Resumo: O artigo objetiva problematizar a perspectiva do desenvolvimento humano cujo risco de regressão é apontado como uma consequência do período pandêmico deflagrado com a COVID-19. Por meio de um levantamento exploratório baseado em fontes documentais apresenta indicadores sociais que demonstram os desafios do desenvolvimento humano ao longo das últimas décadas, particularmente no Brasil. Reforça quea reflexão orientada pela teoria social crítica marxiana e marxista aponta que os desafios para sustentar as conquistas do desenvolvimento humano para todos não podem ser atribuídos exclusivamente ao coronavírus SARS-Cov-2, porque antes mesmo da crise sanitária, os lentos, mas importantes avanços conquistados já se mostravam insustentáveis na ordem social capitalista, cuja superação é condição para um real e sustentável desenvolvimento da humanidade, na perspectiva da emancipação humana.
Palavras-chave: Desenvolvimento humano, Emancipação humana, Pandemia.
Abstract: The article aims to problematize the perspective of human development whose risk of regression is pointed out as a consequence of the pandemic period triggered by COVID-19. Through an exploratory survey based on documentary sources, it presents social indicators that demonstrate the challenges of human development over the last decades, particularly in Brazil. It reinforces that the reflection guided by the Marxian and Marxist critical social theory points out that the challenges to sustain the achievements of human development for all cannot be attributed exclusively to the SARS-Cov-2 coronavirus, because even before the health crisis, the slow but important advances already achieved proved unsustainable in the capitalist social order, whose overcoming is a condition for a real and sustainable development of humanity, in the perspective of human emancipation.
Keywords: Human development, Human emancipation, Pandemic.
Artigos - Dossiê Temático
O REGRESSO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO: um sintoma da pandemia de Covid-19?
Recepción: 21 Noviembre 2020
Aprobación: 20 Mayo 2021
“[...] O pulso ainda pulsa E o corpo ainda é pouco
Ainda pulsa Ainda é pouco”
(Arnaldo Antunes)
O mundo foi surpreendido em 2020 por uma crise sanitária provocada pelo novo coronavírus SARS-Cov-2, cuja rápida circulação assumiu caráter de pandemia1 com o avanço da doença por ele provocada, a COVID-19, infectando até o momento da escrita deste texto, 54.301.156 milhões de pessoas e provocando 1.316.994 milhão de óbitos2 no mundo. Além dos sintomas físicos que afetam o corpo humano, a insuficiência respiratória é o mais grave deles; a COVID-19 provoca efeitos dramáticos no corpo social, no ser social do homem, atingindo o trabalho e as demais esferas da sociabilidade humana.
A Organização das Nações Unidas (ONU), através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento(PNUD), traduz esses sintomas no alerta sobre a regressão do desenvolvimento humano, a ocorrer pela primeira vez na história mundial desde que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi criado como medida para avaliar os indicadores básicos que configuram uma humanidade desenvolvida: educação, renda e expectativa de vida3. Tanto em países ricos quanto em países pobres, queda nos níveis educacionais, de renda e de saúde já está sendo observada, decorrente do adoecimento, das mortes e das medidas de enfrentamento da COVID-19 que exigem o isolamento social.
Diante desse cenário, o artigo objetiva problematizar a perspectiva de desenvolvimento humano antes e durante o período pandêmico, particularmente no Brasil. Para tanto, recorro às avaliações do desenvolvimento humano elaboradas e divulgadas pelo PNUD (2003; 2010; 2015; 2019), às fontes documentais que realizam sínteses de indicadores sociais no Brasil, a exemplo do IBGE (2018;2020) e IPEA (2019a; 2019b), bem como às fontes jornalísticas que divulgam tais diagnósticos/prognósticos, de modo a oferecer um conjunto de elementos que nos permita demonstrar que as dificuldades em cumprir as condições básicas elimitadas de desenvolvimento humano já eram previsíveis antes da chegada do vírus SARS-COV-2. A pandemia aprofunda uma situação de calamidade social já existente, que há muito tempo se fazia insustentável e que diferente do vírus – um ser invisível a olho nu – tem origem conhecida e estava aí para ser observada, ao menos por aqueles não atingidos pela “cegueira” conivente4 com os interesses capitalistas, afinal, a desigualdade social vem sendo produzida ao longo da história desse sistema e a sua superação é a condição para um real e sustentável desenvolvimento da humanidade.
Para desenvolver tais argumentos, dividirei a exposição em três seções, incluindo essa introdução. No item 2, “Desenvolvimento humano: regressão e superação para além da pandemia”,desenvolvo uma reflexãobaseadanos balanços avaliativos do desenvolvimento humano nos últimos 30 anos, inclusive no Brasil, parademonstrar, à luz da teoria social crítica marxiana e marxista, que o desenvolvimento humano que o capitalismo tem a oferecer é limitado e contraditório com um modelo de sociedade que impõe condições desumanas e reificadas para progredir na acumulação de riqueza em forma de coisas, sendo portanto, incompatível comum crescente processo de humanização, tendo no horizonte uma real emancipação humana nos termos marxianos. Nas considerações finais aponto que o vírus desnuda as mazelas do capital e confirma o difícil desenvolvimento humano nesta ordem social. Obviamente que não faltarão ideologias para culpabilizar o SARS-COV-2, naturalizar o que foi produzido socialmente, historicamente., mas o desenvolvimento humano proposto e tão difícil de se concretizar “ainda é pouco” e nos exige recriar nossa sociabilidade que apesar de tudo “ainda pulsa” e ainda espera por um horizonte mais rico para a humanidade.
A noção de desenvolvimento humano surgiu nos anos 1990 como uma novidade em relação ao debate que era feito sobre o desenvolvimento, baseado no crescimento econômico de um país, medido pelo Produto Interno Bruto (PIB), hegemonizado pela ideologia desenvolvimentista, especialmente nos países periféricos e sobreo qual foram feitas duras críticas, seja pelos defensores de uma ideologia neoliberal de refuncionalização do Estado, seja pelos pensadores marxistas que revelavam o caráter dependente, desigual e combinado do desenvolvimento latino-americano (FERNANDES,2006; OLIVEIRA 2003; CASTELO,2013).A ONU, através do PNUD, acrescentou a esse debate a repercussão que o desenvolvimento promove no modo de viver das pessoas, o que implicaria considerar não somente variáveis econômicas de crescimento da riqueza, como a renda, mas também as conquistas sociais , a exemplo da educação e saúde que alargam as “oportunidades” de um progressivo desenvolvimento, resultando na apresentação de um novo indicador, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Desde 1990 o IDH é calculado e publicizado anualmente através dos Relatórios de Desenvolvimento Humano (RDHs), de modo que em 2010, no balanço de vinte anos da aplicação desse novo conceito de desenvolvimento, foi feita a seguinte análise:
O novo IDH tinha as suas imperfeições, como os próprios autores do Relatório reconheceram de imediato, incluindo o facto de se basear em médias nacionais, o que ocultava as assimetrias de distribuição, e a ausência de uma ‘medida quantitativa de liberdade humana’. Contudo, adiantava com sucesso a tese central do Relatório, expressa sucintamente na sua primeira frase: ‘As pessoas são a verdadeira riqueza de uma nação’.
Vinte anos depois, o brilho conceptual e a continuada relevância desse paradigma original do desenvolvimento humano são indiscutíveis. É agora quase universalmente aceite que o sucesso de um país ou o bem-estar de um indivíduo não podem ser avaliados somente pelo dinheiro. O rendimento é, obviamente, crucial: sem recursos, qualquer progresso é difícil. Contudo, devemos também avaliar se as pessoas conseguem ter vidas longas e saudáveis, se têm oportunidades para receber educação e se são livres de utilizarem os seus conhecimentos e talentos para moldarem os seus próprios destinos. (CLARK,H. Prefácio, apud PNUD,2010, p.5).
A nova abordagem se fez presente nos debates internacionais e nacionais, nas proposições/formulações de políticas públicas de desenvolvimento entre órgãos do Estado, centros de pesquisa e estudo que se utilizaram e continuam a utilizar os dados, diagnósticos e prognósticos apresentados pelos RDHs para avaliar os desafios das nações na direção do progresso para a humanidade.
O fato é que situações de crise no desenvolvimento humano já foram vivenciadas pelo mundo, e os anos 1990 têm bastante responsabilidade nisso, tanto que foi denominada “uma década de desespero” pelo PNUD, quando os avanços eram lentos e o que se verificava era uma piora nos níveis de desenvolvimento apresentados entre o início e o final da década, como atestou o Relatório de Desenvolvimento Humano em 2003:
[...] o desenvolvimento humano está a avançar demasiado devagar. Para muitos países, os anos de 1990 foram uma década de desespero. Há 54 países que estão atualmente mais pobres do que em 1990. Em 21, há uma maior percentagem de pessoas com fome. Em 14, há mais crianças a morrer antes dos cinco anos. Em 12, a escolarização primária está a diminuir. Em 34, a esperança de vida diminuiu. Antes, estas reversões da sobrevivência eram raras. (PNUD, 2003, p. 2).
Quando já havia condições de avaliar vinte anos do IDH e fazer um comparativo do desenvolvimento humano entre os anos de 1970 a 2010, ou seja, numa série de quarenta anos, o relatório (PNUD, 2010, p.3) constatava que: “Em alguns aspectos básicos, o mundo é um lugar muito melhor hoje do que era em 1990 – ou em 1970 [...], porque houve uma melhora de 41% na média mundial do IDH em relação a 1970 e uma melhora em 18% se o comparativo fosse com 1990”. O balanço era otimista, apesar da reconhecida variabilidade de ritmos, desigualdades5 e vulnerabilidades à reversão das conquistas alcançadas6, cujos determinantes foram identificados como relacionados aos aspectos geográficos, à gestão política e econômica nacionais.
Ademais, o debate do desenvolvimento humano sistematizado e problematizado pelos RDHs não se limitou a tratar das variáveis contempladas pelo IDH, assumindo uma perspectiva mais ampliada, de forma a captar as dimensões do modo de viver das pessoas que expressam diferentes “capacidades”, a exemplo das liberdades políticas, dos direitos humanos, igualdade de gênero, sustentabilidade ambiental, que podem propiciar ou, em situação de privação, dificultar, a ampliação da liberdade humana, o “alargamento das opções das pessoas”. Senão vejamos nos termos colocados pelo economista Amartya Sen (apud PNUD,2010,p.6-7):
Na prática, os novos desafios que enfrentamos também se intensificaram – por exemplo, os que rodeiam a conservação do nosso ambiente e a sustentabilidade do nosso bem-estar. A abordagem do desenvolvimento humano é suficientemente flexível para ter em conta as perspectivas futuras da vida humana no planeta, incluindo as perspectivas das características do mundo que valorizamos, estejam elas relacionadas com a nossa prosperidade ou não (por exemplo, podemos estar empenhados na sobrevivência de espécies animais ameaçadas de uma forma que transcenda o nosso próprio bem-estar). Seria um grande erro amontoar cada vez mais considerações num só número como o IDH, mas a abordagem do desenvolvimento humano é suficientemente sofisticada para incluir novas preocupações e considerações de perspectivas futuras (incluindo previsões de níveis futuros do IDH) sem tentativas confusas de injectar mais e mais numa só medida agregada.
A questão da liberdade, do envolvimento das pessoas, das liberdades políticas foi posta como um desafio ao desenvolvimento humano, não garantido, não mensurável até o momento e não correlacionável ao IDH, posto que o relatório constatava que nem todo país de IDH alto era democrático, equitativo e sustentável,e, do contrário, algumas dessas capacidades eram presentes em países de IDH baixo:
Os processos democráticos locais estão a ser aprofundados. As disputas políticas conduziram a mudanças substanciais em muitos países, expandindo grandemente a representação de pessoas tradicionalmente marginalizadas, incluindo as mulheres, os pobres, os grupos indígenas, os refugiados e as minorias sexuais. (PNUD,2010, p.7).
De um modo geral, em 2010, o balanço era de que o IDH revelou ganhos significativos, principalmente entre países pobres que avançaram nas conquistas educacionais e de saúde, embora com avanços menores no quesito renda. Ao mesmo tempo, apresentava a constatação de que ganhos no crescimento econômico de determinados países não reverteram necessariamente em melhoramentos educacionais e de saúde, sinalizando problemas na gestão pública das políticas sociais e na concentração de riqueza e desigualdades sociais em muitas das nações avaliadas.
Todavia, a década que se inicia em 2020 arrebata o desenvolvimento humano com umatragédia avassaladora, ao colocar por terra os limitados e desiguais avanços lentamente conquistados durante mais de trinta anos, porque se antes um ou outro indicador (saúde, renda, educação) podia apontar algum tipo de progresso, dessa vez nenhuma destas dimensões estaria imune à pandemia da COVID-19:
O mundo viu muitas crises em 30 anos, incluindo a financeira de 2008. Todas atingiram fortemente o desenvolvimento humano, mas, em geral, em nível global se conseguiu avançar em cada ano’, explicou Achim Steiner, administrador do PNUD, em uma conversa virtual com jornalistas. Mas a que o planeta vive agora por causa do vírus Sars-cov2 ‘é diferente’, aponta Heriberto Tapia, pesquisador da organização, em uma conversa telefônica posterior. A crise é diferente porque a pandemia de covid-19 impacta em cheio e de forma simultânea todos os elementos da existência com os quais o desenvolvimento humano é medido: a saúde, a educação e a renda das pessoas. Isso não apenas fará com que o mundo retroceda, mas também o fará de uma forma ‘significativa, equivalente às variações de seis anos de progresso’, especifica.(AGUDO, 2020, s/p).
A quarentena impôs o fechamento de escolas e a consequente redução do acesso de crianças e jovens aos estudos, cuja continuidade vem sendo mantida com sérias limitações por meio remoto. O PNUD (TAPIA apud AGUDO, 2020) calcula que 60% das crianças do ensino fundamental estão sem acesso a meios tecnológicos para continuar estudando, tanto que “No fim do ano, a taxa efetiva de crianças fora da escola será a que o mundo tinha nos anos oitenta”. Nos países de baixo desenvolvimento humano são 86% das crianças sem acesso escolar, enquanto nos países de alto desenvolvimento esse número alcança 20%, um número desigual que reflete a desigual condição socioeconômica dos países, já que o vírus não está mirando regiões em detrimento de outras. O vírus é universal e a desigualdade também é.
A restrição das atividades econômicas aos serviços essenciais e a projeção de queda do PIB mundial7 aumenta o cortejo de desempregados e trabalhadores informais que precisam de auxílios emergenciais; a previsão do PNUD (AGUDO, 2020) é de que mais de 60 milhões de pessoas atravessarão a linha da pobreza extrema no ano de 2020, somando-se aos mais de setecentos milhões de pobres que já vinham sobrevivendo com (1,90 dólar) por dia.
O mais recente RDH (PNUD, 2019), intitulado “Além da renda, além das médias, além do hoje: desigualdades no desenvolvimento humano no século 21” publicado em dezembro de 2019, portanto, antes do evento pandêmico, já advertia para uma preocupação que deveria estar no centro das atenções dos gestores e organismos internacionais : a constatação da existência de uma “nova geração de desigualdades” no desenvolvimento humano, causada pelo desigual acesso à ciência, inovação e tecnologia e pelas vulnerabilidades às mudanças climáticas, todas elas consideradas “desigualdades emergentes”. A desigualdade seria então o limite dos avanços conquistados pelo desenvolvimento humano, indicador que precisaria ser considerado “para além das médias” como consta no título do respectivo documento8.
Não faz tanto tempo, um estudo da Oxfam9, veiculado em diversas mídias, anunciou que no ano de 2017, o mundo conseguiu concentrar 82% da sua riqueza nas mãos de sete milhões de pessoas, estimadas em 1% da população mundial, os chamados super-ricos. Os 99% da população precisou garantir o desenvolvimento humano com o que resta da riqueza assim desigualmente distribuída. Esse cenário já era previsto pela própria ONU quando o PNUD (2015) anunciava em seu relatório que, até o ano de 2016, cinquenta por cento da riqueza mundial estariam nas mãos dessa pequenina parcela da população. Fica evidente que as projeções não foram suficientes para dar conta da constante e cada vez mais crescente desigualdade social e o cenário foi pior do que se esperava, inclusive no Brasil.
Para o Brasil, o RDH (PNUD, 2019) revelou que apesar da queda na classificação do IDH, saindo da 78ª posição para 79ª na lista dos 189 países avaliados10, o país manteve seu índice de alto desenvolvimento humano (0,761)11, embora esse desenvolvimento seja bastante desigual na realidade do pais: os dados de 2015 indicavam que os 55% do total da renda do país (todas as formas de renda) estavam concentradas nas mãos de 10% da população, os considerados mais ricos (PNUD,2019, p.107).
Ainda nesse mesmo documento, o PNUD (2019) apresentava preocupação com a pobreza multidimensional. No Brasil, com dados da PNAD anual de 2015, o relatório estimou que 3,8% (7, 7 milhões de pessoas) experenciavam a pobreza multidimensional (IPM do Brasil é de 0,016), ou seja, várias privações além da renda, que se expressam na saúde, na educação e nos padrões de vida como falta de acesso a habitação adequada, água potável, saneamento, energia12.
O rendimento médio das famílias ou rendimento mensal domiciliar per capita estava em R$1.511,00 no ano de 2017, mas para irmos além das médias, no Nordeste tal rendimento era de R$ 984,00 e para ficar por lá, metade da população, 49,9% tinham rendimento médio mensal per capita de até meio salário mínimo. Vale acrescentar que a desigualdade racial também se faz muito presente nesses dados, quando em 2017, entre os 10% da população com menor rendimento, 75,2% eram pretos ou pardos (IBGE,2018).13
Bastante sintomático do quadro de gravidade social historicamente vivenciado pela classe trabalhadora brasileira é a necessidade de ampliação da cobertura do maior programa de transferência de renda, o Programa Bolsa Família. Criado em 2003, o programa atendia cerca de 13,8 milhões de famílias após dez anos da vigência (CAMPELLO; NERI, 2014). Em 2019, antes da pandemia, o atendimento de 13,1 milhões de famílias em situação de pobreza (com renda mensal até R$ 178,00 por pessoa) e em extrema pobreza (com renda mensal até R$ 89,00 por pessoa) mostra o decréscimo do número de beneficiários do programa em relação aos anos anteriores14. Em dezembro de 2018eram 14,1milhões de famílias beneficiadas, mas em 2019 o corte de 1,3 milhão de benefícios e o número de 494 mil famílias na fila de espera para receber em média o valor de R$188,86 reais por mês, já preparava o difícil cenário de 202015 (IPEA,2019a).
A Síntese de Indicadores Sociais publicada pelo IBGE (2018) anotava que no ano de 2016,segundo os parâmetros do Banco Mundial, o Brasil tinha 25,7% da sua população na linha de pobreza (52, 8 milhões de pessoas sobrevivendo com até US$ 5,5 por dia), aumentando este indicador para 26,5% em 2017(54,8 milhões de pobres); no Nordeste do Brasil, a pobreza alcançou quase a metade (44,8%) da população em 2017. Na extrema pobreza, sobrevivendo com US$ 1,90 por dia ou R$ 140,00 por mês eram 6,6%(13,5 milhões) de brasileiros em 2016 e esse número subiu em 2017 para 7,4%. (15,2 milhões). A quase imperceptível queda do número de pobres em 2019 (24,7%) e a estável pobreza extrema em 6,5% reflete oque o desmonte das políticas sociais nos últimos anos poderá trazer como consequências a médio prazo (IBGE,2019).
Sobre a condição de moradia no Brasil, 13% da população (27 milhões de pessoas) vivia no ano de 2017 em domicílios inadequados, sendo o adensamento excessivo, a condição que mais afetava essa parcela da população (12,2 milhões de pessoas), seguida pelo custo do aluguel (10,1 milhões de pessoas) e pelos domicílios sem banheiro exclusivo (5,4 milhões de pessoas). Entre os pobres, 57,6% viviam em domicílios nos quais tinham alguma inadequação em um serviço de saneamento: esgotamento sanitário, coleta de lixo ou abastecimento de água (IBGE, 2018).
Ainda sobre domicílios, uma publicação do IBGE (2020b) revela a estimativa de que no Brasil, 5,127.747 milhões de domicílios (7,8%) são moradias irregulares ou estão localizados em aglomerados subnormais16, número que em 2010 era de 3.224.529 milhões de domicílios nestas condições, o que salienta o aumento do déficit habitacional nestes quase dez anos. Somente se considerarmos São Paulo, cujo índice de domicílios ocupados em aglomerados subnormais não está entre os mais altos (a proporção em São Paulo é de 7,09% enquanto a do Amazonas é de 34, 59%) o total absoluto chega a mais de um milhão de habitações subnormais17. Em Sergipe, menor estado da Federação, onde a proporção de domicílios subnormais (7,37%) é maior que São Paulo, do total de 720 mil domicílios, o número de moradias subnormais chega a mais de cinquenta mil (53,2 mil) e na capital Aracaju já são 15,8% (33,8 mil domicílios)nestas condições e está entre as três capitais do Nordeste com menor índice, acompanhada por Natal (13,0%) e João Pessoa (12,5%), tendo Salvador assumido o topo da lista com 41,8% dos domicílios em aglomerados subnormais.
Sobre o mercado de trabalho18, os anos de 2015 e 2016 foram de crescimento contínuo na taxa de desemprego, cuja redução depois de 2017 alcançou 11,6% no último trimestre de 2018. O ritmo lento desse decréscimo sinalizava um risco de acomodação da taxa de desemprego, além da constatação de que a ocupação aumentou nos setores informais de trabalho, sem carteira assinada ou por conta própria, conforme análise do IPEA (2019b).
Ainda segundo o IBGE (2020a), no ano de 2019, o país tinha uma taxa média de 11,9% de desocupados (12,6 milhões de pessoas desocupadas) e 41,1% da população ocupada em trabalho informal (38,4 milhões de pessoas), enquanto o crescimento do emprego formal com carteira assinada foi de apenas 1,1%.19. Em plena pandemia não é possível obter previsões precisas do aumento do desemprego, da redução do trabalho formal, mas por enquanto os pedidos de seguro desemprego que entre abril e maio giraram em 1,5 milhão20, já sinalizam que tempos difíceis ainda estão por vir. A estimativa do FMI é de que o desemprego em 2020 no Brasil seja de 13,4% e em 2021 aumente para 14%.21
Somos um país considerado de "desenvolvimento humano elevado” mas com a pandemia da COVID-19 os pobres saíram das estatísticas para as filas do auxílio emergencial nas agências da Caixa Econômica Federal, filas que só cresceram com o volume de desempregados e informais precarizados sem qualquer amparo de direitos sociais que lhes oferecesse uma segurança social em situações de crise de saúde como a que estamos vivendo. As “medidas excepcionais de proteção social” beneficiaram 58,6 milhões de pessoas, entre estas 34 milhões de “invisiveis” para o Estado, na observação do Ministro da Cidadania22. Os milhões de pobres, desempregados, informais, precarizados, favelados ou em situação de rua desnudam como a desigualdade social precisa ser combatida com a mesma força que se espera enfrentar o novo coronavirus.
A ONU apela para que a comunidade internacional ajude os países incapacitados, aqueles de desenvolvimento atrasado. Os estudiosos do desenvolvimento humano apontam que sem ajuda dos doadores (países ricos), dificilmente os países que “ficaram para trás” conseguirão enfrentar as consequências da pandemia:
A colaboração internacional é muito importante na opinião do especialista. ‘Os países em desenvolvimento não têm capacidade para implementar grandes pacotes de ajuda como os que estão sendo aprovados pelas nações mais ricas. E tampouco para se endividarem’, afirma Tapia. E precisarão de apoio. Até agora, diz, a maioria dos casos ocorreu em países desenvolvidos, mas nos últimos dias se observa ‘uma reviravolta nesse sentido. ‘Um segundo semestre difícil nos espera’, avança. Embora, ‘por sorte’, os menos adiantados tenham sido rápidos em implementar políticas para deter o avanço do vírus, precisarão de ajuda para garantir a saúde e a educação de sua população,’explica.(AGUDO, 2020, s/p.).
Contudo, tal expectativa não combina com as práticas imperialistas em tempos de hegemonia do capital financeiro. Se o que torna um país doador de ajuda financeira e técnica é mesmo a concentração de riqueza, poder e tecnologia, ampliada nos últimos tempos à custa da exploração do trabalho e das expropriações constantes que aprofundam a pobreza e a dependência de outros; se a divisão internacional do trabalho, sob a qual pouco podem interferir os países dependentes, define onde deve estar a grande indústria, os centros dos serviços financeiros, as inovações tecnológicas e os fornecedores de alimentos e matérias-primas; sugerir que os interesses capitalistas imperialistas sejam renunciados para atender ao “desenvolvimento humano” é mais uma contradição que reforça os argumentos de autores como Netto (2007) e Castelo (2013) quando acusam tais apelos de “ingenuidade” ou “cinismo”.
Para melhor esclarecer o problema, recorro a Harvey (2011, p.35):
[...] As práticas imperialistas, do ponto de vista da lógica capitalista, referem-se tipicamente à exploração das condições geográficas desiguais sob as quais ocorre a acumulação do capital, aproveitando-se igualmente do que chamo de as “assimetrias” inevitavelmente advindas das relações espaciais de troca. Estas últimas se expressam em trocas não leais e desiguais, em forças monopolistas espacialmente articuladas, em práticas extorsivas vinculadas com fluxos de capital restritos e na extração de rendas monopolistas. A condição de igualdade costumeiramente presumida em mercados de funcionamento perfeito é violada, e as desigualdades resultantes adquirem expressão espacial e geográfica específica. A riqueza e o bem-estar de territórios particulares aumentam à custa de outros territórios. As condições geográficas desiguais não advêm apenas dos padrões desiguais da dotação de recursos naturais e vantagens de localização; elas são também, o que é mais relevante, produzidas pelas maneiras desiguais em que a própria riqueza e o próprio poder se tornam altamente concentrados em certos lugares como decorrência de relações assimétricas de troca [...].
E ao Estado cabe assegurar que as condições assimétricas sejam preservadas, utilizando-se para isso, como alerta Harvey (2011), de meios políticos, diplomáticos ou militares. No cenário atual da crise capitalista que se arrasta desde os anos 1970, cada vez mais essas funções atribuídas ao Estado são controladas diretamente pelos grandes monopólios, a exigir e delinear, por exemplo, a “contra-reforma” brasileira (BEHRING, 2003) que precarizou as políticas públicas, expropriou direitos sociais e vem ameaçando constantemente o direito à saúde pública promovida através do Sistema Ùnico de Saúde (SUS)23.
Na sociedade capitalista o desigual desenvolvimento humano continua a ser um sintoma que nos acompanha antes, durante e certamente depois da pandemia. Esse caráter limitado do desenvolvimento humano que temos na ordem social capitalista, limitado em termos da sua estreiteza quantitativa (não está acessível a todos) e qualitativa (não desenvolve toda potencialidade humana) ganha luz quando entendemos com Mészáros (2011, p. 610) que:
Durante o desenvolvimento histórico do capital – que impôs à humanidade a produção da riqueza como a finalidade que a tudo absorve –, o caráter real da riqueza propriamente dita desapareceu do horizonte. Foi obliterada por uma concepção reificada, associada a estruturas materiais e relações igualmente fetichizadas que determinaram o sociometabolismo geral em todas as suas dimensões.
O fim para o qual caminhamos, o sentido da produção da vida, da nossa existência se transformou numa busca incessantepor mercadorias, pelo dinheiro, por uma forma de riqueza expressa em quantidade de coisas ou de dinheiro que compra coisase é para essa forma reificada de riqueza que o desenvolvimento humano caminha no horizonte da sociedade capitalista, sem que nem mesmo tão ‘pobre” concepção de riqueza possa ser usufruída por todos. Na sociedade que temos não é o homem que está no centro da finalidade da produção, mas a produção é que se tornou o centro da finalidade da existência humana
[...] a tarefa da reprodução social e do intercâmbio metabólico com a natureza é definida de modo fetichizado como a reprodução das condições objetivadas/alienadas de produção, das quais o ser humano que sente e padece nada mais é senão uma parte estritamente subordinada, enquanto um “fator material de produção”. e já que o sistema produtivo estabelecido, sob a regência do capital, não pode reproduzir a si próprio, a menos que possa fazê-lo em uma escala sempre crescente, a produção deve não apenas ser considerada a finalidade da humanidade, mas [..] deve ser tomada como premissa que a finalidade da produção é a multiplicação sem fim da riqueza.’(MÉSZAROS, 2011,p. 111).
Como contraponto, se quisermos avançar realmente no desenvolvimento humano, teremos que redefinir a finalidade da produção e da reprodução social de forma a colocar o enriquecimento das potencialidades humanas no centro dos nossos interesses e desse modo revolucionar o caminho que tem nas relações reificadas a trajetória seguida até aqui. Numa ordem social onde a autorrealização humana seja o fim para o qual nos organizamos socialmente o resultado seria não uma “multiplicação sem fim da riqueza” restrita à realização ampliada do capital, mas uma rica produção do homem no seu processo de humanização, de realização das suas potencialidades , naquilo que para Marx (1986) seria a unidade entre o “reino da necessidade’ e o “reino da liberdade”.
Na perspectiva marxiana, somente em uma outra ordem social na qual a abundância e a igualdade garantisse não somente o desenvolvimento das novas necessidades, mas seu atendimento a todos (igualdade) e na qual o homem não fosse submetido a nenhuma força estranha (liberdade) – como é no capitalismo que leva ao fetiche da mercadoria e ao estranhamento do próprio trabalho – seria possível alcançar a liberdade plena24, a emancipação humana. Tendo por base o trabalho emancipado, sem exploração, sem sujeição, quando todos trabalham e todos controlam o processo de trabalho por eles realizado de forma associada, o homem ainda que sob imposição natural das carências– afinal, a fome se põe e repõe incessantemente– pode mesmo assim ter algum grau de liberdade no reino da necessidade, mas o que floresce como resultado disso é a conquista de um campo mais amplo, para além das necessidades, no qual é possível ao homem exercer com plenitude, a liberdade, um campo que não se reduz ao ato do trabalho, que reconhece nas demais atividades que enriquecem a individualidade humana (formação artística, científica) o reino da liberdade:
[...] Do mesmo modo que o selvagem tem que lutar com a natureza para satisfazer as suas necessidades, para buscar o sustento da sua vida e reproduzi-la, também o homem civilizado tem que fazer o mesmo sejam quais forem as formas sociais e os possíveis sistemas de produção. Na medida em que se desenvolve e se desenvolvem com ele as suas necessidades, amplia-se este reino da necessidade natural, mas ao mesmo tempo também se ampliam as forças produtivas que satisfazem aquelas necessidades. A liberdade, neste terreno, só pode consistir em que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente este seu intercâmbio material com a natureza, coloquem-no sob o seu controle comum em vez de deixar-se dominar por ele como um poder cego e o realizem com o menor dispêndio possível de forças e nas condições mais adequadas e mais dignas de sua natureza humana. No entanto, com tudo isto, este continuará sempre sendo um reino da necessidade. Do outro lado de suas fronteiras começa o desdobrar-se das forças humanas considerado como fim em si, o verdadeiro reino da liberdade que, no entanto, só pode florescer tomando como base aquele reino da necessidade. A condição fundamental para ele é a redução da jornada de trabalho. (MARX, 1986, p.273)
Daí a importância que tem nos estudos de Marx, o desenvolvimento das forças produtivas. Esse desenvolvimento permite que a produção do trabalho, o atendimento das carências seja realizado cada vez em menos tempo. Porém, na sociedade capitalista a redução do tempo de trabalho socialmente necessário é utilizado pelo capital para ampliar o tempo de trabalho excedente, de onde se extrai a mais-valia, o que retira qualquer possibilidade de uso do tempo livre para outras atividades que potencializem o que há de humano em nós, as outras atividades humanas livres que enriquecem este ser, afinal como nos explica Tonet (2005, p.104) :
[...] Certamente, o trabalho é uma atividade fundamental para o homem. Mas, como já vimos, não é a forma mais plena da atividade humana. Por isso mesmo diz Marx (1978) que o que mede o desenvolvimento da riqueza humana não é a quantidade de trabalho, mas a extensão do tempo livre. Quanto maior o tempo livre, maior a riqueza da humanidade e maior a possibilidade de os homens se dedicarem a atividades mais livres.
O desenvolvimento humano que se quer numa perspectiva marxiana e marxista é a emancipação humana. Esta precisa atravessar um caminho que se fundamenta num processo de trabalho que cesse o estranhamento do trabalhador com a natureza, com seu próprio trabalho e com o produto do seu trabalho; um processo de trabalho no qual os homens se reconheçam como sujeitos que controlam e definem conscientemente os rumos da produção e da reprodução social; um processo de trabalho que tenha a constituição de uma humanidade cada vez mais rica; uma riqueza que não se confunde com a coisificação da vida, com o ato de colecionar mercadorias que não atendem necessidades humanas, mas apenas as necessidades de valorização do valor; uma riqueza que tenha na necessidade e na liberdade humana sua finalidade precípua.
Uma breve exposição dos dilemas do desenvolvimento humano, especialmente no Brasil, coloca a pandemia da COVID-19 como mais um elemento a contribuir para a reversão das pequenas conquistas duramente alcançadas, conquistas que o PNUD já constatava antes do cenário pandêmico, que não se estenderam a todas as nações ou a todas as “pessoas” de uma mesma nação. A desigualdade nas condições básicas do desenvolvimento humano já fora reconhecida mundialmente e para seu tratamento, as receitas até aqui implementadas não foram exitosas, conforme ilustra o breve diagnóstico do Brasil no qual a receita neoliberal de contrarreformas e cortes nos gastos sociais agravou ainda mais a desigualdade social e a vulnerabilidade da classe trabalhadora.
O adoecimento do sistema capitalista que desde os anos 1970 vem numa “rastejante crise estrutural”, para usar os termos do Mészaros (2011), impõe severos limites aos avanços das forças produtivas, da ciência, da tecnologia cujos benefícios são distribuídos desigualmente e utilizados pelo imperialismo para subjugar as classes e as nações que dependem da “ajuda” internacional para continuar sobrevivendo, enquanto lhes são expropriadas as riquezas naturais, o orçamento público comprometido em juros exorbitantes para pagamentos de dívidas, o patrimônio público privatizado. São nestas contradições sociais que entendemos se apoiar a falsa expectativa de desenvolvimento humano para todos e que está longe de ser unicamente ameaçada por uma força natural como o coronavírus SARS-Cov-2. O inimigo mais letal é o capital. Contra ele, o horizonte da emancipação humana pode oferecer o respiro necessário às lutas sociais das classes que buscam, com ou sem pandemia, avançar na autoconstrução humana, afinal “o pulso ainda pulsa”.