacitado pra essa classificação, não precisa de uma máquina, de um sistema, de um programa para fazer isso, tá certo? (Informação verbal)10.
Esses relatos, assim como a observação flutuante realizada na UPA contrapostos aos documentos oficiais examinados expressam o seguinte: na dinâmica de funcionamento da UPA há distanciamentos e aproximações em relação às normas originárias do MS sobre esse dispositivo adotado com o intuito de operar processos de trabalho em saúde, propiciadores de humanização, eficácia e eficiência.
Em corroboração a tais posicionamentos, um fato chamou a atenção durante a observação flutuante: uma redução significativa do fluxo de pessoas em busca de atendimento em determinados horários sistemáticos e recorrentes (Figura 1), isto é, no expediente comercial, embora os episódios de emergência e respectivas demandas por atendimento independam de horários, sejam eles diurnos, noturnos ou quaisquer outros.
Portanto, as singularidades da dinâmica da UPA em questão, no tocante ao que é preconizado como seu papel pelo MS – atendimento a urgências e emergências 24 horas – relacionam-se também à demanda aleatória da população aos seus serviços, em virtude do precário funcionamento dos serviços de atenção básica e, ao mesmo tempo, aos tipos de atendimento dado pela equipe de saúde que faz uma escuta inicial e os devidos encaminhamentos de todos os demandantes, tal como também preconizam as concepções originais de acolhimento, conforme recomendavam Franco, Bueno e Merhy (1999) com base em suas experiências pioneiras de acolhimento no país.
Realça-se existir ressignificações quanto ao trabalho de acolhimento também em virtude da dinâmica de funcionamento da Unidade e posturas que particularizam o Ser profissional. Frequentemente, os profissionais responsáveis pelo acolhimento com classificação de risco recebem o paciente de forma integrada, cumprimentam-no, escutam suas queixas com atenção, fazem perguntas geralmente padronizadas, alimentam uma ficha de atendimento com os dados colhidos e tomam as medidas necessárias ao atendimento requerido pela classificação de risco. Porém, não há uma homogeneidade de posicionamentos profissionais, pois diferentes subjetividades também determinam diferentes formas de interação mesmo diante da padronização do protocolo utilizado e da perspectiva gerencial adotada na UPA e demais serviços da rede de saúde. Tanto é que muitos entrevistados veem o dispositivo como uma “[...] maneira de organizar o serviço de saúde”; “[...] ter um programa de classificação de risco que apresente certa flexibilidade.” (Informação verbal)11. Esses posicionamentos poderiam ser interpretados como reservas ao gerencialismo presente na base da organização das rotinas. Especialmente quando referem o “[...] uso de práticas da iniciativa privada na administração pública” e a necessidade de “[...] orientar os usuários sobre o fluxo da rede no sentido de conduzir os casos que não condizem com os objetivos da UPA”. (Informação verbal)12.
4.1.3 Os usuários e o acolhimento com classificação de risco: visões e estratégias
Embora haja esforços no sentido de organização das demandas há mais ou menos duas décadas, os usuários entrevistados não expressam possuir um entendimento claro sobre o funcionamento da rede de saúde, previsto oficialmente, sobretudo as funções da UPA, as quais, para os usuários entrevistados, seria a diminuição das filas em busca de atendimento médico. Ou, de outro modo, buscam o que está mais acessível e adequado em termos de serviços de saúde e diante das suas condições de vida e trabalho.
Suas visões sobre acolhimento com classificação de risco não deixam de se aproximar, ao seu modo, das concepções do MS. Por exemplo: “[...] ser bem recebida”; “[...] ser bem atendido” pela equipe de saúde ou “[...] receber atenção adequada” do profissional que faz a classificação de risco com a finalidade de solucionar os problemas de urgência. (Informação verbal). Ou, ainda, o entendimento segundo o qual “[...] quem chega com mais emergência eles botam na frente, para ser atendido, tem prioridade, em caso de vida ou morte”, como também “[...] algo de imediato”, a depender do estado do paciente. (Informação verbal)13. Entretanto, há situações de limitação quanto à compreensão da lógica do Protocolo de Manchester, pois chegam, às vezes, a perceber as cores vermelha e laranja como privilégio.
As carências de serviços especializados e a dificuldade de acesso à rede de saúde pela população demandante do SUS levam ao entendimento dessa população de que a UPA é a melhor porta de entrada para o sistema. Oficialmente, a Atenção Básica é definida como a ordenadora e coordenadora da rede de saúde. Tem como papel central a garantia de acesso à população a uma atenção à saúde de qualidade, porém suas deficiências são amplamente conhecidas. Todavia, poucas referências foram feitas pelos interlocutores da pesquisa ao mencionar suas decepções com os postos de saúde. Eles estão confiantes na existência da UPA e é nela que estão sendo atendidos.
De modo geral, os usuários entrevistados expressam que o serviço da UPA está bom, e a única sugestão deixada para melhoria do atendimento diz respeito à ampliação do quadro de médicos.
5 CONCLUSÃO
O ciclo político iniciado em 2003 ensejou a instituição da PNH e, com essa política, um resgate, até certo ponto, da concepção pioneira de acolhimento em perspectiva crítica e ampliada. Entretanto, sua efetivação não ocorre sem percalços.
Quanto ao acolhimento com classificação de risco na UPA onde se realizou a pesquisa, constatou-se certa aproximação com o preconizado no âmbito do MS. Ou seja, o acolhimento com classificação de risco deveria ser iniciado com a recepção do usuário, desde sua chegada. Caberia aos profissionais responsabilizar-se integralmente por ele, ouvindo suas queixas, permitindo-lhes expressar suas preocupações e angústias, mas, ao mesmo tempo, colocar os limites e proceder aos encaminhamentos necessários. E, principalmente: identificar os que necessitam de tratamento imediato, de acordo com o potencial de risco, e garantir atenção resolutiva e articulação com os outros serviços de saúde para a continuidade da assistência quando necessário.
Constatou-se também ressignificações por parte de profissionais quando se tratava da efetivação do acolhimento. Como afirmam, havia atendimentos nos quais era feita uma escuta qualificada, de modo humano e solidário, respeitando a condição de cidadania dos pacientes. Contudo, não se tratava de uma homogeneidade de posições, pois se observou casos em que o trabalho se efetivava de forma um pouco dissonante daquilo que o MS recomenda.
Apesar da qualificação dos profissionais, como exigência para realizar a avaliação com acolhimento e classificação de risco, eles não pareceram perceber que seus serviços estavam integrados a uma rede tal qual a idealizada na proposta do MS. Entretanto, efetivaram as formas de conexões necessárias e possíveis dentro da rede de saúde existente, de fato, em Fortaleza, com todas as suas especificidades. Destacou-se o esforço de alguns profissionais da equipe em se capacitar, assumindo os custos financeiros, mesmo com os baixos salários auferidos quando, conforme o MS, isso seria de responsabilidade pública.
Entre as ressignificações que emergem na dinâmica de funcionamento da UPA em discussão, ressalta-se uma classificação dos usuários situados fora dos parâmetros previstos para essa tipologia de serviço de saúde, pois também eram atendidos após serem classificados segundo a cor branca, não estipulada pelo Protocolo de Manchester. Em virtude desse fato, os fluxos entre níveis de atenção levam em conta determinados serviços do Agente Comunitário de Saúde (ACS) configurando uma relação e uma conexão entre UPA e Atenção Básica.
Embora a Unidade tenha uma estrutura física adequada e um corpo funcional constituído de profissionais qualificados e comprometidos, há desafios permanentes quanto ao atendimento, diante da grande procura pelos serviços oferecidos. Como mencionado, em 2016 a UPA realizou um total de 117.497 atendimentos (últimos dados, no período da pesquisa).
A dinâmica de funcionamento da UPA em referência também não pode ser desligada das condições socioeconômicas e da insatisfatória oferta de outros serviços de atenção básica em saúde do bairro Conjunto Ceará, um dos mais pobres da capital, conforme se descreveu no corpo deste artigo.
Conforme evidenciado, as situações cotidianas de atendimento na UPA parecem depender menos do conhecimento sistemático do conjunto de normas do MS, ou das condições estruturais da Unidade, e muito mais das circunstâncias de funcionamento. Isto em virtude da elevada e desordenada demanda, bem como das condições contratuais e relações de trabalho dos profissionais que, certamente, repercutem em suas condições de vida e saúde e podem influenciar negativamente na difícil função de acolher, avaliar e classificar os riscos a que os usuários estão expostos no momento em que buscam um serviço de saúde de tal natureza.
Foram observados os efeitos negativos da política de ajustes, e é visível a relação entre o público e o privado na política de saúde e suas consequências diretas na organização dos serviços, admitindo-se que a esfera privada encolhe a natureza pública do Estado.
A pesquisa realizada autoriza afirmar-se a existência de grandes desafios a serem enfrentados – não só pelos responsáveis pela avaliação com classificação de risco, mas por todo o conjunto de profissionais – na organização dos serviços ofertados pelo SUS.
Em síntese, constataram-se as ambiguidades da proposta de acolhimento com classificação de risco, no caso em análise, a rede de urgência e emergência, principalmente quando o modelo pressupõe humanização e gerencialismo ao mesmo tempo.
Como processo ainda em construção, a depender de forças sociais e políticas, poderá vir (ou não) a se consolidar satisfatoriamente no tocante aos usuários do sistema. Para tanto, há um longo caminho a ser percorrido, com inúmeros problemas, dificuldades e desafios a serem superados, sobretudo no referente a desfragmentação dos serviços, bem como à disponibilidade de serviços suficientes e adequados, inclusive com ampla divulgação sobre o funcionamento da rede e os locais onde a população é, de fato, atendida.
No atual contexto, as soluções não virão em curto prazo ou por meio do acolhimento com avaliação e classificação de risco, nem tão somente com a existência de uma rede relativamente aproximada do que é proposto pelo MS. Por mais éticos que sejam os trabalhadores da área, a RUE não tem se expressado como totalmente capaz de funcionar adequada e efetivamente para responder de modo satisfatório às demandas da população por saúde. Sem os elementos essenciais previstos pelo MS para funcionamento das redes, o acolhimento perde o sentido proposto pela PNH, e torna-se mera triagem reforçada ainda mais na desumanização, descaso e desvalorização da vida humana.
REFERÊNCIAS
AGRANOFF, R.; LINDSAY, V. A. Intergovernmental management: perspectives from human services problem solving at the local level. Public Administration Review, [S. l.], v. 43, p. 227-238, 1983.
BRASIL. Humaniza SUS: Acolhimento com avaliação e classificação de risco - um paradigma ético – estético do fazer em saúde. Brasília, DF, 2004. Série B.
BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2012.
BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes operacionais dos pactos pela vida, em defesa do SUS e de gestão. Série Pactos pela Saúde. Brasília, DF, 2006a.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2006b. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ saudelegis/gm/2006/prt0399_22_02_2006.html. Acesso em: 11 jun. 2015.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2010. Anexo. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/anexos/anexos_prt4279_30_12_2010.pdf> Acesso em: 9 maio 2014.
BRASIL. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Brasília, DF, 2001a.
BRASIL. Portaria nº 342, de 4 de março de 2013. Redefine as diretrizes para implantação do Componente Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h) em conformidade com a Política Nacional de Atenção às Urgências, e dispõe sobre incentivo financeiro de investimento para novas UPA 24h (UPA Nova) e UPA 24h ampliadas (UPA Ampliada) e respectivo incentivo financeiro de custeio mensal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ saudelegis/gm/2013/prt0342_04_03_2013.html. Acesso em: 20 jul. 2016.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CASTELLS, M.; CARDOSO, G. (org.). A sociedade em rede: do conhecimento à acção política. Lisboa/Portugal: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005.
CORDEIRO JÚNIOR, W.; TORRES, B. L. B.; RAUSCH, M. C. P. Sistema Manchester de Classificação de Risco: comparando modelos. Cruzeiro: Grupo Brasileiro de Classificação de Risco, 2014. Disponível em: http://gbcr.org.br/public/uploads/filemanager/source/53457bf080903.pdf. Acesso em: 1 abr. 2017.
CRUZ, L. S.; COSTA, L. F. A. da. O serviço social numa Organização Social de Saúde de referência em atenção secundária do SUS: experiência no Hospital Geral Dr. Waldemar Alcântara. In COSTA, L. F. A. da; RIBEIRO, H. M. C. B. (Orgs.). Políticas de saúde e serviço social: contradições, ambiguidades e possibilidades. Campina Grande, Paraíba: EDUFCG; Fortaleza: EdUECE, 2016.
FIALHO, T. M. M. Ciclos políticos: uma resenha. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 19, n. 2(74), p. 131-149, 1999.
FLEURY, S.; OUVERNEY, A. M. Gestão de redes: a estratégia de regionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
FRANCO, T. B.; BUENO, W. S.; MERHY, E. E. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso de Betim, MG. Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 345-353, 1999.
INSTITUTO BRASILEIRO EM GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: www.censo2010.ibge.gov.br. Acesso em: 11 mar. 2016.
LEVCOVITZ, E. Transição x consolidação: o dilema estratégico da construção do SUS – um estudo sobre as reformas da Política Nacional de Saúde – 1974-1996. 1997. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.
MARTINELLI, M. L. O trabalho do assistente social em contextos hospitalares: desafios cotidianos. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 107, p. 497-508, 2011.
MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. 2. ed. Brasília, DF: Organização Pan-Americana de Saúde, Organização Mundial da Saúde, 2011.
MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Revista Médica de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 18, n. 4 (Supl. 4), p. S3-S11, 2008.
MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2297-2305, 2010.
OLIVEIRA, L.C. Organização das redes de atenção à saúde no Ceará: desafios da universalidade do acesso e da integralidade da atenção. Fortaleza: UECE, 2014. Projeto de Pesquisa
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE; ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. A atenção à saúde coordenada pela APS: construindo as redes de atenção no SUS: contribuições para o debate. Brasília, DF, 2011.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Inovação nos sistemas logísticos: resultados do laboratório de inovação sobre redes integradas de atenção à saúde baseadas na APS. Brasília, DF, 2010.
PAIM, J. S. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica [online]. Salvador: EDUFBA; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008.
PÉTONNET, C. Observação flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense. Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia, Niterói, n. 25, p. 99-111, 2008.
TEIXEIRA, C. F. A mudança do modelo de atenção à saúde no SUS: desatando nós, criando laços. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 257-277, 2003.
VILLASANTE, T. R. Redes e alternativas: estratégias e estilos criativos na complexidade social. Tradução de Carlos Alberto S. Netto Soares. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
Notas