Artigos - Dôssie Temático
PROJETO URBANO E PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO: conexões e desconexões na reconstrução e recuperação ambiental de Lajedinho/BA
PROJETO URBANO E PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO: conexões e desconexões na reconstrução e recuperação ambiental de Lajedinho/BA
Revista de Políticas Públicas, vol. 24, núm. 1, pp. 226-246, 2020
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 20 Setembro 2019
Aprovação: 07 Maio 2020
Resumo: O artigo discute uma experiência associada de projeto urbano e planejamento participativo ocorrida em Lajedinho/BA, cidade com elevado nível de ruralização onde, em 2013, ocorreu uma grave enchente, com vítimas fatais e destruição parcial da cidade. Com aportes teóricos sobre o plano e o projeto e, considerando as bases jurídicas e programáticas da política urbana brasileira, analisa a relação entre projeto e plano na formulação de uma agenda pactuada e socialmente legitimada para as cidades, identificando tensões reveladoras de limites e também de potenciais de articulação e interação. Os resultados mostram o quanto a desconexão entre os instrumentos pode acentuar os problemas urbanos e socioambientais que pretendem solucionar e apontam para a possibilidade de ressignificar o plano diretor e o projeto urbano, atribuindo sentidos e significados na perspectiva do direito à cidade.
Palavras-chave: Projeto urbano, Plano diretor, Direito à cidade, Lajedinho.
Abstract: This paper discusses an experience of urban design and participatory planning that took place at Lajedinho/BA, city with a high level of ruralization where, in 2013, a severe flood occurred, with fatalities and partial destruction of the city. With theoretical contributions concerning project and planning, and, considering the legal and programmatic basis of brazilian urban policy, the relation between them is analyzed in formulation of a pactual and socially legitimized agenda for the cities, identifying tensions revealing boundaries and also of articulation and interaction potentials. The results show how much the disconnect between the instruments can accentuate the urban and socio-environmental problems both of them intend to solve and point to the possibility of reframing the master plan and the urban project, attributing meanings from the perspective of the right to the city.
Keywords: Urban Design, Master plan, Right to the city, Lajedinho.
1 INTRODUÇÃO
O projeto urbano nas suas diversas feições – revitalização, requalificação, reurbanização, reconversão, regeneração e outras – desde os anos 1990 passou a dar o tom das intervenções nas cidades e ensejou uma vasta produção crítica diante dos processos excludentes engendrados. A sua concepção vai além de mero desdobramento das diretrizes do plano: pode funcionar como indutor ou alavanca para reconfiguração da cidade ou pode ser orientado pelo plano. Nos dois casos assume uma posição de centralidade e é visto como um elemento ativo na perspectiva de redirecionar processos urbanos, e, nesse sentido, os seus efeitos podem inclusive alterar as orientações do plano ou sugerir orientações totalmente diversas daquelas que o originaram (VIVEIROS, 2005). A cadeia sucessória plano-projeto, nessa ótica, é subvertida, até mesmo porque o plano já não lograva a força pretérita de porta-voz da racionalidade e da ordem nas cidades. É fato que o seu valor como instrumento eficaz de orientação das políticas públicas oscilou no tempo, de acordo com a capacidade do Estado para responder às demandas sociais e do mercado, e ainda, das pressões de regulação em diferentes contextos políticos e econômicos.
Parte-se, pois do entendimento do projeto urbano como instrumento de visualização espacial das transformações urbanas propostas em determinado contexto social e político, e do plano, como instrumento gerador de futuros alternativos a partir de uma leitura integrada dos processos urbanos, seus conflitos e contradições. Pode, assim, apresentar-se como um plano diretor, orientador da política urbana; como um plano urbanístico, em uma escala mais aproximada de configuração inclusive, do desenho urbano, ou como um plano de ação, de caráter mais imediato e de temporalidade, portanto, curta, capaz de organizar e articular a implantação dos projetos no espaço e no tempo, estabelecendo as conexões entre os projetos isolados. No contexto contemporâneo da cidade-mercadoria (VAINER, 2000) configuram-se, todos, como elementos de disputa em prol do direito à cidade.
O plano diretor foi amplamente criticado nos anos 1980 pela sua ineficácia no controle rigoroso da utilização do solo e pelo viés tecnocrático. As expectativas se voltaram à força das pressões sociais no sentido de criar um ambiente favorável à implementação de medidas para alcançar melhores condições de vida (RIBEIRO; CARDOSO, 1990, p. 74), tendo resultado na incorporação de capítulo específico da política urbana na Constituição Federal de 1988, que torna o plano diretor obrigatório para cidades com mais de 20.000 habitantes.
Uma compreensão ampla sobre o papel do planejamento urbano e do plano diretor é construída na perspectiva de respaldar esse instrumento nos princípios orientadores das lutas sociais pela reforma urbana e pelo direito à cidade no Brasil: da função social da cidade e da propriedade, da gestão democrática da cidade e do direito à cidadania plena. Novo impulso no planejamento advém da imposição legal que se estende a outras situações, inclusive para municípios em situações de risco potencial e real de desastres, inundações e outras. Entretanto, nem sempre as experiências se libertaram do viés tecnocrático das décadas anteriores à Constituição Federal de 1988. (SANTOS JÚNIOR; MONTANDON, 2011).
As pesadas críticas que tanto o plano diretor quanto o projeto urbano suscitaram e ainda suscitam, encontram contrapontos na afirmação do potencial de apropriação desses instrumentos em uma perspectiva democrática e de justiça social, em aproximação ao ideário do direito à cidade (LEFEBVRE, 1991). Como afirmam De Carli et. al. (2015) é possível atribuir à regeneração dos espaços urbanos, conceitos e práticas alinhados a processos ancorados em princípios de justiça social. Da mesma forma, experiências de planejamento participativo podem trilhar esse mesmo caminho quando ancoradas em processos abertos no sentido de explicitação dos conflitos e contradições próprias à dinâmica urbana.
Essa é a perspectiva aqui trazida para discutir a relação entre plano e projeto no processo de reconstrução e recuperação ambiental da cidade de Lajedinho, situada a 360km de distância de Salvador e próxima à Chapada Diamantina, um dos destinos turísticos mais importantes da Bahia, após a grave enchente do rio Saracura, que destruiu parte significativa da cidade em 2013 e trouxe para o debate local a tensão entre presente, passado e futuro, na convivência e conflito de temporalidades e espacialidades.
O Município passou a integrar o rol daqueles com obrigatoriedade na elaboração de plano diretor, tanto pela situação de risco, quanto pela anunciada implantação de um grande empreendimento de mineração em seu território - a CPX Mineradora. Essa questão associada à circunstância de aposta no projeto e no plano como instrumentos válidos para enfrentar a crise e, mais ainda, para construir um horizonte alternativo de futuro, torna o caso de Lajedinho especialmente apropriado para discutir os processos e instrumentos envolvidos na construção da agenda de reconstrução e recuperação ambiental, suas temporalidades e espacialidades.
No processo de reconstrução, os projetos avaliados como necessários à recomposição da cidade foram desenvolvidos e parcialmente executados e paralelamente foram tomadas as providências de elaboração do Plano Diretor do Município e do Plano Urbanístico para a cidade. Diversas obras foram executadas após o desastre, de forma açodada e sem participação social, e, ao contrário de restabelecer valores culturais, ambientais e paisagísticos perdidos, acentuou as fraturas do tecido urbano. Ressalta-se que não houve participação da CPX Mineradora na reconstrução da cidade e nem mesmo no processo deflagrado de planejamento no Município após o desastre.
O Plano Diretor foi elaborado com ampla participação social, quando já estavam em curso as intervenções de reconstrução da cidade. No planejamento foram evidenciados os inúmeros equívocos dos projetos implantados e programados e no seu corpo propositivo figuram substancialmente as propostas voltadas à reconexão da cidade, cuja agenda agora incorpora, além da indicação dos projetos para sanar o problema de cheias potenciais do rio Saracura, inclusive o reflorestamento e recuperação da mata ciliar, uma série de outras ações para resolver as fraturas e o esgarçamento do tecido urbano produzidos pelas intervenções públicas.
Para a reflexão proposta e à luz do referencial teórico crítico sobre as contribuições do plano e do projeto urbano na construção de perspectivas capazes de trilhar caminhos aderentes ao ideário do direito à cidade (LEFEBVRE, 1991), foram trabalhadas três categorias de análise: 1) a relação temporal e espacial entre os instrumentos; 2) a relação entre estado e sociedade civil na elaboração da agenda de reconstrução da cidade e recuperação ambiental e 3) a legitimidade dos processos e da escolha de alternativas e prioridades da agenda. Para isso a pesquisa se apoiou em documentos - jornais, estudos técnicos, projetos, relatórios e registros do processo de planejamento - e também na observação em campo e acompanhamento do processo de elaboração do Plano Diretor, possibilitada pela participação de uma das autoras na equipe de assessoria técnica1. Adotou-se a observação participante como opção metodológica, em aproximação ao estudo de caso ampliado (BURAWOY, 1998; 2014), na imersão reflexiva e implicada do pesquisador nos processos locais, analisados nas suas conexões e contradições em relação a dinâmicas urbanas e de produção da cidade mais amplas, das quais Lajedinho participa, mesmo com a sua fraca inserção na rede urbana do Estado.
Acredita-se que a análise trazida pode contribuir na discussão sobre a relação entre plano e projeto urbano e suas agendas, nas suas especificidades, complementaridades e interações e abrir perspectivas para o debate fecundo e necessário da relação entre política urbana e política ambiental ao trazer à tona a relação entre as suas pautas específicas e o direito à cidade.
2 O PLANO E O PROJETO URBANO: concepções e a relação com as principais matrizes de planejamento no Brasil
2.1. Concepções, escalas e interações
Na tentativa de enunciar o conceito de projeto urbano, denominação genérica para uma infinidade de intervenções na cidade, Vescina (2010, p.36) o define como uma “forma de fazer cidade na qual o desenho urbano desempenha um papel crucial” caracterizada por uma abordagem “pragmática em aparência” por incorporar as lógicas do mercado imobiliário; que tem o espaço como meio de negociação sociopolítica e de construção de alianças; situado na escala intermediária, entre os edifícios isolados e a cidade; orientado por um prazo intermediário; processual e flexível a mudanças e reorientações. Com base em pesquisa sobre diversas experiências a autora constata dificuldades de apreender as especificidades nas tipologias de projeto urbano.
No Brasil, os projetos urbanos se inserem no âmbito do planejamento estratégico de cidades, que se intensifica no contexto da consolidação dos impositivos neoliberais, com o aumento da participação do setor privado, tanto na formulação de políticas públicas, quanto na implementação de ações, através das parcerias público-privada. Na produção do espaço urbano, intensificou-se também a ação direta do setor privado via grandes conglomerados empresariais, com significativas repercussões territoriais, paralelamente à redução da participação do Estado, o qual historicamente foi um dos principais agentes no processo de urbanização.
Experiências diversas de projetos urbanos são realizadas segundo a orientação do que Fernandes (2013) conceitua como urbanismo corporativo, traduzido nas formas de intervenção em partes das cidades sob os ditames do capitalismo neoliberal. Reconhecidas como renovação, requalificação, regeneração, revitalização e outras terminologias, muitas dessas práticas têm gerado efeitos excludentes, na medida em que privilegiam interesses econômicos e findam por promover processos de gentrificação2 e fragmentação nas cidades.
Nesse contexto, os projetos urbanos de grande porte tratam da expressão concreta do projeto de cidade veiculado pelo planejamento estratégico, sendo utilizados como estratégia de marketing, visando a inserir a cidade de forma competitiva na “corrida” dos governos locais pela atração de novos investimentos, abordando a cidade como mercadoria (VAINER, 2000; ARANTES, 2002). Conforme afirma Mansilla López (2016), citando o exemplo das intervenções urbanas realizadas nas últimas décadas em Barcelona, apesar do bom desenho urbano, os projetos resultaram na privatização dos espaços públicos.
Confusões conceituais entre plano e projeto parecem instrumentais à lógica hegemônica de produção da cidade no período da expansão neoliberal e da globalização dos mercados. Questões centrais desse debate, como a relação entre plano e projeto urbano, suas escalas e interações, permanecem car entes de reflexão, sobretudo diante dos contextos onde se realizam. Contribuição representativa foi aportada por Tsiomis (2003) quando alerta para a importância de produzir significados diante dos contextos e dos perfis dos projetos, seus objetos, programas e formas de intervenção e dos parâmetros próprios do lugar, com suas normas e especificidades culturais. Não constituem instrumentos reciprocamente substitutivos; comportam escalas, abordagens, conteúdos e formatos distintos. Quando se apresentam relevantes para a cidade nas mesmas condições espaço-temporais, importa assimilar o fato de ser a mesma cidade, o mesmo ambiente e a mesma sociedade e reconhecer o necessário diálogo entre os instrumentos e com os habitantes. Tsiomis (2006) reforça a importância de pensar o espaço para além de objeto de consumo, como expressão da democracia.
Conforme exposto, o projeto urbano – explicitando a dimensão física e a visualização espacial das transformações urbanas propostas – vem sendo apropriado pela iniciativa privada, constituindo-se, pois, como um elemento de disputa, demandando a efetiva participação social e a discussão pública em prol do direito à cidade, sem a qual o mesmo será destituído de legitimidade e eficácia social, conforme exposto por Bacellar (2012). Ao analisar o caso do Porto Maravilha (RJ), a autora destaca que apesar do projeto haver sido relegado a um segundo plano, em decorrência do Regime Diferencial de Contratações (RDC) adotado para as obras da Copa e das Olimpíadas, deve-se reafirmar o papel do projeto urbano como “o lugar da negociação entre os diversos atores e como o principal elemento através do qual sejam garantidas definições urbanísticas com vistas a efetivar princípios para a construção de uma cidade mais equitativa” (BACELLAR, 2012, p. 156).
Nesse sentido, compreender contextos, escalas e possibilidades de interação desses dois instrumentos e o alinhamento dos seus propósitos, diante das expectativas e desejos dos habitantes de transformar a cidade e assegurar o seu direito à cidade, coloca-se como desafio central das políticas urbanas contemporâneas. Da mesma forma é relevante compreender o plano e o projeto urbano no âmbito de valores, princípios e conceitos, inclusive aqueles difundidos como referências para alcançar metas globais de desenvolvimento sustentável, como as noções de sustentabilidade e resiliência. Embora fortemente internalizados nos enunciados das políticas públicas raramente comparecem nas concepções de planos e projetos e dificilmente amparam-se em evidências do real-concreto. Como pontua Acselrad (1999, p. 80) a respeito da noção de sustentabilidade, “ao contrário dos conceitos analíticos voltados para a explicação do real, [...] está submetida à lógica das práticas: articula-se a efeitos sociais desejados, a funções práticas que o discurso pretende tornar realidade objetiva.”
2. 2 Aderência às concepções e práticas de planejamento urbano no Brasil
Para o entendimento do projeto urbano e sua aderência às concepções e práticas de planejamento urbano no Brasil, importa examinar duas correntes dominantes, embora não exclusivas: uma de perfil democrático e redistributivista, construída no processo de luta pela reforma urbana e orientada pelas disposições sobre a política urbana estabelecidas na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e a outra pragmática e empresarial, alinhada às exigências do mercado globalizado e competitivo. Embora antagônicas nos princípios e objetivos, no diálogo com a norma geral e na prática de planejamento, podem apresentar pontos de convergência e se expressar em arranjos combinados e contraditórios.
Essas duas matrizes estão incorporadas à prática de planejamento em diversos municípios do Brasil, de diferentes filiações políticas e perfis ideológicos. Muitas vezes são adotadas simultaneamente no mesmo município, por meio dos instrumentos que as representam, respectivamente, o Plano Diretor e o Plano Estratégico, ou ainda se fundem em concepções híbridas. Pode-se citar o exemplo do município de Santo André (SP), cuja revisão do Plano Diretor pela Prefeitura Municipal, em 2004, foi realizada com amplo processo participativo, o que se deu concomitantemente à implantação do Projeto Eixo Tamanduatehy (1998/2004), voltado prioritariamente para o atendimento das demandas de mercado (TEIXEIRA, 2007). No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, diversos planos diretores na Bahia, elaborados por meio do Programa de Desenvolvimento Municipal e Infraestrutura Urbana (Produr) financiado pelo Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), adotaram concepções que misturavam referenciais do plano estratégico e do plano diretor.
Essas tendências se expressam no campo da gestão urbana conforme Moura (1996), em duas vertentes: ativismo cívico e empreendedorismo urbano. A primeira vertente, segundo Moura (1996) constitui um conjunto de práticas encaminhadas por governos locais, particularmente de esquerda e progressistas, com vistas à ampliação da democracia e da cidadania e defende uma maior interação entre Estado e Sociedade na perspectiva de democratização no uso do espaço e maior equidade social (LEAL, 1999).
O empreendedorismo urbano, tomado aqui na concepção de Harvey (1996)e Moura (1996), envolve o redesenho do papel e da própria prática dos governos locais com vistas à inserção competitiva da cidade no mercado global e se expressa em diversos tipos de projeto associados a interesses privados (HARVEY, 1996). Postula uma menor presença do Estado e maior liberdade do mercado (LEAL, 1999). Com essa matriz, foram elaborados no Brasil, planos estratégicos no Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Nova Iguaçu e para a Região Metropolitana de Fortaleza, inspirados no modelo adotado no Plano Estratégico de Barcelona. Nessa concepção, o Plano é visto como instrumento dinâmico de ação permanente sobre a cidade ou região, encaminhado através de articulação entre o setor público e o setor privado. (VIVEIROS, 2005). Esse modelo de planejamento, embora não tenha sido aplicado em larga escala considerando o seu formato original inspirado na experiência catalã, logrou ampla difusão no que se refere aos seus princípios alinhados a uma visão de cidade como negócio e à sua metodologia simplificadora tanto dos processos urbanos, quanto dos conflitos inerentes à produção da cidade.
O ativismo democrático, forte no processo de redemocratização no país nos anos 1980, representa diversas articulações entre movimentos sociais, assessorias técnicas, parlamentares e governos progressistas em torno do que se compreende no Brasil como reforma urbana, experiências de gestão introduzidas após a Constituição Federal de 1988, como orçamento participativo, plano diretor participativo, conselhos, conferências e outras. O plano diretor foi introduzido na Constituição Brasileira de 1988 como resultado de uma conciliação conservadora contrária aos termos colocados pela proposta de emenda popular apresentada pelos movimentos sociais e entidades engajados nas lutas pela reforma urbana, e, a partir daí, ganhou centralidade na política urbana (ROLNIK, 1994). Os art. 182 e 183 desta Lei, dentre outras disposições, tornam obrigatória a elaboração do plano diretor para cidades com mais de 20.000 habitantes, exigência estendida posteriormente a outras situações. Além de atribuir força ao instrumento, a Constituição Federal de 1988 abriu espaço para compreensão ampla sobre o papel do plano diretor apresentado como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana” e parâmetro para assegurar a função social da cidade e da propriedade urbana.
O plano diretor, apoiado nos princípios básicos da reforma urbana e elaborado com participação social poderia ser um instrumento, ele próprio, de democratização da gestão das cidades. Com a aprovação da Lei 10.257/ 2001, o plano diretor passa a ser também obrigatório para cidades integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos de combate à ociosidade da propriedade urbana; integrantes de áreas de especial interesse turístico ou inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. Posteriormente, por efeito da Lei nº 12.608 de 2012, aqueles incluídos no Cadastro Nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos entraram na condição de obrigatoriedade de elaborar o plano diretor.
O empreendedorismo urbano e suas expressões no planejamento estratégico e no projeto urbano no Brasil, mesmo com as contundentes críticas quanto ao alinhamento a propósitos avessos aos princípios da política urbana, deixou as suas marcas nos formatos e conteúdos tanto no planejamento, quanto na ação estatal. No caso de Lajedinho, o conjunto de intervenções associadas ao projeto de reconstrução da cidade não teve um plano de ação como instrumento de sustentação simplificado que conectasse os projetos no tempo e no espaço. Além disso, o plano diretor somente entra na pauta depois de as decisões sobre os projetos já estarem tomadas, diante da imposição legal que tornou o instrumento obrigatório após o desastre e da perspectiva de instalação do empreendimento de mineração no seu território.
No processo de reconstrução encaminhado, traços da vertente de empreendedorismo urbano e do planejamento estratégico são verificados, como a ideia de aproveitamento das oportunidades, da parceria e de flexibilidade, as quais caminharam juntas para compor arranjos nem sempre pautados no interesse público ou no interesse local. Como alerta Harvey (1996), nessas situações, há sempre a possibilidade de sobrecarga de investimento e na absorção dos riscos dos empreendimentos pelos governos locais. Não apenas, as consequências dos arranjos pautados no pragmatismo das oportunidades deixaram em plano secundário o que a rigor seria central para o alcance dos objetivos pretendidos com a necessária regeneração de Lajedinho com recomposição de valores materiais e simbólicos e restabelecimento das condições de estar na cidade sem risco.
3 O PROJETO E O PLANO NO CONTEXTO DA RECONSTRUÇÃO E RECUPERAÇÃO AMBIENTAL DO MUNICÍPIO DE LAJEDINHO
3.1 Lajedinho sem Plano e sem Projeto
Lajedinho3 é um dos municípios mais pobres do estado da Bahia e ocupava em 2013, ocasião da enchente, a 410ª posição dentre os 417 municípios do Estado no ranking do Produto Interno Bruto(PIB), conforme Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais do Estado da Bahia (SEI). Com uma área total de 776,10 km² e população total de 3.936 habitantes (IBGE, 2010), o município apresenta um elevado nível de ruralização, com cerca de 70% dos domicílios em zona rural. Experimenta decréscimo de sua população, processo constatado nos dados dos Censos (IBGE) que informam a redução da população total de 6.897 habitantes, em 1980, para 6.225 habitantes, em 1991, para 4.352, em 2000, e 3.936 em 2010. Com a progressiva redução do número de habitantes e o perfil rural, a configuração urbanística da cidade pouco se alterou até a ocorrência da enchente.
A cidade está localizada nas margens do rio Saracura, cujo leito desenvolve-se no sentido oeste-leste e é considerado um rio de segunda ordem, intermitente, embora estudos realizados para o Plano Diretor apontem características que atribuem ao rio a condição de efêmero (BAHIA, 2016). Com um território quase totalmente ocupado por pastagens, poucos são os remanescentes de mata preservados e, quando existentes, são fragmentados. Nos estudos foi constatada a “ausência de mata ciliar em quase todo o curso do rio e também a presença de pequenos barramentos [...] a montante da cidade” (BAHIA, 2016). Essa condição aumenta a velocidade do escoamento superficial das águas em períodos de chuvas e é uma das razões dos constantes alagamentos da cidade, inclusive do desastre ocorrido em 2013, diferenciado dos demais pela gravidade. Como destacado nos citados estudos “a forte alteração da cobertura dos terrenos, associada aos longos períodos de escassez hídrica, promoveu a redução da capacidade de retenção hídrica natural”, o que acelera a velocidade do escoamento das águas (BAHIA, 2016).
Em Lajedinho, o planejamento jamais foi considerado como prática relevante de política urbana, assim como o projeto, utilizado apenas para captação de recursos. Após o desastre, esses instrumentos entraram na agenda e passaram a ser relevantes para os gestores públicos locais. Mesmo diante do quadro municipal de estagnação econômica, perda populacional, carências diversas de infraestrutura e frágil estrutura administrativa local, a atenção do governo não se voltou a um planejamento mais abrangente. Os projetos desenvolvidos para a cidade até a enchente se restringiam a equipamentos básicos de saúde, educação e assistência social e de melhorias dos logradouros públicos da cidade. Apenas os planos setoriais exigidos como condição de transferências de recursos e os planos de investimentos e orçamentários, também obrigatórios, compunham o planejamento da administração municipal. As pequenas alterações na cidade não justificavam esforços maiores de planejamento e regulação do uso e ocupação do solo urbano.
No pós-desastre, Lajedinho ocupa a cena na mídia e nas esferas de governo, e a definição de uma agenda de reconstrução entra em pauta. Essa agenda, aqui entendida no sentido colocado por Kingdon (2011, p. 222) como a “lista de temas ou problemas que são alvo em dado momento de séria atenção, tanto da parte de autoridades governamentais como de pessoas fora do governo, mas estritamente associadas às autoridades”, a rigor, demandaria a delimitação e caracterização dos problemas, a avaliação das alternativas de solução e tomada de decisão em bases minimamente sólidas, ou seja, o planejamento geral da agenda, inclusive na escala do desenho urbano, já que a cidade ficou parcialmente destruída. O planejamento urbano inicialmente não se colocou relevante na definição das prioridades das intervenções em Lajedinho. O que se colocou, então, como motivadores da escolha das alternativas dos temas ou problemas a enfrentar? Quais os critérios envolvidos na especificação das alternativas de solução preponderantes na agenda pública de reconstrução da cidade? Como foram encaminhadas? Quais os desdobramentos? Essas são algumas das questões discutidas na sequência.
3.2 O Desastre e a Agenda de Reconstrução e Recuperação Ambiental da Cidade
O desastre em Lajedinho foi consequência de uma tormenta com precipitação de 120mm em duas horas, provocando uma inundação que causou a morte de 17 pessoas, atingiu 231 unidades habitacionais e mais 25 imóveis ocupados por instituições públicas, entre elas a sede principal da Prefeitura e outras instituições da administração municipal, e outros usos (BAHIA, 2016). Foi o mais grave dos 7 eventos de alagamento ocorridos na cidade. Os quatro eventos anteriores, embora graves, não tiveram vítimas fatais e mais dois aconteceram em período mais recente, um deles com chuvas inclusive mais intensas, mas sem consequências graves, já que a área afetada pela enchente de 2013 já estava desocupada, e outro sem consequências (TEMPORAL, 2013; CHUVAS..., 2017; TRAGÉDIA...2018). Em uma cidade com pouco mais de 1.200 habitantes em área urbana é possível imaginar o trauma causado pelo desastre de 2013, que atingiu a parte mais antiga e consolidada da cidade, provocando mortes e deixando mais de 600 pessoas desabrigadas. O vazio deixado pelo desastre e a superfície potencialmente inundável podem ser vistos na Figura I:
Além de diversas ações solidárias vindas de pessoas e governos e de providências da Defesa Civil para atender às vítimas, uma agenda governamental de reconstrução da cidade foi definida. A enchente destruiu a Biblioteca Pública, a sede da Prefeitura Municipal, o Centro de Referência em Ação Social, o Infocentro, vias e espaços de lazer e comprometeu o prédio do Mercado Municipal, além de imóveis residenciais, de comércio e serviços. Os prejuízos foram orçados em R$ 28 milhões pela Prefeitura Municipal de Lajedinho. De imediato, o Governo Federal anunciou a liberação de 620 mil reais para ações de assistência às vítimas e restabelecimento de serviços essenciais e mais R$ 4.224 milhões para o apoio na reconstrução da cidade. Grandes projetos de reestruturação, considerando a escala da cidade, entraram na pauta e parte foi iniciada em pouco tempo, como o Centro Administrativo, para abrigar os equipamentos públicos destruídos, o Conjunto Habitacional para relocação das famílias afetadas e um Ginásio de Esportes.
No contexto pós-desastre a articulação entre o governo local e demais esferas de governo para a reconstrução de Lajedinho se pautou na elaboração de projetos sem o respaldo em um plano de ação, que fosse orientador das ações de reconstrução. Providências de emergência, como o pronto atendimento às vítimas e ações para o restabelecimento do funcionamento dos serviços urbanos foram encaminhadas e projetos mais relevantes foram assumidos por órgãos da esfera estadual ou federal, em precárias bases de planejamento e fraca articulação interinstitucional e sem discussão com os interessados. O fato é que, além de definição de uma robusta agenda de projetos, foram estabelecidas prioridades e responsabilidades de execução, cuja base de critérios não é facilmente inferida.
Diversos são os fatores capazes de orientar a escolha de agendas e prioridades, além dos métodos de encaminhamento quando definidas. Kingdon (2011, p. 226) reconhece três dinâmicas que influenciam a escolha das alternativas a considerar diante de uma agenda: a dos problemas, a das políticas públicas (com as soluções e alternativas a considerar) e a da política. Importante considerar a dimensão dos problemas colocados na agenda após o desastre, diante da limitada capacidade (orçamentária e técnica) da administração municipal de dar respostas. Tal situação convoca necessariamente outros agentes à causa, sobretudo os demais entes governamentais, acionando a dinâmica das políticas públicas (esfera das competências, de orçamento etc.) e da política (articulações, alinhamento partidário, pressão etc.). Entra como baliza decisória, o papel dos agentes e suas respectivas posições nos processos capazes de tornar traduzir seus movimentos em incentivo “quando trazem o tema para o topo da agenda, ou pressionam para que uma alternativa seja considerada como a mais adequada” ou em obstáculo “quando são reduzidas as chances de certa questão ou alternativa ser levada em consideração” (KINGDON, 2011, p. 226). Essas mobilizações podem ser determinantes na escolha entre as alternativas de agendas, aqui consideradas nas suas prioridades e nas soluções adotadas.
O projeto do Centro Administrativo, assim como o projeto do Parque do rio Saracura com o canal de macrodrenagem (não executado) foram assumidos pelo Governo do Estado, através da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder). A Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur) assumiu a assessoria técnica à Prefeitura na criação do Conselho da Cidade e na elaboração do Plano Diretor e do Plano Urbanístico.
Na esfera federal, além do socorro imediato às vítimas, a recomposição da área e restabelecimento dos serviços essenciais, os aportes voltaram-se à provisão de moradia para as famílias desabrigadas e realização de obras de urbanização. Temas como o reflorestamento e a regulação da ocupação do solo (prevenção de ocupação em áreas de risco) não ocuparam lugar na agenda, mesmo com os inúmeros problemas ambientais4. Medidas de recomposição da mata ciliar, reflorestamento, saneamento e outras esperadas diante da degradação ambiental do território municipal e especificamente do rio Saracura não foram previstas. A obra do canal de macrodrenagem, indispensável para sanar o problema das enchentes não foi priorizada e, passados mais de seis anos da ocorrência do desastre, não foi ainda executada.
Conforme exposto, o processo de reconstrução da cidade foi pautado pela disponibilidade de recursos estaduais e federais, determinantes na definição das prioridades. Essa lógica, embora indique reduzido protagonismo do poder municipal na definição da agenda e escolha de alternativas de solução ao problema, revela um posicionamento de autoridade, sujeito a questionamentos por outras forças políticas locais não envolvidas no processo. É certo que a complexidade envolvida na tomada de decisão sobre a agenda de reconstrução adentra a esfera da construção de alianças do governo municipal com agentes públicos externos e internos, suas motivações, conflitos, convergências e interesses, e mesmo na avaliação quanto à sua autoridade prática nesse processo. Entretanto, a evidência de uma motivação pragmática e a ausência de engajamento de agentes da sociedade civil na definição da agenda são suficientes para inferir a fraca legitimidade das decisões tomadas. Não houve, de fato, a sensibilização e mobilização das forças sociais capazes de colocar a agenda de reconstrução como uma agenda pública, conhecida e potencialmente defendida pelos habitantes.
Evidências quanto à marcante presença dos interesses empresariais na tomada de decisão sobre a agenda de reconstrução da cidade pós-desastre excedem à doação de terrenos e à realização de obras públicas por empreiteiros. Ainda mais relevante é a submissão das decisões quanto às soluções técnicas a esses interesses, com as consequências daí advindas de ônus adicionais ao estado e perda de qualidade urbanística e paisagística da cidade, como foram os casos da localização do projeto do conjunto habitacional e, de forma mais crítica, da solução para contenção das cheias. No projeto de macrodrenagem foi adotada uma concepção higienista, com uma calha de 30 metros de largura, incompatível com a escala da cidade e sua configuração urbanística e paisagística, mesmo diante de soluções condizentes com as características locais e com os princípios da drenagem sustentável.
Embora esses processos, em escala, se diferenciem das dinâmicas de mercantilização da cidade em contextos mais complexos de metrópoles e cidades médias, os princípios e lógicas que orientaram as decisões, no caso de Lajedinho, permitem associá-los ao pragmatismo do urbanismo corporativo. O que é peculiar, no caso, é evidenciar a sua expressão em uma cidade pequena e de perfil rural e também como, em uma situação de crise, a cidade como negócio se apresenta e ganha acento frente aos princípios de participação, solidariedade, cooperação e sentido de bem comum inscritos no ideário do direito à cidade (LEFEBVRE, 1991).
O caminho escolhido comprometeu, acima de tudo, a dimensão política, apontada por Kingdon (2011) como fundamental na construção de uma agenda pública, e mais além, impossibilitou a própria avaliação de conjunto das alternativas de solução e da capacidade de resolver os problemas. O comprometimento do fluxo de construção da agenda pública começa, a rigor, pela ausência de aprofundamento na leitura dos problemas a resolver e é seguida por decisões tomadas sem a necessária avaliação prévia das alternativas de solução, dos projetos e suas interações e das consequências urbanísticas, paisagísticas para a cidade. As fragilidades das escolhas técnicas e políticas somente são evidenciadas quando o planejamento abre questões sobre o processo de reconstrução da cidade.
3.3 Plano e Projeto se encontram no Tempo e no Espaço
O enquadramento do município na condição de obrigatoriedade de elaboração do Plano Diretor possibilitou o apoio do governo estadual na construção da política urbana municipal. Foram realizadas oficinas de capacitação dos gestores públicos e vereadores e apoio técnico na criação do Conselho da Cidade, antes do início da elaboração do Plano Diretor e do Plano Urbanístico, os quais contariam com a assessoria do governo do estado. Essas atividades preliminares tinham como objetivo criar as condições técnicas e políticas para um maior engajamento da Prefeitura no processo de planejamento a ser iniciado.
O Plano Diretor foi elaborado considerando todo o território municipal e contou com ampla participação de lideranças, gestores públicos e outros em 14 oficinas, 2 seminários, 2 atividades de educação ambiental e 4 audiências públicas. O governo do estado forneceu assessoria técnica por meio de empresa de consultoria contratada, que elaborou estudos e construiu as proposições junto com técnicos do estado e do município e com o Conselho da Cidade. Outras representações da sociedade civil e do estado foram agregadas ao processo por meio da formação de um Grupo de Trabalho, responsável pelo acompanhamento de todo o processo até a aprovação do Plano Diretor pela Câmara Municipal. Além disso, foi elaborado o Plano Urbanístico, considerando o perímetro urbano, discutido com a sociedade civil local em oficinas e nas audiências.
O Plano se insere na pauta quando parte representativa dos projetos de reconstrução da cidade já estava concluída ou em fase avançada de implantação. Os projetos não foram discutidos com os habitantes, sendo este um tema recorrente nas discussões públicas do Plano Diretor e do Plano Urbanístico, como mostram os registros do processo participativo. Em um dos eventos os presentes registraram “não ter conhecimento do projeto do Parque e que a elaboração dos planos é uma oportunidade de conhecer o projeto e se necessário, rever aspectos da concepção” e “a importância de pensar o que seria essencial no Parque, tendo em vista garantir a viabilidade em uma conjuntura de crise econômica.”
A ausência de articulação entre as iniciativas em curso de reconstrução da cidade ficou evidenciada no processo e as tentativas de alinhamento das concepções de intervenção propostas e ainda não executadas ensejaram tensões nos processos de pactuação entre instâncias do governo. Três projetos em andamento foram mais fortemente questionados nas suas respectivas concepções: o Novo Mercado, o Projeto do Parque do rio Saracura com a macrodrenagem e o Projeto Habitacional. O Novo Mercado, previsto para área vizinha ao Projeto Habitacional, portanto afastado da cidade, teve a sua localização questionada pelos feirantes e por lideranças comunitárias, o que resultou, sem muitos embaraços, na revisão da proposta. O Projeto do Parque foi questionado pela equipe de assessoria técnica do Plano Diretor quanto à solução técnica adotada para a macrodrenagem5. Sobre o Projeto Habitacional, em fase final de execução, questionava-se a sua localização afastada do centro e a distância para acessar os serviços urbanos, a criação de um vazio entre a cidade e o empreendimento habitacional e dúvidas eram suscitadas quanto à ida das famílias atingidas para a nova moradia longe da área consolidada
Os debates promovidos por ocasião da elaboração do Plano Diretor e do Plano Urbanístico produziram conhecimento e acúmulo crítico sobre a cidade e as intervenções realizadas e suscitaram posicionamentos no sentido de pensar perspectivas mais abertas de futuro. Em uma das atividades participativas realizadas durante a elaboração do Plano Diretor, lideranças e técnicos, em uma reflexão coletiva sobre o que seria o direito à cidade, associaram a esse direito um conjunto de condições urbanas futuras que incluíam “Adequação da cidade às demandas e valores do lugar”; “Fortalecimento de vínculos”; “Não destruir o tradicional” e “Participação social” traduzida no envolvimento dos gestores nas atividades participativas da cidade, no rompimento com o descrédito da comunidade e com a acomodação, no “fazer parte”, na descentralização da gestão, na “sensibilização da comunidade e dos gestores”; empoderamento das mulheres, dentre outras condições (BAHIA, 2017, p. 41). No exercício realizado, algumas associações com demandas mais correntes como o saneamento, mobilidade, internet e outras apareceram, mas, como observado, muitas das reflexões acenam para perspectivas políticas de fortalecimento da cidadania.
Em discussão específica sobre os conceitos de sustentabilidade e resiliência, o desastre ocorrido ganhou centralidade. Os participantes associaram a sustentabilidade às perspectivas de “garantir para as futuras gerações” e “não desperdiçar” e, conforme registros do processo participativo, “foram feitos relatos sobre a enchente, expressados com emoção” (BAHIA, 2017, p. 41). Embora a associação do desastre ao desmatamento extensivo do território municipal tenha ficado evidente nas discussões públicas do Plano Diretor, uma condição alternativa de futuro pautada na conservação e recuperação ambiental não se encontra explicitada nas falas dos moradores registradas nos documentos consultados, mas consta tanto do cenário referencial de planejamento, quanto das diretrizes e projetos aprovados em audiências públicas, inclusive na Lei do Planos Diretor. Tais reflexões, permeadas pelo abalo diante do desastre, não foram suficientes, ao que se percebe, para a expressão crítica sobre os processos históricos de degradação ambiental6, mas possibilitou a construção de uma consciência crítica no reconhecimento de possibilidades de ações de reversão, ao legitimar proposições técnicas para uma outra forma de relação com o meio ambiente.
Ao possibilitar o debate aberto sobre o processo de reconstrução da cidade e a reflexão a respeito da necessidade de corrigir, redirecionar ou remediar concepções de projetos, o planejamento participativo situa o debate da reconstrução da cidade em duas dimensões: na dimensão política e na dimensão técnica. É certo que decisões sobre soluções técnicas, em regra, incorporam a dimensão política como parte do processo de avaliação das alternativas, ao passo que decisões políticas podem ou não ser orientadas por escolhas técnicas. No caso estudado, decisões sobre localização e concepções de projeto não encontram justificativa no plano técnico e não lograram alcançar legitimidade política em uma dimensão pública mais ampla, como evidenciaram os debates no curso da elaboração do Plano Diretor. A localização do Projeto Habitacional, por exemplo, foi motivada pela doação do terreno pelo proprietário à municipalidade. Com a decisão de implantar o projeto nessa localização, abriu-se uma frente de expansão em área descontínua e sem infraestrutura; mas os equívocos nas decisões não se esgotam na localização escolhida. Com uma tipologia retilínea e repetitiva, o conjunto afronta a morfologia da cidade.
No desenvolvimento e discussão pública do Plano Diretor, os impactos da mineradora no Município ganharam destaque, evidenciando um certo constrangimento dos envolvidos pelo desconhecimento do projeto, até mesmo por gestores e técnicos municipais. Na ocasião, estavam em desenvolvimento pela empresa mineradora, alguns estudos na área prevista para a implantação do empreendimento e o Estudo de Impacto Ambiental, mas pouco conhecimento se tinha a respeito das características e, sobretudo, dos impactos previstos e medidas de mitigação ou compensação. Relatos dos participantes nos eventos públicos sobre a “Necessidade de discutir a implantação da mineradora” e preocupações quanto aos impactos eram combinadas às expectativas quanto a um futuro melhor para a população do Município, como pode ser visto no trecho do relatório do processo participativo do Plano Diretor:
Manifestaram preocupações com os impactos do empreendimento, mas colocaram por outro lado a oportunidade de aproveitar o momento para assegurar condições para mitigação e compensação de impactos de modo que o empreendimento consiga resultar em saldo positivo para o Município, com a melhoria da vida das pessoas. Também foi preocupação dos presentes a possibilidade de Lajedinho ficar estagnada diante do potencial crescimento do povoado de Simpatia. (BAHIA, 2016).
O planejamento participativo colocou-se como oportunidade de reflexão e leitura crítica do processo de reconstrução da cidade e também de pensar o futuro, considerando o desastre sofrido e também as “desastrosas” intervenções urbanas realizadas. Como destacado por Ribeiro (2011), o plano tem essa capacidade de tensionar a construção de futuros alternativos. Em momentos específicos, questionamentos sobre a ausência de apresentação pública dos projetos ou posicionamentos contrários diante do avanço das obras ensaiavam macular as agendas positivas da pauta governamental pós-desastre. Em uma avaliação mais ampla dos registros do processo de elaboração do Plano Diretor e sua aprovação pela Câmara Municipal, considerando inclusive os depoimentos das audiências públicas finais, é possível afirmar que tanto a administração municipal, quanto as lideranças locais se fortaleceram no processo de planejamento.
4 CONCLUSÃO
o plano-projeto como danosa à cidade nos aspectos ambientais, sociais, econômicos e culturais. Observa-se que tanto a inversão da linha sucessória plano-projeto, quanto a ausência de participação social na definição da agenda de reconstrução da cidade levaram a perdas culturais e de qualidade urbanística, ambiental e paisagística. Essa afirmação não decorre da atribuição tácita do condão da racionalidade técnica e da legitimidade política ao plano diretor, mas da constatação de que o planejamento produziu a abertura para processos reflexivos coletivos e instituintes sobre a cidade e o território municipal.
Os problemas criados com as decisões tomadas no processo de reconstrução da cidade somente foram percebidos porque os agentes sociais, inclusive os agentes públicos, conseguiram realizar a abstração sobre o futuro da cidade e sair do lugar sedutor da oportunidade de recursos e da parceria, e questionar o pragmatismo nas decisões de interesse público. Os resultados da pesquisa mostram que as fraturas urbanas produzidas pela enchente foram agravadas com as decisões tomadas à revelia de uma leitura da realidade, técnica e participativa, capaz de evidenciar, por exemplo, as conexões entre a organização espacial e as práticas sociais e culturais da população de Lajedinho.
O plano diretor e o projeto urbano são instrumentos de política urbana com especificidades quanto aos seus objetivos, conteúdo e escalas. Não estão aprisionados à sua dimensão técnica e são tensionados na sua concepção pelas relações de poder inscritas nos processos de elaboração e implementação. Portanto, são os processos e os agentes, inclusive técnicos, os responsáveis por situá-los no aqui e agora - e evidenciar as suas tradições, muitas vezes regressivas frente aos ideais da reforma urbana e do direito à cidade- ou disputá-los como instrumentos para a efetivação de uma agenda transformadora ou ao menos garantidora de direitos. O fracionamento das intervenções nas cidades embaça o urbano potencialmente emergente quando os problemas situados na superfície são mantidos neste lugar, destituídos das relações contraditórias e conflituosas que os constroem e acabam por perpetuar assimetrias e desigualdades. A incômoda agenda de recuperação ambiental associada à contenção das cheias do rio Saracura, com recomposição da mata ciliar, controle de erosões e reflorestamento, não compôs a agenda pública de reconstrução da cidade.
Como verificado, a agenda pós-desastre difere da perspectiva de regeneração delineada no processo de planejamento, no sentido da reconstrução dos valores urbanísticos, sociais, culturais e ambientais, considerando inclusive as perdas econômicas dos habitantes da cidade. No sentido mais corrente da palavra, regenerar pressupõe recuperar os valores remanescentes para, a partir deles, fortalecer vínculos sociais e culturais e recriar nas novas condições desejadas, mesmo dentro dos limites colocados pelos recursos materiais e simbólicos, técnicos e forças em ato. É possível falar de uma tensão regenerativa instalada após a experiência de planejamento em Lajedinho. O planejamento participativo promove essa condição de olhar agora e adiante, de identificar, no presente, processos e formas residuais pretéritos impeditivos de mudanças (WILLIAMS, 1979), de confrontar e pactuar interesses e vontades e vislumbrar a dimensão coletiva e pública da cidade, anunciando a possibilidade de encontro entre o projeto e o plano, mesmo quando, no jogo de forças, o pragmatismo se impõe como materialidade na cidade.
REFERÊNCIAS
ACSELRAD, Henri. Discursos da Sustentabilidade Urbana. R. B. Estudos Urbanos e Regionais nº 1, 1999. Disponível em: http://dx.doi.org/10.22296/2317-1529.1999n1p79. Acesso em: 9 maio 2020.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único. 3. ed. Rio de Janeiro: Vozes. p. 11-74, 2002.
BACELLAR, Isabela. Diálogo entre urbanismo e direito: projeto urbano e possibilidades para a eficácia social da norma na Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2012.
BAHIA. Governo do Estado. Secretaria de Desenvolvimento Urbano. Relatório 04 – Diagnóstico Participativo Plano Diretor e Plano Urbanístico de Lajedinho, 2016.
BAHIA. Governo do Estado. Secretaria de Desenvolvimento Urbano. Relatório 08 – Atividades Participativas, 2017.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Constituição Federal. (1988). Deputados constituintes. Brasília, 1988.
BRASIL. Presidência da República. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília, 2001.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.608 de 10 de abril de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC; dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil - CONPDEC; autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres; altera as Leis nºs 12.340, de 1º de dezembro de 2010, 10.257, de 10 de julho de 2001, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.239, de 4 de outubro de 1991, e 9.394, de 20 de dezembro de 1996; e dá outras providências. Brasília, 2012.
BURAWOY, Michael. The extended case method. Sociological Theory. V. 16, p. 4-33. Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/10.1111/0735-2751.00040. Acesso em: 10 jun. 2019.
BURAWOY, Michael. Marxismo Sociológico: Quatro países, quatro décadas, quatro grandes transformações e uma tradição crítica. São Paulo: Alameda, 2014.
CHUVA causa tromba d´água e deixa desabrigados em Lajedinho. Disponível em: http://atarde.uol.com.br/bahia/noticias/1850796-chuva-causa-tromba-dagua-e-deixa-desabrigados-em-lajedinho. Acesso em: 15 abr. 2018.
DE CARLI, Beatrice; FREDIANI, Alexandre; BARBOSA, Benedito; COMARU, Francisco; MORETTI, Ricardo. Regeneration through the ‘Pedagogy of Confrontation’: Exploring the Critical Spatial Practices of Social Movements in Inner City São Paulo as Avenues for Urban Renewal, 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.18389/dearq16.2015.10. Acesso em: 20 out. 2017.
FERNANDES, Ana. Decifra-me ou te devoro: Urbanismo corporativo, cidade-fragmento e dilemas da prática do Urbanismo no Brasil, In: GONZALES, Suely F. N.; FRANCISCONI, Jorge Guilherme; PAVIANI, Aldo. Planejamento e Urbanismo na atualidade brasileira: objeto teoria prática, São Paulo, Rio e Janeiro, Livre Expressão, 2013.
HARVEY, David. . Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço e Debates, ano XVI, n.39. 1996, p.48-64.
KINGDON, Jonh Wells. How Does an Idea’s Time Come? In KINGDON, John W. (1995).Agendas, Alternatives, and Public Policies. 2nd Edition. Longman Classics in Political Science. Longman. p. 1-20, 2011.
LEAL, Sueli Maria Ribeiro “Cidades Democráticas” X “Cidades Capital”: Para Onde Caminha a Práxis da Gestão Local? 1999. 1CD.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 1991.
MANSILLA LÓPEZ, José Antonio. Urbanismo, privatización y marketing urbano. La Barcelona neoliberal através de três ejemplos. Encrucijadas. Revista Crítica de Ciencias Sociales. v.11, 2016. Disponível em: http://www.encrucijadas.org/index.php/ojs/article/view/253/203. Acesso em: 16 jul. 2019.
MOURA, Suzana. Cidades Empreendedoras, Cidades Democráticas e a Construção de Redes Públicas na Gestão Local. Revista Organizações e Sociedade, nº 7. Salvador: EDUFBA, 1996. p.33-61.
MOURAD, Laila; FIGUEIREDO, Gloria Cecília; BALTRUSIS, Nelson. Gentrificação no Bairro 2 de Julho, em Salvador: modos, formas e conteúdos. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 16, n. 32, pp. 437-460, nov. 2014.
RIBEIRO, Ana Clara T. A Força do Passado: Nem tudo que é Sólido Desmancha no Ar. Disponível em: http://labcs.ufsc.br/files/2011/12/01.-RIBEIRO-A.C.T.-A-for%C3%A7a-do-passado.pdf. Acesso em: 20 jun. 2018.
RIBEIRO, Luiz César de Q.; CARDOSO, Adauto Lúcio. Plano Diretor e Gestão Democrática da Cidade. Plano Diretor: Instrumento de Reforma Urbana, Rio de Janeiro: FASE, 1990. p. 70-88.
ROLNIK, Raquel. Planejamento urbano nos anos 90: novas perspectivas para velhos temas. In: RIBEIRO, Luiz César de Queirós; SANTOS JÚNIOR, Orlando dos. Globalização, fragmentação e reforma urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; MONTANDON, Daniel Todtmann (Org.). Os planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rede de avaliação e capacitação para a implementação dos Planos Diretores - Bahia. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Cidades; IPPUR/UFRJ, 2011. Disponível em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/download/miolo_plano_diretor.pdf. Acesso em: 20 jun. 2018.
TEIXEIRA, Aparecida Netto. Espaço Público e Projeto Urbano. O Eixo Tamanduatehy em Santo André (SP). Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP, v. 21, p. 84-97, 2007.
TEMPORAL causa destruição e mortes na cidade de Lajedinho, na Bahia. Disponível em: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2013/12/forte-chuva-causa-estragos-na-cidade-de-lajedinho-na-bahia.html. Acesso em: 8 maio 2020.
TRAGÉDIA de Lajedinho completa 5 anos mas preocupação da população continua. Disponível em: https://jornaldachapada.com.br/2018/12/08/chapada-tragedia-de-lajedinho-completa-5-anos-mas-preocupacao-da-populacao-continua. Acesso em: 21 jul. 2018.
TSIOMIS, Yannis. O projeto urbano hoje. In: MACHADO, Denise Barcellos Pinheiro; PEREIRA, Margareth da Silva; SILVA, Rafael Coutinho Marques da (orgs.). Urbanismo em questão, Rio de Janeiro, Prourb, 2003, p. 10-20.
TSIOMIS, Yannis. O ensino de projeto urbano entre a crise e a mutação. In: MACHADO, Denise Barcellos Pinheiro (org.) Sobre o Urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley: Ed. PROURB, 2006, p. 65-79.
VAINER, Carlos Bernardo. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. 3. ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 75-103.
VESCINA, Laura Mariana. Projeto urbano, paisagem e representação. Alternativas para o espaço metropolitano.207 f., 2010. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Urbanismo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
VIVEIROS, Liana. Cidades estrategicamente planejadas no Brasil: Rio de Janeiro, Fortaleza, Juiz de Fora e Nova Iguaçu. 2005. 285 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (1ª edição de 1971).
Notas