Resenha
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Revista de Políticas Públicas, vol. 24, núm. 1, pp. 302-305, 2020
Universidade Federal do Maranhão
KRENAK Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. 2019. São Paulo. Companhia das Letras. 64pp. |
---|
Ailton Krenak nasceu no Vale do Rio Doce, Minas Gerais, em 1954. Com 17 anos, migrou com seus parentes para o estado do Paraná. Alfabetizou-se aos 18 anos, tornando-se, a seguir, produtor gráfico e jornalista. Na década de 1980 passou a se dedicar exclusivamente à articulação do movimento indígena. Em 1987, durante a Assembleia Constituinte, Ailton Krenak foi autor de um gesto marcante: pintou o rosto de preto com pasta de jenipapo enquanto discursava no plenário do Congresso Nacional, em sinal de luto pelo retrocesso na tramitação dos direitos indígenas. Em 1988 participou da fundação da União das Nações Indígenas (UNI), fórum intertribal interessado em estabelecer uma representação do movimento indígena em nível nacional, participando em 1989 do movimento Aliança dos Povos da Floresta, que reunia povos indígenas e seringueiros em torno da proposta da criação das reservas extrativistas, visando a proteção da floresta e da população nativa que nela vive. Nos últimos anos, Ailton se tornou um dos mais expressivos pensadores indígenas a nos desafiar a refletir mais atentamente sobre a relação homem e natureza.2
Em 2017 aceitou participar da conferência “Os involuntários da pátria”, em Lisboa, num evento ibero-americano de cultura, convidado por Eduardo Viveiros de Castro. Na ocasião, foi apresentado o documentário “Ailton Krenak e o sonho da pedra”, dirigido por Marco Altberg, e depois ele conversou com os participantes. Essa conversa e outra realizada no ano seguinte são apresentadas no livro. O livro, sucesso na FLIP 2019, é uma compilação de duas palestras e uma entrevista do autor. O texto inicia com reflexões pessoais sobre sua ida a Portugual, sua resistência inicial em estar na terra do colonizador, foi surpreendido ao identificar problemas sociais similares ao da antiga colônia. O livro traz, também, lembranças preciosas de sua Aldeia Krenak no Vale do Rio Doce, região castigada pela exploração mineral. O livro descreve a percepção indígena das questões contemporâneas e nos apresenta uma crítica a conceitos e concepções cristalizados e práticas reducionistas que limitam nossa visão de mundo.
A etnia Krenak, à qual pertence Ailton, ocupa um território indígena que vai do Nordeste brasileiro até o leste de Minas Gerais, onde passa o rio Doce; também está presente na Amazônia, na região do Alto Rio Negro, na fronteira do Brasil com Peru e Bolívia.
O título, como nos fala Krenak, foi uma provocação e ponto de partida para a reflexão sobre o “mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza” (p.9). Chama-nos atenção para a irracionalidade do processo de dupla exploração sociedade-natureza destinada à manutenção de padrões insanos e injustos de produção, consumo, desperdícios e acumulação de capital. Tão evidente que é esse processo de destruição do planeta, assim como a estupidez da sociedade em não o ver, quanto real pode ser o fim da passagem humana na história biogeológica da terra.
O autor apresenta crítica contundente à categoria de humanidade – questionando o conceito criado pelas instituições ocidentais, e questiona essa ideia alegando ser um conceito homeogeneizador que nega a diversidade e subjetividade. Enfatiza que não se pode negar as diferenças entre as pessoas como seres humanos, considerando como uma coisa só – essa homogeneização leva as pessoas a deixarem de ser cidadãs para serem consumidoras. É necessária outra concepção de humanidade. A questão ambiental é inseparável da discussão sobre humanidade – a terra participa do próprio conceito de humanidade. Para os povos indígenas, o que chamamos de meio ambiente é a humanidade.
Nos fala do esvaziamento da vida em nome da razão instrumental. Adorno e Horkheimer já nos chamavam criticamente a atenção sobre a razão instrumental – aquela voltada para aspectos técnicos produtivos cujos valores econômicos se sobrepõem aos valores da vida. É justamente isso que Airton questiona ao enfatizar que nem tudo é economia, nem tudo é racional/instrumental.
Krenak também fala sobre a visão que o branco europeu tinha sobre os indígenas, como se fosse uma “humanidade obscurecida”, que precisava ser “civilizada”, tal como eles eram. Critica instituições como o Banco Mundial, Organização dos Estados Americanos (OEA), e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), enfatizando que quando se trata da exploração mineral, tais instituições parecem se importar apenas em deixar “pedaços do planeta”preservados, como se fossem “amostras grátis da Terra” que ainda não foram devoradas.
Diz que os antepassados indígenas usaram a criatividade para resistir à barbaridade da civilização, à integração para entrar nesse “clube da humanidade” de concepção ocidental. Com isso, conseguiram adiar o fim do mundo, com estratégias de resistência continuada, na sua luta para ter o direito de ser e de viver de modo diferenciado, resistindo ao processo homogeneizador.
Enfatiza que a natureza é para todos, mas que não pode ser exaurida de modo predatório:
Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, para salvar a nós mesmos (KRENAK, 2019, p. 44).
Na visão indígena a natureza é considerada como família, e sua relação com ela, ao fazerem uso dos recursos e bens da natureza, é de respeito. Contudo, as pessoas que estão divorciadas dessa conexão não têm qualquer compromisso com os aspectos sagrados da natureza e por isso extraem dela os recursos de forma irracional.
As reflexões de Airton Krenak reforçam a necessidade de pensarmos que tipo de desenvolvimento socioeconômico/sustentável quer o mundo para si. É um debate atualizado neste ano de 2020 pela crise humanitária provocada pela Pandemia da COVID-19, que recoloca no centro deste debate a sobrevivência humana.
Harvey (2020), ao fazer suas primeiras reflexões sobre a Pandemia COVID-19, nos lembra que o modelo do sistema capitalista (produção, realização (consumo), distribuição e reinvestimento) encontra-se embutido em um “contexto mais amplo de reprodução social (em famílias e comunidades), em uma relação metabólica com a natureza contínua e em constante evolução (incluindo a ‘segunda natureza’ da urbanização e o ambiente construído) e todas as maneiras de formações culturais, científicas (baseadas no conhecimento), religiosas e sociais contingentes que as populações humanas tipicamente criaram através do espaço e tempo”. Harvey, afirma que o capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução; nesse sentido, não há uma “coisa como um desastre verdadeiramente natural”. Os vírus se modificam o tempo todo, mas as condições em que se tornam ameaçadoras à vida humana dependem das próprias ações humanas. Destaca dois aspectos relevantes para isso acontecer: “primeiro, condições ambientais favoráveis aumentam a probabilidade de mutações vigorosas; em segundo lugar, as condições que favorecem a rápida transmissão através dos organismos hospedeiros variam grandemente, sendo que as populações humanas de alta densidade pareceriam um fácil alvo hospedeiro”. Sem dúvida, a acelerada propagação do coronavirus nos lugares de maior concentração e circulação de pessoas comprova as consequências da dupla exploração sociedade-natureza de que nos fala Airton Krenak.
O coronavírus desestruturou o sistema capitalista, provocando sua falência múltipla, impondo a necessidade urgente de reformas e de revisão das políticas neoliberais de redução do Estado, exigindo a sua ampliação para o combate à Pandemia; da quebra da política de corte de gastos públicos, da política da meritocracia e do empreendedorismo como alternativas ao trabalho regulado e justo, da falta de prioridade no combate às desigualdades. As teses neoliberais deram lugar às pautas até então “socialistas”, como renda básica, um Estado forte e atuante, sistema público e universal de saúde, etc.
Diante de uma Pandemia como esta, que coloca em risco a existência da população global, em que os países mais pobres e a população mais pobre serão os mais afetados, enfrentamos, além do inimigo invisível – o coronavirus – têm aqueles bem visíveis, que em nome de sistema econômico opressor pouco se importam com a vida humana. A razão instrumental e racionalidade do capital vão vencer essa guerra? Teremos força e capacidade para reconstruir nossa humanidade e nossa relação com a natureza?
Certamente os povos indígenas e tradicionais podem nos guiar através de sua experiência, não apenas de sobreviver, mas de reconstruir pela natureza a orientação para a vida – “uma nova humanidade”.
REFERÊNCIAS
HARVEY, David. Política anticapitalista no tempo do COVID-19. Disponível em https://radiopeaobrasil.com.br/politica-anticapitalista-no-tempo-do-covid-19/ . Acesso em: 5 maio 2020.
KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Companhia das Letras. São Paulo, 2019.