Editorial
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS, LUTAS ANTIRRACISTAS E POLÍTICAS PÚBLICAS: determinantes e expressões contemporâneas é o tema do Dossiê do v. 25, n. 2, julho/dezembro 2021, da Revista de Políticas Públicas (RPP), periódico acadêmico-científico publicado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Tem por base o nosso interesse em concretizar, mais uma vez, a opção teórico-metodológica orientadora da formulação dos dossiês temáticos da RPP, traduzida na decisão de tomar como ponto de unidade na reconstrução analítica de processos pertinentes ao ser social e a sociabilidade contemporânea duas dimensões fundamentais: a historicidade e a crítica do presente. Trata-se de uma unidade que afirma o ponto de vista da totalidade na compreensão do passado, do presente e das tendências futuras do ser social e a relevância da análise conjuntural como produto da urgência e desafios concretos do presente histórico.
Nesse prisma, no interior de uma quadra conjuntural essencialmente incompatível com a universalidade dos direitos sociais e que reinscreve, na esfera do ser social, as alternativas civilização ou barbárie, se reconhece a relevância de participar do esforço teórico e de compreensão histórica sobre as relações étnico-raciais, em diversas regiões do mundo e, em particular, no Brasil, enfatizando no âmago dessas relações as desigualdades sociorraciais, a luta do movimento negro contra o racismo e suas demandas por políticas públicas antirracistas.
A abordagem das desigualdades sociorraciais na particularidade brasileira, na nossa visão, se mostra mais complexa e desafiadora, na medida em que evoca uma longa e volumosa produção teórico-analítica, parte dela, hoje, alvo de severas e adequadas críticas no sentido de ter, segundo Munanga (2003), favorecido à construção e propagação do mito da democracia racial, a exemplo da obra de Gilberto Freyre Casa Grande e Senzala e sua ênfase na harmonia existente entre o senhor escravocrata e o negro submetido à condição de escravo. Desse mito, decorreu um conjunto de significações ideológicas com desdobramentos na vida real - raças não existem, a cor é um acidente, o que deve importar é o Brasil como Estado e como nação - que alcançaram a instância econômica e a ‘política’, alavanca da ‘superestrutura’ e catalizadora da questão do Estado e da direção político-ideológica da sociedade. Nesse âmbito, estratégias político-governamentais, para além do estabelecimento de consensos, convergiram para mascarar o preconceito, a discriminação, a violência e a coerção recorrentes contra o “povo negro” e os povos tradicionais e seus descendentes, em diversas esferas da vida social.
Como lembra o professor Carlos Benedito Rodrigues da Silva, na contundente entrevista concedida a Rosenverck Estrela Santos e disponível nessa edição da RPP,
[...] ao mesmo tempo em que se reafirma a mestiçagem, atribui-se a um dos grupos envolvidos nesse processo de mestiçagem, uma incapacidade de assimilação dos valores culturais, morais e religiosos da civilização ocidental, permanecendo na condição de raça inferior. Essas ideias de inferioridade, propensão ao trabalho físico, incapacidade de assimilar valores civilizatórios, da classificação de mulheres e homens negros apenas do ponto de vista da sexualidade, etc., herdadas do processo colonialista e da escravização, permanecem orientando as relações sociorraciais no Brasil.
No presente histórico, nos marcos da mais recente crise da sociabilidade capitalista, em várias sociedades concretas, manifesta-se a expansão de movimentos e ações antidemocráticas e ultraconservadoras, muitas das quais potencial ou concretamente fascistas. Assim, no Brasil, a “cultura da violência” contra a população negra, urdida historicamente desde o marco colonial (MOURA, 2014), que se expressa em diversas formas de opressão, permanece dominante e se atualiza, embora confrontada por marcos constitucionais, por tratados internacionais de direitos humanos e pela pluralidade de lutas sociais de caráter emancipatório na cidade e no campo1. Para enfrentar as formas contemporâneas de racismo, destacam-se as lutas antirracistas em suas relações e mediações com lutas anticapitalistas, feministas e ambientalistas construídas na perspectiva da ampliação de direitos e da emancipação humana e contra a destruição da natureza e retrocessos sociais e civilizatórios.
À chamada pública desta edição da RPP respondeu um número alvissareiro e substantivo de pesquisadores e pesquisadoras, cujos trabalhos reúnem percursos investigativos e argumentações agudas e pertinentes sobre os elementos que conformam o Dossiê Temático. Ao terem seu mérito acadêmico-científico reconhecido, com certeza contribuiriam decisivamente para o aprofundamento dos estudos, pesquisas e debates sobre a problemática étnico-racial e as lutas antirracistas aqui proposto. No entanto, contingências de ordem editorial levaram-nos a somente poder publicar 15 (quinze) dessas contribuições de autores e autoras de diferentes regiões do Brasil e de outros países. São elas: ADENTRANDO O LUGAR PÚBLICO: mulheres negras na luta pelos espaços de Aimée Seixas; A REVISÃO DA LEI 12.711/2012: ações afirmativas em disputa no Congresso Nacional de Luiz Mello de Almeida Neto e Eduardo Gomor dos Santos; A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO BRASIL: uma análise feminista, antirracista e anticapitalista de Renata Gomes da Costa, Mariana Teixeira da Paz e Carolina Rubano de Oliveira; COMUNIDADES QUILOMBOLAS NA AMAZÔNIA: resistência e reafirmação de territórios ancestrais para a reprodução da existência de Maria das Graças da Silva, Rodrigo Erdmann Oliveira, Thaissa Jucá Jardim Oliveira e Luana Lima de Freitas; DO MOVIMENTO NEGRO ÀS ORGANIZAÇÕES ANTIRRACISTAS: políticas públicas e a defesa de direitos no Brasil de Lorena Madruga Monteiro e José Elísio Santos Júnior; LINGUAGEM, RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: um diálogo entre Fanon, Kopenawa, Albert e Peirano de Nádia Xavier Moreira, Nilza Rogéria de Andrade Nunes e Viviane Machado Caminha; LUTA PELO TERRITÓRIO: as experiências sociais das mulheres quilombolas no âmbito das políticas públicas de Joana das Flores Duarte, Patrícia Krieger Grossi e Eliane Moreira de Almeida; O COVID-19 E AS VÍSCERAS DA NECROPOLÍTICA BRASILEIRA SOBRE A SAÚDE DOS CORPOS NEGROS de Eliaidina Wagna Oliveira da Silva; O NÓ DESSA FERIDA COLONIAL: o trabalho doméstico em tempos de pandemia de Aline Cristina Costa; OS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS - DO LOCAL AO GLOBAL: novas acumulações sobre o corpo das mulheres negras e as lutas antirracistas, anti-patriarcais e anti-capitalistas de Silvane Magali Vale Nascimento; PENSANDO AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO DEPENDENTE: uma questão contemporânea para o Serviço Social de Mirele Hashimoto Siqueira; RACISMO AMBIENTAL, ESQUECIMENTO E SELETIVIDADE ESTATAL: Quilombo Vidal de Martins e o Parque Estadual do Rio Vermelho/SC de José Ricardo Tavares, Camila Gomes da Silva, Catia Fernanda Ebersol Guimarães e Rogério Santos da Costa; REDUÇÃO DE DANOS E SUA POTENCIALIDADE COMO FERRAMENTA ANTIRRACISTA NA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL de Júlio César Paiva e Silva e Lucia Cristina dos Santos Rosa; RELAÇÕES QUE PROMOVEM E REPRODUZEM A DESIGUALDADE E O RACISMO NO BRASIL de Eugénia da Luz Silva Foster, Elivaldo Serrão Custódio e Antônio Eugênio Furtado Corrêa; ROSAS NEGRAS E O HORIZONTE: acesso e êxito das estudantes negras cotistas na UNIR de Arthur Antunes Gomes Queiroz, Maria Ivonete Barbosa Tamboril,Cilene Sebastiana da Conceição Braga, Ediane Moura Jorge, Lais Ribeiro Gama, Mickaely de Lima Gomes Cilene Sebastiana da Conceição Braga, Ediane Moura Jorge, Lais Ribeiro Gama e Mickaely de Lima Gomes.
Complementam e adensam as reflexões elaboradas sobre o tema do Dossiê Temático uma Entrevista especial concedida pelo Professor Doutor Carlos Benedito Rodrigues da Silva ao professor Doutourando Rosenverck Estrela Santos intitulada RACISMO, MOVIMENTO NEGRO E POLÍTICAS PÚBLICAS: a história de luta do povo negro e uma Resenha elaborada pela Professora Doutora Claudia Alves Durans, do livro de HAIDER, Asad denominado ARMADILHA DA IDENTIDADE: raça e classe nos dias de hoje publicado pela Editora Veneta (SP), 2018.
Esta versão da RPP se completa com a seção Temas Livres da qual constam dez artigos: A INTERNACIONALIZAÇÃO NA PÓS-GRADUAÇÃO: avaliação traçada, desafios impostos de Daniela Jéssica Veroneze, Ieda Pertuzzati, Silvia Regina Canan e Arnaldo Nogaro; A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19 NO MARANHÃO: entre o desmonte e a essencialidade de Annova Míriam Ferreira Carneiro e Alba Maria Pinho de Carvalho; DIMENSÃO JURÍDICA DA POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO ÀS MULHERES ENCARCERADAS E EGRESSAS DO SISTEMA PRISIONAL de Luana Rodrigues Meneses de Sá e Andréa Flores; ENERGIA SOLAR NO BRASIL: histórico e planejamento energético de Lena Ayano Shimomaebara e Drielli Peyerl; EVOLUÇÃO DO EMPREGO FORMAL NO MARANHÃO: uma análise a partir da estrutura produtiva e sua distribuição no quadro das Regiões Imediatas entre 2006 e 2016 de Rafael Thalysson Costa Silva, Ricardo Zimbrão Affonso de Paula e Henrique Dantas Neder; IMPACTOS DEL COVID-19 E INSTRUMENTOS DE APOYO A LA PRODUCCIÓN EN MUNICIPIOS METROPOLITANOS ARGENTINOS de Rodrigo Reynaldo Carmona; INVESTIMENTO EM SANEAMENTO BÁSICO E A MELHORIA DAS CONDIÇÕES DE SAÚDE DAS CAPITAIS ESTADUAIS BRASILEIRAS de Gleice Carvalho de Lima Moreno, Douglas Heinz e Nelson Hein; PERFORMANCE LOGÍSTICA DO BRASIL NO COMÉRCIO INTERNACIONAL de Maurício Caminha Leal Bouchut, Ângela Rozane Leal de Souza e Letícia Oliveira; POLÍTICAS PÚBLICAS PARA IDOSOS: Investimentos de municípios brasileiros entre 2005-2014 de Marcelo de Maio Nascimento, Carolina Nascimento Silva, Danielly Elizeu Alves e Edmilson Santos dos Santos e PRIVATIZAÇÃO DE FUNÇÕES SOCIAIS DO ESTADO BRASILEIRO: estudo a partir da Política Pública de Saúde de Liliam dos Reis Souza Santos.
Finalizando, esperamos que a publicação de mais uma edição deste Periódico acadêmico- científico expresse, de fato, nosso compromisso de contribuir à interpretação e ao debate dos desafios da sociabilidade contemporânea e à produção do conhecimento no campo das Políticas Públicas e que o rico material disponibilizado colabore para ampliar análises desenvolvidas em torno do tema RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS, LUTAS ANTIRRACISTAS E POLÍTICAS PÚBLICAS: determinantes e expressões contemporâneas, bem como sobre os díspares objetos abordados nos artigos publicados na seção Temas Livres.
REFERÊNCIAS
CABRAL, Wagner. Sobre a questão da violência. Entrevista concedida a Salviana de Maria Pastor Santos. RPP, v. 22, n. 2, 2018.
MOURA, Clovis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Fundação Maurício Grabois/Anita Garibaldi, 2014.
MUNANGA, Kabenguele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Cadernos PENESB - (Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira). UFF, Rio de Janeiro, 2003.
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