Resumo: Este artigo tem como finalidade discutir a inserção e as experiências das mulheres negras no espaço público, mais especificamente a partir do campo da representação legislativa. A análise tem como foco a política local e se volta para a atuação de Marielle Franco como vereadora da cidade do Rio de Janeiro, examinando a integração entre mulher, negritude e favela como pilares centrais de seu mandato. O trabalho foi realizado com o auxílio de pesquisa bibliográfica e documental, e baseado no método do materialismo histórico e dialético, considerando que as relações de gênero e raça estão ligadas à historicidade e às contradições dos processos sociais, das relações de classe e das relações de produção e reprodução existentes em cada situação determinada.
Palavras-chave: Mulheres Negras, Política, Espaço Público.
Abstract: This article aims to discuss the insertion and the experiences of black women in public space, more specifically from the field of legislative representation. The analysis focuses on local policy and focuses on the work of Marielle Franco as councilwoman of the city of Rio de Janeiro, examining the integration between women, blackness and favela as central pillars of her mandate. This research was made through documental and bibliographical research, having the historical and dialectical materialism as grounding method, considering that gender and race relations are tied to historicity and the contradictions of the social processes, class relations and production and reproduction relations that are present in each situation.
Keywords: Black Women, Policy, Public Space.
Artigos - Dossiê Temático
ADENTRANDO O LUGAR PÚBLICO: mulheres negras na luta pelos espaços
Recepción: 13 Julio 2021
Aprobación: 20 Noviembre 2021
Nas democracias liberais, as esferas públicas se constituem sob uma grande desigualdade que sempre trata de excluir os grupos mais frágeis[1]. Se não estão totalmente excluídos, esses grupos encontram-se subordinados a um grupo dominante – representado, no caso do Brasil, por homens brancos detentores de altos rendimentos. Frente a uma conjuntura capitalista, chauvinista e autoritária, a necessidade de garantir qualquer pequena participação política e direito de oposição acaba nos levando a lutar pela manutenção da democracia liberal e burguesa, “mesmo sabendo que ela é insuficiente para construir alternativas emancipatórias que atendam ao poder popular” (FERNANDES, 2019, p. 73). Os segmentos subjugados, diante de um cenário de exploração e opressão, se veem obrigados a manter uma aproximação dos interesses gerais, o que acaba por afastá-los de seus próprios interesses. Essa problemática diz muito sobre os limites da participação política da mulher e sobre sua marginalização no espaço público.
Além disso, é preciso reconhecer ainda as especificidades dos grupos que conformam a totalidade do capitalismo tal qual o complexo dinâmico de relações sociais que é. Tais relações são moldadas conforme a divisão que determina que o lugar público – onde se desenvolve o lazer, a política, a economia, o exercício do poder – é reservado aos homens; ao passo que o lugar privado – doméstico, íntimo, da reprodução e do cuidado – está destinado às mulheres[2]. Mas, se elas foram historicamente segregadas do direito ao lugar público e do direito à tomada de decisões sobre ele, as mulheres negras, as mulheres trabalhadoras, as mulheres das periferias se encontram em situação muito mais alarmante, em suas condições de raça, de gênero e de classe. Lélia Gonzalez muito bem pontuou que “falar da opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não serem brancas” (GONZALES, 2018, p. 310-311).
Como aclarado por bell hooks[3] (2019), por mais que as mulheres não possuam o poder que normalmente é exercido pelos homens, elas são educadas sob os mesmos valores culturais e econômicos que definem o poder como meio de dominação e controle e, consequentemente, estão em defesa de hierarquias que mantêm o status-quo. Nesse sentido, para que ocorra uma conscientização, é necessário que as pessoas sejam incluídas no campo de ação político, no “fazer acontecer”.
Segundo Paulo Freire (2019), o “estar consciente” define a humanidade do indivíduo, que se refere à sua forma de avaliação e questionamento de sua própria conduta dentro de um contexto de alienação. Quando transforma, ao mesmo tempo, consciência e realidade, este indivíduo torna-se capaz de perceber as explorações e opressões que o atingem, e afirma sua capacidade progressiva de pensar e agir criticamente. Sendo assim, a tomada de consciência da exploração, dominação e opressão sofridas coletivamente pelas mulheres sob a conjunção capitalismo-patriarcado é o que conforma o feminismo enquanto teoria política e prática social (GARCIA, 2011).
Lélia Gonzalez, porém, chama atenção para um fato importante: para as mulheres negras e indígenas da América Latina, “a conscientização da opressão se dá, antes de tudo, pelo racial” (2018, p. 316). Lélia mostra que existe uma historicidade, contextualizada no capitalismo dependente latino-americano, que impõe uma necessidade de articular as desigualdades raciais às demais questões das mulheres[4] – já que a dimensão da raça produz uma identidade feminina socialmente estigmatizada. Diante dessas considerações, o presente artigo tem por objetivo refletir sobre o lugar da mulher negra no espaço público. Pretendo fazer uma breve abordagem sobre os processos que rodearam e ainda rodeiam a inserção e as experiências dessas mulheres no âmbito da política formal. Por se tratar de um trabalho que tem como foco a esfera legislativa local, a análise se concentra principalmente na política do município do Rio de Janeiro, enfatizando a atuação da ex-vereadora Marielle Franco e sua forma de pensar a cidade a partir das imbricações entre gênero, raça e classe.
Para o desenvolvimento deste trabalho, recorri a diversas fontes bibliográficas e a um vasto conteúdo documental, como leis, relatórios e dados estatísticos, matérias jornalísticas e depoimentos orais registrados em vídeo. O aporte metodológico utilizado foi o materialismo histórico e dialético, que possibilita uma análise crítica das relações sociais a partir de contextos socioeconômicos determinados que nos permitem desnaturalizar as opressões às quais as mulheres negras estão submetidas. Não se trata, porém, de uma concepção determinista, mas do conhecimento da realidade, moldada conforme o caráter mutável do processo histórico que acaba por produzir possibilidades de autoemancipação humana diante dos obstáculos de base material, institucional e ideológica (MÉSZÁROS, 2008). Argumento que a marginalização das mulheres negras expressa o caráter racista, patriarcal e colonialista das cidades e das instituições políticas modernas. Os corpos negros, femininos e feminizados estão, portanto, submetidos a espaços idealizados, erguidos e ocupados por e para os homens ricos – e quase sempre brancos.
Os períodos ditatoriais vivenciados pelo Brasil em sua recente história republicana (1937-1945 e 1964-1985) marcaram o caminho conturbado de consolidação da democracia brasileira, que foi um dos vários fatores que contribuíram para o afastamento da mulher das arenas decisórias. Foi apenas no início do processo de redemocratização da década de 1980 que a questão da presença feminina na política institucional começou a se modificar efetivamente, principalmente na esfera da representação legislativa (ARAÚJO, 2001).
Segmentos sociais historicamente excluídos das esferas formais de representação política, como a população negra, a população indígena e as mulheres, começaram a aderir às lutas a favor de sua inclusão nos espaços institucionais de decisão, reivindicando por transformações em suas estruturas internas. Assim, em grande parte da América Latina, inclusive no Brasil, as particularidades do cenário político se refletiram no surgimento de novos sujeitos coletivos no âmbito da democracia e da chamada cidadania liberal[5]. As democracias emergentes do final dos anos 1980 abarcavam as demandas por direitos políticos e pela inclusão de todos os segmentos sociais na nova configuração política que se estabelecia, mesclando as lutas por reconhecimento com a luta pela redemocratização[6] (ARAÚJO, 1998).
No caso brasileiro, em particular, a relação entre a mulher e a política partidária foi repensada a partir da volta do pluripartidarismo no início dos anos 1980[7]. Mais que denunciar e exigir mudanças, as mulheres perceberam a necessidade de pensar, elas próprias, em políticas públicas que compreendessem os pormenores da realidade feminina (BORBA, 1998). Elas traziam ao debate, portanto, a importância de sua participação concreta no campo institucional. Clara Araújo (1998) expõe que os direitos legais conquistados pelas mulheres no momento da elaboração da Constituição de 1988 fizeram com que elas passassem a considerar ainda mais a relevância dessa participação, requerida com base em uma afirmação de gênero, dentro das instituições políticas.
A Constituição de 1988 reconceituou a família, abolindo o pátrio poder e a figura de chefe do casal, reconheceu a união estável, confirmou o divórcio, ampliou a licença-maternidade, criou o direito à licença-paternidade, o direito à creche, coibiu a discriminação da mulher no trabalho, criou direitos para as empregadas domésticas e previu, ainda, a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica (BORBA, 1998, p. 158-159).
Essas mudanças positivas na Constituição Federal exerceram influência na elaboração das constituições estaduais e das leis orgânicas municipais. Cerca de 80% das propostas feitas pelos movimentos feministas e femininos em geral foram contempladas, o que mudou significativamente o status jurídico das mulheres no Brasil (CARNEIRO, 2003, p. 117). A fins da década de 80, elas desempenharam um importante papel através de sua intensa atuação em eventos políticos, tematizando publicamente – e de maneira incisiva – suas reivindicações diante de um contexto de crescente atuação da sociedade brasileira[8]. Nesse sentido, essas mulheres demonstravam a importância e a necessidade de uma cultura política mais representativa e democrática (BORBA, 1998).
Paralelamente, as também intensas reivindicações dos movimentos negros e indígenas culminaram no crescimento dos estudos sobre as desigualdades e as relações raciais no país, tornando cada vez mais relevante o debate sobre o racismo (CAMPOS; MACHADO, 2014). Nesse panorama, é preciso destacar, porém, que o feminismo que se difundia fortemente no Brasil esteve, por muito tempo, pautado em uma “análise” isolada de gênero e moldado por uma visão eurocêntrica e neocolonialista da realidade (GONZALEZ, 2018, p. 309). Dessa forma, diante de um quadro de profundas desigualdades, muitas das mulheres que gostariam de participar plenamente de uma verdadeira luta por direitos e pela libertação permanecem invisibilizadas e “[...] têm suas energias drenadas porque estão continuamente às voltas com a discriminação, a exploração e a opressão sexista” (HOOKS, 2019, p. 77).
Por outro lado, a resistência das linhas feministas mais radicais foi indispensável. Considerando as dimensões de raça e de classe, esses feminismos redefiniram suas agendas políticas ao compreenderem que a hierarquia entre as próprias mulheres também molda as relações de poder e dominação. As análises que compunham as reivindicações por justiça e direitos foram, então, reformuladas graças ao conhecimento e às lutas das mulheres negras[9] e ao empenho advindo das feministas marxistas e socialistas. No Brasil, as experiências de mulheres que enfrentaram o regime ditatorial de 1964 também contribuíram para que a diferença passasse a ser considerada no entendimento das opressões (BIROLI, 2018).
Isso significa que, entendendo as contradições existentes dentro do próprio feminismo, as mulheres negras se engajaram ainda mais na luta por suas demandas específicas, problematizando a marginalização da questão racial dentro desse movimento[10]. Mas, afinal, como foram as experiências das mulheres negras que conseguiram ocupar cargos legislativos? Como viviam e pensavam o lugar público? Essas perguntas são cruciais para que seja possível avaliar os reais sentidos de uma sub-representação que vem se radicando no cenário político brasileiro.
À época de seu mandato na Câmara Municipal do Rio de Janeiro[11], Marielle Franco era a única vereadora autodeclarada preta. Segundo dados levantados em 2019 pelo IBGE, o Rio é a cidade que abrange o segundo maior número do Brasil em residentes pretos e pardos (cerca de 3,1 milhões)[12]. Em relação ao número de pretos exclusivamente, o município fica na terceira colocação, chegando a 819 mil (IBGE, 2019). O que parece nítido, porém, é que a Câmara carioca e o parlamento brasileiro como um todo não expressam essa realidade: no ano da eleição de Marielle, as mulheres negras[13] representavam apenas 3,9% do total de vereadores eleitos na capital fluminense (e 5% do total de vereadores eleitos no Brasil). Este fato pode ser explicado pelos impactos da escravidão[14] na formação social brasileira (ALMEIDA, 2020). Silvio Almeida (2020) explica que não se trata da existência de vestígios daquele passado não superado, mas das estruturas forjadas por ele: as estruturas capitalistas. “A escravidão e o racismo são elementos constitutivos tanto da modernidade, quanto do capitalismo, de tal modo que não há como desassociar um do outro” (ALMEIDA, 2020, p. 183).
Há, portanto, um processo histórico de marginalização social que impede que determinados grupos étnicos e/ou raciais, rejeitados pelos grupos dominantes, ocupem certos espaços e desempenhem certas tarefas. Superar esta marginalização, que perdura há séculos e traduz as relações raciais próprias de determinada sociedade, é muito difícil (QUEIROZ, 1978). Por estas razões, a eleição de mulheres negras, como a de Marielle Franco, deve ser encarada como grande afronta à elite branca, rica e masculina que tem se dedicado à manutenção da estrutura social escravocrata através do espaço político[15]. Para evitar a invisibilidade feminina pretendida pelo sistema, Marielle destacava a importância de termos como protagonistas mulheres que se dediquem a debater gênero, feminismo e racismo (PITASSE, 2018). Preta, mulher, bissexual, favelada, e defensora dos direitos humanos, a vereadora representava todos os grupos aos quais a ordem vigente busca silenciar diariamente no Brasil.
Ao invés de, no máximo, ter lideranças de favela sentadas nos bancos das sessões na Câmara Municipal, havia agora uma mulher negra favelada, com sua brilhante e cativante presença e sua incrível coragem atrás do pódio. E ela estava usando-a, confiantemente, diariamente e efetivamente, para chamar a atenção para o abuso policial, para confrontar violências de gênero e uma série de outros problemas enraizados. Em seus 13 meses de mandato, ela apresentou 13 projetos de lei. Uma voz considerada inconveniente o suficiente, para alguém, a ponto de justificar o ato de pôr fim à sua vida (WILLIAMSON, 2018, não paginado).
Antes de 2016, apenas outras duas mulheres pretas conseguiram se eleger vereadoras na cidade do Rio. Benedita da Silva, representante do Partido dos Trabalhadores (PT), foi a primeira. Eleita em 1982, obteve 7.778 votos e exerceu apenas um mandato[16]. Sobre sua experiência, Benedita relata em entrevista à BBC Brasil em Londres:
Se ainda é difícil para uma mulher negra, favelada, ocupar esses espaços, você não sabe como foi naquela época. Para começar, eu era a única dos 33 vereadores que não tinha carro oficial, porque diziam que o carro não podia subir a favela, e eu morava no Chapéu da Mangueira.
Depois, eu, casada, era objeto de certo tipo de violência sexual dos colegas, que ficavam apostando para ver quem sairia primeiro comigo. Você passa quatro anos tentando provar que é inteligente, que é capaz, que não é um objeto sexual (MESQUITA, 2018, não paginado).
Sobre o assassinato de Marielle Franco[17], Benedita aponta que foi uma “violência contra a negritude”, uma execução que representa o apartheid que temos vivido no país. Ainda complementa dizendo que Marielle foi morta porque incomodava, e que a vereadora tinha potencial para ocupar cargos mais altos, podendo chegar até à presidência da República (MESQUITA, 2018). Dez anos após a eleição de Benedita da Silva, Jurema Batista, também do Partido dos Trabalhadores (PT), elegeu-se por três mandatos consecutivos, com 5.562 (1992), 16.969 (1996) e 13.663 votos (2000). Jurema relata:
A minha história é assim: sou nascida e criada numa favela, que é o morro do Andaraí, e lá, mediante a falta de coisas, a questão do poder público se fazer presente naquela comunidade… só se via polícia. Numa dessas situações, eu me tornei líder comunitária porque a polícia matou um trabalhador negro, confundiu com um bandido. Sou professora de português e literatura. Quando morreu a pessoa, não teve aula. Na próxima aula, as pessoas começaram a dizer que estavam querendo desistir de estudar, porque não tinha jeito, a gente era sempre desrespeitado. [...] E quero dizer o seguinte: não tem como uma pessoa da população negra chegar ao poder se não tem uma história ou luta social. Porque nós não temos sobrenome dos colonizadores, não temos poder econômico e não temos trajetória de poder político na família (AGÊNCIA PÚBLICA, 2018, não paginado).
Vemos que até Marielle Franco assumir seu posto como vereadora, foram mais de dez anos de espera para que uma mulher preta ocupasse um assento na Câmara Municipal do Rio novamente.
Tanto Marielle quanto Jurema e Benedita vieram da favela, e as três usavam esse lugar de favelada para fazer uma política diferente, que desse visibilidade ao povo negro das comunidades. Pesquisando sobre a campanha de Benedita da Silva para a prefeitura do Rio em 1992, Gabriela Scotto (1994) faz alguns apontamentos a respeito da campanha anterior para a vereança. Em ambas, a articulação entre as identidades mulher, negra . favelada foram as bases da representação de Benedita, que não adota meramente essas características em um sentido de apropriação, mas as tem como uma materialização de si mesma: ela é portadora dessas identidades (SCOTTO, 1994). Por isso, segundo Scotto, sua trajetória de vida produz um efeito de verossimilhança nos discursos em nome dos grupos subalternos. Seguindo o mesmo raciocínio, Marielle dá ênfase à sua vivência como mulher negra e favelada na cidade, e a entende como uma contribuição que qualifica sua intervenção no mandato[18]. No vídeo de apresentação de sua candidatura, ela reforçou:
Sentimos quando somos desrespeitadas nos transportes, desvalorizadas no trabalho, assediadas nas ruas, violentadas em casa. Entre os becos e vielas da favela, sobreviver é a nossa maior resistência. Agora chegou a nossa vez. Vamos ocupar o nosso lugar na cidade e na política. Ter o que nos é de direito. Nossa voz, muitas vezes silenciada, terá de ser ouvida. [...] Eu sou Marielle Franco. Mulher, negra, mãe, da favela (FRANCO, 2016, 0:35).
Em um país em que um jovem negro é assassinado a cada 21 minutos[19] e que as mulheres negras representam 61% dos casos de feminicídio[20], Marielle relembrava a necessidade de compreender que os negros estão em um “lugar de tratamento diferente” e que “é preciso reconhecer o racismo” (PITASSE, 2018, não paginado). O item seguinte, então, tem o propósito de abordar o empenho da ex-vereadora em pensar a cidade para quem realmente a vive e a constrói. Enquanto mulher negra, favelada e feminista, que compreendia os aspectos conjunturais que afetam a qualidade de vida da população mais vulnerável, Marielle se dedicou a lutar principalmente pela vida das mulheres que estão segregadas no espaço urbano e constituem a base da pirâmide social.
Marielle Franco acreditava que a busca pela garantia do direito à cidade por meio da ação legislativa representa um desafio e uma conquista cotidiana para mulheres vereadoras, principalmente para aquelas que reafirmam sua identidade de mulher negra enquanto feministas no espaço público institucional (FRANCO; FRANCISCO; TAVARES, 2017). Marielle repetia enfaticamente que, assim como gênero e raça, “favela” era um dos grandes pilares de seu mandato [21]. Um de seus objetivos centrais era repensar o uso da cidade a partir das experiências do(a) favelado(a). Para isso, como ela mesma dizia, se utilizava de sua posição como legisladora, de sua formação como pesquisadora e de sua própria vivência como mulher negra de favela:
A formação profissional e o meu lugar de origem ajudam no desempenho do mandato e têm um peso, porque eu acho que a gente faz política desde que se entende por gente. Meu acúmulo a partir da minha formação enquanto socióloga, enquanto pesquisadora, contribui para o mandato porque tem a vivência da mulher favelada na cidade e da mulher pesquisadora na cidade. Então são elementos que organizaram e me pautaram desde o processo eleitoral, quando a gente dialogava sobre negritude, sobre favela ou sobre as pautas de gênero (RIO TV CÂMARA, 2017, 3:26).
Aqui, me refiro a“mulher de favela” conforme o conceito proposto por Nilza Rogéria Nunes (2015): não se trata simplesmente da mulher que reside na favela, mas daquela que se constitui como sujeito político e histórico, como referência e/ou liderança que luta todos os dias por um grupo específico de mulheres subalternizadas.
Diante do estabelecimento da política econômica neoliberal, as mulheres passaram a ser as principais envolvidas com as causas coletivas da favela, se comprometendo com seus problemas territoriais por meio de uma práxis política própria que se desenvolve a partir de instâncias locais e órgãos comunitários (NUNES, 2015). Ao mesmo tempo, principalmente a partir dos anos 1990, entendendo os limites do feminismo quanto à questão racial, as mulheres intelectuais negras estabelecem uma agenda política que começa a se expandir no contexto brasileiro, associando as discussões sobre gênero, raça e classe (CARNEIRO, 2002). O papel exercido pelas mulheres negras e as discussões por elas propostas possuem uma centralidade dentro da formação da mulher de favela como sujeito concreto, pois o racismo e o patriarcado, inseridos no jogo da opressão capitalista, sustentam o tecido social sobre o qual se assenta a mulher favelada. As relações de poder e as formas de sociabilidade, então, são repensadas, dando formato à luta pela integração urbana.
Desde muito jovem, Marielle Franco começou a atuar no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM)[22] e em outras organizações da sociedade civil e coletivos dentro da comunidade. Frequentou o pré-vestibular comunitário, participou de grupos de mulheres, fez trabalhos que envolviam cultura, educação e outros temas essenciais à qualidade de vida dos moradores daquele território. Começou a militar pelos direitos humanos após a morte de Jaqueline, uma amiga próxima, vítima de bala perdida em um confronto entre policiais e traficantes.
Então, você está num lugar que o tráfico sabe por onde sair e a polícia sabe por onde entrar. Quando a Jaqueline morreu, a gente se perguntava: “Podia ter sido eu?”. E aí fizemos campanha contra o Caveirão e fomos entendendo desse debate da segurança pública, que eu fui aprofundando ao longo do tempo. Mas era assim: Como é que tem um veículo que chega atirando e mata pessoas, por mais defesa da vida dos policiais que se faça? Como é que tinha isso? (Marielle Franco em MARIE CLAIRE, 2018).
Os desdobramentos da militância de Marielle por uma cidade integrada se fortaleceram a partir da ocupação da coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e, posteriormente, da ocupação do cargo na vereança. Foi ela uma das responsáveis[23] pela Lei nº 6.419/18, que prevê a criação de espaços infantis noturnos destinados a crianças de 6 meses a 5 anos de idade que possuem famílias que estudam ou trabalham entre os horários de 17 a 23 horas. Os denominados “Espaços Coruja” refletem uma agenda que se baseia na realidade das mulheres trabalhadoras, em sua maioria negras, que passam a ter a oportunidade de compartilhar com o Estado o tempo de dedicação à educação e ao cuidado dos filhos e filhas. Cerca de uma semana antes de sua execução, durante a participação em um evento do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU/RJ), Franco falou sobre o projeto, que, à época, ainda não havia sido aprovado:
[...] a gente apresenta um projeto de lei que certamente deveria ser pensado na sua arquitetura e na sua formulação pela perspectiva do direito à cidade, do direito a gênero na cidade, por conta de ser um horário estendido para que as crianças fiquem nesse espaço infantil, e tenham, a partir daí, as mães, maior possibilidade de trabalho (CAU/RJ, 2018, 45-35).
A ex-vereadora diz que o projeto foi pensado conjuntamente com o movimento de mulheres e teve eco também entre professoras e educadoras infantis. Afirma ainda que houve estranhamento e indagações, por parte dos demais vereadores da Câmara, em relação ao horário de funcionamento dos espaços – o que, para ela, revela um total “descolamento da realidade” (CAU/RJ, 2018).
Também é de autoria de Marielle o projeto que deu origem à Lei nº 6.614/19, que institui a assistência técnica pública e gratuita para projeto e construção de habitação de interesse social para as famílias que ganham até três salários mínimos. De acordo com suas palavras, “esta é uma demanda histórica dos movimentos sociais e de entidades ligadas ao campo da arquitetura e urbanismo diante da enorme população de baixa renda que necessita de projetos e obras para a melhoria da sua condição de moradia”[24].
O 1º Encontro Direito à Favela, que aconteceu em junho de 2017, no Museu da Maré, foi outra importante iniciativa de seu mandato, ligada ao eixo da política urbana. Inspirado no debate do direito à cidade, o evento reuniu professores, lideranças políticas, coletivos comunitários e moradores de diversas favelas do Rio de Janeiro a fim de pensar a luta pelo direito à vida periférica por meio de uma construção teórica e prática. Buscando fazer política de um jeito diferente, mais atrativo e inclusivo, Marielle quis fortalecer as redes de militantes favelados(as) e fomentar as discussões sobre diferentes políticas públicas que pudessem proporcionar uma cidade mais acessível para todos(as) os(as) habitantes.
O encontro promoveu diversas oficinas, além de rodas de conversa que abordaram os seguintes temas: direito à cidade e moradia, saneamento básico e saúde, educação e cultura, descriminalização das drogas e segurança pública[25].
As reivindicações e o empenho de Marielle Franco, dentro ou fora da esfera institucional, expressavam claramente a sua especificidade histórica e sociopolítica. Guiada por uma perspectiva feminista pautada no pertencimento territorial, a ex-vereadora sabia da importância das mulheres na luta por um planejamento urbano integrado:
É mais do que hora da gente ocupar esses espaços e garantir que, para além do debate simbólico, a gente consiga figurar no debate objetivo. As mulheres precisam estar nessa composição da decisão da política pública, da orientação do CAU, de quem vai pensar esse plano diretor, de quem vai pensar esse planejamento arquitetônico para esse espaço, na compreensão mais ampla do que isso nos exige hoje (Marielle Franco em CAU/RJ, 2018, 46-58).
Compreendendo que a intervenção urbana e os megaprojetos realizados em virtude dos Jogos Olímpicos de 2016 impulsionaram a violação dos direitos sociais da maioria, Franco se dedicou a repensar as necessidades da favela através do diálogo entre sociedade civil e poder público[26]. O acesso sempre foi ponto chave de todos os debates que a norteavam. O que se descreve a seguir, sobre determinados posicionamentos da legisladora, tem como base algumas de suas reflexões[27] feitas durante uma palestra ministrada no evento Mobilize Santiago, de 2017[28].
Em primeiro lugar, entende-se que, em seu modo de ver, o olhar feminino para a questão da acessibilidade deve ser o ponto de partida para o enfrentamento dos desafios quanto ao direito de ir e vir na cidade. A ex-vereadora destacou que as mulheres são as que tendem a fazer o maior número de deslocamentos diários, e por isso estão mais suscetíveis à precariedade e aos mais diversos tipos de violência. Fez questão de pontuar também, naquela ocasião, que o Rio de Janeiro se tornou laboratório do capital, e que as recentes promessas de solução quanto ao transporte público, por exemplo, não foram efetivas. O Bus Rapid Transit, conhecido popularmente pela sigla BRT, era uma grande aposta para a mobilidade urbana quando o Rio foi anunciado como sede da Olimpíada. O resultado, porém, foi desorganização, insegurança, vandalismo, superlotação e asfaltos esburacados que aumentam enormemente o tempo das viagens (MAGALHÃES; RODRIGUES, 2017). Por isso, Marielle chamou atenção para a urgência de se pensar em novas soluções coletivas e em novos modelos de transportes de massa que considerem a vivência da mulher trabalhadora.
Jailson Silva, Eliana Silva, Renato Balbim e Cleandro Krause (2016), ao analisarem a mobilidade na Maré[29] – onde Marielle nasceu e cresceu – identificaram que, apesar da forte ligação com o centro da cidade, as viagens cotidianas dos moradores se concentram em grande parte no interior da favela. Em consonância com as constatações da pesquisa, Marielle falou sobre a importância de encontrar alternativas de baixo custo para os pequenos deslocamentos. Relatou, inclusive, que, antes de começar sua graduação na PUC-Rio, sua circulação se limitava à Zona Norte. Quando os estudos a “obrigaram” a transitar por outras regiões, os percursos, realizados em meios de transporte em condições inadequadas, chegavam a durar de uma a duas horas.
Essa dinâmica de circulação do dia a dia, por várias áreas da cidade, é uma condição estrutural importante, mas constitui um tipo de mobilidade física que, sem a consideração de outros fatores, funciona conforme a lógica da cidade-mercadoria: hierarquiza os espaços, escancara as desigualdades e decreta o que é o “território comum” e o “território do outro” (SILVA; SILVA; BALBIM; KRAUSE, 2016). Franco sugeria que a mobilidade fosse pensada para além dos números e das atividades rotineiras que geram a reprodução do capital, olhando também para o contexto simbólico – para as possibilidades e oportunidades, para o direito às experiências no território, para os momentos de lazer e o tempo com a família (ITDP, 2018; CAU/RJ, 2018). Em seu pronunciamento na última sessão ordinária da qual participou na Câmara Municipal carioca, Marielle reforçou:
Como ficam as mulheres que não têm acesso à cidade? Essas mulheres são muitas. São mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres trans, mulheres camponesas, mulheres que constroem essa cidade, onde diversos relatórios – queiram os senhores ou não – apresentam a centralidade e a força dessas mulheres (RIO TV CÂMARA, 2018, 1-33).
Seu brutal assassinato, na região central do Rio, em 14 de março de 2018, é um dos inúmeros retratos da violência contra a mulher no espaço urbano. O Instituto de Segurança Pública (2020) registrou 308 homicídios dolosos sofridos por mulheres no estado do Rio de Janeiro em 2019. 43,8% deles foram por arma de fogo, e 63,6% das vítimas eram negras. A maior parte desses homicídios ocorreu na capital fluminense[30] (31,8%) (MENDES et.al., 2020). A segurança (ou a falta dela) é um grande indicativo do tipo de qualidade de vida oferecida pela urbe. O medo faz com que as mulheres deixem de circular livremente, utilizem menos as ofertas da cidade, mudem seus trajetos, redefinam e restrinjam o tempo e o espaço de troca (SEGOVIA, 2009, p. 150, tradução minha). Marielle não teve medo. Não abandonou o lugar público. Decidiu ocupar a qualquer custo. Sua atuação traduz o movimento de resistência social que, na visão de Nunes (2015), caracteriza o empenho da mulher de favela pela transformação urgente da sociedade.
As democracias liberais tentam anular completamente as identidades e as diferenças, tratando as mulheres como cidadãs abstratas. Quando os liberais se demonstram satisfeitos com a eleição de representantes de grupos minoritários, estão celebrando o êxito desses eleitos enquanto indivíduos, em vez de pensarem em suas condições específicas enquanto grupos (PHILLIPS, 2011). Diante dessa tentativa de apagamento, as mulheres – principalmente as mulheres negras, periféricas e trabalhadoras – vêm travando, por muitos anos, inúmeras batalhas por reconhecimento enquanto sujeitos políticos concretos, não-neutros, dentro e fora das esferas formais de representação.
A sub-representação feminina e negra no lugar público deve ser entendida como um problema, e não deve ser interpretada como mero desinteresse ou despolitização. Quando falamos de relações de poder e resistência, a vida e a política estão entrelaçadas e são indissociáveis. A verdadeira despolitização consiste na lógica excludente que apaga do âmbito político a esfera da reprodução, o gênero e a raça, bem como outras dimensões que são pertinentes ao debate, como a sexualidade.
Os pilares patriarcais e racistas que constituem a totalidade do capitalismo tornam mais complexas as vidas de quem é mulher. Por isso, mulheres como Marielle geralmente têm suas possibilidades e oportunidades definidas de acordo com “o lado do muro” em que se encontram. A crescente atuação feminina em suas diferentes expressões ainda não rompeu com as dinâmicas de uma organização social concebida sob o ponto de vista do homem branco, rico, com acesso a recursos. Assim, os direitos femininos à política e à cidade são limitados por uma série de violências perpetradas contra a mulher no espaço público, que vão se perpetuando conforme vem sendo garantida a manutenção da conjunção capitalismo-racismo-patriarcado.
O cenário político que se desencadeou na América Latina após os anos 2000, com o fim do predomínio de governos mais à esquerda, gerou um grande ativismo conservador contrário às políticas de igualdade racial e de gênero. Tal ativismo, emergente da fusão entre fundamentalismo, anticomunismo e ultraliberalismo, revela seu caráter autoritário ao contribuir para a propagação de preconceitos e incentivar perseguições agressivas.
Atacada pelo conservadorismo do início ao fim de sua carreira política (e até mesmo depois de sua morte)[31], Marielle Franco se dedicou a pensar a cidade pela ótica da diversidade de seus habitantes, dando visibilidade à correlação entre as esferas produtivas e reprodutivas. Marielle enxergava a urbe para além de sua conformação enquanto local de reprodução do capital: como lugar do encontro e das realizações. Sua execução também é reflexo desse cenário de retrocessos que tem as mulheres – trabalhadoras, periféricas, negras, migrantes, mães, lésbicas, bissexuais, trans – como principais vítimas.