Resenha
Resenha - SANTOS, Boaventura de Sousa A cruel pedagogia do vírus [recurso eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020, 47p
Resenha - SANTOS, Boaventura de Sousa A cruel pedagogia do vírus [recurso eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020, 47p
Revista de Políticas Públicas, vol. 25, núm. 1, pp. 290-295, 2021
Universidade Federal do Maranhão
SANTOS Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus [recurso eletrônico].. 2020. São Paulo:. Boitempo. 47ppp. |
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O livro A Cruel Pedagogia do Vírus foi escrito pelo doutor em Sociologia do Direito pela Universidade Yale, professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison Boaventura de Sousa Santos, no ano de 2020. Publicou variados trabalhos, entre os quais: A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000; Reinventar a democracia. Lisboa: Gradiva, 1998; Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, Porto: Afrontamento, 1994; O direito dos oprimidos. São Paulo: Cortez, 2014; A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 2006. Também publicado no Brasil, São Paulo: Editora Cortez, 2006.
O objetivo central da obra resenhada é refletir sobre a pandemia provocada pelo novo coronavírus, responsável por causar a doença Covid-19, e abstrair dela algumas lições.
Ancorado em referências teóricas, documentais e dados estatísticos, Boaventura de Sousa Santos apresenta contribuições relevantes a muitas áreas do conhecimento, tanto para se pensar a pandemia no contexto da crise permanente promovida pelo capitalismo, quanto as mudanças sociais que se impõem no período de pós-quarentena. O que, certamente, faculta um olhar mais atento às políticas públicas de corte social vigentes em países como o Brasil, por exemplo, que, até a presente data (31/05/2021), já contabilizava mais de 16.545.500 casos de pessoas contaminadas, dentre os quais, 462.791 óbitos, segundo informações disponibilizadas pelo Painel Coronavírus do Ministério da Saúde1. O livro se encontra organizado em cinco partes que dialogam entre si.
A primeira delas intitula-se Vírus: Tudo o Que é Sólido Desmancha no Ar e expressa que a atual pandemia se instala e se alastra num mundo em estado de crise permanente, provocada pelo capitalismo, acirrada na sua versão neoliberal sob comando do capital financeiro, e as correspondentes medidas de austeridade para finalidades perversas, como aumentar a concentração de renda, arruinar a capacidade do Estado de implementar políticas públicas em respostas aos problemas sociais, contingenciar a geração de empregos, promover desinvestimentos e privatizações em áreas estratégicas (saúde, educação, previdência social), rebaixamento de salários de trabalhadores/as, exacerbação de históricas desigualdades sociais experienciadas por grande parte da população global, (pobreza, fome, desemprego, imigrações forçadas). Desse modo, a pandemia agrava a crise social e econômica, o que eleva sua periculosidade. Não se vislumbram, nesse contexto, questionamentos ou intenções de combater as reais causas da crise, posto que são úteis para justificar apetites hipercapitalistas. Isto porque o sistema político democrático renunciou ao debate de alternativas a esse modo de vida perverso de viver, produzir, consumir e conviver. Cada vez mais as opções entrarão na vida de pessoas comuns pela porta dos fundos das crises pandêmicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros.
Embora se apresente como ameaça para toda a sociedade, a pandemia não é cega. Esta tem alvos privilegiados. Nomeadamente os descapitalizados sofrerão mais, inclusive para atender ao isolamento social proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS), enquanto medida de contenção da proliferação do vírus. Medida que, se por um lado, impacta negativamente na economia, enfraquece várias de suas atividades; por outro, contribui, positivamente, para a redução da poluição atmosférica.
Como desfecho deste primeiro tópico, e, à luz da sociologia das ausências, o autor assinala que, apesar da comoção mundial que uma pandemia desta magnitude provoca, milhares de pessoas seguem invisíveis em muitas partes do mundo, sem condições de cumprir o isolamento social, expostas ao vírus e, à margem de direitos basilares. Nesse contingente populacional se encontram refugiados, imigrantes detidos em campos de internamento, famílias numerosas em habitações pequenas e insalubres, encarcerados, sem tetos, entre outros.
A segunda parte denomina-se A Trágica Transparência do Vírus e demonstra que a pandemia em apreço deve ser interpretada como uma alegoria cujo sentido real está para além das aparências figurativas. Para o autor, ela revela não somente pânico generalizado e mortes inesperadas provocadas por um inimigo comum, mas, igualmente, a vigência e a dinâmica de seres invisíveis e poderosos, hospedeiros de espaços específicos: o vírus nos corpos; o deus nos templos; os mercados nas bolsas de valores. Seres cuja altivez tem sido construída pela mediação do que Santos denomina três unicórnios, representados pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado. Juntos, conformam, de modo articulado, uma tríade poderosa de dominação, que age nos seres humanos em todas as esferas da vida social e que se tonifica em tempos de crises agudas. De forma explícita ou sutil, disciplinam corpos, hierarquizam pessoas, legitimam desigualdades sociais de todos os portes, ameaçam a vida no e do planeta.
O autor chama a atenção para a necessidade de ampliar a problematização sobre a atual pandemia, correlacionando-a com problemas históricos de ordem social, econômica, política e ecológica provocados pelo capitalismo. Adverte que é imperativo que retomem as suas teorizações com o mundo, penetrando na essência da realidade, em vez de apenas escreverem sobre o mundo aparente. Confabular entre as ideologias, atentos às necessidades e às aspirações diárias dos/as cidadãos/ãs comuns e, a partir delas, teorizar. Caso contrário, essas pessoas não conseguirão compreender o que de fato se passa; como a pandemia agudiza a crise já experienciada de forma cruel, as consequências na vida cotidiana e mais, estarão à mercê de quem sugere entender suas angústias e falar a mesma língua: pastores evangélicos conservadores ou apologistas da dominação capitalista, colonialista e patriarcal.
Na terceira parte do texto, alcunhada A Sul da Quarentena, o autor disserta sobre a quarentena instituída para conter o novo coronavírus e o faz na perspectiva de determinados grupos sociais que, em comum, contabilizam inseguranças sociais precedentes, designados por Santos, metaforicamente, como Sul. Por Sul estão englobados não o espaço geográfico, mas espaço-tempo, político, social e cultural consubstanciado por mazelas humanas. Vítimas da dominação e exploração capitalista, discriminação racial e sexual, conformam uma lista exaustiva. Na impossibilidade de referenciar a todos, destaca:
a) Mulheres: a quarentena deixou-as mais propensas à violência doméstica, divórcios, cansaços. Vistas como cuidadoras do mundo pela sociedade, desdobraram-se em sua prestação dentro e fora de casa. Faltou-lhes tempo para cuidarem de si próprias;
b) Os trabalhadores precários, informais, ditos autônomos: componentes de um grupo global dominante. Com parcos direitos trabalhistas, após ataques neoliberais, estão mais expostos a desempregos e subempregos informais, o que faz da quarentena para eles algo impraticável ante a escolha entre ficar em casa e morrer de fome, ou se expor ao vírus com risco de morte, e trabalhar fora para manter a si e família;
c) Os trabalhadores da rua: grupo que, tradicionalmente, vive em quarentena nas ruas com gente. Na condição de trabalhadores precários, são os que garantem a quarentena de muitos, logo, não podem manter-se isolados. Dependem do que vendem para a subsistência, sempre de maneira incerta;
d) Os sem-teto ou as populações de rua: contingentes populacionais que já vivem quarentena contínua. Invisíveis, seguem distantes da proteção social;
e) Os moradores de periferias pobres das cidades, favelas, barriadas, slums, caniço etc.: pessoas que enfrentam a quarentena decretada pela atual pandemia de forma mais dura, uma vez que tal medida se soma a outras emergências como a alimentar, habitacional, sanitária, de segurança pública, além dos estigmas sociais destas resultantes;
f) Os internados em campos para refugiados, os imigrantes indocumentados ou as populações deslocadas internamente: mais pessoas que já vivem em situação de confinamento incessante e, para as quais, a quarentena da atual pandemia não altera essa condição. Embora a propagação do vírus entre eles traga efeitos bem mais críticos do que os enfrentados pelas populações pobres das periferias;
g) As pessoas com deficiência: vítimas de múltiplas formas de dominação, tal como o capacitismo, capitalismo, colonialismo e patriarcado. Eis aqui mais um público que vive em permanente quarentena, dadas as limitações e discriminações que lhes são impostas pela sociedade;
h) Os idosos: outro grupo numeroso em quarentena frequente, e em suscetibilidade que não é, necessariamente, indiscriminada, consoante posse dos familiares, podem ser depositados em cofres de luxo ou depósitos de lixo. Além da pandemia, há que se considerar que abandono, solidão, isolamentos afetam suas saúdes e existências.
Por fim, o autor assevera que, contrariamente às afirmações da mídia e dos organismos internacionais, a quarentena expõe e reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento por ela provocados. Essa assimetria se invisibiliza em razão do pânico que atinge os que não estão habituados a tal sofrimento.
Na quarta parte, nomeada A Intensa Pedagogia do Vírus: As Primeiras Lições, Santos homologa o debate realizado nos itens anteriores, sintetizado em seis lições iniciais, apreendidas de forma implacável com a pandemia, na certeza de que estas não esgotam suas possibilidades de aprendizagens: Lição 1: o tempo político e midiático condiciona o modo como a sociedade contemporânea se apercebe dos riscos que corre; Lição 2: as pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga; Lição 3: enquanto modelo social, o capitalismo não tem futuro; Lição 4: a extrema direita e a direita hiperneoliberal ficaram definitivamente descreditadas (espera-se); Lição 5: o colonialismo e o patriarcado estão vivos e reforçam-se nos momentos de crise aguda; Lição 6: o regresso do Estado e das comunidades.
Esse exercício mostra como essas lições, embora penosas, são primordiais para compreensão e reação frente à desordem vigente. A pandemia do coronavírus é resultado de crises pretéritas (crise climática, crise ecológica...) que, por sua vez, há mais de quarenta anos, seguem alheias aos holofotes das grandes mídias e dos poderes políticos, apesar da gravidade e dos riscos de letalidade colossais. O objetivo da crise permanente é não ser resolvida.
Pandemias evidenciam problemas antigos (sociais e econômicos), desvelam como o capitalismo incapacita o Estado a responder em situações emergenciais. E é aqui que elas operam como estratégicas para a análise, pois se espera que as pessoas consigam enxergar o que está em causa e entendam que só será possível estagnar esses ciclos hediondos, exterminando o capitalismo e suas variantes. Como modelo social, o capitalismo não tem futuro. E, se subsistir, que não seja o único e nem aquele a quem cabe proferir a lógica de ação do Estado e da sociedade. Caso contrário, o pós-crise seguirá a receita já instaurada, com desprezo aos direitos humanos, mais privatizações de serviços públicos, subfinanciamentos das políticas de corte social que restarem, apologia do Estado de exceção, ataques à ciência, xenofobias, racismos e outras pandemias, possivelmente mais sinistras.
Ambas as crises se entrelaçam. Guarnecidas por sua versão mais antissocial do capitalismo, o neoliberalismo. Ao mesmo tempo que conduz a sociedade a uma tragédia global, nutrida pela extrema direita. No contexto pandêmico, sob o pretexto de salvar o mercado, governos direitistas manipularam instrumentos democráticos, minimizaram os efeitos da pandemia, negligenciaram informações e a comunidade científica, enquanto pessoas experienciavam riscos e/ou faleciam, como se pudessem vicejar para todo o sempre mercantilizando vidas.
Vale lembrar que em situações de emergências, medidas de prevenção ou de contenção jamais são de aplicação universal; via de regra garantem a sobrevivência de alguns corpos, primeiramente os mais valorizados, aptos, úteis para a economia. Reflexos da ação do colonialismo e do patriarcado.
A quinta parte intitula-se O Futuro Pode Começar Hoje e fecha a obra, momento em que o autor mostra que a pandemia e a quarentena evidenciam que as sociedades se adaptam a novos estilos de vida, quando isso se faz necessário e indispensável ao bem-estar coletivo, o que cria condições favoráveis à retomada do inadiável debate sobre alternativas à lógica do capitalista neoliberal, que defenda a vida acima do lucro mercantil, financeiro. O que, decerto, preveniria o flagelo de outras pandemias.
Chama a atenção para a imperiosa rearticulação entre processos civilizatórios e políticos, nos moldes do que havia antes da queda do muro de Berlim. Tempo em que alternativas econômicas, sociais, políticas e culturais (que em nada tinham a ver com o socialismo soviético), compunham a agenda de debates em um horizonte pós-capitalista, e que fora desfeita com a queda do muro, com a correspondente consolidação, a partir do Norte global, de que não havia alternativa ao capitalismo.
Para Boaventura de Sousa Santos, sem essa nova conexão entre ambos se torna muito mais difícil vislumbrar uma sociedade cônscia de que, sem a defesa do planeta no seu todo, a vida humana não subsistirá. A superação dessa quarentena prolongada reivindica essa guinada de ordem epistemológica, cultural e ideológica.
Notas