Entrevista
REFLEXÕES SOCIOLÓGICAS NO CONTEXTO DA PANDEMIA - Entrevista especial com o Professor Doutor Almerindo Janela Afonso
Essa entrevista foi realizada no decorrer da realização do meu pós-doutoramento na Universidade do Minho, no Instituto de Educação – Departamento deCiências Sociais da Educação, em Portugal, em que tive a feliz oportunidade de tê-lo como orientador. Na ocasião, o professor Almerindo tinha publicado recentemente o artigo O retorno do Estado, a crise pandémica e o keynesianismo de exceção, na revista Lutas Sociais, n. 45, jul/dez 2020 onde fez uma original reflexão sobre o Estado no contexto da pandemia. Considero importante partilhar com o público da revista de Políticas Públicas as reflexões desse grande intelectual,uma vez que necessitamos, a cada dia, de mais elementos para compreender o atual cenário que a humanidade atravessa.
Entrevistadora - O mundo foi surpreendido pela pandemia do covid-19 que alterou significativamente o convívio social, a vida coletiva e privada das pessoas. Que questões a pandemia coloca para a sociologia?
Almerindo Janela Afonso - Para além das mudanças sociais, as questões essenciais que são colocadas à sociologia são sempre as questões das desigualdades e injustiças, e as suas múltiplas causas e expressões. Sobretudo a partir de finais dos anos oitenta do século passado (quando profundas mudanças aconteceram na sequênciado colapso do chamado socialismo real e da expansão crescente das tecnologias da informação e comunicação), a sociologia teve de ampliar e reatualizar as suas análises, deixando de privilegiar o espaço nacional (o que alguns autores designam de nacionalismo metodológico) e assumir que as realidades nacionais podem ser mais rigorosamente compreendidas nas suas especificidades (sociais, culturais, económicas, históricas…), sobretudo se forem confrontadas com as agendas globais e as condicionantes e interações que resultam da crescente internacionalização do capitalismo. Com a pandemia ficaram mais evidentes as conexões entre as dinâmicas globais e nacionais – o que, obviamente, não pode deixar de interessar à sociologia. Quer à sociologia enquanto ciência normal, mais preocupada em compreender as realidades a partir da pesquisa empírica e de quadros teórico-conceptuais mais arrojados, quer à sociologia pública, mais comprometida com a denúncia das desigualdades e injustiças, na linha das propostas de Michael Burawoy e tantos outros autores críticos. Mas, ao mesmo tempo em que as conexões e tensões contraditórias do nacional com o global se tornam mais evidentes, também temos assistido a movimentos conservadores (alguns de extrema-direita), que reivindicam o retorno (e reforço) das estratégias de autonomia do Estado-nação, enquanto instância primordial de regulação e definição de políticas, querendo, por exemplo, distanciar-se das agendas e pressões de instâncias internacionais e/ou supranacionais (que, em grande medida, os Estados mais poderosos ajudam a construir).As classes sociais (aqui consideradas em sentido genérico) foram sempre o eixo fundamental em torno do qual se estruturaram as análises sociológicas, mas,já há algum tempo, por razões que, em grande parte, remetem para as lutas sociais em torno da reivindicação e conquista de direitos humanos básicos e, portanto, para uma maior consciência política e cultural,não podemos deixar de ter em consideração outros eixos e critérios (como o género, a raça, a etnia, a nacionalidade, a religião, a cultura, a visão político-ideológica…). Por isso, independentemente das discussões teóricas, políticas e metodológicas que sabemos existirem em torno do conceito de interseccionalidade, eu penso que os estudos sociológicos têm de assumir, cada vez mais, o foco, não em um ou outro eixo, mas nas interações complexas, complementares ou contraditórias entre as múltiplas situações de exploração e de dominação, às quais subjazem os diferentes eixos de fragmentação social. Um problema tão avassalador como a pandemia tem mexido profundamente com a vida das pessoas em todas as suas dimensões, e o aumento das desigualdades e injustiças continuou a vitimizar mais fortemente aqueles e aquelas que, anteriormente e por razões várias,eram já mais vulneráveis. As análises interseccionais são indispensáveis para termos uma visão mais ampla e profunda desta nova realidade. Penso mesmo que, apesar desta metodologia ter sido desenvolvida de forma pioneira por mulheres feministas negras, com profunda consciência política dos mecanismos de exploração e dominação, ela é uma metodologia transferível para todas as situações em que a compreensão mais profunda da realidade exija a análise (também sociológica) das interações, complementares e/ou contraditórias, dos vários eixos de fragmentação ou diferenciação social.
Entrevistadora - No enfrentamento da pandemia o Estado assumiu um protagonismo importante e muitas vezes contraditório de gestão dos interesses da economia e das necessidades de proteção da saúde dos indivíduos. Em um contexto de neoliberalismo e em alguns casos de ultraliberalismo, que reflexões podemos desenvolver quanto ao papel do Estado nesse novo momento?
Almerindo Janela Afonso - Na atual conjuntura pandémica, depois de décadas de proselitismo ideológico (não raras vezes radicalizado), que se traduziu em formas diversas de privatização, desregulação, reconfiguração do papel do Estado e desinvestimento público, os discursos neoliberais sumiram(estrategicamente) do espaço público, parecendo gerar-se um novo senso comum em torno da reivindicação do retorno a um Estado fortemente interventor, sobretudo nas áreas da saúde, da educação e da economia. E a interpretação desta nova conjuntura teve expressões várias, das mais entusiastas e espontâneas, às mais pragmaticamente cautelosas. Fala-se de novo de Estado social ou de Estado de Bem-Estar Social, mas isso, do meu ponto de vista, não corresponde rigorosamente ao que está a acontecer, sobretudo se considerarmos que esta forma política de Estado capitalista não teve qualquer expressão em muitos países e, mesmo onde teve sucesso, as condições históricas que o viabilizaram são hoje completamente distintas. O que tem acontecido,em certos casos, é aquilo que alguns autores já designaram de keynesianismo de exceção (escrevi sobre isso num artigo publicado recentemente na revista Lutas Sociais do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).Considerando apenas o que diz respeito à saúde, acredito na possibilidade de institucionalização regional de novas convergências e apoios mútuos entre Estados,que assumam coletivamente essa responsabilidade através de estruturas verdadeiramente supranacionais. Tivemos recentemente alguns sinais encorajadores na Cimeira Social do Porto, que se realizou sob a Presidência Portuguesa da União Europeia.Se desta vez a concretização dos objetivos traçados no Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais for levada a cabo de forma consistente, haverá certamente fortes motivos para continuar a construção e consolidação de alternativas viáveis que possam,com vantagens acrescidas, substituir ou reforçar decisivamente (pelo menos em situações de grave crise global), o funcionamento nacional das atuais estruturas (muito desiguais)dos diferentes Estados de Bem-Estar Social. No caso da saúde, não se pode, no entanto, secundarizar o papel da Organização Mundial da Saúde.Pelo contrário, há que fortalecer os seus poderes e as suas capacidades de atuação, renovando e ampliando(também)a sua legitimidade, uma vez que algum déficit neste domínio transpareceu quando, no decorrer da crise pandémica,alguns Estados não respeitaram (ou só respeitaram em parte ou tardiamente) as orientações da OMS. A crise pandémica mexeu profundamente com os Estados nacionais e com as mais importantes organizações internacionais e transnacionais. Há, por isso, muitas lições a tirar para o futuro.
Entrevistadora - No enfrentamento da pandemia, alguns Estados utilizaram a figura do Estado de emergência. Essa situação provoca algum dano no regime democrático?
Almerindo Janela Afonso - Houve em muitos setores sociais o receio de que as medidas (temporárias) de emergência, decididas por diferentes governos para fazer frente à pandemia, as quais implicaram privação de direitos fundamentais, tenderiam a tornar-se definitivas e, assim, normalizar (ou prolongar sine die) o que só seria admissível num breve e justificado período de tempo. O Estado de exceção, baseado em razões frequentemente discutíveis e demasiadamente prolongado no tempo, “tende cada vez mais a tornar-se o paradigma dominante na política contemporânea” – essa é a tese que Giorgio Agamben defende na sua conhecida obra, e que se suscitou muita polémica no contexto da atual pandemia. O Estado de emergência (que é a designação também utilizada na Constituição portuguesa) pode ser declarado por razões democraticamente justificáveis, tendo todas as suas condições explicitadas legalmente e por períodos temporais limitados. A este propósito, a recente experiência portuguesa mostrou que não houve nenhum prejuízo para a democracia. Mas nem sempre acontece assim em todos os Estados, podendo o Estado de emergência (ou de exceção) ser decidido de forma autoritária, ou na base de uma legitimidade duvidosa. Evidentemente, neste último caso, a declaração do Estado de emergência provoca danos irreparáveis à democracia.
Entrevistadora - A educação foi uma das áreas mais afetadas pela pandemia.Que questões você destacaria na área da educação que mais a impactaram?
Almerindo Janela Afonso - Como é do conhecimento geral, o impacto da pandemia no campo educacional foi fortíssimo e diversamente sentido na experiência de vida de cada pessoa.Com a escola suspensa no seu funcionamento normal, as famílias tiveram de reorganizar-se em função de muitas variáveis (espaços, tempos, número de pessoas a viver em conjunto, tipo de trabalhos ou situações de desemprego, número de filhos, disponibilidade ou não de recursos digitais, materiais e financeiros, gestão quotidiana de interações, expectativas, afetos, conflitos, projetos…). Houve (e ainda continuarão por muito tempo a existir) experiências muito positivas e experiências muito desgastantes e perturbadoras. Entre muitos exemplos possíveis, sabemos da maior aproximação e responsabilidade dos pais em relação à vida escolar dos filhos, da atualização de práticas de solidariedade e reciprocidade, do fortalecimento dos laços com vantagens cognitivas e afetivas recíprocas, mas também sabemos, noutras situações,que aumentaram os riscos de violência de género, as formas de manipulação, asestratégias de dominação e os processos de alienação. E essas vivências não puderam deixar de ter repercussões contraditórias no maior ou menor envolvimento com as aprendizagens, sobretudo quando nem todos os alunos tiveram meios para acesso a plataformas digitais para o ensino não presencial, o que no Brasil, na conjuntura atual,tem sido designado por ensino remoto emergencial. Por isso, as desigualdades educacionais, que já existiam, aumentaram muito, e dificilmente serão resolvidas (ou mesmo atenuadas) sem políticas públicas consistentes e duradouras. Quer no ensino não superior, quer no ensino superior, há dados empíricos que mostram, apesar das dificuldades desta conjuntura pandémica, um maior envolvimento dos professores nas tarefas de preparação das aulas e de continuidade no acompanhamento científico-pedagógico. E isso tem sido, em grande medida, bem acolhido pelos estudantes, sendo também um sinal estimulante que tem ajudado a manter viva a interação e o desejo de regressar à escola, em todos os níveis de ensino. Entre muitos outros, os contextos intrinsecamente educativos e relacionais (como o da escola presencial) são os que mais propiciam a reatualização quotidianadas vantagens insubstituíveis das vivências e experiências que constroem a nossa biografia.
Entrevistadora - E o período pós-pandemia?
Almerindo Janela Afonso - Em relação ao período pós-pandemia todos os cenários estão em aberto. E todos os dias surgem contributos importantes que precisamos conhecer e debater. E depois retirar ilações para a educação e para todas as outras dimensões da sociedade, que nos permitam avançar para formas de vida mais ecológicas, mais fraternas, mais solidárias, mais justas. Desejo muito que não voltemos a mimetizar realidades anteriores, como se nada tivesse acontecido. Mas também não acredito em mudanças radicais, para as quais não estamos preparados (embora seja urgente que nos preparemos). A minha posição é de um realismo esperançoso em relação a mudanças importantes que estão a desenhar-se, a começar por uma nova consciência ética e política.