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PROBLEMAS NO PARAÍSO: fenomenologia do atraso e o “sentimento brasileiro do mundo”
Revista de Políticas Públicas, vol. 25, núm. 1, pp. 464-479, 2021
Universidade Federal do Maranhão

Artigos - Temas livres


Recepción: 21 Diciembre 2020

Aprobación: 25 Mayo 2021

DOI: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v25n1p464-479

Resumo: O ensaio propõe debater os problemas relativos aos impasses estruturais da formação da sociedade brasileira, tentando refletir a ideologia do atraso como um modelo básico de explicação das contingências das ausências do presente e do seu encontro com o futuro prometido. Retoma a simbiose entre o moderno e o arcaico para tentar explicar as conexões entre economia e política à guisa das formas de dominação instituídas desde o regime da Colônia ao Império à República.

Palavras-chave: s: Problemas no Paraíso, Atraso, O sentimento brasileiro do mundo.

Abstract: The essay proposes to debate the problems related to the structural impasses in the formation of Brazilian society, trying to reflect the ideology of backwardness as a basic model for explaining the contingencies of the absence of the present and its encounter with the promised future. It retakes the symbiosis between the modern and the archaic to try to explain the connections between economy and politics in the guise of the forms of domination instituted from the Colony regime to the Empire to the Republic

Keywords: Problems in Paradise, Delay, The Brazilian feeling of the world.



A aldeia de Hollywood foi planejada de acordo com a noção Que as pessoas desse lugar fazem do Paraíso. Nesse lugar Elas chegaram à conclusão de que Deus, Necessitando de um Paraíso e de um Inferno, não precisou Planejar dois estabelecimentos, mas Apenas um: o Paraíso. Que esse, Para os pobres e infortunados, funciona Como inferno.

Fuente: Bertolt Brecht, Elegias de Hollywood.

1 INTRODUÇÃO: o objeto do “sentimento brasileiro do mundo”

Não é possível pensar o capitalismo global de uma perspectiva puramente brasiliana – não como uma relação imediata –, sem que, para isso, possamos considerar o “sentimento brasileiro do mundo” como o problema ideológico básico. A questão é que o particular e o universal não estão completamente distantes entre si, ou seja, o capitalismo aparece aqui como uma forma de capitalismo muito específica – digamos assim, numa versão não eurocêntrica –, em que liberdade e igualdade são abstrações apenas formais diante da preponderância do compadrio sistêmico. Aqui, a revolução nunca chegou. Temos uma formação social truncada, híbrida e, sobretudo, marcada pela fusão da “vanguarda” e da “retaguarda” do capitalismo em estado puro. Francisco de Oliveira – seguindo a pista de Norbert Elias –, insiste na tentativa de encontrar “o caráter brasileiro”, como “o peculiar modo nacional de livrar-se de problemas ou de falsificá-los, constitui o famoso jeitinho brasileiro" (OLIVEIRA, 2018, p.138). É assim que a dominação social aparece pelo seu contrário, como elemento objetivo da sua resistência. A vida pública nunca foi a transcendência da vida familiar, mas o seu alargamento. O paradoxo é que nossa formação é marcada pela intimidade como afeto político preponderante, como a fórmula anti-weberiana decisiva que funda o “sentimento brasileiro do mundo”. O exemplo primordial disso é o Carnaval com evento simbólico inconteste. Temos relações sociais carnavalizadas que ordenam nossos vínculos sociais, da estrutura micrológica mais próxima ao universalismo das relações sociais mais abrangentes:

Ou podemos considerar o Brasil atual, onde pessoas de todas as classes dançam juntas nas ruas durante o Carnaval, esquecendo-se por alguns instantes das diferenças de raça e classe – mas obviamente não é a mesma coisa um desempregado entregar-se à dança, esquecendo-se de suas preocupações com o sustento da família, e um rico banqueiro soltar-se e sentir-se bem por ser mais um no meio do povo, esquecendo-se de que talvez tenha recusado um empréstimo para um trabalhador pobre. Os dois são iguais na rua, mas o trabalhador dança sem leite, enquanto o banqueiro dança sem creme (ŽIŽEK, 2013a, p. 454).

O impasse é que no Brasil, o Carnaval funciona como a suspensão absoluta dos antagonismos – em nível ideológico –, em que tudo é permitido e os papéis sociais são subtraídos para aparecerem na sua forma ideológica mais obscena. Aliás, para falar em ideologia, o que temos aqui é a obscenidade como objeto ideológico primordial. Podemos verificar isso quando somos confrontados com a ironização da violência brutal sofrida pelas classes subalternizadas, subentendida como participante do enredo de “normalidade” em que apesar de tudo, “somos felizes”. A felicidade do sujeito desdentado, com bolsos furados e com uma expectativa de futuro contingente à sobrevivência cotidiana. Não estaríamos aqui diante do impasse estrutural básico do espírito brasileiro do mundo? Sérgio Buarque de Holanda fala “que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade” (HOLANDA, 2014, p.176), uma forma ativa de assimilação e coerção consentida, uma forma de obscenidade que estrutura a instável relação entre violência, desigualdade e o espírito otimista do povo brasileiro. É isso que podemos chamar de ideologia.

Nesse sentido, a necessidade objetiva de driblar a situação de pobreza, do subdesenvolvimento, da “lei do mais forte”, é o substrato para a imposição do “jeitinho” brasileiro na elaboração de soluções para os impasses objetivos experimentados em comum. Na verdade, “O jeitinho é um atributo das classes dominantes brasileiras transmitido às classes dominadas” (OLIVEIRA, 2018, p.139). Ao contrário da tentativa de criação de uma hermenêutica justificatória, o jeitinho não é uma virtude per sido que não tem parte no corpo social, mas resulta de uma imposição ideológica que significa, portanto, uma forma de reprodução e manutenção da dominação social pós-colonial. No país modernizado por positivistas e maçons – curiosamente, o Brasil profundo é apenas o lado sombrio de sua dimensão manifesta –, “os antagonismos de classe” (HOLANDA, 2014, p.170) não foram suprimidos pela industrialização tardia, mas podemos dizer que temos uma forma bastante específica de capitalismo de compadrio. A obscenidade entre a esfera pública e as relações de intimidade é a marca histórica da formação social brasileira, mas atuando imediatamente no sistema de dominação social existente:

No Brasil, a classe dominante burlou de maneira permanente e recorrente as leis em vigor, sacadas a fórceps de outros quadros históricos. O drible constante nas soluções formais propicia a arrancada rumo à informalidade generalizada. E se transforma, ao longo da perpétua formação e deformação nacionais, em predicado dos dominados [...] Essa situação, que é social, configura-se no malandro, especialista no logro e na trapaça. O malandro, com sua modernidade truncada, foi primeiro o carioca. E esse carioca era geralmente pobre, mas não miserável. Como não poderia deixar de ser, era mulato: esgueirava-se por entre as classes e os estratos mais abastados, no típico – e falso – congraçamento de classes herdado do escravismo [...] Tinha ‘bossa’ quem dominava a aptidão para fugir ou escapar das soluções formais. Bossa é a expressão do jeitinho, a maneira de ganhar a vida sem se submeter aos ditames da norma, de conviver sem ser reconhecido como fora da lei [...] a burla é uma forma de adotar o capitalismo como solução incompleta na periferia do sistema. Incompleta porque o capitalismo trouxe para cá a revolução das forças produtivas, mas não as soluções formais da civilidade. As classes dominantes, então, têm de “se virar”, dão um jeitinho para garantir a coesão de um sistema troncho e, commeilfaut, a exploração (OLIVEIRA, 2018, p.139-140, grifos do autor).

Assim, nos trópicos, o jeitinho é a adoção do capitalismo como “solução incompleta”, que de maneira desavergonhada combinou o liberalismo das relações mercantis com o escravismo. O pós-abolição instituiu o racismo e a integração dos negros na democracia oligárquica, desde que soubessem respeitar o seu lugar na sociedade brasileira: emprego doméstico feminino, favelização como seu território, analfabetismo crônico, informalização e precarização do seu trabalho como forma de “substituir as relações racionais e obrigatórias pela intimidade” (OLIVEIRA, 2018, p.143) etc. O mito da democracia racial é bem acomodado ao jeitinho brasileiro, sua forma preliminar de aceitação e participação na violência estrutural em continuidade no país. A “solução incompleta” define a própria incompletude da universalidade do capitalismo, pois a base objetiva e a cultura do mundo estão disponíveis ao “andar de cima” das classes, enquanto cabe ao “andar de baixo” o acesso limitadíssimo ao melhor do mundo capitalista. Na verdade, o jeitinho ajusta a incompletude à experiência da falta objetiva experimentada pelas classes dominadas. É assim que o jeitinho aparece como forma dominante de sociabilidade.

2 PARAÍSO E ATRASO NO “PAÍS DO FUTURO”

A pergunta de Celso Furtado ainda parece insuperável, quando não constrangedora: “Como explicar que países surgidos da expansão econômica da Europa, cujas estruturas foram criadas para viabilizar essa expansão, hajam acumulado tanto atraso?” (FURTADO, 2013, p.53, grifos do autor). Há aqui uma ambivalência subjacente à indagação de Celso Furtado, que oblitera uma certa esperança de um país desencontrado com seu futuro prometido – que tem explicação na forma de uma “falsa consciência”: o problema é sempre a remoção de uma externalidade intrusa, que bloqueia o curso natural das coisas, ou seja, o presente como um projeto inconcluso –, pois tem sua vocação bloqueada por fatores externos que, necessariamente removidos pela força da vontade política, levaria a uma “antecipação”do encontro entre a expectativa do futuro e o seu destino originário. Tudo parece ser reduzido ao impasse rítmico da temporalidade histórica, que significa aqui o desentendimento entre a vocação e o próprio futuro. Paulo Arantes esboça o paradoxo do “sentimento brasileiro do mundo”, sinalizando o mito das virtudes da “consciência amena do atraso” que corresponde, de fato, ao atraso em si: um país obscenamente desigualitário que é contraditado silenciosamente pela escandalosa riqueza concentrada numa casta oligárquica parasitária, à espera do futuro prometido. O embaraço está na hipótese das relações sociais carnavalizadas – quando a divisão existente entre os “de baixo” e os “de cima” é mascarada pelo sentimento de alegria, pela fantasia que altera a realidade traumática do que é real –, que funcionam transmutando pobres, proletários, vagabundos em suas denegações particulares: não-pobres, não-proletários, não-vagabundos. Temos aqui o problema de um país que não pode ser separado de sua carnavalização, a fantasia da suspensão ética da vida ordinária. A leitura dramática do “país do futuro” feita por Paulo Arantes é supreendentemente difícil:

UM DOS MITOS FUNDADORES DE UMA NACIONALIDADE periférica como o Brasil é o do encontro marcado com o futuro. Tudo passa como se desde sempre a história corresse a nosso favor. Um país, por assim dizer, condenado a dar certo. Estudando certa vez as manifestações literárias desde velho sentimento brasileiro do mundo, Antonio Candido falou em consciência amena do atraso, correspondente à ideologia de país novo, na qual se destaca a pujança virtual, a grandeza ainda por realizar. Estado de espírito euforizante de tal modo arraigado, a ponto de sobreviver até mesmo à revelação dramática do subdesenvolvimento, tal a confiança numa explosão de progresso que adviria, por exemplo, da simples remoção do imperialismo. E mais, o futuro não só viria fatalmente ao nosso encontro, mas com passos de gigante, queimando etapas, pois entre nós até o atraso seria uma vantagem. Fantasia encobridora reforçada inclusive pelo viajante estrangeiro ofuscado pela exuberância nacional, como foi o caso de um Stefan Zweig, autor do mais celebrado clichê dessa mitologia compensatória: Brasil, País do Futuro (ARANTES, 2004, pp. 25-26).

Destarte, seria fundamentalmente impreciso obliterar que a constituição do Brasil esteja deslocada absolutamente da dialética fundamental da lógica autoexpansiva e autocontraditória do capital mercantil em processo de globalização colonial, que de “simples empresa espoliativa e extrativa”, passou a “constituir parte integrante da economia reprodutiva europeia, cuja técnica e capitais nela se aplicam para criar de forma permanente um fluxo de bens destinados ao mercado europeu” (FURTADO, 1998, p.8). É aqui que podemos localizar a experiência de laboratório do mundo como o preço a ser pago pela vocação e pela inserção subordinada no circuito superior do capitalismo: mercadoria, sangria e crueldade como a tríade explosiva dos trópicos. Somenos as tentativas de interiorização do atraso como uma imanência, a hipótese básica é que há ao longo da formação das estruturas sociais e simbólicas brasilianas uma totalização complexa entre o permanente passado do presente e o horizonte de expectativas da modernização capitalista, adornada por uma representação do país que tem em seu núcleo básico a despolitização – a gramática do nosso “jeitinho brasileiro” – das desigualdades e dos conflitos mais decisivos:

Há, assim, a crença generalizada de que o Brasil: 1) é “um dom de Deus e da Natureza”; 2) tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor; 3) é um país sem preconceitos (é raro o emprego da expressão mais sofisticada “democracia racial”), desconhecendo discriminação de raça e de credo, e praticando a mestiçagem como padrão fortificador da raça; 4) é um país acolhedor para todos os que nele desejam trabalhar e, aqui, só não melhora e só não progride quem não trabalha, não havendo por isso discriminação de classe e sim repúdio da vagabundagem, que, como se sabe, é a mãe da delinquência e da violência; 5) é um “país dos contrastes” regionais, destinado por isso à pluralidade econômica e cultural. Essa crença se completa com a suposição de que o que ainda falta ao país é a modernização – isto é, uma economia avançada, com tecnologia de ponta e moeda forte -, com a qual sentar-se-á à mesa dos donos do mundo (CHAUI, 2008, p.8).

Ora, trata-se de uma ideologia como “consciência nacional” que insiste em tentar preencher as lacunas ontológicas de um país inconcluso, pois como atestou Marilena Chauí, o que está ausente no Paraíso é a base objetiva do progresso. A política de substituição de importações teria como objetivo alterar o parâmetro de subordinação econômica. O paradoxo é que as forças produtivas do capitalismo europeu haviam esgotado sua função histórica na dinâmica de acumulação capitalista. A “destruição criativa” elaborada por Joseph Schumpeter aparece como protagonista no coração do capitalismo avançado. Nesse sentido, as forças produtivas existentes não seriam mais funcionais, objetivamente sucatas da etapa anterior do desenvolvimento tecnológico, e sua substituição possibilitaria que fosse inaugurada uma nova fase de acumulação. Por aqui, até o progresso é um acontecimento em atraso.

A questão decisiva é como um país cujas relações sociais são extremamente violentas consegue se manter com certa estabilidade social? Ao contrário da ideia da pacificação, a ideologia dominante aqui opera com a expansão dos limites da própria violência. Percebe-se que o “jeitinho brasileiro” não é uma ocultação da brutalidade, mas aparece como um tipo de burla, de desvio. Não é uma manipulação, mas atua pela distorção subjetiva do problema básico. De alguma maneira, podemos dizer que o “sentimento brasileiro do mundo” precisa funcionar com certa manifestação da repressão subjacente. O operador da coesão social explosiva – e em curto-circuito – é a manutenção e reprodução continuada da violência sistemática. O que mantém as classes dominadas na situação de subordinação e subalternidade é a violência visível. Hobbes chamava de medo. Hoje, no Brasil moderno, medo e crueldade funcionam como operadores da dominação social. Žižek elabora uma notável equação sobre repressão e sublevação que nos ajuda a pensar o país:

Portanto, não podemos ter a repressão “básica” sem a mais-repressão, posto que é o próprio gozo gerado pela mais-repressão que torna a repressão ‘básica’ palpável para os sujeitos. O paradoxo com que lidamos aqui é, assim, uma espécie de ‘menos é mais’: ‘mais’ repressão é menos traumática, mais facilmente aceita que menos. Quando é diminuída, torna-se mais difícil de suportar e provoca rebelião. (Talvez esse seja um dos motivos que fazem as revoluções eclodirem não quando a opressão atinge seu auge, mas quando ela diminui a um nível mais ‘razoável’ ou ‘racional’ – a diminuição destitui a repressão da aura que a torna aceitável.) (ŽIŽEK, 2013a, p.153).

A complexidade está na relação entre economia e política, ideologia e cultura. A modernização tardia existe combinada com o racismo predominante no país. Não se trata de uma mera característica da cultura comum e do caráter pessoal. O racismo não é pouco violento: ele humilha, explora, domina e elimina. A função do “jeitinho brasileiro” é driblar a violência – num processo evidente de adaptação ativa – sem que ele seja eliminado. A violência está na sua “normalização” obscena. É por isso que a competência ideológica do capitalismo periférico está na sua capacidade de integração de todos os conflitos fundamentais e diferenças sociais no projeto nacional excludente de modernização econômica. Nesse sentido, parece ser bastante funcional aos interesses da aristocracia dominante brasileira a falsa dicotomia/incongruência entre o moderno e o arcaico. Aliás, em se tratando da tentativa de “compreensão do fenômeno histórico português-brasileiro”, que é resultado “de muitos séculos de assédio do núcleo ativo e expansivo da economia mundial, centrado nos mercados condutores, numa pressão de fora para dentro” (FAORO, 2012, p.823) – pelo menos quando consideramos os interesses do“andar de baixo” –, a história da formação econômica brasileira insiste em demonstrar “o moderno, a indústria, alimentando-se do atrasado, a economia de subsistência” (OLIVEIRA, 2011, p.128). Pois, como sugere Marx:

Na verdade, não se trata do grau maior ou menor de desenvolvimento dos antagonismos sociais decorrentes das leis naturais da produção capitalista. Trata-se dessas próprias leis, dessas tendências que atuam e se impõem como férrea necessidade. O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro (MARX, 2013, p.78).

É possível pensar aqui que Marx tinha plena consciência da lógica desigual e relativamente combinada dos processos de desenvolvimento capitalista: o moderno no “país do futuro” sobrevive do atraso, do que é plenamente arcaico. Nesse sentido, Marx elaborou uma vigorosa compreensão antievolucionista da expansão da dominância do capital sobre os povos, as nações, as pessoas etc. Ele mesmo insiste em tentar caracterizar a natureza das tormentas que afligem os países desenvolvidos, que não poderia jamais ser reduzida ao pleno “desenvolvimento da produção capitalista, mas também a falta desse desenvolvimento”, da existência das “misérias modernas, aflige-nos toda uma série de misérias herdadas, decorrentes da permanência vegetativa de modos de produção arcaicos e antiquados, como seu séquito de relações sociais e políticas anacrônicas” (MARX, 2013, p.79). O anacronismo da formação do Brasil subsiste das “misérias modernas”, mas combinada com as “misérias herdadas”. A formação social brasileira é ambivalente e seu presente uma tormenta que exerce um tipo de peso insuportável sobre a experiência do visível.

Por essa razão que é imperativa a compreensão da formação histórica brasileira no espectro da categoria de singularidade. Não uma universalidade abstrata, nem tampouco uma particularidade muda, mas teríamos uma formação social caracterizada pela singularidade do subdesenvolvimento, grosso modo, determinada por uma implacável “pressão de fora para dentro” (FAORO, 2012, p.823). Todavia, o subdesenvolvimento não pode ser reduzido à dependência econômica estrita, mas precisamos cruzá-lo com a dinâmica política da dominação. Com efeito, o patrimonialismo expressa o conteúdo de classe dos interesses objetivos fundamentais. A democracia sob o subdesenvolvimento é apenas um detalhe diante da estrutura cega de reprodução da autocracia política dominante. Raymundo Faoro diz que “a autocracia autoritária pode operar sem que o povo perceba seu caráter ditatorial, só emergente nos conflitos e nas tensões, quando os órgãos estatais e a carta constitucional cedem ao real, verdadeiro e atuante centro de poder político” (FAORO, 2012, p.829). Não seria exagero dizer que nossa experiência aparece como um tipo truncado, ambivalente, de “colônia” democrática no interesse do centro global do capitalismo. Para Francisco de Oliveira:

O subdesenvolvimento, assim, não se inscrevia numa cadeia de evolução que começava no mundo primitivo até alcançar, por meio de estágios sucessivos, o pleno desenvolvimento. Antes, tratou-se de uma singularidade histórica, a forma do desenvolvimento capitalista nas ex-colônias transformadas em periferia, cuja função histórica era fornecer elementos para a acumulação de capital no centro (OLIVEIRA, 2011: p.126).

A “pressão de fora para dentro” implodiu qualquer possibilidade de constituição da autonomia e da liberdade da nação, que são pilares decisivos do liberalismo no “andar de cima” do circuito do capitalismo. Faoro fala que “a soberania popular não existe, senão como farsa, escamoteação ou engodo” (FAORO, 2012, p.829). A forma de controle político do território e dos povos originários se deu através da instalação de capitanias hereditárias. O objetivo é aqui meramente exploratório, através da pilhagem e saque da riqueza disponível in natura. Antes da própria formação do estamento burocrático que representa a autocracia política – que é construída sob a repugnância do escravismo colonial –, temos a organização oligárquica dirigida pelos donatários. A política do saque e do espólio aparece como o princípio formador do país que – numa continuidade infinita –, jamais fora abandonada como ethos de uma moderna sociedade subdesenvolvida. Ao contrário do que se pensa, vez por outra, o modelo de capitanias hereditárias não representou nenhuma antinomia ao capitalismo, mas ele precisa ser pensado como sintoma do caráter propriamente espoliador da dominação social estabelecida pelo capitalismo mercantil nos trópicos:

A compatibilidade do moderno capitalismo com esse quadro tradicional, equivocadamente identificado ao pré-capitalismo, é uma das chaves da compreensão do fenômeno histórico português-brasileiro, ao longo de muitos séculos de assédio do núcleo ativo e expansivo da economia mundial, centrado em mercados condutores, numa pressão de fora para dentro. Ao contrário, o mundo feudal, fechado por essência, não resiste ao impacto, quebrando-se internamente, para se satelitizar, desfigurado, ao sistema solar do moderno capitalismo (FAORO, 2012, p.823).

Destarte, o capitalismo colonial mercantil foi sustentado tipicamente na constituição de um “estado de exceção” nos trópicos, através do estabelecimento da empresa colonial, que se caracterizava pelo controle político do território e da economia por um “estamento burocrático” (FAORO, 2012, p.826) cujo objetivo era a administração dos interesses do centro, através da exploração econômica das encomiendase do rentável escravismo colonial. Todo o sentido da intenção político-estatal dava-se na direção do estabelecimento das garantias de acumulação ao capital comercial. Evidentemente, fez-se pela incorporação autoritária do modelo português de corporificação político-estatal, em que o “patrimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, que adota o mercantilismo como a técnica de operação da economia” (FAORO, 2012, p.823). O “sentido” da colonização não poderia ser mais desolador, cujas implicações marcaram profundamente a constituição de um padrão típico de governança, posto que a dimensão externa condutora do espólio não apenas submeteu a economia nacional aos imperativos do capital comercial da metrópole, como também ergueu uma estrutura social atrasada – embora, paradoxalmente moderna – e dominada pela constituição de uma elite autocrática conservadora, submissa e corrupta. A situação das camadas dirigentes é que não podem ser pensadas como nada além do que “castas sociais hereditárias” (ARANTES, 2004, p.33), divididas pelas suas funções de controle/direção e submissão/aceitação, a saber:

[...] no topo, a plutocracia internacionalizada onde as decisões são tomadas; logo abaixo, os ‘manipuladores simbólicos’ de Robert Reich, os profissionais de instrução superior, cujo trabalho consiste em assegurar a realização suave e eficiente das decisões tomadas pelos primeiros, que por sua vez terão todo o interesse em conservar próspera e satisfeita tal camada social, pois ‘eles precisam de pessoas que possam fingir ser a classe política de cada Estado-Nação individual. Para assegurar o silêncio dos proletários, os super-ricos terão de continuar fingindo que a política nacional pode algum dia fazer a diferença’ (ARANTES, 2004, p.34).

Da Colônia ao Império à República, para oandar de cima do poder político dependente – um tipo de vassalagem oligárquico-estamental –, o problema dialético é que a reprodução política do estamento dominante é alimentada pela dependência estrutural aos interesses objetivos de “fora”, que possibilita a continuidade e permanência da renovação do poder político-econômico das “castas sociais hereditárias”. Não podemos obliterar que as questões políticas no Brasil são, antes de tudo, um problema relativo aos negócios privativo-familiares. A noção de oligarquia é constitutiva na formação do país. Assim, a composição dos estamentos burocrático-estatais tem caráter absolutamente antipopular, oligárquico. O paradoxo da superação do subdesenvolvimento é que a identidade política nacional mobilizada está em curto-circuito permanente. Nesse caso, os direitos da soberania popular, a reclamação autêntica do povo, a politização da nação inconclusa, sempre estiveram subordinados à equação política da dominação em estado puro, posto que a opção da elite colonizada pode ser traduzida “numa palavra, integração ao invés de emancipação”(ARANTES, 2004, p.53, grifos do autor). A resposta ao subdesenvolvimento dada nos termos da integração, sempre significou uma falsa “solução” ao problema da dominação social. Não se trata, portanto, da alteração de uma dominação particular por outra, mas o que está em questão é a própria superação da dominação social como forma e conteúdo.

Mas como a nação pode ser desvencilhada da representação imediata das classes dirigentes? A nação é uma operação que corporifica as demandas populares reprimidas, mas que são mobiliadas ideologicamente pelo poder dominante. A nação é um conceito politizado quando confronta o colonialismo e o imperialismo, mas não quando é adotada para sufocar o internacionalismo popular. Não é à toa que o fascismo brasileiro – que não pode ser restringido ao integralismo etc. –, intenta eliminar todo tipo de discordância política que confronte a nação dos pilhadores e tenha como alternativa a elaboração de uma nação autêntica popular. O conceito de oligarquia é, nesse sentido, mais concreto e pode ser utilizado como típico na caracterização de uma forma de governança permanente na formação da sociedade brasileira. Entretanto, não se trata de uma oligarquia violenta que atua por fora do regime democrático, mas uma forma de oligarquia democrática que funciona por dentro do sistema jurídico-político-parlamentar. A própria constituição do Estado deu-se em razão direta da simbiose estamental burocrática entre os interesses oligárquicos mais diretos e o controle do poder político (e econômico) global. No fundo, o espaço público brasileiro sempre foi dominado pelos interesses não-republicanos, ou seja, a preponderância formativa é dos negócios privados-familiares. Nossa formação cultural é conservadora, quando não, absolutamente reacionária. É interessante retomar a contribuição fundamental de Octavio Ianni, quando discute a passagem do Estado oligárquico ao Estado burguês a partir dos anos 1930:

Nos anos posteriores à Revolução de 1930, alternaram-se as funções e a própria estrutura do estado brasileiro. Devido à derrota, ainda que parcial, das oligarquias dominantes até então pelas novas classes sociais urbanas, a revolução exprimiu as rupturas estruturais a partir das quais se tornou possível reelaborar as relações entre Estado e a sociedade. Desde essa época, os desenvolvimentos do poder político revelam a acentuação dos seus conteúdos burgueses, em confronto com os elementos sociais, culturais e políticos de tipo oligárquico vigentes nas décadas anteriores a 1930. Assim, poderíamos sintetizar [...] que o que caracteriza os anos posteriores à Revolução de 1930 é o fato deque ele cria condições para o desenvolvimento do Estado burguês, como um sistema que engloba instituições políticas e econômicas, bem como padrões e valores sociais e culturais de tipo propriamente burguês. Enquanto manifestação e agente das rupturas estruturais internas e externas, a revolução implicou a derrota (não se trata propriamente de liquidação) do Estado oligárquico (IANNI, 2009, p.27).

Podemos perceber que se trata de um tipo de uma “revolução passiva”, que consolidou a passagem do Estado oligárquico para o Estado burguês no começo do século 20. Temos aqui um tipo de ruptura conservadora, que delineou a alteração da personificação da dominação – meramente limitada à forma –, sem alterar o conteúdo substantivo da dominação. Octavio Ianni continua afirmando que a transformação da natureza do Estado, do tipo oligárquico ao propriamente burguês, é resultado das exigências do capitalismo global, mas essa mudança combina os interesses da estrutura de controle político local aos interesses econômicos globais. A questão é que a reprodução dos interesses ideológicos globais pela estrutura oligárquica de mando não alimenta apenas seus mesquinhos interesses particulares, mas permite a ampliação e consolidação dos interesses econômicos de fora. Ianni fala em “subsistema brasileiro do capitalismo”, ou seja, a elite política dominante local se internacionaliza por associação ao capitalismo global:

Isto significa que o poder público passou a funcionar – mais adequadamente – segundo as exigências e as possibilidades estruturais estabelecidas pelo sistema capitalista vigente no Brasil, isto é, pelo subsistema brasileiro do capitalismo. Assim, os governantes passaram a reformular as condições de funcionamento do mercado de fatores de produção (ou forças produtivas), bem como as relações internas de produção, e as relações entre a economia brasileira e a economia internacional. A evolução da legislação trabalhista, por exemplo, mostra, de modo bastante claro, essa transição. É que, a partir de 1930, foram estabelecidos, de modo formal, sob a responsabilidade do Estado, as condições e os limites básicos de funcionamento do mercado de força de trabalho. Assim, estabeleceram-se, na mesma legislação trabalhista e sindical, as condições e os limites sociais e políticos da atuação dos assalariados. Em poucas palavras, o conjunto das atividades estatais, no período 1930-1945, assinala a agonia do Estado de tipo oligárquico e o desenvolvimento do Estado propriamente burguês (IANNI, 2009, p.27-28).

A transição tem como tradução uma posição ideologicamente direta, ou seja, o “subsistema brasileiro do capitalismo” atuou como forma de controle e disciplina da enorme camada proletária “emancipada” da escravidão. Podemos perceber que o assalariamento do trabalho funcionou como uma alternativa objetiva e subjetiva de pacificação dos antagonismos abertos e de passivização da subjetividade revoltada. O objetivo foi que a “integração do negro da sociedade de classes” pudesse ser o menos traumática possível. O Estado burguês vai atuar para que a revolta pudesse ser controlada pela liberdade de contrato. A luta pela sobrevivência é um poderoso mecanismo de integração da revolta à “normalidade” do novo sistema dominante. O varguismo é celebrado como o regime de consolidação dos direitos trabalhistas, porém, podemos vertê-lo como parte do subsistema de dominação social no capitalismo brasileiro. Raymundo Faoro, numa longa passagem, desenvolve a tese da “autocracia de caráter autoritário” em vez de uma “autocracia de forma totalitária”, no sentido de localização do regime de poder político que se constituiu numa forma de governança perfeitamente aplicável no Brasil:

No governo estamental, tal como se estrutura neste ensaio, há necessariamente, como sistema político, a autocracia de caráter autoritário e não a autocracia de forma totalitária. “O conceito ‘autoritário’ – escreve Loewenstein – “caracteriza uma organização política na qual um único detentor do poder – uma só pessoa ou ‘ditador’, uma assembleia, um comitê, uma junta ou um partido – monopoliza o poder político sem que seja possível aos seus destinatários a participação real na formação da vontade estatal. O único detentor impõe à comunidade sua decisão política fundamental, isto é, ‘dita’-a aos destinatários do poder. O termo ‘autoritário’ refere-se mais à estrutura governamental do que a ordem social. Em geral, o regime autoritário se satisfaz com o controle político do Estado sem pretender dominar a totalidade da vida socioeconômica da comunidade, ou determinar sua atitude espiritual de acordo com sua imagem. Este sistema é compatível, e ordinariamente se compatibiliza, com órgãos estatais separados, assembleias ou tribunais, numa ordenação formalmente jurídica. De outro lado, o regime autoritário convive com a vestimenta constitucional, sem que a lei maior tenha capacidade normativa, adulterando-se no aparente constitucionalismo – o constitucionalismo nominal, no qual a Carta Magna tem validade jurídica mas não se adapta ao processo político, ou o constitucionalismo semântico, no qual o ordenamento jurídico apenas reconhece a situação de poder dos detentores autoritários. A autocracia autoritária pode operar sem que o povo perceba seu caráter ditatorial, só emergente nos conflitos e nas tensões, quando os órgãos estatais e a Carta Constitucional cedem ao real, verdadeiro e atuante centro de poder político (FAORO, 2012, p.829).

Assim, o sentido de uma fenomenologia do atraso e o sentimento brasileiro do mundo como matrizes básicas para a compreensão do fenômeno brasileiro, como dito antes, não pode ser buscado numa certa imanência constitutiva da nossa identidade como “povo” ou “nação”, sempre associado àquilo que nos falta, isto é, todo o projeto político de nação está orientado pela lacuna entre o que o somos no presente e uma pretensa vocação aberta no futuro. O problema ideológico potente está aqui imbricado no desencontro sempre permanente entre o presente e o futuro, entre o que somos e aquilo que poderíamos/deveríamos ser. Mas o que poderíamos/deveríamos ser exige a elaboração de versões explicativas para o atraso, que vão localizar nossos problemas, quase sempre, em problemas culturais ou políticos (acidentais) no sentido de tentar encontrar alguma justificativa que seja capaz de ser mobilizada pela narrativa quando a própria realidade insiste em dizer com seu pêndulo impiedoso que o Paraíso “funciona como inferno”, como provoca Brecht.

Deslocando-se deste beco sem saída, Slavoj Žižek retoma os teoremas de Marx para dizer que é preciso romper com o espectro das falsas alternativas ao processo mais largo de superação do atraso, rompendo em substância com a hipótese do desenvolvimento/integração sempre periférico ao lugar social determinado almejado no mundo do capitalismo global contemporâneo como o próprio objeto primordial. A questão é que a singularidade do subdesenvolvimento exprime a universalidade de uma integração universal incompleta, pois o caráter desigual e (mal) combinado da dialética do desenvolvimento capitalista pode até alterar a personificação do retrato do país desenvolvido e do objeto do subdesenvolvimento – assim como seu sujeito definido –, mas parece ser incapaz ontologicamente em eliminar a lacuna intrínseca do atraso, ou seja, “não só o desenvolvimento da produção capitalista, mas também a falta desse desenvolvimento” (MARX, 2013, p.79). É assim que o impasse se totaliza numa cadeia de equivalências de difícil “solução”. Os problemas no Paraíso não são necessariamente problemas estritos à formação social brasileira, mas eles refletem longamente os problemas estruturais do funcionamento do modelo imperativo de governança global estabelecido pelos “donos do poder”. Žižek diz que:

Em seus textos de juventude, Marx descreveu a situação alemã como aquela em que a solução de problemas particulares só era possível através da solução universal (revolução global radical). Aí reside a fórmula mais resumida da diferença entre um período reformista e um revolucionário: no primeiro, a revolução global continua a ser um sonho que, na melhor das hipóteses, sustenta nossas tentativas para aprovar alterações locais – e, no pior dos casos, impede-nos de concretizar mudanças reais -, ao passo que uma situação revolucionária surge quando se torna claro que apenas uma mudança global radical pode resolver os problemas particulares. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi um ano revolucionário: tornou-se claro que as reformas parciais do Estados comunistas não seriam suficientes, que era necessário uma ruptura global radical para resolver até mesmo problemas parciais (ŽIŽEK, 2013b, p.101).

A ideologia que nos empurra para algum lugar do futuro tem efeito paralisador sobre a elaboração de alternativas reais ao axioma básico dos problemas inscritos no Paraíso. Evidente que existem problemas parciais e absolutamente corrigíveis sem alterações nas coordenadas básicas de tudo, mas há algum limite estrutural absoluto para que correções pontuais relativas resolvam questões profundas, incorrigíveis, sem mudanças globais e duradouras. A escolha política permanente – “eles não sabem disso, mas o fazem” (MARX, 2013, p.149) – na formação da sociedade brasileira é marcada pela integração subordinada da naçãoinconclusa aos interesses das camadas dirigentes oligárquicas associadas ao poder global do capitalismo imperial que, grosso modo, tem sido apenas a história do espólio da reprodução ampliada do desigualitarismo crescente. Com efeito, não é a falta de capitalismo no país que justifica o nosso atraso, mas o excesso de capitalismo que foi capaz de forjar uma integração subordinada e subdesenvolvida na própria dinâmica global do capitalismo.

À medida que a modernização do Estado e dos ciclos econômicos foi a aposta ideológica prioritária da nossa integração, sem um processo mais fecundo de politização dos marcos da desigualdade crescente e da pobreza permanente – como resultado da integração subordinada –, da privação da participação popular na vida política nacional – pelo caráter autocrático, autoritário e patrimonialista da democracia brasileira truncada –, podemos perceber que isso produziu imediatamente o efeito da constituição de transições sem rupturas como regra básica na lógica de resolução dos conflitos estruturais. Nesse sentido, devemos lembrar Gramsci aqui, que formulou o conceito de “revolução passiva” para explicar o processo constitutivo das mudanças conservadoras, ou seja, das rupturas produzidas pelo “andar de cima” e no seu interesse exclusivo de manutenção do status quo dominante. É por isso que a maneira de realização do programa dominante é através do “transformismo”, que “significa um método para implementar um programa limitado de reformas, mediante a cooptação pelo bloco no poder de membros da oposição” (GRAMSCI, 2007, p.396). Podemos dizer que a “consciência amena” nacional funcionarestringindo toda a potência da revolta à integração ao sistema dominante, através da captura das reclamações populares à democracia oligárquica. Temos sempre a operação ideológica da distorção de uma “solução” particular para cada problema verdadeiroque nos aflige. Não é estranho que a feitura de “golpes” como recurso usual da política seja sempre utilizada no reestabelecimento do estado de emergência instalado da Colônia ao Império à República e seu consequente obituário político.

3 CONCLUSÃO: a paralaxe do Paraíso

Existe alguma virtude no atraso? A questão do Paraíso perpassa pela disputa em torno do significado atribuído ao atraso como virtude assimilada pelos dominados como nossa singularidade específica, como se isso pudesse significar o ethos próprio que constitui a nacionalidade que queremos e, ao mesmo tempo, seja capaz de formar o sentido da nação inconclusa. O atraso como virtude é explorado objetivamente pela classe dominante brasileira na reprodução do status quo. Essa é a simbiose possível entre os opostos, mas que se alimentam reciprocamente do atraso como operador funcional da conciliação.

Com efeito, a questão da dualidade – que aparece como a própria dialética do progresso e do atraso – é um elemento objetivo fundamental para que compreendamos nosso fracasso como nação inconclusa. Essa dualidade entre “modernização” e “modernidade” carrega em si o problema da constituição do país. Raymundo Faoro fala “que a modernidade compromete, no seu processo, toda a sociedade, ampliando o raio de expansão de todas as classes, revitalizando e renovando seus papéis sociais” – mesmo que isso apareça como uma expressão da conciliação nacional ad infinitum–, “enquanto a modernização, pelo seu toque voluntário, se não voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor, que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes” (FAORO, 1994, p.99, grifos do autor). O problema é que a colonização da modernização sobre a modernidade expressa a colonização da oligarquia patrimonial em relação aos direitos da cidadania básica. Entretanto, a questão que organiza o impasse contradita uma modernidade alternativa à própria modernidade dominante?

Como então os ideólogos da ‘modernidade’ (em seu sentido atual) conseguem distinguir o seu produto – a revolução da informação e a modernidade globalizada do mercado livre – do detestável tipo mais antigo, sem se verem envolvidos nas respostas a graves questões políticas e econômicas, questões sistemáticas, que o conceito de pós-modernidade torna inevitáveis? A resposta é simples: falamos de modernidades “alternadas” ou ‘alternativas’. Agora todo mundo conhece a fórmula: isso quer dizer que pode existir uma modernidade para todos, diferente do modelo padrão anglo-saxão, hegemônico. O que quer que nos desagrade a respeito deste último, inclusive a posição subalterna a que nos condena, pode apagar-se pela idéia tranquilizadora e ‘cultural’ de que podemos confeccionar a nossa própria modernidade de maneira diversa, dando margem, pois, a existir o tipo latino-americano, o indiano, o africano, e assim por diante. […] Mas isso seria passar por cima de outro significado fundamental da modernidade, que é a de um capitalismo mundial. A padronização projetada pela globalização capitalista, neste terceiro ou mais recente estágio do sistema, lança uma dúvida considerável sobre todas essas impiedosas esperanças por uma variedade cultural, num mundo futuro colonizado por uma ordem universal do mercado (JAMESON, 2005: 22-23).

É por isso que impasse estrutural – e sua “solução” – está na dialética da particularidade e da universalidade. A forma da modernização brasileira é limitada pela modernidade capitalista dominante, pois é ela quem implica a substância da modernização, ou seja, é o próprio padrão da civilização dominante que define a forma pela qual a modernização particular funciona em cada nação. Como temos um tipo de progresso truncado, autoritário e autocrático, definido pelo protagonismo conservador das “revoluções passivas”, a história da nação inconclusa precisa ser pensado como a história das modernizações violentas contra a maioria dominada e explorada. Uma modernização está sempre prisioneira da estrutura econômica que a asfixia. Assim, cada modernização particular produz um tipo de miséria particular, que está contida no circuito da tragédia nacional.

Nesse sentido, nenhuma alternativa poderá advir do postulado da modernização. O que temos que retomar é o próprio caráter subversivo da modernidade, que está hoje capturada de sua energia radical e democrática para um tipo de colaboração ativa como sistema dominante. É verdade que a modernidade dominante produziu Auschwitz, mas também elaborou a igualdade e a liberdade como valores éticos fundamentais na constituição da vida social ampla. Ao mesmo tempo que a modernização é marcada pela “coligação do alto”, cujo efeito imediato é “a domesticação das classes subalternas no clientelismo” (FAORO, 1994, p.106), ela possibilita uma reação à conciliação da crítica e da mobilização política ampla. A reação não vem pela modernização, que tem uma dimensão externa à estrutura da sociedade, mas ela aparece como modernidade contestadora. Habermas falava em colonização do “mundo da vida” pelo “sistema”. O paradoxo dessa formulação é que o próprio “mundo da vida” existente possui suas formas estritas de dominação e exploração, sem que o “sistema” apareça com sua impiedosa capacidade colonizadora. Não podemos lutar apenas contra o “sistema”, mas contra o “mundo da vida” autocrático instalado no país.

É justamente uma modernidade capaz de gerir a emancipação – do “sistema” e do “mundo da vida” –, que será sujeito do processo mais amplo de libertação nacional. O arcaísmo está presente naquilo que é mais moderno. É por isso que há toda uma tecnologia da barbárie, que não apenas a produz, mas que é incapaz de se reproduzir sem ela. Os choques econômicos não significam apenas uma variação da dualidade explosiva entre a modernização e a modernidade? O Paraíso defendido pelas classes dominantes é representado pela política da modernização. Esse Paraíso não pode ser contestado. Ele alimenta uma minoria sitiada em contraposição à maioria faminta, despossuída dos resultados e valores da modernidade progressista e emancipatória capaz de libertar todos. Retomando Hegel, Raymundo Faoro lembra que uma nação não pode ser criada pela autocracia dominante. É assim que temos que interditar as manobras ideológicas dominantes, isto é, não podemos mais admitir que sejamos guiados pelas modernizações violentas. Na verdade, precisamos ser alimentados pelo espírito da modernidade da emancipação:

O som hegeliano é óbvio. O desenvolvimento não pode ser a matéria de decretos, nem é assim que uma nação apreende a outra. Uma elite não pode, pela compulsão, pela ideologia, gerar a nação. A nação que quer ser modernizar sob o impulso e o controle da classe dirigente cria uma enfermidade, que a modernidade, quando aflora, extirpa, extirpando as modernizações. Todos os países que sofreram modernizações – Alemanha, Japão, Itália, da península Ibérica e do Leste Europeu – expulsaram, para que o desenvolvimento se irradiasse ao povo, a elite, a classe dirigente, a burocracia coletivista. A modernidade emergiu com a ruptura, construindo, sobre a ruína das autocracias, o desenvolvimento, capaz de se sustentar com movimento próprio, eliminando, juntamente com os males antigos, os males modernos. Todos deixaram de ser uma dualidade, uma imobilizada oposição de direções, para revelarem sua identidade cultural, num vôo próprio, dentro do universo, libertos da tradição e da contemplação nacional (FAORO, 1994, p.112-113).

REFERÊNCIAS

ARANTES, Paulo. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.

FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Editora Ática, 1994.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2012.

FURTADO, Celso. Entre inconformismo e reformismo. In: FURTADO, Celso. Essencial Celso Furtado/organização, apresentação e notas de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: PenguinClassics Companhia das Letras, 2013.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1998.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

IANNI, Octavio. Estado e planejamento econômico no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2009.

JAMESON, Fredric. Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

OLIVEIRA, Francisco de. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo editorial, 2011.

ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013a.

ŽIŽEK, Slavoj. Problemas no Paraíso. In: MARICATO, Ermínia et al. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013b.



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