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IMPACTOS DA COVID-19: contradições e enfrentamentos em defesa da vida da população negra
Margarida Cassia Campos; Angela Ernestina Cardoso Brito
Margarida Cassia Campos; Angela Ernestina Cardoso Brito
IMPACTOS DA COVID-19: contradições e enfrentamentos em defesa da vida da população negra
Revista de Políticas Públicas, vol. 25, núm. 1, pp. 131-149, 2021
Universidade Federal do Maranhão
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Resumo: A presente pesquisa objetiva analisar, de forma inter-relacionada, três condicionantes: as fragilidades da implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), as condições de vulnerabilidade socioeconômica e o racismo estrutural na sua vertente de manifestação institucionalcomo determinantespara a compreensão dos índices de mortalidade pela Covid-19napopulação negra (pretos e pardos) no mês de julhode 2020 (semanas epidemiológicas 27ª a 31ª).Como metodologia, elege-se apesquisa quanti-qualitativa, com discussões interpretativas dos conceitose análise de dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio de 2019 e do Ministério da Saúde (hospitalizados e mortos pela Covid-19).Os dados evidenciam a presença dos efeitos deletérios do racismo durante a pandemia.

Palavras-chave: Racismo estrutural, Covid-19, População negra.

Abstract: This research aims to correlate three conditions: the weaknesses of the implementation of the National Policy for Integral Health of the Black Population (PNSIPN), the conditions of socioeconomic vulnerability and structural racism in its institutional manifestation aspect as determinants for the understanding of mortality rates by Covid-19 in the black population (blacks and browns) in the month of July 2020 (epidemiological weeks 27th to 31st).

As a methodology, quanti-qualitative research is chosen, with interpretive discussions of the concepts and data analysis of the 2019 National Household Sample Survey and the Ministry of Health (hospitalized and killed by Covid-19). The data show the presence of the deleterious effects of racism during the pandemic.

Keywords: Structural racism, Covid-19, Black population.

Carátula del artículo

Artigos - Dossiê Temático

IMPACTOS DA COVID-19: contradições e enfrentamentos em defesa da vida da população negra

Margarida Cassia Campos
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Angela Ernestina Cardoso Brito
Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 25, núm. 1, pp. 131-149, 2021
Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 13 Diciembre 2020

Aprobación: 17 Mayo 2021

1 INTRODUÇÃO

Por que a pandemia da Covid-19 no Brasil impactou de forma diferente e particular alguns grupos da população brasileira? Sabe-se que o racismo estrutural é responsável pela ordenação das desigualdades socioeconômicas no Brasil. Discutir hipóteses para responder à pergunta lançada e à premissa posta exige uma visão do “pensar por dentro” de como o racismo agiu no mês de julho (recorte temporal da pesquisa) de 2020, de forma a dar uma explicação racional para os impactos da pandemia no Brasil. Portanto, o objetivo do presente texto é de analisar, de forma inter-relacionada, três condicionantes: as fragilidades da implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), as condições de vulnerabilidade socioeconômica e o racismo estrutural na sua vertente de manifestação institucionalcomo determinantes para a compreensão dos índices de mortalidade pela Covid-19 na população negra (pretos e pardos) no mês de julho 2020 (semanas epidemiológicas 27ª a 31ª).A pesquisa utilizou-se de metodologia quanti-qualitativa, primeiramente mediante a discussão sobre raça e racismo, de acordo com o pensamento de Gomes (2017) e Almeida (2018), e, em seguida,efetuando uma análise da construção histórica de políticas públicas, tensionadas pelo movimento social negro e direcionadas para combater os efeitos deletérios do racismo, sobretudo apontando as fragilidades e contradições da ainda incipiente implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).Fica evidente, nessa análise, que a conquista de direitos da população negra sempre foicondicionada por uma ofensiva das forças conservadoras e racistas que “implodem” por dentro a total implantação e materialidade dessas conquistas.Para a fundamentação desse ponto, foram eleitos os textos de Gomes (2009), Werneck (2016), Barros et al. (2019) e Santos et al.(2020).

Na última parte, foram utilizados dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios – PNAD (IBGE,2019), com a finalidade de apresentar as diversas vulnerabilidades socioeconômicasàs quais está sujeita a população negra (considerada nesta pesquisa como a soma entre pessoas que se autodeclaram pretas e pardas),como segregação socioespacial, que reserva,aos negros, habitações em bairros com pouca ou quase nenhuma infraestrutura (distribuição de água, presença de rede de esgoto, unidades de serviços de saúde e educação de qualidade, equipamentos de lazer, entre outros aspectos), e altos índices de desemprego ou de subemprego. A situação de total desamparo ainda é agravada pelo racismo estrutural, em sua manifestação institucional, do qual diariamente são vítimas, visto na presente pesquisa como um processo de instalação de lógicas, procedimentos e condutas, como nos apresenta Werneck (2016), que está impregnado na cultural institucional, como, por exemplo, nos serviços de saúde, o que agrava as formas de acesso à prevenção e ao tratamento de doenças, reservando aos negros o acometimento de altos índices de comorbidades.

Tais dados foram inter-relacionados com os números disponibilizados pelo Ministério da Saúde a respeito da evolução1 de casos de hospitalização emortalidade da população brasileira por cor/raça entre as 27ª e 31ª semanas epidemiológicas da pandemia da Covid-19 no Brasil. Este intervalo temporal foi escolhido por constituírem as semanas epidemiológicas que abarcam o mês de julho2, o mais letal para a pandemia da Covid-19 no ano de 2020. Importante ressaltar que não é possível apenas com a análise desse período afirmar que esse mesmo padrão de hospitalizados e mortos se repetiu nas demais semanas. As evidências levantadas na pesquisa apontam para uma combinação cruel entre condições precárias de vida, iniquidades geradas pelo racismo institucional e fragilidades na implantação de políticas públicas de saúde para a população negra, sobretudo a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), fatores que podem ter provocado um maior índice de mortalidade na população negra pela Covid-19 no extrato de tempo analisado pela pesquisa.

2 REFLEXÕES SOBRE RAÇA, RACISMO E POLÍTICAS PÚBLICAS ANTIRRACISTAS DE SAÚDE NO BRASIL

Para fomentar o debate, a presente seção apresenta questões sobre o conceito de raça e racismo e buscou um diálogo com autores que abordam a relevância, presença e/ou ausência e fragilidades de políticas públicas de saúde que consideram a raça e o racismo como constituinte das desigualdades no Brasil. Para Gomes (2017), o conceito raça sempre foi utilizado como forma de classificação social dos sujeitos, remetendo à base biológica direta ou indiretamente. A heteroidentificação por raça pauta-se nos marcadores fisionômicos ou fenotípicos (cabelo, nariz, cor de pele, formato do corpo) com o objetivo primeiro de inferiorizar alguns grupos sociais. Neste sentido, torna-se uma categoria importante de debate das ciências sociais no Brasil a serviço da luta antirracista.

Almeida (2019) ressalta que a concepção de raça tem de ser entendida a partir de um contexto histórico e relacional, uma vez que,ao longo da história, passou por várias modificações. Inicialmente, foi pensada para dar sustentação às atrocidades cometidas pela colonização (meados do século XVI) enquanto projeto de dominação cultural, econômica e política, pautado no poder de uns sobre os outros, com o objetivo de desumanizar aqueles que deveriam ser explorados, escravizados e espoliados. O autor ainda ressalta que a ideia de raça na contemporaneidade foi sistematizada no século XIX, sendo um fenômeno da modernidade e utilizada como forma de classificação de grupos populacionais com um viés essencialmente político, a partir do qual, cada Estado-Nação cria e recria as concepções tanto de raça como de racismo de forma bastante circunstancial e especifica. As primeiras teses que dão sustentação, ao racismo científico, assim denominado décadas mais tarde, são produzidas neste momento histórico, ou seja, no limiar da modernidade, com o intuito de justificar biologicamente a existência de raças inferiores e superiores, o que leva a considerar o conceito raça como categoria no meio científico.

O Brasil produziu avanços nas discussões sobre o uso do conceito de raça, em especial, como destaca Gomes (2017), pela atuação do movimento negro como sujeito pedagógico que trouxe para o debate científico, nos últimos anos, através de seus intelectuais, discussões sobre raça, racismo e desigualdades. A raça passa a ser refletida não do ponto de vista biológico, mas como uma construção social, para ressignificar e recodificar politicamente o conceito. Se a raça é uma invenção social, o que a mantém vivaé o racismo, considerado aqui como um “sistema de dominação e opressão estrutural pautado numa racionalidade que hierarquiza grupos e baseado na crença da superioridade e inferioridade racial [...]” (GOMES, 2017, p.98). Como expressa Almeida (2019, p.32): “O racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminaram em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertencem”.

Nesse sentido, o racismo apresenta-se como um projeto de opressão e dominação que produz subalternidades e privilégios e, conforme já mencionado, ganha espaço como ideologia durante o processo histórico de colonização, mas que hoje pode ser considerado um fenômeno global, fundamental para conceber as múltiplas opressões e iniquidades em uma sociedade capitalista. Esse sistema estruturante deve ser constantemente invocado para entender novos fenômenos sociais, a exemplo dos desdobramentos da pandemia da Covid-19 em alguns grupos populacionais.

Além disso, desde o início da pandemia da Covid-19, foi possível perceber algumas manifestações de discursos eugênicos e de visão darwinista social de que a economia deve prevalecer sobre a vida humana, que os mais fracos iriam mesmo sucumbir para se produzir a tal ‘imunidade de rebanho’. Tais discursos negligenciam a proteção da vida de alguns grupos populacionais, demonstrando que existem pessoas que devem proteger-se da contaminação do vírus e outras “nem tanto”. Desse modo, assistimos grupos populacionais mais empobrecidos, quase sem reação, arriscarem-se em transportespúblicos lotados, para continuarem a exercer empregos de limpeza, cuidados, entrega de medicamentos e comidas, etc., a fim de garantir o que deveria ser um direito de todos – ficarem quarentena, o que, na verdade, se restringiu a uma pequena parcela de brasileiros. Isso ocorreu porque em um país no qual negros constituem a maioria dos sujeitos das classes populares e em que as ideias de raça e racismo são responsáveis pela construção de subjetividades conectadas, de algum modo, às práticas sociais que naturalizam lugares de prestigio e subalternidade, como ressaltam Roldão (2015) e Almeida (2019), a vida das populações racializadas foi, durante a pandemia da Covid-19, mais uma vez desmerecida e negligenciada. Fica, então, evidenciada a presença de uma necropolítica que, para Mbembe (2016), constitui uma forma de soberania que, por meio do poder político, dita quem pode viver e quem pode morrer.

Considerada como um instrumento favorável ao Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em 2006 e pactuada na Comissão Intergestores Tripartite em 2008,foi institucionalizada pelo Ministério da Saúde em 2009, em consonância com o ParticipaSUS. A PNSIPN tem como objetivo central a promoção da saúde da população negra por meio da luta contra a discriminação racial nas instituições e serviços de saúde. O processo de implementação da referida política desenvolveu-se nas gestões de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, e sua formulação considerou aspectos tanto sociais como raciais, permitindoreflexões sobre a inserção da categoria “raça” na formulação de políticas públicas de saúde.

A PNSIPN tem como características o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde, além de incentivar a promoção da saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais e aluta contra o racismo e a discriminação nas instituições e nos serviços do SUS (BRASIL, 2017a, p.25).

No ciclo de promoção da referida política, destacam-se momentos históricos importantes que contribuíram para entrada da questão racial na agenda de saúde do governo federal, entre eles: a Marcha Zumbi dos Palmares, a III Conferência Mundial contra Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas e a criação da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). A Marcha Nacional Zumbi dos Palmares, em 1995, gerou a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), com a publicação, seis anos mais tarde,dos seguintes documentos do Ministério da Saúde: “A Saúde da População Negra, realizações e perspectivas”e “Manual de doenças mais importantes, por razões étnicas, na população brasileira afrodescendente”. Ainda que considerando incipientes tais medidas, essas iniciativas colocaram, na pauta política, a necessidade de enfrentar o racismo nos serviços de saúde.

Cabe ressaltar que, em 2000, foi elaboradoum documento norteador para a participação do Brasil na Organização Pan-americana de Saúde (OPAS),o que demonstra queos princípios sobre uma política pública direcionada para saúde da população negra tiveram seu referencial discutido no processo organizativo para a Conferência de Durban em 2001, um ano antes, durante a Conferência Regional das Américas3.

O impulso definitivo para que atemática racial seja incorporada às ações de promoção da equidade em saúde veio do Plano de Ação da Conferência Regional das Américas Contra o Racismo. No parágrafo111 do referido texto, os governos da região requerem que a OPAS “promova ações para o reconhecimento da raça/grupo étnico/gênero como variável significante em matéria de saúde e que desenvolva projetos específicos para a prevenção, diagnóstico e tratamento de pessoas de ascendência africana.”. Atendendo a essa decisão dos governos, a Divisão de Saúde e Desenvolvimento Humano da OPAS, em Washington, DC, propôs um Plano de Ação para reduzir as iniquidades em saúde que atingem a população afrodescendente. Como desdobramento dessa iniciativa, em dezembro de 2001, foi realizado o Workshop Interagencial Saúde da População Negra, no qual especialistas na temática, a convite das Nações Unidas no Brasil, reuniram-se para propor subsídios para a formulação de uma política nacional de saúde da população negra (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2003).

A reflexão sobre questões da saúde da população negra advém de fóruns internacionais realizados por organismos de Estado e sociedade civil organizada, com interlocução entre documentos firmados em diferentes âmbitos e as reivindicações apresentadas por ativistas dos países americanos , incluindo o Brasil. Logo, trata-se de uma reflexão e agenda de direitos elaboradas a partir das desigualdades raciais e sociais com implicações na população negra,as quais impõem marcas permanentes em suas dimensões de saúde e de prevenção de doenças (BARROS et al., 2019, p.299-317).

Como ressalta Gomes (2009), a SEPPIR foi criada em 2003, a partir das orientações da Conferência de Durban, econstituía uma antiga reivindicação do movimento negro brasileiro,sendo finalmente instituída.Uma de suas primeiras ações foi a criação de espaços de articulação entre Estado e Sociedade Civil por meio do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e do Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial. A Secretaria permitiu ao movimento negro a ocupação de lugares institucionais necessários, bem como o surgimento de novos atores políticos que disputaram o poder e a constituição de novas identidades, por meio de políticas afirmativas e de cidadania.

Importante lembrar quea luta de vários segmentos da sociedade, como, por exemplo, o movimento negro organizado, é para colocar, na pauta governamental, a implementação de políticas públicas que corrijam as disparidades de classe, gênero e raça. Para Munanga (2005/2006) negros (pretos e pardos) e indígenas ocupam as posições mais subalternizadas na sociedade, que se manifestam nos indicadores sociais como:baixa escolaridade, precárias condições de saúde e dificuldades no acesso aos postos de trabalho formais. As desigualdades étnico-raciais resultantes do racismo estruturalestão há muito tempo enraizadas no tecido social, sendo parte significativa dos processos fundantes do inconsciente. Portanto, a luta consiste em modificar esse quadro por meio da problematizaçãoda naturalização de práticas racistas nas instituições e, sobretudo, pela implementação de políticas públicas antirracistas, seja na saúde, educação, trabalho/renda, entre outras.

Assim, grande parte das formulações conceituais sobre diretrizes e estratégias para a atuação em saúde em relação à população negra teve origem fora do sistema de saúde, a partir da atuação dos sujeitos negros organizados, de suas análises, conhecimentos e valores (WERNECK, 2016). As instituições de pesquisa, os órgãos de fomento e as instâncias de gestão do Sistema Único de Saúde permaneceram ausentes na maior parte desse processo e ainda necessitam de atuação mais consistente e capaz de responder adequadamente às demandas largamente expressas. Ciente disso, o movimento negro atua no sentido de pressionar constantemente o reconhecimento do racismo enquanto um fator social e determinantede adoecimento e morte. Nesta luta, houve alguns avanços, como, por exemplo, uma decisão do Ministério da Saúde, em 13 de maio de 2009, que passa a considerar que o racismo impacta diretamente a saúde da população negra, publicando a Portaria nº 992/GM/MS, que institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra em que são reconhecidas as desigualdades étnico-raciais e o racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde de grupos historicamente racializados (BRASIL, 2009).

A Política Nacional de Saúde Integral da Popula­ção Negra (PNSIPN), no intuito de combater o racismo estrutural na sua manifestação institucional, apresentaos seguintes objetivos específicos:1 – aprimorar os sistemas de informação em saúde pela inclusão do quesito cor em todos os instrumentos de coleta de dados adotados pelo Sistema Único de Saúde (SUS); 2 – desenvolver ações para reduzir indicadores de morbimortalidade materna e infantil, doença falciforme, hipertensão arterial, diabetes mellitus, HIV/AIDS, tuberculose, hanseníase, cânceres de colo uterino e de mama, miomas, transtornos mentais na população negra; 3 –garantir e ampliar o acesso da população negra do campo e da floresta e, em particular, das populações quilombolas, às ações e aos serviços de saúde; 4 – garantir o fomento à realização de estudos e pesquisas sobre racismo e saúde da população negra (BRASIL, 2009). A partir da análise desses objetivos é possível perceber que a intenção da PNSIPN, evidentemente articulada com o SUS, busca reduzir as desigualdades ra­ciais, atentar para tratamentos mais específicos aos grupos socialmente vulneráveis, valendo-se de seus instrumentos de gestão e ressaltando as especificidades do processo saúde-doença da população.

Publicado em segunda edição pelo Ministério da Saúde, o texto intitulado Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política do SUS (BRASIL, 2013) busca inserir a interseccionalidade de gênero e raça como elemento importante da saúde da população negra.Já na Introdução, explica a pretensão do Ministério de Saúde em dar uma resposta às desigualdades em saúde que acometem tal população. Trata-se do reconhecimento de que suas condições de vida resultam de injustos processos sociais, culturais e econômicos, que se desenvolveram ao longo da história do Brasil.

Em 2019, o Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN) criou um grupo de trabalho objetivando avaliar os dados gerados pelo Sistema de Monitoramento do Ministério da Saúde, o E-Car. Percebe-se a importância do papel do Comitê Técnico de Saúde da População Negra aolevar essa discussão para dentro do Ministério da Saúde e provocar respostas em relação à devolutiva de acompanhamento da política. Há também o esforço da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa – SGEP em mobilizar as áreas técnicas do MS para articular a melhoria dos mecanismos institucionais de monitoramento e avaliação.

Apesar de tantas conquistas, temos visto, por outro lado, a atuação de forças conservadoras tanto no poder legislativo, no executivo como no judiciário, apoiadas no fundamentalismo conservador e ultraliberal, que interferemtanto na economia, na políticacomo na vida cotidiana, promovendo ataques aos direitos sociais, conquistados,por meio de muita luta dos movimentos sociais, nos últimos 30 anos. Essaofensiva, que é também racista e patriarcal, vem promovendo perseguições à população negra e à indígena, além de também se direcionar às mulheres e às comunidades de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. Os ataques são também dirigidos às políticas públicas que as atendem, por isso, nos últimos anos, o Ministério da Saúde eliminou comitês e fóruns que admitiam representações da área técnica e movimentos sociais que vinham contribuindo com o Ministério da Saúde na implementação de políticas específicas, como no caso da anemia falciforme, sendo eliminada a Câmara de Assessoramento Técnico, composta por representantes dos pacientes, especialistas hematologistas e gestores. Não se pode esquecer a aprovação, em 2016, da Emenda Constitucional 95, quecongelou por vinte anos os recursos para a saúde, considerando-se que o ataque ao Sistema Único de Saúde prejudica, de forma direta, a saúde da população negra.

Diante desse quadro, o grande desafio passa pela garantia da transversalidade das questões étnico-raciais no setor da saúde, bem como o combate ao racismo institucional nas instâncias do SUS, sendo também urgente garantir que a saúde da população negra seja prioridade nas agendas governamentais em âmbito federal, estadual e municipal.

Nota-se, porém, que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, atualmente, passa por um momento delicado, em especial por conta do grupo político que administra o país cujas concepções se mostram equivocadas no modo de conceber essa política dentro do próprio Ministério da Saúde. Cabe ressaltar que a implantação da PNSIPN é de responsabilidade das diversas Secretarias Estaduais e Municipais e dos órgãos do Ministério da Saúde, em conjunto com a coordenação geral da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP/MS). Acredita-se que a inserção das diretrizes da PNSIPN nos planos de trabalho dos agentes que atuam na saúde (médicos, enfermeiros, técnicos e demais profissionais) deveria constar como obrigatória, considerando que profissionais não sensibilizados sobre este tema terão dificuldades de contribuir com a implementação dessa política, uma vez que poderão entendê-la como desnecessária e não proveitosa.

Outro fator importante para a implementaçãoda Política Nacional de Saúde Integral da População Negra é o trabalho conjunto de gestores, movimentos sociais, conselheiros e profissionais do SUS em prol da melhoria das condições de saúde da população negra, compreendendo as vulnerabilidades e o reconhecimento do racismo como determinante social em saúde. Os gestores precisam se apropriar desse conhecimento para que possam, em seus planejamentos, instituir ações que garantam o alcance da equidade nos atendimentos nas unidades de saúde. A PNSIPN terá êxito quando houver compromisso de gestores e técnicos e uma efetiva coordenação do programa.

Infelizmente, “[...] os poucos gestores/gerentes que conheceme assumem o compromisso em implementar a PNSIPN não sabem como fazê-lo [...]” (BATISTA; BARROS, 2017, p.4). De acordo com IBGE (2018), apenas 28% dos municípios brasileiros incluíram ações previstas na Política no planejamento municipal de saúde. Se considerarmos os municípios que adotam a Política com instância específica para coordenar e monitorar as ações de saúde voltadas para a população negra, o índice desce para 3%, o que dificulta a redução das desigualdades objetivada pela PNSIPN.

Para enfrentar os ataques das forças conservadoras, evidentemente de cunho racista e patriarcal, que diariamente promovem o racismo institucional, foinecessária, desde sempre,uma contraofensiva das forças progressistas nominalmente antirracistas. Uma dessas ações nos últimos anos foi o fortalecimento do Grupo de Trabalho (GT) Racismo e Saúde na Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO,criado no 7º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva realizado em 2003 em Brasília, pela ação de pesquisadores, gestores, profissionais de saúde e lideranças de movimentos sociais. Atualmente, o GT atua com o objetivo de inserir assuntos relacionados a racismo, seu impacto na saúde e as formas de enfrentamento, bem como suas interseccionalidades, promovendo e realizando atividades em conjunto com outros grupos de trabalho (REIS, 2020).

Uma das conquistas desse grupo foi o tensionamento do Estado brasileiro para a inclusão do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde, que se tornou obrigatória a partir da publicação da Portaria n.344 do Ministério da Saúde em 2017 (BRASIL, 2017b), de competência das esferas de gestão do SUS, e a publicização de relatórios sistematizados contendo informação desagregada por raça/cor. Pela obrigatoriedade da inclusão desses dados, é possível “medir” o impacto cruel do racismo estrutural na sua vertente institucional na saúde da população negra, inclusive durante a pandemia da Covid-19, porém, como observam Santos et al. (2020), há uma frequência significativa de incompletude (o que serádiscutido na segunda parte deste texto) no quesito raça/cor nas fichas da Covid-19, fato queexplícita a presença do racismo institucional.

Para os que se encontram no Brasil, ao sul da linha abissal, vê-se o avanço do negligenciamento da implantação de políticas públicas de saúde antirracistas, por causa de uma agenda política e econômica neoliberal que, segundo Santos et al. (2020), é impulsionada por uma gestão pública com pautas conservadoras, que negligenciam o atendimento de qualidade nos serviços públicos, ampliando a vulnerabilidade daqueles que são historicamente excluídos.Assim,constata-se a omissão na implantação efetiva das políticas públicas direcionadas aos povos racializados no enfrentamento da pandemia e a insensibilidade diante dos milhares de mortos daqueles cujas vidas são consideradas descartáveis, promovendo, portanto, a necropolítica discutida por Mbembe (2016).

3 VULNERABILIDADE SOCIAL, RACISMO INSTITUCIONAL E IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19 ENTRE A POPULAÇÃO NEGRA

Alguns estudos, tanto no Brasil como nos Estados Unidos (SANTOS et al., 2020; MONNAT; CHENG, 2020; RAMOS; GOES; FERREIRA, 2020), sobre a manifestação da Covid-19 considerando o quesito raça/cor, identificaram uma maior mortalidade entre a população negra (pretos e pardos). Existem explicações plausíveis que possibilitem compreender o porquê da ocorrência desse fenômeno? Por que negros compõem o grupo racial com maior índice de mortalidade4 na pandemia da Covid-19? A presente seção apresenta dados estatísticos e discussões que vão no sentido de enunciar alguns apontamentos para a referida problemática.

Para responder ao questionamento, primeiramente será discutida a segregação socioespacial à qual os negros estão sujeitos, por constituírem a maior parcela da população pobre do Brasil, segundo o IBGE (2019), e sofrerem os impactos na saúde por morarem em zonas periféricas das cidades; em segundo lugar, problematiza-se a forma como o racismo institucional, conjugado com a segregação socioespacial, produz iniquidades acumuladas por gerações, herança social de persistente desassistência, que inclui a população negra como os indivíduos mais propensos a desenvolver algumas comorbidades (diabetes, problemas cardíacos, hipertensão, entre outras), atualmente apontadas pela comunidade médica como agravantes da Covid-19, que objetivamente desnuda e escancara o racismo à brasileira.

Sendo o modo de produção capitalista responsável pela produção do espaço geográfico, como diz Harvey (2005), de forma contraditória, desigual e segregada, o que implica a formação de espaços duais, nitidamente separados na arquitetura urbana, ou seja, os que dispõem de mais recursos ocupam as zonas “nobres” da cidade com uma excelente infraestrutura (lugares amplos, arborizados, silenciosos, com opções variadas de lazer) e garantia de melhor qualidade de vida. Por outro lado, para as classes populares (grupos sociais historicamente negligenciados) resta habitar as “franjas” da cidade, geralmente bairros localizados em área de topografia acidentada, sujeitas a catástrofes naturais, longe dos eixos de ligação com o centro e com pouca ou quase nenhum infraestrutura, o que acarretará condições adversas para o pleno atendimento à saúde, em especial no que diz respeito à saúde preventiva.

Neste sentido, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, os negros (pretos e pardos) compunham 75% entre os 10% com os menores rendimentos per capita no Brasil; por outro lado, os brancos representavam 70% entre os 10% com maior rendimento per capita. Sabe-se que uma das privações da pobreza é a falta de alimentação minimamente adequada e, neste caso, os negros estão mais propensos a sofrer com insegurança alimentar, fator fundamental para diminuir a imunidade do corpo e torná-lo mais vulnerável a doenças (ação de bactérias, protozoários e vírus), inclusive pesquisas recentes demonstram que baixa imunidade pode constituir um dos fatores de agravamento da Covid-19.

Em relação ao acesso ao mercado de trabalho, condição sine qua non para ter uma boa qualidade de vida, os negros aparecem com um percentual de 65,1% entre os profissionais subutilizados e 64,2% dos desocupados do total da força de trabalho no Brasil no ano de 2018 (IBGE, 2019). Tais dados demonstram que, sendo os negros os mais pobres, as possibilidades de ingressar no mercado de trabalho formal são mais restritas, somando-se a esses fatos, os processos de estigmas, estereótipos e preconceitos presentes no momento de contratação, que nega o emprego aos indivíduos que residem em zona geograficamente segregada da cidade5.

Ainda segundo o IBGE (2019, p. 5) a população preta ou parda que habita as zonas geográficas segregadas figura entre as que menos têm acesso aos bens públicos, fundamentais para a garantia mínima de boas condições de saúde, como, por exemplo, exposta a residências sem tratamento de esgoto, fator amplamente discutido como causador de várias doenças:

Em 2018, verificou-se maior proporção da população preta ou parda residindo em domicílios sem coleta de lixo (12,5%, contra 6,0% da população branca), sem abastecimento de agua por rede geral (17,9%, contra 11,5% da população branca), e sem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial (42,8%, contra 26,5% da população branca).

Outro aspecto importante são recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) para o combate à Covid-19, que indica a necessidade de lavar as mãos com água limpa e sabão de forma recorrente. A população negra figura entre os residentes da maioria de lares sem distribuição de água, estando mais exposta à contaminação da Covid-19.

Por constituírem o grupo social majoritário em situação de vulnerabilidade, a população negra não consegue cumprir o isolamento social (medida apontada como a mais assertiva para a proteção contra o coronavirus). Assim, desde meados de março de 2020, estamos vendo grupos populacionais mais empobrecidos economicamente serem obrigados a se arriscar em transportes públicos lotados, para exercer serviços de limpeza, cuidados (esses dois realizados em sua maioria por mulheres), entrega de medicamentos e comidas, etc., de modo a garantir às classes médias e à elite o que deveria ser um direito de todos: ficar em casa em quarentena, morar e alimentar-se dignamente. Sendo assim, a quarentena e a possibilidade de isolamento social ficaram restritos a uma diminuta parcela de brasileiros/as, sujeitos que têm cor/raça, sexo/gênero, endereço e outros tantos demarcadores na pirâmide social.

As desigualdades sociais, evidentemente combinadas com as raciais, colocam alguns grupos populacionais em situação de mais precariedade na saúde tanto no adoecimento como na ocorrência de morte. Ainda segundo Santos et al. (2020), o impacto na saúde é distinto conforme o lugar que cada indivíduo ocupa na estrutura social. Ou seja:

Grande parte das causas de doenças e desigualdades em saúde derivam, principalmente, de fatores como: condições em que a pessoa nasce; trajetórias familiares e individuais; desigualdades de raça, etnia, sexo e idade; local e condições de vida e moradia; condições de trabalho, emprego e renda; acesso à informação e aos bens e serviços potencialmente disponíveis. (BRASIL, 2011, p.5).

Outro fator fundamental para se somar ao presente diálogo é perceber os impactos das políticas públicas neoliberais em tempos de pandemia em um país onde, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2018), 80% dos atendidos pelo Sistema Único (SUS) são negros. Porém, nos últimos anos, os princípios de integralidade, universalidade e equidade propostos pelo SUS estão sob o ataque das reformas neoliberais.

Esse histórico de desassistência de saúde, provocado pela reprodução das condições de vida em espaços segregados, gera condições adversas para a saúde e, consequentemente, acarreta uma maior incidência de doenças típicas da exclusão social, econômica, política e cultural, conforme explicitado nos estudos de Batista et al. (2005), Lopes (2005), Brasil (2011), Williams e Priest (2015) e Wade (2017). Tais estudos mostram que, quando analisada a variável cor/raça nos protocolos de atendimento, a população negra apresenta um maior desenvolvimento precoce de enfermidades, índices altos de comorbidades e elevados de mortalidade; entre as doenças típicas de maior incidência, figuram: hipertensão arterial, diabetes, anemia foiciforme, doenças cardíacas, ou seja, doenças desenvolvidas por uma combinação cruel de desigualdade social e racial. Neste sentido, a publicação Racismo como determinante social de saúde (BRASIL, 2011, p.5), mostra que, embora as taxas de mortalidade da população geral tenham melhorado nas últimas décadas no Brasil, a população negra ainda “apresenta altas taxas de morbi-mortalidade em todas as faixas etárias, quando comparadas com a população geral”. Segundo Williams e Priest (2015), o papel do racismo como determinante dos padrões de desigualdades étnico-raciais em saúde vem sendo reconhecido mundialmente, em especial a partir de 1990, por meio de uma série de publicação de estudos sobre o tema. Com base em tais pesquisas, a Organização Mundial de Saúde recentemente concebeu o racismo como fator determinante social de adoecimento e morte.

A negação, em vários países, da recolha de dados étnico-raciais nos protocolos de atendimento de saúde, dificulta uma análise abrangente da relação entre doença/morte/racismo em todo o mundo6. Diante de tais premissas o gráfico da Figura 1 demonstra a evolução dos números de hospitalizados no mês mais letal (junho de 2020) no que se refere à quantidade de mortes no país devido a complicações da Covid-19. Logo, observa-se o número de ignorados ou sem informação, o que de pronto já indica o não cumprimento da Portaria Nº 344 do Ministério da Saúde (BRASIL, 2017b), que obriga a notificação de informação com desagregação de cor/raça nos atendimentos de saúde. Portanto, três anos depois de ser implementada tal lei, a pandemia escancara o racismo presente na sociedade brasileira, pois mais de 1/3 dos hospitalizados não tiveram sua cor/raça informada nos portuários de saúde, tendo uma pequena variação, por semana epidemiológica: 27ª (34,69%), 28ª (34,33%), 29ª (33,92%), 30ª (33,50%) e 31ª (36,47%). A ausência do registro da cor/raça7 nos prontuários já foi maior nos meses anteriores, pois, segundo a pesquisa de Santos et al. (2020), na semana epidemiológica 21ª da pandemia, os dados ignorados/não informados de cor/raça dos hospitalizados registram 51,3%, ou seja, mais da metade do total de todos os contaminados.


Figura 1
Covid-19 – Evolução dos hospitalizados segundo classificação cor/raça – Brasil por semana epidemiológica (28 de junho a 1º de agosto)
Brasil (2020)

No gráfico da Figura 2, registram-se a evolução e os óbitos segundo a classificação cor/raça por semana epidemiológica. O problema da falta de registro da cor/raça apresenta-se muito próximo das porcentagens encontradas no gráfico da Figura 1. Os dados de ignorados/sem informação apresentam a seguinte porcentagem/semana: semana 27ª (33,43%), semana 28ª (33,08%), semana 29ª (32,46%), semana 30ª (31,99%) e semana 31ª (30,28%) do total de óbitos registrados.


Figura 2
Covid-19 – Evolução dos Óbitos segundo classificação cor/raça – Brasil por semana epidemiológica (28 de junho a 1º de agosto)
Brasil (2020).

O gráfico da Figura 2 evidencia que, para os negros, a Covid-19 é mais letal do que para os classificados como brancos, enquanto a porcentagem média entre a vigésima sétima e a trigésima primeira semana epidemiológica, a diferença entre os hospitalizados brancos e negros ficou em torno de 6%, para os que evoluíram para o óbito, sendo que a diferença entre os dois grupos girou em torno de 13%, como demonstra o Quadro 1. Além disso, a porcentagem de mortes entre negros é sempre superior no que se refere aos negros hospitalizados, portanto isso evidencia que os negros têm uma maior taxa de mortalidade da Covid-19 do que as pessoas brancas.

Quadro 1 – Porcentagem do total de H (hospitalizados) e O (óbitos) entre brancos e negros – Brasil, por semana epidemiológica (28 de junho a 1º de agosto)

Quadro 1
Porcentagem do total de H (hospitalizados) e O (óbitos) entre brancos e negros – Brasil, por semana epidemiológica (28 de junho a 1º de agosto)

Brasil (2020).

E quais são as possíveis respostas para tal fenômeno? Isso ocorre porque negros biologicamente são mais propensos a morrerem por contaminação de um vírus? Ou possuem mais disposição a apresentar comorbidades que podem agravar a evolução da Covid-19 como discutido nesta secção, tanto em razão de sua condição socioeconômica e das negligências em atendimentos médicos ao longo da sua história de vida devido aos efeitos deletérios do racismo estrutural, mais especificamente na sua vertente institucional que naturaliza as iniquidades?

Pesquisa realizada pelo Observatório Covid com a Prefeitura de São Paulo (REIS, 2020) já mostra que até 17 de abril (dados registrados no primeiro mês da doença no Brasil), na Cidade de São Paulo, epicentro da doença no país, o risco de uma pessoa negra morrer da Covid-19 era de 62% maior que de uma pessoa branca. Consideramos que a vigilância dos casos e óbitos pela Covid-19 deve ser regulada por dados no quesito raça/cor, dados que têm sido negligenciados em alguns formulários e sistemas de informação em saúde. Para além de estar mais suscetível ao desenvolvimento de doenças devido à segregação socioespacial, a população negra é vítima de outro processo de opressão, o racismo institucional, que agrava suas condições sociais, inclusive de saúde. Segundo Werneck (2016), os profissionais da saúde constituem indivíduos de uma sociedade racista, portanto, reproduzem ideias e concepções traduzidas em visões preconceituosas e estereotipadas, e tais comportamentos se materializam nas lógicas, processos, atitudes, procedimentos, condutas no momento do atendimento ao enfermo, fato imperioso para a produção do racismo institucional, extremamente sutil e invisível.

Tendo em vista que o racismo define os que devem ser tratados com dignidade e humanidade e os que não têm esse direito, Kalckmann et al. (2007) apresentam o racismo como um fator que minimiza as possibilidades de diálogo das pessoas negras com os serviços de saúde, além de interferir na autoestima. A pesquisa sistematizou as concepções de mais de 200 pessoas que relataram múltiplas formas de discriminação racial sofridas pelos entrevistados por ocasião do acesso aos serviços de atendimento nas unidades de saúde nas atitudes de vários profissionais (médicos, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, auxiliar de enfermagem e outros). O racismo institucional presente nos processos de atendimento de saúde no Brasil aumenta a vulnerabilidade das pessoas negras, ampliando as barreiras de acesso a esse bem tão precioso para a garantia da vida.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto de pandemia, parece que a luta mais urgente para a população negra seria o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, paralelamente considera-se que a descontinuidade ou interrupção da PNSIPN implica o agravamento das taxas de mortalidade e morbidade relacionadas a raça/cor. “Os poucos gestores/gerentes que conhecem e assumem o compromisso em implementar a PNSIPN, muitas vezes, não sabem como fazê-lo [...]” (BATISTA; BARROS, 2017, p.4) ou as forças conservadoras, nominalmente racistas, muito presentes nas instituições, minam a política nacional de saúde da população negra por dentro. O fato é que, mesmo com a conquista de direitos, sobretudo pelo tensionamento histórico do movimento social negro, hoje materializado em políticas públicas, o racismo estrutural, na sua manifestação institucional, coloca-se como um campo de ofensiva extremamente forte, onde uma das suas múltiplas características é negligenciar o cuidado e a proteção de pessoas consideradas historicamente como não humanos.

Os dados apresentados no presente texto evidenciam essa problemática ao demonstrar que são os negros os mais acometidos por problemas graves de saúde, os que mais morreram da Covid-19 no período estudado. Além disso, o não registro no protocolo de hospitalizados e mortos de cor/raça também parece configurar uma resistência das forças conservadoras em não cumprir com essa determinação conquistada a duras penas pelo movimento negro, e os ataques constantes ao Sistema Único de Saúde seguem o mesmo caminho de produção e reprodução de iniquidades contra um grupo social especifico da população brasileira. Portanto as conquistas que geraram a ampliação dos direitos, em especial a partir dos anos 2000, convivem constantemente com ataques impulsionados pelos efeitos deletérios do racismo. Como resistência e combate a essa ofensiva, as forças antirracistas são extremamente atuantes no sentido de cobrar, denunciar e forjar o cumprimento de políticas públicas de reversão da manutenção das vulnerabilidades de sujeitos e grupos sociais vitimados pelo racismo.

Os dados apresentados pelo IBGE (2019) sobre as condições socioeconômicas da população brasileira mostram que, quanto ao perfil social majoritário da população brasileira, pretos e pardos são os mais acometidos por privações sociais, econômicas, educacionais, de saneamento, de moradia, de emprego e renda, essas condicionalidades se inter-relacionam no cenário de crise sanitária, evidenciado no caso da pandemia da Covid-19.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
1 Como são dados de evolução de casos, cada semana epidemiológica analisada (27ª, 28ª, 29ª, 30ª e 31ª) apresenta a soma de todas as outras semanas e não dados específicos de cada semana.
2 Segundo convenção internacional, todos os dados de ocorrências relativas à saúde da população de um país devem ser registrados em um calendário epidemiológico anual, dividido por semana epidemiológica contada de domingo a sábado, sendo que a primeira semana do ano é aquela que contém o maior número de dias de janeiro e a última a que contém o maior número de dias de dezembro. Em 2020, a primeira semana epidemiológica foi de 29/12/19 a 04/01/20. As semanas utilizadas na pesquisa tiveram o seguinte intervalo 27ª (28/06-04/07), 28ª (05/07- 11/07) 29º (12/07-18/07) 30ª (19/07-25/07) e 31ª (26/07-01/08).
3 A Conferência Regional das Américas (preparatória para a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata) aconteceu em Santiago no Chile entre os dias 5 e 7 de dezembro de 2000.
4 Importante ressaltar que essa afirmação parte da análise dos dados do mês mais letal da pandemia no Brasil, que foi julho de 2020, nas semanas epidemiológicas 27ª, 28ª, 29ª, 30ª e 31ª. Mas outras pesquisas citadas no presente texto indicam o mesmo fenômeno para outros meses, em especial após meados de maio, quando a pandemia já estava presente em todos os Estados do território nacional.
5 Essa situação de total vulnerabilidade pode acarretar “gatilhos” de estresses psicológicos com impacto negativo para a saúde. A pesquisa de Williams e Priest (2015) demonstra que alguns fatores combinados – segregação geográfica, alijamento do mercado de trabalho e produção de fatores estressantes – podem levar a maiores taxas de mortalidades as populações expostas a tais vetore
6 No Brasil, segundo Werneck (2016), essa discussão aparece como resultado do trabalho conjunto de especialistas reunidos pelas Nações Unidas no Brasil em dezembro de 2001 que gerou o documento “Subsídios para o debate sobre a Política Nacional de Saúde da População Negra: uma ques­tão de equidade”, apontando o racismo e a discriminação racial como componentes associados à morte precoce de negros, tal reconhecimento foi fundamental para uma mobilização social e tensionamento junto ao poder público e para a criação de políticas que problematizassem esse problema no Sistema Único de Saúde o que gerou anos mais tarde, em 2006, o Plano Nacional de Saúde Integral da População Negra.
7 Mesmo com a inclusão do quesito cor/raça nas diferentes fichas de notificação da Covid-19, a frequência de incompletude permanece quase o dobro do que está registrado. Notam-se a invisibilidade dessa temática e a dificuldade de mensurar o alcance da pandemia no Brasil na perspectiva da equidade, ao mesmo tempo em que se confirmam a baixa aderência e o interesse em utilizar as informações, demonstrando as artimanhas do racismo em sua multidimensionalidade durante a pandemia da Covid-19.

Figura 1
Covid-19 – Evolução dos hospitalizados segundo classificação cor/raça – Brasil por semana epidemiológica (28 de junho a 1º de agosto)
Brasil (2020)

Figura 2
Covid-19 – Evolução dos Óbitos segundo classificação cor/raça – Brasil por semana epidemiológica (28 de junho a 1º de agosto)
Brasil (2020).
Quadro 1
Porcentagem do total de H (hospitalizados) e O (óbitos) entre brancos e negros – Brasil, por semana epidemiológica (28 de junho a 1º de agosto)

Brasil (2020).
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