Resumo: O presente artigo busca proporcionar uma reflexão crítica do sistema prisional brasileiro em tempos de pandemia. A partir de revisão bibliográfica, pesquisa documental, e noticiários jornalísticos,identifica como as condições precarizadas das unidades prisionais propiciam a expansão da pandemia, expondo seus(uas) internos(as) às mais variadas violações de direitos, que impactam mais diretamente a população negra e pobre, escancarando o racismo estrutural nesses ambientes. Demonstra algumas das medidas utilizadas para mitigar os efeitos da pandemia que, apesar de importantes, revelam-se limitadas diante das estruturas das prisões. Tais elementos explicitam os fundamentos das medidas de aprisionamento e das formas de controle capitalista mobilizadas em face do excedente de força de trabalho, e que no contexto de pandemia tem essa condição agravada nas prisões.
Palavras-chave: Sistema Prisional Brasileiro, Pandemia, Violação de Direitos, Racismo Estrutural.
Abstract: The present article seeks to provide a critical reflection of the Brazilian prison system in times of pandemic. From bibliographic review, documentary research, and journalistic news, it identifies how the precarious conditions of the prison units propitiate the expansion of the pandemic, exposing its inmates to the most varied rights violations, which most directly impact the black population. and poor, opening up structural racism in these environments. Demonstrate some of the measures used to mitigate the effects of the pandemic, which, although important, are limited in view of prison structures. Such elements explain the fundamentals of the imprisonment measures and the forms of capitalist control mobilized in the face of the surplus of workforce, and that in the context of a pandemic this condition is aggravated in prisons.
Keywords: Brazilian Prison System, Pandemic, Violation of Rights, Structural Racism.
Artigos - Dossiê Temático
SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO: Covid-19 e os reflexos em um ambiente de “pandemia estrutural”
Recepción: 21 Diciembre 2020
Aprobación: 20 Mayo 2022
O contexto do capitalismo contemporâneo elucida as consequências destrutivas de um projeto necropolítico estatal no tratamento conferido às expressões da “questão social”[1] por meio do processo de criminalização da pobreza que se caracteriza através da penalização estatal, da violência cotidiana, da repressão e do encarceramento das massas que em sua maioria corresponde à população negra, pobre e sem escolaridade (BORGES, 2018; 2020). Esse processo acentua-se tendo no Estado o aparato central para garantir as condições pertinentes para a acumulação e valorização do capital, bem como concentração/centralização dessa riqueza que é garantida às corporações financeiras e grandes monopólios por meio da intensificação da exploração da força de trabalho, gerando consequências destrutivas. Dentre as consequências, além da ampliação das formas precarizadas de trabalho, observa-se no circuito de desenvolvimento da lei geral de acumulação capitalista (MARX, 2013), um incremento das modalidades de subemprego e de desemprego, resultando no aumento de volume da força de trabalho sobrante.
Das alternativas mediatizadas de gestão desse excedente de força de trabalho, cada vez maior, em um contexto de crise estrutural (MÉSZÁROS, 2002), verificamos a política de “encarceramento em massa” (BORGES, 2018; WACQUANT, 1999) como um dos mecanismos que vem ganhando centralidade. Uma mirada simples na escalada punitiva do Estado brasileiro é capaz de ilustrar essa constatação, quando observamos que, até o início de 2020[2], o país contava 338 pessoas presas para cada 100 mil habitantes, o que o coloca com a terceira maior população carcerária do mundo, ficando atrás somente de países como EUA e China (BORGES, 2020).
Em paralelo ao aumento exponencial da massa carcerária brasileira, identificamos péssimas condições das unidades prisionais, em uma histórica “pandemia estrutural”, que levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a classificar essa situação como “estado de coisas inconstitucional”, num cenário de violação permanente de direitos. Esse contexto tende a se agravar diante do aprofundamento da crise capitalista que, por sua vez, revisita, cada vez mais, formas brutais de controle sobre o trabalho, que demarcaram o início desse modo de produção. Diante desse quadro, torna-se fundamental refletir acerca da configuração, principalmente em um contexto em que se explicita uma das maiores crises sanitárias desse século, causada pelo SARS-COV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2) ou COVID-19, tornando-se necessário compreender os desafios e seus impactos, sobretudo para a população mais “vulnerabilizada”, e dentro desta, para a população que hoje ocupa os espaços do sistema prisional brasileiro. Destarte, apresente discussão gira em torno da problematização da configuração das condições (jurídicas, estruturais e sanitárias) atuais dos presídios brasileiros que propiciam a disseminação da pandemia, o perfil da população prisional, e as consequências da pandemia para os(as) aprisionados(as) brasileiros(as).
A produção deste trabalho também parte dos seguintes questionamentos: Quem sofre com os efeitos da crise pandêmica no Brasil? Quais os “corpos matáveis” nesse processo? Qual o peso do “racismo estrutural” para a gestão da pandemia no sistema prisional brasileiro?Para responder a essas questões, nos valemos de revisão bibliográfica e pesquisa documental, a partir de dados em noticiários de mídia, levantamentos e relatórios disponibilizados pelo Sistema de Informações Penitenciárias (INFOPEN), do Departamento Penitenciário (DEPEN), entre outros. Tendo como pressuposto teórico-analítico o materialismo histórico dialético, que permite uma análise crítica acerca das determinações dos fenômenos sociais, considerando o movimento histórico e dialético da totalidade social, esperamos trazer à tona problematizações que possam contribuir para dar maior visibilidade às condições de precarização e matabilidade pelas quais passam a população prisional brasileira, agravadas em um contexto de crise pandêmica, no bojo da cronificação da crise do próprio capital, que, ao fim e ao cabo, escancara as mazelas de uma forma histórico-social que tem se desenvolvido em um movimento contínuo de barbarização da vida social.
A crise estrutural (MÉSZÁROS, 2002), que se arrasta desde meados dos anos 1970, tem resultado para a humanidade a intensificação das formas mais perversas de precarização de direitos para os(as) trabalhadores(as), enquanto um dos mecanismos de conferir fôlego ao processo de (re)produção do capital, aprofundando, por sua vez, a “barbárie”, em meio à ascensão da agenda neoliberal. Essa caracterização é atribuída às consequências provocadas pelo capitalismo desde seu surgimento com o objetivo de acumular riqueza que se destina para as “mãos de poucos(as)”, e, na mesma proporção, aprofunda o pauperismo abarcando a maior parte da população responsável pela produção e reprodução da riqueza social, mas que é eliminada efetivamente de sua apropriação (NETTO; BRAZ, 2012).
Na década de 1990, os impactos sentidos pela classe trabalhadora são agudizados a partir das medidas neoliberais que são adotadas com o objetivo de restauração dos lucros do capitalismo. A expropriação dos direitos sociais e a intensificação da exploração da força de trabalho continuam a ser um dos caminhos percorridos na agenda do capital, por meio de suas personificações. No bojo da crise, por outro lado, verificamos a ampliação do desemprego, em seu nível crônico, como uma das resultantes da explicitação da lei geral da acumulação capitalista, em que, concomitantemente ao processo de concentração/centralização de capital, tem-se uma massa de força de trabalho sobrante, limitada, inclusive à submissão direta da exploração capitalista (MARX, 2013). O Brasil, conforme os dados apresentados pelo IBGE, sobre o terceiro semestre encerrado no mês de setembro de 2020, teve uma taxa de desemprego de 13,1%, composta por 14,1 milhões de brasileiros(as). (IBGE, 2020). Conforme os dados disponibilizados, 50,5% dos(as) desocupados(as) são pretos(as) e pardos(as), ainda que representem 9,1% e 45,5% do total de brasileiros(as), respectivamente. (IBGE, 2020), o que exprime em dados estatísticos a força do “racismo estrutural” (ALMEIDA, 2018) e o lugar de inserção subalterna da população negra no país.
Essa força de trabalho sobrante, em face da ampliação do contexto de precarização, demanda do aparelho estatal – braço político do capital (MÉSZAROS, 2002) – mecanismos de regulação/controle – através de processos de consensos e de coerção – dos segmentos marginalizados, inclusive com o recurso a instrumentos punitivos, ratificando o que Melossi; Pavarini (2017) destacam sobre o papel importante que o Estado assume em relação à sanção penal dos pobres garantida através do Direito, enfatizando, inclusive, a mediação da prisão nesse processo de punição social como forma de atingir o aprendizado da disciplina de fábrica.
Depois de a fábrica ter sido vista como a casa de trabalho ideal, agora é a prisão que se torna a fábrica ideal. A pena finalmente adquire o duplo caráter de representação sensível da ideologia dominante na sociedade: ela é sua expressão extrema e radical e é, ao mesmo tempo, lugar de repressão e de educação, disso resultando uma lição clara e convincente para quem estava do lado de fora e se recusava a adaptar-se ou, o que dá no mesmo, não podia adaptar-se. (MELOSSI; PAVARINI, 2017, p.135).
Diante disso, torna-se fundamental ao Estado penal garantir o controle dos(as) marginalizados(as). Distando-se da violência direta[3] – tal qual verificamos no que Marx (2013) denominou de “acumulação primitiva” – a punição, por meio do encarceramento, vem se constituindo como uma alternativa eficaz no controle da pobreza, que é o ambiente no qual a maior parte dos aprisionados(as) é recrutada. De acordo com Borges (2018):
A Justiça vai se distanciando da violência como parte constitutiva de si e relegando a vigilância e a punição a um conjunto maior de aparatos articulados e interligados, porém com funcionamento mais autônomo. A liberdade do indivíduo, que passa a ser vista como bem e direito, é que ganha a esfera da restrição e toma contornos de pena. [..] A Justiça passa a avaliar não apenas o crime, mas a vida e todo o contexto do acusado, inclusive posteriormente, como se estivesse sob poder da justiça alguma condição de previsibilidade. Estes elementos extrajurídicos somam e reforçam uma moral social perpassada, e indissociada, de opressões estruturais. Sob teorias positivistas, o foco passa a ser como ‘recuperar’, ‘modificar’ o criminoso. (BORGES, 2018, p. 29).
É nesse cenário que, historicamente, o Estado lida com a pobreza através da coerção, por meio de uma ideologia voltada ao mercado que atenua as desigualdades de condições e de oportunidades. Wacquant (1999) destaca em seu livro “As prisões da miséria” que esse Estado “suprime e enfraquece por um lado o Estado econômico e social e fortalece . glorifica o Estado penal” (WACQUANT, 1999, p. 11, grifo nosso). Isso acontece, segundo o autor, pela sua incapacidade de conter a decomposição do trabalho assalariado e de refrear a hipermobilidade do capital, as quais, capturando-a como tenazes, desestabilizam a sociedade inteira. De acordo com Wacquant (1999), a estrutura do sistema carcerário no Brasil contemporâneo é fruto de um processo histórico acumulativo dos anos anteriores. Para o autor, a estrutura das prisões “[...] se parece mais com campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica – dissuasão, neutralização ou reinserção.” (WACQUANT, 1999, p. 7, grifos do autor). Acrescenta,
O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro mundo, mas levadas a uma escala digna do Primeiro Mundo, por sua dimensão e pela indiferença estudada dos políticos e do público: entupimento estarrecedor dos estabelecimentos, o que se traduz por condições de vida e de higiene abomináveis, caracterizadas pela falta de espaço, ar, luz e alimentação (nos distritos policiais, os detentos, frequentemente inocentes, são empilhados, meses e até anos a fio em completa ilegalidade, até oito celas concebidas para uma única pessoa, como na Casa de Detenção de São Paulo, onde são reconhecidos pelos aspecto raquítico e a tez amarelada, o que lhes vale o apelido de “amarelos”; negação do acesso à assistência jurídica e aos cuidados elementares de saúde, cujo resultado é a aceleração dramática da difusão da tuberculose e do vírus HIV entre as classe populares; violência pandêmica entre os detentos, sob forma de maus tratos, extorsões, sovas, estupros e assassinatos, em razão da superlotação superacentuada, da ausência de separação entre as diversas categorias de criminosos, da inatividade forçada (embora a lei estipula que todos os prisioneiros devem participar de programas de educação ou de formação e das carreiras da supervisão. (WACQUANT, 1999, p. 7, grifos do autor).
O autor ainda argumenta sobre a expansão do sistema prisional no Brasil, destacando como essa ampliação em nada vai mudar as questões relacionadas à criminalidade, nem à redução da violência, dado que, como podemos verificar, a população carcerária só cresceu ao decorrer dos anos. Destarte, cabe-nos o seguinte questionamento: por que, então, não houve redução da violência e da criminalidade mesmo com o aumento dos presídios?
Nem a expansão programada do sistema - em 1998 previa-se a duplicação do parque penitenciário com a construção de 52 novos, dos quais 21 só para o estado de São Paulo - nem sua indispensável modernização, pela formação de pessoal e a introdução da informática, poderão remediar a incapacidade congênita da prisão de exercer um efeito qualquer sobre a criminalidade. Mesmo nos Estados Unidos, onde polícia e justiça são dotados de meios colossais sem nenhum padrão comum com seus homólogos brasileiros, o sistema de justiça penal trata apenas de uma parte ínfima dos atentados mais graves, sendo apenas 3% dos crimes de sangue punidos com pena de prisão. De resto, a comparação internacional mostra que não existe nenhuma correlação entre nível de crime e nível de encarceramento. (WACQUANT, 1999, p. 7).
Essa expansão do sistema prisional, apontada pelo autor, é resultante do modo de gestão penal e das medidas de encarceramento adotadas que dão funcionalidade a essa lógica de repressão e violência, sobretudo à população negra, que compõe majoritariamente esses espaços, como problematizaremos adiante. Não se trata, pois, de contenção da criminalidade, mas de um projeto de gestão de força de trabalho sobrante, em tempos de crise estrutural do capital, com a intensificação dos mecanismos de controle sobre a pobreza. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, fornecido pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) referente ao período de julho a dezembro de 2019, em âmbito nacional tinha-se o total de 748.009 presos(as) distribuídos(as) nas unidades prisionais brasileiras (DEPEN, 2019). As unidades que abrigam esse contingente refletem, por sua vez, uma estrutura de precarização, falta de higiene, superlotação e risco iminente de contágio por diversas doenças. Nesse sentido, torna-se pertinente analisar os desafios postos a essa população em um contexto de crise pandêmica, em que se torna mais exposta ainda ao agravamento das suas condições de saúde e vida.
No século XXI a faceta mais barbarizante desse sistema opressor ratifica sua perversidade sob a crise estrutural capitalista, que é aprofundada com a crise pandêmica do COVID-19. Diante dessa situação, são recorrentes debates em torno das agudizadas expressões da “questão social”, e em torno das mortes e dos(as) infectados(as) pelo novo coronavírus. E àqueles que estão em privação de liberdade?As condições jurídicas, estruturais e sanitárias do sistema carcerário brasileiro? Aqui, referimo-nos a um ambiente de profundo isolamento físico-social, em que a máscara simbólica do silenciamento já se faz presente em suas estruturas, como mecanismo de dominação(BORGES, 2020). Nesse sentido, entender os impactos da pandemia à população privada de liberdade, em especial nas unidades prisionais, remete aos aspectos conjunturais e estruturais que perpassam as particularidades da própria formação social brasileira, sob a égide das marcas indeléveis de sua dinâmica colonial, que vem à tona em níveis escancarados pela crise sanitária.
Como destaca Borges (2020), até julho de 2020, o Brasil, juntamente com EUA, Peru, Índia e México, estava entre os países com mais presos(as) contaminados(as) no mundo, o que demandou a adoção de diversas medidas, como suspensão de visitas, liberação de presos(as), audiências por videoconferência, alas de isolamento e higienização de presídios. Uma das primeiras iniciativas adotadas partiu da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nº 62, de 17 de março de 2020, que dispôs sobre a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo COVID 19, no âmbito dos sistemas de Justiça Penal e socioeducativo. Enquanto recomendação, não afirma uma obrigatoriedade ao seu cumprimento, mas são importantes de modo a reduzir o impacto da pandemia nos presídios, visto que a maioria da população carcerária compõe grupos de riscos (pessoas com diabetes, doenças renais, HIV, tuberculose, etc.), e que a própria estrutura do sistema carcerário brasileiro dispõe de um ambiente estruturalmente inadequado para o atendimento e a efetivação de medidas de prevenção neste período de pandemia. Além disso,
Outras orientações da recomendação foram observadas pelos Tribunais, como reavaliação das prisões provisórias, suspensão do dever de apresentação periódica ao juízo e máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva. Na execução penal foram adotadas medidas para concessão de saída antecipada, concessão de prisão domiciliar a quem esteja nos regimes aberto e semiaberto e colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia. (CNJ, 2020).
O Conselho Nacional do Ministério Público emitiu, em 25 de março de 2020, uma nota técnica (nº2/2020-CSP) apresentando um Estudo e Roteiro Sugestivo de Providências no Sistema Prisional da Pandemia de Covid-19 para atuação do Ministério Público nesse âmbito. Na nota consta que:
A razão dessa preocupação pode ser sintetizada numa única sentença: o enfrentamento da pandemia deve materializar-se numa política de Estado, e não numa política de instituições. É dizer: não se admitem esforços que não guardem correlação e conformidade com um marco maior de enfrentamento do grave quadro (aproximado) de calamidade pública. Por conseguinte, a preocupação do Estado, enquanto gestor da política penal, não pode se colocar contrária ou paralelamente aos esforços do Estado-gestor da política sanitária e, dado o grave quadro atual, do Estado-polícia, este sobrelevado em razão das medidas de restrição à locomoção e de atenção ao necessário isolamento social. (NOTA TÉCNICA, 2020, n.p).
Em abril, o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) disponibilizou um manual de recomendações para a prevenção e cuidados da COVID-19 no sistema prisional brasileiro, em acordo com as medidas adotadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), porém, transpondo para a realidade do sistema prisional, considerando suas especificidades, acerca da rotina das unidades prisionais. Dentre o conjunto de medidas, estão a:
Suspensão das visitas familiares até a cessação do estado de pandemia; Definição de serviços essenciais que devem ser mantidos nessa fase, como atendimentos jurídicos, de assistência social e religiosa, entre outros; Realização de triagem nas portas de entrada das unidades prisionais; Destinação de celas/alas exclusivas para isolamento de pessoas presas sintomáticas; Separação de idosos com mais de 60 anos e depois demais pessoas que pertencem ao grupo de risco; Distanciamento de ao menos 1,5 metro durante a realização das atividades penitenciárias (procedimentos de vigilância, por exemplo); e Ampliação, quando possível, do tempo de banho de sol. Realização de visitas virtuais para manutenção do vínculo familiar; Possibilidade de entrega de cartas nas unidades prisionais, com datas e horários definidos; e Utilização do sistema de som das unidades para transmissão de mensagens de grupos religiosos. [...] A limpeza deve ser realizada com água e sabão ou solução desinfetante. Se possível, lavar esses espaços pelo menos uma vez ao dia, incluindo a lavagem do chão, portas, paredes e grades [...]. (MANUAL DE RECOMENDAÇÕES, 2020, p.13-16).
O coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), o juiz Luis Geraldo Sant’Ana Lanfredi, em notícia publicada no dia 18 de maio, na Agência CNJ (2020) de notícias, enfatizou que:
Se já na sociedade em geral faltam testes e há relatos de subnotificação de casos de morte, a situação dentro das unidades prisionais, operando 70% acima da capacidade, reconhecidamente insalubres e fechadas para visitas há mais de um mês, é alarmante. Precisamos discutir medidas sanitárias e de saúde efetivas ao invés de envidar esforços para retomar estruturas já rechaçadas pela comunidade internacional como degradantes e violadoras de direitos humanos. (AGÊNCIA CNJ DE NOTÍCIAS, 2020).
Diante do exposto, faz-se necessário destacar alguns apontamentos realizados pelo site Justificando (2020) em relação ao Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados em 2009 com dados de 2007, sobre o sistema carcerário, que naquele momento contava com um quantitativo de 420 mil presos(as), relatando o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) em torno da declaração de estado de coisas inconstitucional na Medida Cautelar ADPF 347/DF em 2015. De acordo com a medida, verificavam-se, àquela altura, situações de déficit prisional, superlotação, condições de insalubridades, doenças, motins, rebeliões, mortes, falta de ventilação, dificuldade de acesso à água, para banho e hidratação e elementos de higiene. Em resumo, a definição trazida pela CPI nos parece bem ilustrativa ao apontar que a situação daqueles indivíduos que ali estavam era de “lixo humano em celas cheias” (JUSTIFICANDO, 2020).
Em um cenário que não nos parece ser muito diferente daquele período, a remissão às medidas de cuidados sanitários, conforme vem recomendando órgãos de controle do sistema de justiça criminal, cremos fazer pouco efeito, dado todo o “circo de horrores” em que se encontram as unidades prisionais brasileiras, o que agrava, sobremaneira, a preocupação com o avanço da pandemia e a maior exposição desses corpos matáveis, com a anuência do Estado brasileiro, como parte integrante do seu projeto genocida, o que motivou denúncia a órgãos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA), contra o governo de Jair Bolsonaro[4].
Conforme entrevista conferida ao noticiário Nexojornal (2020), o defensor público em São Paulo e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Bruno Shimizu, enfatizou a duplicação de mortes dentro das prisões brasileiras até junho de 2020, devido à situação de pandemia, comparado ao ano de 2019. Bruno destacou as péssimas condições que vivem os(as) encarcerados(as) nos espaços de reclusão, como a superlotação das celas, divisão de colchões entre os(as) internos(as), racionamento de água, pouca ventilação, e a presença das equipes de saúde em apenas um terço das unidades, o que propicia um alto risco de infecção pelo Coronavírus.
A gestão da pandemia no cárcere tem sido um projeto necropolítico, ou seja, um projeto de deixar morrer, não produzir dados, trabalhar com a subnotificação e fazer com que esse genocídio que está acontecendo dentro dos presídios não se escreva sequer na memória coletiva da população, na medida em que sequer os exames estão sendo feitos. (NEXOJORNAL, 2020, grifo nosso).
Ainda, segundo o noticiário, no início da pandemia as medidas interministeriais giravam em torno de isolar os(as) presos(as) com sintomas de gripe. Em situações não possíveis de adotar tais medidas, são realizadas a marcação no chão ou utilização de cortinas para manter distância mínima entre os(as) presos(as). Além disso, a suspensão de visita familiar adotada por algumas instituições como forma de prevenir a disseminação do vírus, se mostrou ineficaz, já que há uma possibilidade de contaminação através das pessoas que continuam sendo presas nesse período, e também o contato dos(as) funcionários(as) no ambiente prisional. Em abril, segundo o site Migalhas (2020), algumas entidades se manifestaram a favor da Recomendação 62, orientada pelo CNJ e ao desencarceramento. Em uma parte do documento as entidades ressaltam o seguinte:
O sistema prisional brasileiro e de socioeducação padecem há anos com as péssimas condições estruturais, superlotação, mortes de causas não violentas e proliferação de doenças graves, como tuberculose e sarna, retrato da sua atuação seletiva orientada pelo racismo estrutural, encarcerando majoritariamente pessoas negras e pobres. (MIGALHAS, 2020).
No entanto, de acordo com o posicionamento do supervisor do departamento carcerário do CNJ, Mário Guerreiro, à Apublica (2020), o número de presos(as) liberados(as) não chegou a 4% da população carcerária, com quase 800 mil presos(as). E destacou o seguinte:
[...] o dado apresentado pelo Depen não representa grande mudança no fluxo natural de entrada e saída de presos, independentemente da recomendação do CNJ ou da Covid-19. ‘Vão cumprindo suas penas, conseguindo benefícios e saindo. O número não é significativamente maior do que normalmente já sairia no fluxo natural de execução penal, e a prova disso é que não houve impacto significativo em nenhum índice e segurança pública ao qual temos acesso’, argumentou. [...] a recomendação nº 62 tem sido espelho para outros países durante a pandemia. ‘O Brasil foi pioneiro, outros países estão nos seguindo. A ONU está recomendando a todos os países da América Latina que adotem medidas semelhantes, justamente porque é um trabalho bem embasado em medidas jurídicas e sanitárias’. (APUBLICA, 2020).
Como podemos observar, no interior da claudicante gestão geral da pandemia no país, tivemos uma administração sanitária nas unidades prisionais, com o agravante de que nesse espaço, como sabemos, é inviável a adoção de medidas de distanciamento social, bem como os cuidados sanitários mínimos recomendados pela OMS, o que potencializa o “deixar morrer” no circuito do projeto genocida do estado brasileiro (FLAUZINA, 2006). Esse cenário se torna ainda mais agravado quando nos remetemos à condição de pena de boa parte desses(as) internos(as). O CNJ disponibilizou dados referentes ao período de julho de 2019, destacando que 41,5% dos(as) presos(as) no país se encontravam em situação de prisão provisória, sendo assim, ainda não têm condenação aplicada, conforme destaca Apublica (2020). Em outros termos, mais que submetidos(as) à eventual prisão-pena, dado que ainda não houve julgamento, o que quase metade dessa população prisional tem sido subjugada, em um contexto de agravamento da pandemia, é à “pena de morte”. Segundo Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), “[...] Você não pode considerar que aquele preso em prisão provisória, que não foi julgado, tenha que se submeter a esse risco. Vai que ele morre de coronavírus e depois é absolvido por falta de provas [...].” Ressalta ainda:
Neste momento, o que está prevalecendo ao Direito Internacional são as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ela diz que temos que ficar em casa, em isolamento. Se o Estado não cumpre essas determinações está sujeito a ser réu no Tribunal Penal Internacional, como genocida, reitera. O desembargador aponta outro aspecto do que considera um genocídio. ‘Quem está preso no Brasil? O ministro Barroso diz que é o menino pobre. O perfil que vemos é que, além de pobre, é negro. Então você confinar para matar um grupo de pessoas presa, seja pela sua condição social, seja pela sua condição racial, tipifica crime de Genocídio pelo Estatuto de Roma’, completa. (APUBLICA, 2020).
De acordo com Painel de detecções/suspeitas/medidas contra o Coronavírus no sistema prisional brasileiro, o DEPEN informou que até 28 de novembro de 2020 tínhamos os seguintes dados: 152.658 testes, ou seja, atendem um pouco mais de 20% da população prisional; 20.176 suspeitas; 37.476 detecções; 35.341 recuperados; e 122 óbitos. A partir desses dados, do risco de contaminação e de morte iminentes, é preciso questionarmos qual o fundamento dessa escalada populista penal, que vê no aumento do encarceramento a grande salvação para a diminuição da criminalidade no país. Borges (2018) questiona: Mas o que nos leva a essa sanha punitiva? Por que temos uma cultura tão judicializada e criminalizada das relações sociais? E por que esta cultura e suas estruturas não atingem todos e todas da mesma forma, mas prioritariamente determinados grupos sociais? (BORGES, 2018).
O site Apublica (2020) salienta o apontamento de Valdete Souto Severo, juíza do trabalho e presidente da Associação de Juízes pela Democracia (AJD):
Existe um senso comum de que as pessoas que estão encarceradas são as últimas que precisam da nossa atenção. Esse foi o discurso eleito no Brasil em 2018, então, para quem pensa desse jeito, não faz sentido nenhum uma recomendação como a nº 62. Por isso há várias decisões resistindo à recomendação”, afirma. Severo lembra que a resistência ao relaxamento de prisões já foi responsável pela transmissão massiva de outras doenças em presídios, como a Hepatite, que já provocou números de mortes ‘extremamente elevados.’ (APUBLICA, 2020).
Nosso pensamento é condicionado a pensar as prisões como algo inevitável para quaisquer transgressões convencionadas socialmente. Ou seja, a punição já foi naturalizada no imaginário social (BORGES, 2018, p. 25). Segundo Siro Darlan, de acordo com a Apublica (2020), a resistência à Recomendação 62 do CNJ tem como principal protagonista: O conservadorismo do judiciário brasileiro. “[...] a tarefa do juiz é ser “intérprete da lei”, e não “um agente de segurança pública”. Infelizmente o Judiciário tem ouvido a voz do povo, que tem clamado por vingança e não por justiça.” Nesse circuito de “violência pandêmica” (WACQUANT, 1999) verificamos uma série de “omissões”, “violação de direitos”, “negligências” que tornam os corpos aprisionáveis superexpostos à morte em tempos de pandemia, em um cenário que até mesmo os familiares têm seus direitos violados[5].
Borges (2018, p. 56) salienta que, a partir dos anos 1990: “há uma série de medidas e edições de leis elevando penas, dissertando sobre crimes hediondos, dificultando a progressão de penas e assim por diante. E esta criminalização vem conduzida por um forte cenário de cárcere e extermínio.” No contexto de pandemia esse extermínio contra a população prisional é agudizado, registrando, conforme as informações disponibilizadas pelo Ministério da Justiça, através da plataforma do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, mais de 100 mortes em todo o país, além de 18.521 infectados(as). (DEPEN, 2020).
Conforme já sinalizamos, por meio dos dados atualizados pelo DEPEN, a população carcerária atual no Brasil ultrapassa 748 mil pessoas em situação de cárcere. Mas quem são essas pessoas que mais sofrem as consequências da pandemia no Brasil? Os dados disponibilizados pelo órgão apontam que o perfil da população carcerária evidencia o peso do racismo estrutural e declara que os “corpos matáveis” de hoje são os mesmos que compunham a classe de oprimidos(as), marginalizados(as), excluídos(as) e exterminados(as) do Brasil colonial: a população negra brasileira. Conforme os dados, 67% da população carcerária é composta por negros(as), sendo que esse grupo compõe 53% da população, o que significa que, a cada três presos(as) dois/duas são negros(as). (DEPEN, 2019). Esse número, entretanto, não nos pode levar a uma falsa concepção de que são os(as) negros(as) aqueles(as) que cometem mais crimes; mas, sim de que é a população negra o segmento mais criminalizável dentro do Sistema de Justiça Criminal brasileiro (BORGES, 2020).
Partimos do pressuposto que esses dados, que expressam a “negritude da população carcerária brasileira”, mais que uma mera acidentalidade, guardam profunda relação com as estruturas racializadas que se forjaram na formação sócio-histórica do Brasil, evidenciadas mesmo no momento pós-abolição. Com a Constituição de 1988, e ampliação da condição de cidadania para amplas parcelas da população brasileira, esses desafios se reconfiguram. Antes desse momento, o processo de exploração e negação de direitos contra a população negra era escancarado, mesmo após a abolição. E com a Constituição apenas assumiu novas roupagens com um limitado acesso de políticas sociais, mesmo àquelas afirmativas, frente ao avanço da onda neoliberal. A base estrutural continua a mesma,ainda que se metamorfoseando, conforme as nuances históricas que balizam sua formação.
Se, por um lado, para a instituição do colonialismo foi utilizada uma filosofia religiosa para a super exploração de corpos negros, por outro, é o estereótipo formulado no pós-abolição que seguirá perpetuando uma lógica de exclusão e, consequente, extermínio da população negra brasileira. (BORGES, 2018, p. 39).
Sendo assim, diante das configurações racistas que permeiam as instituições brasileiras, e, nesse caso, o sistema penal punitivo, Borges (2018, p. 44) enfatiza:
O que poderíamos chamar de germe do sistema criminal brasileiro, já se iniciou punitivista. De 1500 a 1822, o que seria um código penal eram as Ordenações Filipinas, notadamente o Livro V, onde predominava a esfera privada e da relação senhor/proprietário – escravizado/propriedade. Com isso, a lógica do direito privado imperava já no nascedouro do nosso sistema e, dado o caráter violento do escravismo, já tinha em seu cerne as práticas de tortura seja psicológica seja física pelas mutilações e abusos sofridos pelos escravizados.
Com o passar dos tempos, as mudanças no Sistema Criminal, no Código Penal, giravam em torno da defesa da propriedade privada das elites brancas escravistas, ou seja, o negro “Em sendo uma commodity, fugir ou buscar sua liberdade era, no Direito patrimonialista que se organizava, um crime contra o direito de propriedade das elites brancas escravistas.” (BORGES, 2018, p. 46). Dito isto, o(a) negro(a) já passa a ser visto(a), dessa forma, como um criminoso(a). Mesmo após a abolição e diante de todas as adaptações nos anos posteriores,
Os discursos, contudo, não se apresentavam como vigilância e repressão em relação a população negra, mas sempre como em relação aos “menos favorecidos” e com teor ideológico e de estereótipo das massas como elementos para exercício de controle. Os cultos de origem africana, vistos como espaços potenciais de reunião, foram proibidos sob o argumento de que perturbavam a ordem pública. Diversas eram as leis municipais que estabeleciam e vedavam a livre circulação de escravizados ou libertos, estabeleciam necessidade de passe para os já libertos e que, em alguns casos, até proibiam direito de adquirir imóvel e propriedade. (BORGES, 2018, p. 47).
Ainda ao longo do período pós-abolição, outras ações podem ser verificadas que contribuíram para ratificar um intenso processo de criminalização não só da pobreza, mas, sobretudo, da população negra:
Com o crescimento das cidades, diversas são as ações tomadas no período objetivando o aumento da vigilância sobre os negros e pobres livres. A polícia ganha outros contornos e a vadiagem, embasada e definida por valores morais e raciais de que as “classes menos favorecidas” eram preguiçosas, corruptas e imorais, alimentavam o imaginário do que se entenderia como “crime” e da representação do sujeito que seria criminalizado, o “criminoso”. A capoeiragem, por exemplo, foi inserida no Código Penal Brasileiro, em 1890, intensificando ainda mais o controle social sobre negros. Além disso, um conjunto de leis foram sendo promulgadas e intensificadas criminalizando a cultura afro-brasileira como o samba e os batuques, as religiões, as reuniões musicais que passaram a ter que ser registradas nas delegacias e sofriam forte repressão (BORGES, 2018, p.50).
Diante de tais determinações que estruturam o sistema de justiça criminal brasileiro não nos causa estranheza que a cor negra predominante dos corpos que já são, via-de-regra, criminalizáveis-matáveis no Brasil, e que no contexto de crise sanitária tornam-se ainda mais expostos a toda sorte de violação de direitos. Sendo assim, concordamos com Borges (2018, p.16), ao levantar os seguintes questionamentos: “Então, como podemos falar em democracia racial no Brasil, quando os dados nos mostram um sistema prisional que pune e penaliza prioritariamente a população negra?” “Como podemos negar o racismo como pilar das desigualdades no Brasil sob este quadro?”
Dessa forma, a justiça criminal se constituiu ainda no Brasil-colônia, estruturando-se na produção e reprodução de relações sociais configuradas a partir da articulação com um processo histórico e social que se configura no país, tendo no racismo sua base fundamental para criminalizar os(as) negros(as), e que, no decorrer de toda dinâmica histórica, somente se reconfigura a estrutura, conservando-se suas bases. Mesmo com a abolição da escravidão como prática legalizada de hierarquização racial e social, “[...] outros foram os mecanismos e aparatos que se constituíram e se reorganizaram, ou até mesmo fundados, caso que veremos da instituição criminal, como forma de garantir controle social, tendo como foco os grupos subalternizados estruturalmente.” (BORGES, 2018, p. 28-29). Diante disso, vale destacar que:
[...] por ser estrutura, o racismo perpassa todas as instituições e relações na sociedade. Mas o sistema criminal ganha outros contornos mais profundos neste processo. Mais do que perpassado pelo racismo, o sistema criminal é construído e ressignificado historicamente, reconfigurando e mantendo esta opressão que tem na hierarquia racial um dos pilares de sustentação. (BORGES, 2018, p. 30).
Para o(a) negro(a), as únicas oportunidades foram (e têm sido): o trabalho informal, os piores postos de trabalho, as favelas, os cortiços, péssimas condições de vida, o tráfico de drogas, o cárcere, o extermínio. Esses elementos são aprofundados, principalmente, após a vivência do cárcere. “Tanto o cárcere quanto o pós-encarceramento significam a morte social destes indivíduos negros e negras que, dificilmente, por conta do estigma social, terão restituído o seu status, já maculado pela opressão racial em todos os campos da vida, de cidadania ou possibilidade de alcançá-la”. (BORGES, 2018, p. 17).
Ainda no interior desses corpos subjugados, destacamos o lugar da mulher negra, na base dessa “pirâmide de exclusão”, e a opressão de gênero articulada ao cárcere. Conforme o relatório do Ifopen de 2019, o número de mulheres encarceradas correspondia ao total de 45.989; desse contingente, 62% das prisões estão relacionadas ao tráfico de drogas. Borges (2018) destaca que discutir essa temática inclui diversos fatores para análise ligados às mudanças sociais, econômicas e político ideológica do sistema capitalista. Segundo a autora, no que condiz às mulheres:
[...] entre 2006 e 2014, a população feminina nos presídios aumentou em 567,4%, ao passo que a média de aumento da população masculina foi de 220% no mesmo período. Temos a quinta maior população de mulheres encarceradas do mundo, ficando atrás de Estados Unidos (205.400 mulheres presas), China (103.766), Rússia (53.304) e Tailândia (44.751). 50% das mulheres encarceradas têm entre 18 e 29 anos e 67% são negras, ou seja, duas em cada 3 mulheres presas são negras. (BORGES, 2018, p. 16).
Para a autora, é importante destacar que há uma diferença de tratamento em relação às mulheres brancas e negras nas prisões e que essa diferenciação ultrapassa o encarceramento, mas é fruto de um processo histórico de escravidão, de disputa de poder e controle. O encarceramento, mediante o que foi abordado, significa mais que privar a liberdade de uma pessoa, significa também privar o outro de sua dignidade. E o que pensar sobre dignidade, ao saber a situação de mulheres aprisionadas que não têm acesso a itens básicos de higiene pessoal? Que lidam cotidianamente com o desrespeito, com a violência de diversos tipos?
As mulheres têm necessidades diferenciadas e este uso de respeito a um tratamento igual intensifica o contexto de violência que estas mulheres passam no contínuo desrespeito aos direitos humanos nas unidades prisionais. Um exemplo é a falta de absorventes, fazendo com que várias tenham que recorrer a expedientes alternativos e insalubres, como o uso de miolo de pão em seus ciclos menstruais. Outro exemplo é do uso de papel higiênico, quando é sabido que mulheres utilizam mais o sanitário para urinar do que homens, obrigando-as a situações aviltantes de utilização de pedaços de jornais velhos e sujos para sua higiene íntima (BORGES, 2018, p. 60).
Torna-se patente o quão expostas tornam-se as mulheres em situação de privação de liberdade que, apesar de apresentar demandas específicas, veem-se interditadas de acessarem itens básicos, o que só se agrava em uma crise sanitária. Nessa perspectiva, falar de classe, raça e gênero é também lembrar da marginalização e da opressão vivenciada pelas mulheres, sobretudo as negras, historicamente, e, obviamente, lembrar que “as prisões são depósitos do que a sociedade marginaliza e nega.” (BORGES, 2018, p. 73).
Mediante o que foi abordado, a carne mais barata[6] segue sendo, conforme enfatiza a canção de Elza Soares, também, a que mais morre, sendo ela constitutiva de determinações de classe, raça e gênero, definidas a partir da dinâmica estrutural da formação social brasileira. É um país que, no bojo de uma agenda punitiva, em meio ao avanço do “populismo penal”, amplifica, a partir das engrenagens do Estado, a criminalização da pobreza, como forma de perdurar uma estrutura que tem na exploração e expropriação o alicerce fundamental para dominação de uma classe sobre a outra, através das relações sociais de produção capitalistas.
Mediante o que foi exposto, este trabalho buscou estabelecer uma reflexão crítica sobre a situação das pessoas em privação de liberdade, sobretudo considerando a ênfase no sistema prisional brasileiro em tempos de pandemia. Conforme apontamos, o processo de criminalização é acentuado no modo de produção capitalista, amparado pelo Estado, como forma de garantir as condições de acumulação de riqueza, de propiciar a gestão do excedente de força de trabalho, em tempos de desemprego crônico. Em contexto de crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2002), essa formas de criminalização tendem a se intensificar. É o que verificamos quando percebemos como tais formas de gestão, através da atuação do “Estado Penal”, vêm sendo associadas ao crescente índice de encarceramento das massas marginalizadas, negros(as), pobres, excluídas do processo direito de exploração da força de trabalho. Nesse caso, essa população sofre de maneira mais acentuada e brutal as várias expressões da questão social, sendo impactada pela intensificação da verve punitiva estatal.
Esse cenário, de ampliação da pobreza e de sua criminalização, demonstra que a desigualdade social e racial no Brasil tem sido cada vez mais crescente. E isso não se expressa apenas no conjunto de pessoas atualmente desempregadas, mas também nas que compõem o sistema prisional brasileiro. Apontamos, neste trabalho, que a população carcerária brasileira tem classe, gênero e raça definidos, que sobrevivem nos espaços de reclusão em péssimas condições de vida, dada a superlotação das celas, falta de estrutura e higiene, dentre tantas outras questões que propiciam o risco de infecção de doenças.
No contexto de crise pandêmica, onde o mundo todo tem buscado observar medidas básicas de cuidados sanitários, revela-se fundamental apreendermos esse cenário e os desafios e os seus desafios. É importante tecer reflexões sobre as condições desses espaços no período de crise pandêmica. Frente às medidas interventivas empreendidas pelo setor jurídico, no que compete às questões sanitárias e estruturais desses espaços precarizados, em diversos aspectos, conseguimos visualizar contradições acerca da realidade vivenciada nesses espaços e das medidas que estão sendo adotadas em acordo com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que ainda se revelam bastantes tímidas diante de todo o quadro precarizado que configura as unidades prisionais brasileiras.
A atuação do “Estado Penal” nesses espaços revela um projeto de morte, que é acentuado em um contexto pandemia, ao considerarmos a estrutura desses locais e o “descaso” em relação às reais condições de vida dos(as) presos(as). Porém, não podemos deixar de mencionar a atuação de forças progressistas que lutam pelo acesso da população prisional a direitos, ainda que fragmentados e limitados nessa sociabilidade, e que se posicionam revelando como de fato se estruturam esses espaços. Nesses termos, contribuir para dar visibilidade ao submundo do ambiente prisional – que, em alguma medida, constitui-se como um espelho da nossa sociedade (BORGES, 2020), evidenciando suas contradições, no âmbito de uma “pandemia estrutural”, e os limites da promessa civilizatória capitalista – é uma tarefa fundamental àqueles(as) que buscam fortalecer um projeto societário alternativo à barbárie do capital que passa, também, pelo fim das prisões.