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Recepción: 17 Agosto 2020
Aprobación: 27 Mayo 2021
Resumo: O presente artigo expõe os nexos causais entre alienação, pauperismo e “questão social”, com vistas a demonstrar o sistema de causalidades entre esses fenômenos que se assentam sobre as mesmas bases materiais e humanas. Observa que, não obstante as forças produtivas terem atingido um grau de desenvolvimento nunca visto antes, os indivíduos humanos são submetidos à condição de pobreza absoluta e relativa. Compreende que o mesmo conjunto de causalidades que produz a superpopulação relativa produz igualmente o processo de pauperização dos trabalhadores e as bases sobre as quais se erguem diferentes expressões da “questão social”, bem como as mais diversas formas de alienação humana. Conclui que são fenômenos historicamente caros à humanidade e, particularmente, ao Serviço Social como profissão.
Palavras-chave: Alienação, Pauperismo, “Questão Social.
Abstract: The following article exposes the causal links that connects alienation, pauperism and the “social issue”, with the aim to demonstrate the system of causalities between these phenomenons that are founded on the same material and human bases. It is observed that, although the productive forces have reached a degree of development never seen before, human individuals are subjected to the condition of absolute and relative poverty. It is understood that the same set of causalities that produces the relative overpopulation also produces the process of workers’ impoverishment, and represents the foundations on which different expressions of the “social issue” arise, as well as the various forms of human alienation. These phenomena are historically costly to humanity and, particularly, to Social Work as a profession.
Keywords: Alienation, Pauperism, “Social Issue”.
1 INTRODUÇÃO
Tratar sobre o sistema de causalidades entre alienação, pauperismo e a chamada “questão social” constitui, certamente, um enorme desafio, pela complexidade das relações causais que envolve esses três fenômenos do mundo dos homens. A discussão sobre o fenômeno da alienação é, ao mesmo tempo, antiga e atualíssima, haja vista que não se pode fazer a crítica às sociedades de classes, ao Estado, à propriedade privada e, consequentemente, à exploração do homem pelo homem, sem passar pela alienação, ao menos de forma implícita. Portanto, não se pode fazer a crítica ao capitalismo, com todas as consequências dele advindas, sem que se refira ao conjunto de alienações que emergem da sua base material: o trabalho alienado. Também se considera um tema da maior importância para o Serviço Social e áreas afins, pois as bases materiais que determinam a alienação humana são as mesmas que determinam o surgimento do pauperismo e da chamada “questão social”, fenômenos historicamente caros à humanidade e, particularmente, ao Serviço Social como profissão.
Pautarei minha abordagem principalmente pelas reflexões deixadas pelo filósofo húngaro Georg Lukács1 na sua obra de maturidade, Para uma ontologia do ser social, bem como por Marx, sem deixar de recorrer a outros autores, de modo a esclarecer os nexos causais que estão na base desses fenômenos dos quais nos ocuparemos aqui. Pensar a alienação em suas bases materiais tem tudo a ver com uma reflexão que busca, a partir dessas bases, entender o pauperismo e a questão social como problemas puramente sociais que em nada se relacionam com as determinações da vida orgânica, muito menos com aquelas da esfera inorgânica. Intenciona-se, pois, refletir sobre qual o significado dessas categorias à luz da teoria histórico-crítica.
Certamente, a riqueza categorial implícita no tratamento dessas questões que considero da maior importância para pensarmos a sociedade em que vivemos é mais ampla que a abordada aqui, entretanto essa abordagem é também muito significativa na explicitação do problema. Valer-nos-emos de algumas abstrações como recurso ontometodológico, sem, contudo, deixar de observar o processo histórico no qual esses fenômenos surgem concretamente. Neste sentido, procuraremos responder à pergunta central: o que é alienação e quais suas expressões no âmbito do pauperismo e da questão social?
2 BASES COMUNS AOS FENÔMENOS DA ALIENAÇÃO HUMANA, DO PAUPERISMO E DA “QUESTÃO SOCIAL”
Para Lukács, a alienação nada mais é do queum processo de desumanização dos homens construído por eles mesmos. Processo que tem origem no ser social, cujas manifestações, como afirmou Marx, não saltam dos livros para a vida, mas desta para os livros. Isso significa dizer que se trata de um fenômeno concreto que surge e se desenvolve em realidades concretamente determinadas. A vida em sociedade, portanto, se põe como lugar ontológico onde surgem e se desenvolvem todas as objetivações referentes à produção e à reprodução social, bem como às exteriorizações daí resultantes. Seu fundamento último está no trabalho, aqui compreendido como intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza, momento basilar do ser social, base da práxis e do pensamento humano. Nesse sentido, a alienação é um modo de ser e de viver desumano que tem origem na produção das condições materiais de existência e adentra as demais relações entre os homens, com um caráter objetivo manifesto também subjetivamente.
Ao produzirem algo novo, os homens produzem também a si mesmos como entes humano-genéricos. Mas esse processo (que é um processo de objetivação/exteriorização), sob condições históricas determinadas, constitui a base ontológica de um movimento desigual e contraditório que dará origem à alienação enquanto impedimento à plena explicitação do gênero humano. Ou seja, esse caráter negativo impede a constituição do gênero humano em toda a sua plenitude.
A gênese desse processo encontra-se não no trabalho voltado à produção de valores de uso para suprir as necessidades humanas, mas no trabalho baseado na exploração do homem pelo homem, ou seja, no trabalho alienado. Nele, o momento predominante é o do valor de troca. Daí se desdobram novos processos que não dizem respeito diretamente à transformação da causalidade natural como no trabalho; este implica precisamente a relação homem/natureza, mas a transformação da causalidade social numa nova causalidade, também social, posta pelos homens nos atos da vida cotidiana. Isso significa que do trabalho explorado se desdobra um conjunto de relações alienadas que embora não digam respeito diretamente à produção, desempenham uma função importante para a manutenção de determinadas relações sociais de exploração.
O primeiro aspecto que queremos deixar marcado aqui é que a alienação é um fenômeno histórico; não se trata de uma condição humana geral à qual a humanidade esteja inexoravelmente submetida, mas de um complexo da sociabilidade que só adquire significado no interior da práxis social, isto é, a partir de situações concretas objetivadas na vida cotidiana dos homens em todos os lugares do planeta Terra.
No capítulo da alienação – na sua obra de maturidade –, Lukács faz uma dura crítica a Hegel, para quem a alienação tem lugar apenas no pensamento abstrato e não na vida real, sensível dos homens, crítica esta originalmente realizada por Marx. Para Hegel, a alienação é um fenômeno da consciência, razão pela qual superá-la não requer nada mais além da sua superação na consciência dos homens. Lukács, ao contrário,assume uma posição ontológico-materialista em que a objetividade deixa de ser um mero produto do pensamento e passa a constituir-se num complexo que existe independentemente da consciência que os homens tenham dele. O que queremos dizer com isso é que Lukács, a exemplo de Marx, parte da terra ao céu, e não o contrário. Nesse sentido, a alienação é um fenômeno real, portador de uma objetividade que exerce uma força real e efetiva na vida dos homens, independentemente de terem eles consciência disso ou não.
Para entender esse fenômeno em sua essência, faz-se necessário que se desvelem seus fundamentos ontológicos. Refletindo a partir do que Marx já havia descoberto desde os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, Lukács demonstra que o problema da alienação se conecta à relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e o desenvolvimento dos indivíduos humanos. É impossível apreender corretamente esse fenômeno na Ontologia fora desse sistema de causalidades, porque é a partir dele que, segundo Lukács, Marx elucida a contradição dialética que funda a alienação: “o desenvolvimento das forças produtivas imediatamente conduz a uma formação superior das capacidades humanas que, todavia, contém em si ao mesmo tempo a possibilidade de, nesse processo, sacrificar os indivíduos (mesmo classes inteiras), conforme Marx já afirmara2”. (LUKÁCS, G., 2018, v. 14, p. 504).
Sob a sociedade de classes é isso que acontece; o crescimento das capacidades humanas impulsionado pelo desenvolvimento das forças produtivas só é possível sacrificando o crescimento subjetivo dos indivíduos humanos e até mesmo de classes inteiras. Essa contradição funda a alienação no preciso sentido ontológico e historicamente produzido no processo de desenvolvimento da totalidade social. O que justificaria, por exemplo, diante do desenvolvimento tecnológico atual, em que a produção social da riqueza vem aumentando exponencialmente, a existência de bolsões de pobreza pelo mundo inteiro? Isso nos parece confirmar que Marx estava absolutamente correto quando demonstrou que no capitalismo o desenvolvimento das forças produtivas só pode ocorrer sacrificando indivíduos humanos, pois aos indivíduos submetidos a condições de pobreza, especialmente a pobreza absoluta, é negada a possibilidade do desenvolvimento de todas as suas potencialidades em múltiplos aspectos sociais e culturais.
A raiz de tal fenômeno está no fato objetivo de um desenvolvimento no qual ocorre uma concentração de riqueza acompanhada por um crescente aumento da desigualdade ‒ ao produzir riqueza, produz igualmente miséria não apenas material, mas também espiritual, na medida em que avilta a personalidade3 humana ao invés de proporcionar sua elevação em direção ao gênero autenticamente humano, omnilateral. Ocorre então uma antítese operada pelo processo econômico, na qual o desenvolvimento da riqueza produzida pelos homens gera ao mesmo tempo um modo desumano de viver por parte deles. Aqui se encontra o problema central da alienação caracterizado, em linhas gerais, pela exploração do homem pelo homem, fenômeno presente na história da humanidade desde a primeira sociedade de classes, o escravismo, agravando-se consideravelmente no capitalismo, momento em que o poder desumano do capital impera sobre tudo e sobre todos4.
Ao afirmar isso queremos deixar bem marcado o fato de que é de fundamental importância atentar para as práticas presentes na vida cotidiana, mediadas pelas instituições econômicas e pelo Estado, regidas em sua totalidade pelo sistema do capital em crise profunda. Como diz Mészáros (2000, p. 7): “Vivemos na era de uma crise histórica sem precedentes”, uma crise severa, distinta, portanto, do que Mandel chama de crises cíclicas vividas no passado. Trata-se de uma crise estrutural, nos termos de Mészáros, crise que “afeta – pela primeira vez em toda história – o conjunto da humanidade” (MÉSZAROS, 2000, p. 7).
Assim, demolindo todas as barreiras impeditivas de seu processo de acumulação, concentração e centralização,
[...] o capital, como um sistema orgânico global, garante sua dominação, nos últimos três séculos, como produção generalizada de mercadorias. Através da redução e degradação dos seres humanos ao status de meros “custos de produção” como “força de trabalho necessária”, o capital pode tratar o trabalho vivo homogêneo como nada mais do que uma “mercadoria comercializável”, da mesma forma que qualquer outra, sujeitando-a às determinações desumanizadoras da compulsão econômica. (MÉSZÁROS, 2000, p. 8, grifo do autor).
Importa aqui ressaltar duas questões: 1ª) a produção de valores de uso destinada a atender a necessidades humanas não produz por si mesma a desumanização do homem. Esse processo se desencadeia a partir do trabalho alienado, no qual o valor de troca assume centralidade; 2ª) em estreita ligação com a primeira questão, o desenvolvimento das forças produtivas não tem caráter negativo, até porque ele decorre da potencialidade de o trabalho impulsionar para além dele mesmo e desenvolver nos homens novas capacidades, novas habilidades e possibilidades. Sob a sociedade de classes, em especial na sociedade capitalista, o que acontece é que esses processos sofrem as determinações de uma sociabilidade regida pela propriedade privada, pelas determinações do capital e não do trabalho.
Constata-se uma crescente potencialização das capacidades humanas provocada, ao longo da história, pelo desenvolvimento das forças produtivas; de igual modo, não é difícil perceber o caráter de desigualdade desse desenvolvimento, o que conduz à degradação da personalidade do homem, e não à sua elevação no sentido omnilateral. No capitalismo, Lukács constata essa degradação desde o trabalho manufatureiro que, sem dúvida, foi um progresso em termos econômicos, mas enquanto desenvolve as capacidades humanas, contraditoriamente, degrada os indivíduos no que eles têm de mais essencial: a construção de sua individualidade.
Em sua crítica a Proudhon, na Miséria da Filosofia5, Marx afirma:
Uma simples observação ao sr. Proudhon. A separação das diferentes partes do trabalho, deixando a cada um a faculdade de se dedicar à especialidade que mais lhe agrade, separação que o senhor Proudhon data do começo do mundo, existe somente na indústria moderna, sob o regime da concorrência. (MARX, K. 2008, p. 156).
A indústria manufatureira6 não é para Marx ainda uma indústria moderna, do mesmo modo que não é uma indústria dos artesãos da Idade Média, muito menos uma indústria doméstica. Ela requer para a sua formação “uma condição das mais indispensáveis [...] a acumulação de capitais, facilitada pela descoberta da América e pela introdução de seus metais preciosos”. (MARX, 2008, p. 158). Outras condições apontadas por Marx nessa mesma obra remetem àquele momento em que “à proporção que a classe dos proprietários e a classe dos trabalhadores, dos senhores feudais e o povo declinavam, na mesma proporção se elevava a classe dos capitalistas, a burguesia”. (MARX, 2008, p. 158).
A história nos ajuda a compreender aquele momento em que várias outras circunstâncias concorreram para que a manufatura pudesse se desenvolver, como, por exemplo, “[...] o aumento de mercadorias postas em circulação desde que o comércio penetrou nas Índias Orientais pela via do Cabo da Boa Esperança, o regime colonial, o crescimento do comércio marítimo”. (MARX, 2008, p. 158).
Segundo Marx (2008, p.158):
A oficina encontra ainda poderoso apoio nos numerosos camponeses que, expulsos seguidamente dos campos pela transformação das terras de cultivo em pradarias e porque os progressos agrícolas precisavam cada vez de menos braços para a cultura das terras, afluíram às cidades durante séculos inteiros.
Ademais,
O crescimento do mercado, a acumulação de capitais, as mudanças sobrevindas na posição social das classes, uma multidão de pessoas que ficaram privadas de suas fontes de renda, eis algumas condições históricas para a formação da manufatura. Não foram, como afirma o sr. Proudhon, estipulações de comum acordo entre iguais que reuniram os homens na oficina. Nem sequer foi no seio das antigas corporações que a manufatura nasceu. Foi o mercador que se fez dono da oficina moderna, e não o antigo mestre das corporações. Quase por toda parte houve uma luta encarniçada entre a manufatura e as corporações de ofício. (MARX, 2008, p. 158).
Todos esses elementos expostos em Miséria da Filosofia corroboram a tese de Lukács, após Marx, do sacrifício a que os trabalhadores são submetidos no processo de produção da riqueza social. Fato histórico que não aconteceu, como lembra Marx, “de comum acordo entre iguais”, conforme queria Proudhon. Posteriormente, em O Capital, Marx adensa essa discussão com muitos outros elementos, o que não nos cabe trazer aqui, senão apontar apenas que “A cooperação baseada na divisão do trabalho adquire sua forma clássica na manufatura”. (MARX, 1988, p. 254).
Sabemos que a produção manufatureira se estendeu de meados do século XVI até o último terço do século XVIII. Nos séculos que se seguiram até o momento em que vivemos, o processo de desumanização ali posto só se agravou. Inseridos indistintamente no processo de trabalho, os trabalhadores são coisificados na medida em que entram no processo de trabalho como parte de uma máquina. O próprio Marx (v. I, tomo 1, 1988, p. 271) já havia criticado o caráter capitalista da manufatura quando afirmou que nela “o enriquecimento do trabalhador coletivo7 e, portanto, do capital em força produtiva social é condicionado pelo empobrecimento do trabalhador em forças produtivas individuais”.
Esse é um dos aspectos tomados por Lukács para pôr em evidência a contradição a que estamos nos referindo: o desenvolvimento das forças produtivas desenvolve as capacidades dos homens ao tempo que os submete a um conjunto de alienações que se estendem das relações de trabalho às demais práxis humanas. Mas ele nos adverte de que não obstante sua relevância, esta contradição “não abrange a inteira totalidade do ser do homem”, assim como “não se reduz (salvo nas deformações subjetivistas) a uma antítese abstrata entre subjetividade e objetividade, entre homem singular e sociedade, entre individualidade e sociabilidade”. Porque “não há nenhuma espécie de subjetividade que, nas raízes e determinações mais profundas de seu ser, não seja social”. (LUKÁCS, G. 2018, v. 14, p. 510).
O que o autor quer dizer com isso? Que uma personalidade humana8 enquanto categoria histórica surge e se desdobra a partir de muitas determinações que se situam no âmbito da contradição entre o desenvolvimento das capacidades e o desenvolvimento da individualidade. Mas não apenas, pois a personalidade requer muitas vezes, para se desenvolver, uma “formação mais elevada das capacidades singulares” (LUKÁCS, G. 2018, v. 14, p. 510), a que nem todos têm acesso igualmente. Daí por que não devemos dirigir a atenção de modo unilateral a essa contradição, mesmo considerando sua importância.
Isso nos conduz a pensar sobre outro aspecto igualmente importante: toda e qualquer alienação, por mais que a sua existência seja determinada pela economia, não pode ser superada teórica e praticamente sem a mediação das formas ideológicas, o que não significa que Lukács considere a alienação um mero fenômeno ideológico9. Só para lembrar, a exemplo de Marx, para Lukács a ideologia é o instrumento social que auxilia os homens no combate dos conflitos que nascem do contraditório desenvolvimento econômico. Não há em Lukács uma separação entre economia e ideologia, muito menos uma identidade; esses complexos interagem entre si, cada um com sua função social específica. O ser social, determinado em primeiro lugar pela economia, induz os homens a resolverem, com o auxílio da ideologia, os conflitos que têm origem na própria economia.
A propósito do caráter ideológico da alienação, com a grande indústria surgem produtos destinados ao consumo de massa, tornando-se necessário um aparato especial para que sejam consumidos. Como Lukács, estamos convencidos de que todo o sistema de manipulação surgiu da necessidade do consumo de massa e depois se estendeu à sociedade em geral. Esse é um mecanismo que hoje domina todas as expressões da vida social, desde as mais simples às mais complexas. Quais as consequências disso?
A exploração da classe operária vai se intensificando a partir da predominância da mais-valia relativa sobre a mais-valia absoluta, alimentada, conforme a lei geral da acumulação capitalista, pelo “crescente aumento da parte constante do capital em relação à parte variável”. (MARX, K. tomo 2, p. 185). Tal fenômeno evidencia-se com o surgimento da grande indústria e de todo o seu sistema manipulatório. Com ela há a possibilidade real de aumento da exploração do operariado.
Lukács se apropria da reflexão de Marx sobre a mais-valia relativa para pensar uma nova fisionomia que a alienação adquire a partir da grande indústria. Se através da mais-valia absoluta a produção é apenas formalmente subsumida ao capital, com a mais-valia relativa ocorre uma subsunção da produção às categorias do capitalismo, uma subsunção real do trabalho ao capital, característica específica da nossa época.
E o que isso tem a ver com a alienação? Tem tudo a ver, porque aí se põem as bases da alienação que emanam do trabalho alienado, trabalho que, nos marcos do capitalismo, é dominado pelo capital. Essas são também as bases materiais que fundamentam o fenômeno do pauperismo e da “questão social”10, conforme veremos a seguir.
3 ALIENAÇÃO, PAUPERISMO E “QUESTÃO SOCIAL”
Com a acumulação de capital gerada a partir da mudança de sua composição orgânica, a população trabalhadora produz, segundo Marx (1988, p. 191), “em volume crescente, os meios de sua própria redundância relativa”. Para ele, “essa é uma lei populacional peculiar ao modo de produção capitalista” (MARX, 1988, p. 191), no qual “o acréscimo do capital variável torna-se então índice de mais trabalho, mas não de mais trabalhadores” (MARX, 1988, p. 194). Constata-se aqui uma maior exploração do trabalho, tanto extensiva quanto intensiva, em que o capitalista põe em ação mais trabalho com o mesmo dispêndio de capital variável.
Como Pimentel (2007) já havia percebido, encontram-se na lei geral da acumulação capitalista os nexos causais do pauperismo e, sem dúvida, também da “questão social”, conforme afirma Santos (2012, p. 26)11. Antes mesmo de discorrer sobre essa lei, no capítulo sobre Maquinaria e Grande Indústria, Marx assegura:
As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria não existem porque decorrem da própria maquinaria, mas de sua utilização capitalista! Já que, portanto, considerada em si, a maquinaria encurta o tempo de trabalho, enquanto utilizada como capital aumenta a jornada de trabalho; em si, facilita o trabalho, utilizada como capital aumenta sua intensidade; em si, é uma vitória do homem sobre a força da Natureza, utilizada como capital submete o homem por meio da força da Natureza; em si, aumenta a riqueza do produtor, utilizada como capital o pauperiza etc. (MARX, 1988, p. 54-55).
Observa-se que sob a regência do capital, a máquina concorre com o próprio trabalhador que, ao invés de dominar os meios de trabalho, é dominado por eles. Tem-se um processo de autovalorização do capital que destrói as condições de existência do trabalhador. Sabe-se que o trabalhador vende sua força de trabalho como uma mercadoria. Com o surgimento da máquina impõe-se uma divisão do trabalho na qual aquela “habilidade inteiramente particularizada de manejar uma ferramenta parcial” desaparece, extinguindo-se com isso o valor de troca da força de trabalho.
Como diz Marx, “o trabalhador torna-se invendável, como papel-moeda posto fora de circulação”. (MARX, 1988, p. 46).
A parte da classe trabalhadora que a maquinaria transforma em população supérflua, isto é, não mais imediatamente necessária para a autovalorização do capital, sucumbe, por um lado, na luta desigual da velha empresa artesanal e manufatureira contra a mecanizada, inunda, por outro lado, todos os ramos mais acessíveis da indústria, abarrota o mercado de trabalho e reduz, por isso, o preço da força de trabalho abaixo de seu valor. (MARX, 1988, p. 46).
Percebe-se quão destruidora é a utilização capitalista da maquinaria para os trabalhadores pauperizados, o que nos permite indagar: se é verdade que os homens fazem sua própria história, como é possível que se deixem dominar pelos meios de produção que eles próprios criaram? Não seria o caso de dominá-los? A resposta a essa indagação implica desvendar o sistema de causalidades que subjaz às alienações, que faz com que a produção da riqueza corresponda à produção de miséria.
Marx põe os delineamentos fundamentais desse fenômeno desde os Manuscritos econômico-filosóficos, quando trata sobre o trabalho alienado como fundante não apenas das alienações operadas na práxis primária, mas também das relações alienadoras e alienantes que surgem no âmbito da superestrutura política e jurídica da sociedade.
Em O Capital ele retoma por diversas vezes e de modo mais evidente os pressupostos ontológicos que havia delineado lá nos Manuscritos, como é o caso da passagem abaixo:
Assim que, portanto, os trabalhadores desvendam o segredo de como pode acontecer que, na mesma medida em que trabalham mais, produzem mais riqueza alheia, e que na medida em que a força produtiva de seu trabalho cresce, até mesmo sua função de meio de valorização do capital se torna cada vez mais precária para eles; assim que descobrem que o grau de intensidade da concorrência entre eles depende inteiramente da pressão da superpopulação relativa; assim que eles, então mediante Trade’s Unions etc., procuram organizar uma atuação conjunta planejada dos empregados com os desempregados para eliminar ou enfraquecer as ruinosas consequências daquela lei natural capitalista sobre sua classe, o capital e seu sicofanta, o economista político, clamam contra a violação da “eterna” e, por assim dizer, “sagrada” lei da demanda e da oferta. (MARX, 1988, p. 197).
Perdoem-me essa longa citação, mas é preciso deixar minimamente claro que o problema do trabalho alienado e de suas consequências nunca foi um problema apenas do jovem Marx; ao contrário, esse fenômeno acompanha sua trajetória na crítica que faz à economia política e ao capitalismo.
Lukács observa que no tempo em que Marx escrevia os Manuscritos Econômico-Filosóficos, a alienação da classe operária significava um trabalho opressivo em um nível quase animal, um sinônimo de desumanidade. Daí por que a luta de classes tinha por objetivo, durante décadas, garantir o mínimo de uma vida humana para o trabalhador (melhores salários, diminuição do tempo de trabalho). A reivindicação de oito horas de trabalho posta pela Segunda Internacional é uma expressão dessa luta de classes, reconhece o autor.
É nas diferentes formas de existência da superpopulação relativa que Marx aprofunda o sistema de causalidades que ilumina o fenômeno da alienação, do pauperismo e da questão social nos tempos em que vivemos. Segundo o mestre alemão: “A superpopulação relativa existe em todos os matizes possíveis. Todo trabalhador faz parte dela durante o tempo em que está desocupado parcial ou inteiramente” (MARX, 1988, p. 197). Certamente nos marcos desta reflexão não será possível mais do que trazer os elementos decisivos para a compreensão dos nexos que unem essas três categorias do mundo dos homens.
Sobre a superpopulação relativa, Marx (1988, p. 199) assegura que seu “mais profundo sedimento habita a esfera do pauperismo”, camada social que inclui três categorias: os aptos para o trabalho, “uma massa que se expande a cada crise e decresce a toda retomada de negócios”; os órfãos e indigentes, isto é, os efetivamente candidatos ao exército industrial de reserva, requisitados a compor “o exército ativo de trabalhadores” sempre que necessário à reprodução do capital; e, por fim, os incapacitados para o trabalho, aqueles degradados e maltrapilhos, os que “ultrapassam a idade normal de um trabalhador e finalmente as vítimas da indústria, cujo número cresce com a maquinaria perigosa, minas, fábricas químicas etc., isto é, aleijados, doentes, viúvas etc.” (MARX, 1988, p. 199-200).
Essas constatações não são apenas uma realidade do século XIX, pois estão mais do que nunca presentes no mundo atual, em que a fome dizima populações. A superpopulação relativa envolve hoje uma grande multidão de humanos que, “enquanto vivos, sua presença não corresponde mais à lógica dominante, uma vez que já não dá lucro, mas, ao contrário, revela-se dispendiosa, demasiado dispendiosa” (FORRESTER, 1997, p. 28). Falando de Paris, a exemplo de outras grandes cidades, a autora demonstra o contraste entre riqueza e seu antídoto: a miséria. Realidade degradante na qual “papelão de embalagens faz vezes de habitação; paralelepípedos são camas. Essa miséria nas esquinas. Mas a vida corre, civil, amena, elegante, erótica também. As vitrines, os turistas, as roupas [...]” (FORRESTER, 1997, p. 35).
Todas essas pessoas vivem no anonimato, compõem uma multidão que se multiplica, são “populações inteiras às vezes entregues à fome, às epidemias, a todas as formas de genocídios, e geralmente sob o domínio de tiranos consentidos e apoiados pelas grandes potências”. (FORRESTER, 1997, p. 38). A autora indaga: “Essa pobreza disseminada, tão integrada a certas paisagens, será que poderia invadir nossas regiões sofisticadas?” (FORRESTER, 1997, p. 39). Certamente não. Por isso, essa massa pauperizada é mantida afastada “em guetos perdidos, em certos subúrbios, certas cidades adjacentes à capital, mas mais estrangeiras a ela que qualquer outra cidade estrangeira, mais afastada dela que outro continente”. (FORRESTER, 1997, p. 36).
Não está fora do contexto atual a constatação marxiana de que “quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe trabalhadora e do exército industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. Essa é a lei absoluta geral, da acumulação capitalista”, conforme diz Marx. (1988, p. 200, grifo do autor).
Ora, onde se encontram as raízes materiais desse problema senão em um modo de ser do trabalho alienado? Trabalho que, ao desenvolver as capacidades dos trabalhadores, produz ao mesmo tempo e no mesmo processo desumanidades que levam à barbarização da população trabalhadora e de suas famílias. O pauperismo é imanente à produção de riqueza sob o domínio do capital; ele
[...] constitui o asilo para os inválidos do exército ativo de trabalhadores e o peso morto do exército industrial de reserva. Sua produção está incluída na produção da superpopulação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e ambos constituem uma condição de existência da produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza. (MARX, 1988, p. 200).
O fenômeno do pauperismo surge na história da Europa Ocidental como consequência do processo de industrialização iniciado na Inglaterra na última quadra do século XVIII. Segundo Netto, “a pauperização massiva da população trabalhadora constitui o aspecto mais imediato da instauração do capitalismo em seu estágio industrial/concorrencial e não por acaso engendrou uma copiosa documentação”. (NETTO, J. P., 2013, p. 12). Segundo este autor, a expressão “questão social”12 surge para dar conta desse fenômeno.
A desigualdade entre as várias camadas sociais não era uma característica daquele momento da história, mas uma realidade muito anterior ao capitalismo, que ali assume uma nova característica: “se vinha de muito longe a polarização entre ricos e pobres, se era antiquíssima a diferente apropriação e fruição dos bens sociais, era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se generalizava” (NETTO, J. P., 2013, p. 12-13) nas primeiras décadas do século XIX. Tem-se, pois, um novo fenômeno se considerarmos que
A pobreza acentuada e generalizada no primeiro terço do século XIX – o pauperismo – aparecia como nova precisamente porque ela se produzia pelas mesmas condições que propiciavam os supostos, no plano imediato, da sua redução e, no limite, da sua supressão. Este pauperismo marca a emergência imediatamente visível da dimensão mais evidente da moderna barbárie, a barbárie capitalista. (NETTO, J. P., 2013, p. 13, grifo do autor).
A expressão “questão social” surge justamente dos desdobramentos sociopolíticos do pauperismo, determinados pelas condições de pobreza das camadas pauperizadas presentes na primeira metade do século XIX, sob protestos a exemplo do luddismo e da constituição das tradeunions, conforme afirma Netto (2013)
Nesse sentido,
A partir da segunda metade do século XIX, a expressão “questão social” deixa de ser usada indistintamente por críticos sociais de diferenciados lugares do espectro ideopolítico – ela desliza, lenta, mas nitidamente, para o vocabulário próprio do pensamento conservador. (NETTO, J. P., 2013, p. 13).
Trata-se de um momento em que a “questão social” é crescentemente naturalizada, perdendo o que Netto (2001) chama de “estrutura histórica determinada”. O marco dessa mudança será a Revolução de 1848.
De um lado, os eventos de 1848, cerrando o ciclo progressista da ação de classe da burguesia, impedem, a partir de então, aos intelectuais a ela vinculados (enquanto seus representantes ideológicos) a compreensão da relação entre desenvolvimento capitalista e pauperização. (NETTO, J. P., 2001, p. 43).
Tomando como referência o tratamento dado à questão social por Pimentel (2007) e Netto (2001, 2013), com os quais concordamos inteiramente, não é difícil perceber que há uma conexão entre “questão social” e alienação.
É evidente que as mudanças entre o tempo de Marx e o mundo atual, em decorrência do processo de expansão e desenvolvimento capitalista, são indiscutíveis. Mas os aspectos essenciais do modo de produção capitalista em relação às contradições do desenvolvimento material e subjetivo das capacidades humanas não desapareceram. Muito pelo contrário, essas contradições continuam a existir, e de forma muito mais acentuada. Esse modo de produção, em sua base material, ao tempo que cria riqueza, cria miséria. Aí se encontram as raízes materiais da “questão social” como algo efetivamente existente: a necessária e conflituosa contradição entre capital e trabalho, a extração da mais-valia como fonte de acumulação do capital, a apropriação privada dos meios e do produto do trabalho.
Do ponto de vista ético, a miséria a que atualmente está submetida boa parte da humanidade nada mais é do que uma desumanização sem precedentes na história, considerando que vivemos um momento em que o desenvolvimento das forças produtivas alcança níveis altíssimos e se mostra capaz de sanar problemas básicos do conjunto da humanidade nos mais diversos aspectos. Ninguém, em sã consciência, pode discordar disso. Temos a hegemonia de uma economia mundializada e desumana, de tal modo que:
Não demoraram muito para nos calar o bico com os dogmas dessa mesma hegemonia na qual, sejamos realistas, nos encontramos aprisionados. Não demoraram muito para nos opor as leis da concorrência, da competitividade, o ajustamento às regras econômicas internacionais – que são as da desregulamentação – e de nos entoar loas sobre a flexibilidade do trabalho. (FORRESTER, 1997, p. 32).
As relações econômicas estão, sem dúvida, na base da “questão social”, fenômeno permeado por impulsos alienantes ontologicamente presentes no capitalismo, expressos no empobrecimento dos indivíduos em contraposição ao intenso desenvolvimento das forças produtivas, com consequências positivas para o desenvolvimento das capacidades humanas. Esse é um movimento contraditório e desigual, em que a personalidade não alcança o mesmo patamar de desenvolvimento das capacidades humanas exigido pela divisão do trabalho.
O mercado13 passa a ser o elo entre as atividades humanas, provocando uma inversão em que as relações sociais entre os homens aparecem mediadas por coisas14. Estamos falando de uma forma de sociabilidade em que a miséria do trabalhador está em razão inversa ao poder e à grandeza daquilo que ele produz. Fato profundamente agravado no mundo moderno, já que a produção capitalista não produz unicamente o homem como mercadoria, mas o produz como ser espiritualmente desumanizado.
Além de ser expropriado do produto do seu trabalho, sua capacidade de trabalho se lhe apresenta como algo que não lhe pertence. Assim, tal capacidade, além de produzir a riqueza alheia e sua própria pobreza, a cada vez que é consumida cria um novo valor incorporado ao capital. Lukács afirma que o capitalismo introduz modificações significativas na esfera das alienações, pois, ao contrário dos modos de produção anteriores, nele as tendências alienantes operam não apenas no resultado, mas também no próprio ato de produção, já que os produtores nem sequer se reconhecem nesse processo.
Deparamo-nos com uma realidade em que a forma socialmente determinada da atividade produtiva, ao tempo que produz mercadorias, produz também um crescente valor do mundo das coisas à custa da desvalorização do mundo dos homens. Possuir algo se torna a medida de todas as coisas e de todas as relações, subjugando o preciso sentido do ser.
Aí estão as bases essenciais da desigualdade, do pauperismo e da “questão social”. Essas bases se relacionam com a essência dos processos alienadores presentes no mundo atual. A manipulação e o impulso ao consumo de massa presentes no cotidiano da vida social não apontam para um processo humanizador, muito pelo contrário, contribuem consideravelmente para a formação de um quadro em que aqueles que efetivamente produzem a riqueza são vítimas das piores condições de pobreza.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos no século XXI e não testemunhamos mudanças significativas em relação à pobreza. Nem poderíamos esperar que o Estado, com todo o seu aparato, pudesse realizar este feito. Até porque é próprio da sua essência reproduzir os interesses das classes dominantes e, nesse sentido, objetiva-se como um instrumento de opressão de classe. O máximo que o Estado consegue realizar são medidas paliativas que minimizam a “questão social” em suas variadas expressões.
A análise da forma de trabalho no capitalismo nos permite perceber com a devida clareza que o trabalhador é impossibilitado de desenvolver-se de modo autenticamente humano, resultando naquele processo de desumanização que expusemos nestas reflexões, cuja base se encontra no trabalho alienado. Essa desumanidade socialmente produzida se expressa de variadas maneiras: na pobreza extrema, na fome, na marginalização social, no desemprego, na opressão etc.
Segundo Coggiola (2017), em 1996, os 186 países da FAO15 assinaram um documento propondo reduzir a fome, até 2015, de 412 milhões de pessoas. Assiste-se, contudo, a um crescimento do pauperismo que convive com altas taxas de crescimento econômico. De modo semelhante, o desemprego, a violência urbana e rural, a precarização do trabalho, a falta de assistência na saúde e na educação são problemas que crescem assustadoramente, deixando para trás milhões de pessoas sem as menores condições de sobrevivência com dignidade.
Vivemos tempos que põem em perigo milhões de pessoas à mercê de uma economia despótica com superpoderes, economia mundializada que põe o mundo aos seus pés. Resta decidir, pelo menos, que lugar deve ocupar a vida nesse desenho, conforme nos alerta Forrester (1997). As consequências das novas tecnologias e da automação trazem consigo reais possibilidades de liberdade plena se não fossem resultantes dos interesses de reprodução e de acumulação do capital.
Não obstante um reconhecido desenvolvimento das forças produtivas, um novo problema se põe no horizonte dos trabalhadores: o problema de uma vida plena de sentido, diz Lukács (1969). Por que isso não acontece? Porque surge um novo problema, diz o mestre húngaro: aquela manipulação que vai do consumo de prestígio às eleições presidenciais ergue uma barreira no interior dos indivíduos entre a sua existência e uma vida rica de sentido (1969).
Como é possível uma vida plena de sentido numa sociedade marcada pela exploração, pela dominação do homem pelo homem, pelo pauperismo, pela desigualdade social que se consolida a cada dia? Degradação humana não combina com liberdade, mas com opressão. E não venham nos dizer que todos esses males sociais serão resolvidos pela mediação da política. Marx criticou justamente esse aspecto da burguesia inglesa que admitia que a causa do pauperismo estava nesse campo16.
A impossibilidade ontológica de o Estado resolver as sequelas da “questão social” está na sua essência de classe que ele tenta ocultar, mas que se revela ainda mais claramente no capitalismo monopolista, período em que se acentuam as desigualdades sociais como um fenômeno sem precedentes na história. Para se ter uma ideia do agravamento desse quadro na atualidade, “Dois bilhões de favelados em 2030 ou 2040 é uma possibilidade monstruosa, quase inconcebível, mas a pobreza humana por si só superpõe-se às favelas e excede-as”. (DAVIS, 2006, p. 155). A previsão dos pesquisadores do projeto Observatório Urbano da ONU de que em 2020 “a pobreza urbana do mundo chegará a 45% ou 50% do total de moradores das cidades” (MORENO, apud DAVIS, 2006, p. 155) não parece ser algo distante da realidade.
Esperamos ter deixado minimamente claros os nexos ontológicos expressos no sistema de causalidades entre alienação, pauperismo e “questão social”. Parece-nos decisivo reconhecer o trabalho alienado como fundamento último de relações sociais de exploração, gerador de inúmeras contradições, das quais o pauperismo expresso na chamada “questão social” é uma delas. Vimos que Marx (1988) desvela,na sua crítica à economia política,essas contradições a partir da lei da acumulação capitalista, “mistificada em lei da Natureza”, que acaba por esconder a exploração do trabalho por trás da acumulação capitalista. Ali ele revela o sistema de causalidades do pauperismo objetivado numa realidade em que os trabalhadores produzem mais riqueza alheia na medida em que trabalham mais. Ao demonstrar os nexos causais do pauperismo, ele demonstra, ao mesmo tempo e no mesmo processo, as alienações dali decorrentes.
Portanto, não temos como negar que o mesmo conjunto de causalidades que produz a superpopulação relativa, produz igualmente o processo de pauperização dos trabalhadores e as bases sobre as quais se erguem diferentes expressões da “questão social” e as mais diversas formas de alienação humana.
REFERÊNCIAS
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Notas