Resumo: O artigo relata práticas socioculturais inscritas em experiências de resistência política e de trabalho de duas comunidades quilombolas, na região do Baixo Acará, Amazônia Paraense. Visa discutir processos político-pedagógicos que orientam a ambientação dessas experiências de luta e trabalho. Esses processos situam ações de resistência na defesa de seus territórios ancestrais e de reafirmação de práticas antirracistas. Por meio de uma pesquisa-ação participativa realiza um diagnóstico socioambiental e atividades de formação voltadas para as necessidades locais. Apoia-se em Marin (2009), Arroyo (2012), Silva et.al. (2014), Santos (2008), Almeida (2004), Brandão (2002), Caldart (2012). Os resultados indicam que a mobilização e organização social das comunidades estão relacionadas com a defesa de territórios quilombolas, o reconhecimento de sujeitos de direitos, à reprodução da existência e continuidade de suas práticas de trabalho.
Palavras-chave: Comunidades Quilombolas, Territórios Ancestrais Amazônicos, Ambientação das Lutas, Práticas de Resistência.
Abstract: This paper discusses socio-educational practices inscribed in the work and political resistance experiences of two Afro-Brazilian communities in the Amazon region of Pará (Brazil). It aims to discuss political-pedagogical processes that guide the ambience of these labor and struggle experiences. These processes situate actions of resistance on the defense of their ancestral territories and reaffirmation of anti-racist practices. Through participatory action-research, socio-environmental diagnosis and local-needs-oriented training activities were performed. The discussion is based on Brandão (2002), Arroyo (2012), Silva et al. (2014), Santos (2004). The results indicate that the social mobilization and organization of these communities are related to the defense of Afro-Brasilian (quilombola) territories, the reproduction of existence, and the continuity of their labor practices.
Keywords: Quilombola Communities, Ancestral Amazonian Territories, Environmentalization of Struggles, Resistance Practices.
Artigos - Dossiê Temático
COMUNIDADES QUILOMBOLAS NA AMAZÔNIA: resistência e reafirmação de territórios ancestrais para a reprodução da existência
Recepción: 12 Julio 2021
Aprobación: 20 Noviembre 2021
O artigo analisa contextos socioambientais e culturais inscritos em experiências de lutas e resistência política e de trabalho de duas comunidades quilombolas, na Amazônia Paraense. Resulta de uma pesquisa realizada entre os períodos de 2010-14, que buscava inicialmente construir aproximações entre práticas de formação acadêmica de estudantes de uma das Universidades pública do Pará e a dinâmica cotidiana de comunidades tradicionais, no caso aqui considerado, duas comunidades remanescentes de quilombolas denominadas de Catiuaia e São José, respectivamente, situadas na região no Baixo Acará, município de Acará, estado do Pará.
Trata-se de comunidades amazônicas, que de acordo com autores como Marin (2009), tem uma histórica relação com a natureza. Segundo esta autora, essas comunidades fizeram parte de culturas de resistência no período de Cabanagem e hoje estão à margem do processo de desenvolvimento econômico, sendo excluídas das políticas do governo e muitas vezes perdendo suas identidades.
É no contexto da década de 1980, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que um conjunto de mudanças começou a ser trabalhada na realidade brasileira, e novos sujeitos passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, assim como a diversidade étnico-cultural. Nesse período, passaram a ganhar força debates sobre temáticas que tratavam da preservação da memória enquanto patrimônio material e imaterial de indígenas e quilombolas, enquanto grupos étnicos. Contudo, o termo “quilombola” carregava tensões quanto ao seu entendimento de categoria epistemológica e também de significado político. De acordo com Ferreira (2012, p.645), “o termo ‘quilombola’ foi passando por releituras e adquirindo outros significados, como o de ‘sujeito de direitos’, resultante da conquista jurídica do movimento negro perante o Estado brasileiro”.
No seu Art.68, a Constituição Federal determinou que: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos específicos”. Ainda que consagrado juridicamente como um direito étnico, na prática as lutas das comunidades quilombolas pela titulação de suas terras têm sido históricas, marcadas por conflitos.
Estudos têm indicado,
[..] que este reconhecimento não resolveu outras necessidades mais imediatas relacionadas aos direitos sociais e à efetivação de políticas públicas específicas que viessem atender outras dimensões do conceito de cidadania ajustadas aos grupos étnicos e em compreensão as suas prioridades e necessidades. (DINIZ, 2011, p.14).
No caso das comunidades que participam da pesquisa, por meio das aproximações e convivências da equipe da pesquisa, foram encontradas várias práticas coletivas e de uso dos recursos territorializados de forma comum. Ainda que em alguns contextos houvesse indícios de tensões, no geral, homens e mulheres, cujo modo de viver é simples, o sentimento que as narrativas orais traziam era de pertencimento.
Isso remete para a questão da (re)configuração identitária dessas comunidades quilombolas, que está assentada em formas de produção da existência, valorização de suas memórias e práticas culturais, o que indica o reconhecimento e a valorização de uma origem comum, de seus processos de territorialização e luta para a permanência socioespacial das comunidades. Santos (2012, p. 654) considera não ser possível dissociar essa questão de (re)configuração identitária da luta pela terra (titulação coletiva). O que impediria de se perceber “que esse campesinato negro vive experiências diferenciadas do capitalismo brasileiro, e tem na valorização de suas matrizes de relações sociais (culturais, de ancestralidades, de africanidades, entre outras) estratégias fundamentais de resistência e sobrevivência”.
Considerando essa problemática, com a pesquisa buscou-se construir aproximações entre conhecimento acadêmico e práticas culturais pautadas na ancestralidade ainda predominante nessas comunidades que se pode situar como práticas antirracistas e de construção identitária.
Uma das motivações que está na origem do projeto foi o reconhecimento de que os assuntos abordados na maioria das disciplinas de formação acadêmica estão distantes das políticas públicas que informam o desenvolvimento comunitário e sua relação com a ideia dos direitos e ao agir do Estado eo reconhecimento dos conhecimentos tradicionais. O foco, quase sempre, tem sido nas demandas tecnológicas e/ou empresariais e do mercado.
As ideias iniciais para a elaboração de uma proposta dessa natureza começou a ser gestada em meados do segundo semestre de 2008, com uma viagem feita por um dos integrantes da equipe para um terreno na comunidade de Catiuaia, em visita a uma Ecovila, no mesmo local, em construção por permacultores[1] que estavam em Belém para preparação do Fórum Social Mundial, que se realizaria em 2009. Um dos idealizadores da Ecovila contou a história da comunidade, o que deixou integrantes da equipe deste projeto muito sensibilizados e desejosos de desenvolver um projeto de extensão, via Universidade, nessa comunidade.
Metodologicamente, optou-se pela realização de uma pesquisa-ação, que tem sido historicamente utilizada como opção metodológica nas diferentes abordagens e contextos de pesquisa. René Barbier (2002, p.13) situa no desdobramento histórico da sociologia no século 20, “como preocupação, a revolução epistemológica e [...] a eficácia política e social”. Esse tipo de pesquisa é realizada desde uma concepção clássica de metodologia que se orienta pela abordagem quantitativa, enfatizando mais o empírico-analítico ou experimental, até aquelas concepções que se situam no contexto da abordagem qualitativa. É por meio das pesquisas qualitativas que ela tem alterado suas perspectivas epistemológicas e paradigmáticas, e entre essas perspectivas, aquelas que lhes atribuem uma dimensão participativa e colaborativa.
A opção pela metodologia qualitativa do tipo pesquisa-ação, ou investigação-ação, está referenciada em Bogdan; Biklem (1994, p.93) que a consideram como “um tipo de investigação aplicada no qual o investigador se envolve ativamente na causa da investigação”. Nas ideias de Sousa (2009, p. 95) encontraram-se fundamentos epistemológicos, éticos e políticos para qualificar a pesquisa-ação como participativa. O autor define a investigação-ação como
[..] um estudo situacional, ligando-se com o diagnosticar de um problema num dado contexto específico, procurando a sua resolução nesse contexto. É eminentemente participativa, colaborando activamente na investigação tanto o professor como os alunos, experimentando diferentes situações e procurando as soluções mais adequadas. É auto-avaliativa, na medida em que há uma constante avaliação das situações, com o objetivo de procurar os caminhos mais eficazes (SOUSA, 2009, p. 98).
Dessa forma, a pesquisa-ação participativa, aqui indicada, orientou-se pelos princípios da participação e da colaboração. Procedimentos metodológicos e ações foram realizados pautando-se na dialogicidade, horizontalidade e reciprocidade, buscando nas teorias críticas seus fundamentos. A opção metodológica pela pesquisa em ação está associada ao reconhecimento de que a sua natureza participativa tem possibilitado aos pesquisadores em colaboração com os povos e comunidades tradicionais, reconhecer seus saberes e lutas, particularmente no contexto amazônico, em seus processos de (re)existências.
Ela possibilita ao pesquisador manter-se perto da realidade social que pesquisa por meio de ações colaborativas, de forma reflexiva e aproximativa com as questões locais, ou seja, com as práticas culturais e/ou de trabalho concretas, voltando-se para o como se faz.
Portanto, a pesquisa-ação participativa tem na realização de ações pautadas nos princípios da colaboração, o acolhimento em uma concepção de ciência mais aberta, plural e dialógica. Ciência que, de acordo com a perspectiva de Santos (2002), traz um contributo que se pauta pela não-linearidade, que reconhece que o mundo é complexo e não pode ser explicado esquematicamente.
Sendo assim, os princípios da dialogicidade, horizontalidade e reciprocidade, epistemologicamente, possibilitam que a promoção das ações colaborativas não sejam realizadas no sentido de reforçar práticas colonizadoras e de dominação, que historicamente excluem, silenciam e invisibilizam as classes populares.
Sendo assim, as análises estão pautadas nas ações (SILVA et. al. 2014) que foram desenvolvidas com as comunidades por meio de uma pesquisa-ação participativa, que incluiu além de um diagnóstico socioambiental, a observação participante por meio de visitas semanais, oportunidade em que foi possível observar e problematizar no cotidiano, os principais problemas socioambientais das comunidades e, a realização de três oficinas. As ações buscavam contribuir para o reconhecimento e fortalecimento da cultura remanescente quilombola, uma vez que uma das problemáticas identificada dava conta de que era baixa a organização comunitária, e que as comunidades participantes da pesquisa estavam submetidas a um processo de exclusão das políticas públicas e haviam manifestado nos contatos iniciais um sentimento de desamparo em face das ameaças constantes decorrentes de conflitos de interesses territoriais. O contexto socioterritorial revelava uma realidade de abandono e insegurança que essas populações tradicionais experimentavam, sem reconhecimento da contribuição dos seus saberes para o desenvolvimento local e de suas reivindicações étnicas frente ao Estado.
Por meio da realização do diagnóstico socioambiental foi possível mapear, sistematizar e descrever práticas culturais, aspectos de modos de vida tradicionais ainda observados na vivência dos comunitários mais antigos, práticas religiosas existentes e/ou praticadas, conflitos observados entre os conhecimentos tradicionais e modernos, a perda dos saberes tradicionais pela substituição da cultura moderna e, a falta da identidade da comunidade. Além disso, observaram-se a historicidade das suas práticas sociais, suas formas de organização comunitárias, suas práticas produtivas e de lazer, assim como, as mudanças ocorridas devido à construção da PA-483 (Alça Viária), em 2002, como a questão da especulação imobiliária em face da substituição da mobilidade por meio dos rios, por meio rodoviário.
Dessa forma, objetiva-se com este artigo, a partir dos dados produzidos com a pesquisa, sistematizados no Relatório Técnico (SILVA et. al. 2014), analisar contextos em que emergem as disputas de interesses territoriais e estratégias político-pedagógicos que orientavam processos de mobilização e organização política e experiências de trabalho das comunidades tradicionais quilombolas pautadas em relações com a natureza, assim como as interfaces dessas estratégias com questões de acesso a políticas públicas que assegurassem minimamente direitos de cidadania.Essas estratégias guardam relação com lutas pelo reconhecimento de pertencimento das comunidades aos seus territórios. Portanto, são estratégias que dão conta de uma concepção ampliada de educação pautada em outros processos pedagógicos, que dizem respeito aos processos de resistências e à afirmação da identidade quilombola.
Com o uso de um formulário com perguntas abertas e fechadas e um roteiro de entrevista semiestruturada, buscou-se fazer uma caracterização socioambiental das comunidades, incluindo condições de saúde e saneamento básico. Foram realizadas 45 entrevistas com o uso do formulário. Na comunidade de Catiuaiaa equipe esteve em doze (12) das 15 residências existentes naquela localidade, e buscou contactar inicialmente com as lideranças comunitárias. Na comunidade de São José foram realizadas 32 entrevistas com moradores. Nesta comunidade apenas uma residência não aceitou fazer a entrevista.
Nas duas comunidades as entrevistas via formulário foram realizadas com uma população amostral selecionada de forma não probabilística, baseada em critérios de amostragem intencionada, sendo escolhida uma pessoa por residência (BARBETTA, 2002). A aplicação desta técnica de pesquisa favoreceu a aproximação, diálogo e a troca de experiências com os moradores da comunidade. Os comunitários, além de responderem as perguntas, em geral, se sentiam à vontade para falar sobre a sua visão do governo, de suas percepções sobre a forma de organização da comunidade, etc.
Por fim, foram realizadas as entrevistas com moradores das duas comunidades, dentre eles, líderes comunitários e outros moradores com atuação efetiva na dinâmica da vida comunitária, com o objetivo de investigar possíveis mudanças culturais e ambientais que ocorreram nas comunidades nos últimos tempos e como essas mudanças eram percebidas pelos moradores.
Durante as “conversas” e por meio da observação participante foi possível perceber as precárias condições de saneamento em que vivem os moradores da comunidade Catiuaia, que era abastecida em sua maioria por água de poço amazonas e tinha os sanitários construídos na parte externa das casas, com armazenamento dos dejetos em fossa seca. Esta situação, principalmente quando aliada à localização inadequada de poços e banheiros, pode dar margem para a contaminação da água e, consequentemente, disseminação de doenças de veiculação hídrica. Mesmo assim, grande parte dos comunitários afirmava que não era frequente o aparecimento desse tipo de doença na população.
Em vários momentos foi possível ouvir narrativas que revelavam notável falta de esperança que pessoas da comunidade tinham de ver suas necessidades atendidas pelo Estado. Frequentemente foi possível ouvir frases como “se a gente não resolver os nossos problemas, quem vai resolver?” “o governo nem sabe que a gente existe”, “não podemos ficar esperando nada deles”, “se a gente não vai procurar, como é que eles vão chegar aqui?”. Muitos comunitários falaram sobre a dificuldade que tinham para se organizar em prol da defesa de seus direitos fundamentais, dentre eles, o acesso à terra.
Quando questionados sobre os problemas socioambientais existentes nas comunidades, muitos foram os que desconheciam e até mesmo negavam a existência de problemas dessa natureza. Apesar disso, era possível verificar a significativa quantidade de lixo espalhada por perto das casas e locais de convivência. Um dos problemas socioambientais mais citado foi o desmatamento. Alguns disseram que viram na televisão que “é proibido desmatar, porque faz mal para a natureza”. Segundo um dos moradores, “- a gente desmata porque precisa. Desmatamos pra plantar”.
Ao iniciar o trabalho de campo na Comunidade São José, realizou-se uma entrevista com o líder comunitário da localidade de Jacaréquara, o seu Ronaldo Sousa, morador da comunidade de São José. Naquela oportunidade, ele falou sobre a história da organização comunitária daquela população e tratou de fatos que marcaram o início da organização. Mostrou fotos e documentos que traduziam registros históricos do contexto de uma “história dos de baixos” (Thompson, 2008), ou a “história subalterna que é a escrita da narrativa do passado pela perspectiva dos vencidos, dos subordinados, que se colocam eles mesmos no papel de protagonistas dos eventos” (WELCH, 2012, p.147).
Quando questionados sobre a responsabilidade a quem atribuíam as responsabilidades pelos problemas enfrentados pelas comunidades, apenas uma senhora atribuiu esta responsabilidade aos moradores das comunidades, enquanto outro morador deu destaque à precária atuação do governo na região, identificando como o único culpado pelos problemas e necessidades comuns que as comunidades enfrentam. Segundo o Sr. Oséias Ferreiras Gomes, tanto a comunidade como os seus líderes têm se empenhado para conseguir as mudanças necessárias e não podem ser vistos como “culpados” dentro deste processo.
Se antes as comunidades viviam isoladas e sobreviviam com seus gêneros de subsistência produzidos, hoje já não é mais assim. A relação de dependência de materiais externos aumentou, modificando por completo a quantidade e a qualidade dos resíduos produzidos pelos moradores, causando sérios impactos ambientais na comunidade. Como em todas as pequenas comunidades rurais da região, São José e Catiuaia não contam com a coleta domiciliar de lixo nem com nenhum apoio da prefeitura de Acará no tratamento ou destinação destes resíduos. O lixo produzido nestas comunidades é periodicamente queimado ou enterrado nos quintais, causando impactos ambientais à qualidade do ar e do solo na região. Quando questionada, a população afirmava saber que este não é o tratamento mais adequado e alguns responsabilizaram o governo pela situação de abandono no que diz respeito à coleta destes resíduos. (JARDIM, et al, 2020).
São José e Catiuaia são duas pequenas comunidades marcadas pela cultura remanescentes de quilombolas amazônidas; elas fazem parte da localidade de Jacarequara, no Baixo Acará, na região Guajarina. A condição territorial da comunidade de São José é de uma pequena vila localizada à beira do igarapé Jacarequara, cujo limite são as comunidades Itapoama e Tapera. De acordo com os moradores, a comunidade de São José existe há mais de 150 anos. Na ocasião da pesquisa era formada por 33 famílias. As unidades familiares já possuíam o título da terra, e tinham como prática produtiva principal a plantação de mandioca para a produção de farinha, que juntamente com a coleta do açaí e a produção de carvão constituíam a base da economia local, além da comercialização de frutas de acordo com o ritmo e variedade da estação regional, como o cupuaçu e a castanha-do-pará.
Em relação aos equipamentos sociais, a comunidade possuía apenas uma escola, denominada de Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Rita, que funcionava em dois turnos e atendia crianças de mais duas comunidades próximas, Itapoama e Catiuaia. A escola era constituída de apenas uma sala de aula, que atendia duas turmas divididas de acordo com a faixa etária e contava com a atuação de duas professoras, as denominadas “classes multisseriadas”, ainda muito comum no cenário escolar amazônico. A comunidade possuía um posto de saúde, que funcionava com duas enfermeiras e uma médica que atendia a comunidade duas vezes por semana. O posto distribuía medicamentos e tratava de doenças e ferimentos leves. Em qualquer situação mais grave, os moradores precisavam se deslocar até a capital do Estado para obter tratamento. Muitas casas já eram de alvenaria, possuíam poços artesianos e fossas sépticas. Em se tratando de religião, foi possível constatar que a maioria dos moradores era protestante.
A comunidade Catiuaia fica bastante próxima de São José e sua entrada era delimitada pela ponte que faz a ligação com Itapoama. Por ser de difícil acesso, esta comunidade é mais carente de recursos do que a primeira. Na época da pesquisa quinze famílias faziam parte desta comunidade, que não possui escola nem posto de saúde próprio e a maioria de suas casas era de madeira; a água era obtida por meio de poço amazonas e as fossas do tipo secas, o que indicava a ausência de políticas públicas frente às condições precárias da vida da comunidade. Possuía também uma igreja adventista, que estava em reforma, e um espaço comunitário bastante rústico, onde acontecem as reuniões e eventos religiosos.
Assim como os outros povoados da região Guajarina, Catiuaia também tem uma base econômica agro-extrativista. Vários moradores ainda trabalham na lavoura, em pequenas propriedades próximas de suas casas e vendem quase toda a produção para os atravessadores que levam os produtos à capital.
De acordo com a percepção da equipe de pesquisa, as comunidades São José e Catiuaia apresentavam um forte aspecto de abandono pelo governo, que, segundo os moradores, só se faz presente em períodos de eleição. Apesar disso, a abertura da estrada da Alça Viária é reconhecida como um grande marco na história destas comunidades, à medida que facilitou o acesso à capital e favoreceu a inserção local ao “Programa Luz para Todos”, do Governo Federal. Com a abertura da estrada, vários hábitos foram modificados e o conhecimento tradicional vem se modificando e se adaptando.
O lazer destas populações é bastante restrito ao esporte e aos festivais organizados para angariar fundos para as associações de moradores. Além disso, os igarapés também são aproveitados, principalmente pelas crianças, para as brincadeiras do dia a dia. Não há incentivo de nenhuma instituição ao resgate da cultura negra ou de qualquer outro tipo de conhecimento tradicional.
Apesar de grande parte da população, principalmente em Catiuaia, ainda trabalhar atividades agrícolas, pouco do que se consome é produzido na localidade. A produção é voltada para a venda e os alimentos consumidos costumam ser comprados em feiras e supermercados de Belém.
São José e Catiuaia podem ser sucintamente descritas como comunidades tradicionais pouco organizadas e desenvolvidas em termos de representatividade comunitária. Esta situação se torna um agravante aos inúmeros problemas socioambientais e culturais presentes na região, na medida em que dificultam a busca comum por melhores condições de vida, sejam elas fruto de atividades desenvolvidas pelos próprios moradores ou de incentivos de programas governamentais.
A oportunidade de interagir com a realidade das comunidades rurais referidas trouxe novos olhares na formação acadêmica dos sujeitos participantes da pesquisa de campo acerca da necessidade da interação dos conhecimentos científicos e tradicionais. Houve a oportunidade em campo de relacionamento direto com as vivências e questões culturais, e com problemáticas que retornaram de formas refletidas e dialogadas aos sujeitos locais.
Com base nas entrevistas com alguns moradores, indicados por serem considerados como portadores de conhecimentos sobre as territorialidades e suas ancestralidades, foram mapeadas algumas práticas culturais e experiências de trabalho que estão na base da produção material da existência das comunidades e também da formação humana, e que aos poucos dão o contorno de uma cidadania ativa.
O trabalho voltado para a produção da existência se insere no contexto de uma produção não capitalista, e pode ser situada na esteira da resistência e exclusão social que marcam a ausência de políticas públicas no campo. Configura-se como um trabalho “concreto”, ou seja, um trabalho humano e útil, pautado em processos de apropriação e uso de bens e produtos dos rios e das matas. Daí, quase sempre os territórios das populações tradicionais se constituírem na relação direta com a natureza, configurando-se dessa forma como uma estratégia sociopolítica para garantir as condições de reprodução da existência.
Os entrevistados revelaram uma diversidade de práticas culturais que ainda estão assentadas em conhecimentos tradicionais da ancestralidade, como os saberes que dizem respeito à medicina popular, ao artesanato com palhas e fibras nativas, aos ambientes (que possibilitam a apropriação dos bens da natureza – caça, pesca e frutas nativas), às práticas culturais alimentares, assim como àqueles que informam a história local e orientam seus processos de sociabilidade.
As narrativas indicavam que muitos produtos naturais eram incorporados nos seus processos de produção, como os cipós, as palhas usados na produção de cestarias e outros artefatos. Esses produtos físicos assumiam “valor de uso” porque atende necessidades específicas. “O trabalho cuja utilidade representa-se assim, no valor de uso do seu produto ou no fato de que seu produto é um valor de uso, chamamos, em resumo, de trabalho útil” (MARX, 1983, p.50).
As narrativas dos entrevistados iam também revelando contextos em que emergiu um campo de luta envolvendo as comunidades em defesa de seus territórios, que estão associados aos direitos ao trabalho na terra e a produção da existência. Embora as comunidades ditas tradicionais vivam em ameaças constantes na Amazônia brasileira, sabe-se que desde a Constituição Federal de 1988, especificamente em seu artigo 68, está garantido o amparo e reconhecimento das comunidades tradicionais no Brasil, dentre elas as comunidades remanescentes de quilombolas. Pode-se também considerar que o Decreto que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades tradicionais, em 2007, reafirme a legitimidade de direitos.
Contudo, como a regularização dos territórios ainda não se constitui como uma política consolidada, muitas comunidades ainda vivem a luta de conquistas de suas terras. (MARIN, 2009). Portanto, essas situações que informam conflitos de interesses territoriais ainda precisam ser mais amplamente estudadas para que as lutas de resistências em defesa de seus territórios ganhem mais visibilidade, situando-as no debate decolonial.
A seguir, trata-se dos processos de lutas das comunidades São José e Catiuaia em defesa de seus territórios.
As vozes das comunidades quilombolas, tantas vezes silenciadas por meio de diversas estratégias de intimidação, têm encontrado nos movimentos sociais e na articulação com outros atores sociais, como é o caso das universidades, espaço para se manifestar e reafirmar a condição de pertencimento de seus territórios ancestrais. No contexto da pesquisa e das atividades ela inerentes, recorreu-se às lideranças locais para se chegar a outras vozes silenciadas. Um exercício exitoso até certo ponto.
Na Comunidade de Catiuaia, uma das lideranças entrevistadas foi o senhor Edvaldo Galiza, conhecido como Tiba, à época da pesquisa com 44 anos; foi indicado pela moradora Ruth, que o reconheceu como portador de vasto conhecimento sobre a dinâmica da comunidade e como uma grande referência em termos de liderança no processo de organização social desse território ancestral, no início dos anos de 2009.
Por meio de suas narrativas, o senhor Tiba relatou fatos que levaram a comunidade a se organizar inicialmente e marcaram historicamente o início de seus processos de lutas, as dificuldades de mobilização e sua vida atual. Ele lembrou que à época, as únicas comunidades que possuíam o título coletivo da terra na região do Baixo Acará eram as comunidades Guajará-Miri, Itacoã e Menino Bom Jesus. A comunidade Catiuaia recebeu inicialmente três títulos, que foram divididos entre algumas famílias que, por sua vez, foram se reproduzindo, ou seja, foram loteando os terrenos. Por ocasião da pesquisa quase todas as 15 famílias da comunidade já possuíam seu título individual.
Um dos fatos marcantes que está na origem do processo de mobilização das comunidades, de acordo com o senhor Tiba, foi o anúncio da construção de um curtume no km 25, às proximidades das comunidades quilombolas. Contrárias à construção dessa atividade, por reconhecer os impactos socioambientais que podiam trazer para os diversos ambientes, as comunidades reagiram por meio de um histórico processo de mobilização. Até então, isso por volta dos anos 2007, 2008, segundo essa liderança, as comunidades da região encontravam-se desorganizadas socialmente, não havia associações. O que existiam eram apenas as divisões territoriais comunitárias.
Outro entrevistado foi o senhor Ronaldo de Souza Nogueira, 52 anos, que à época da pesquisa era o líder comunitário da comunidade São José. Ele reafirmou a situação da qual emergiu um conflito de interesses e disputa territorial. Ele recordou que naquele período um grupo de pessoas começou a movimentar grande quantidade de materiais para um terreno, em uma comunidade chamada Monte Alegre, próxima ao braço de rio que corta a maioria das comunidades vizinhas. Quando os tanques que iriam despejar a água contaminada diretamente no rio ficaram visíveis, a população descobriu que se tratava da instalação de um curtume.
Os curtumes transformam pele de animais em couro para que seja utilizado na fabricação de artefatos para uso humano. Todo o processo gera grande quantidade de resíduos sólidos e de efluentes líquidos e gasosos, além de consumir grande quantidade de água, exercendo alta pressão sobre as reservas hídricas dos locais onde são instalados.
A instalação de uma atividade dessa natureza, além de prejudicar a qualidade socioambiental dos ecossistemas locais, podia interferir de forma negativa na dinâmica cotidiana de vida das diversas populações que viviam nos territórios do entorno de onde seria a construção do curtume, além de atingir um vasto projeto de manejo e recuperação de açaizeiros nativos que as comunidades haviam iniciado.
Sentindo a necessidade de discutir estratégias a fim de embargarem a obra, segundo o senhor Ronaldo Sousa, várias famílias se mobilizaram. Essa liderança informou ainda que no contexto e em meio aos debates e discussões as comunidades compreenderam e se reconheceram na definição de povoados de remanescentes quilombolas. Na oportunidade foram realizadas várias palestras, a convite de pessoas ligadas à comunidade, por uma série de instituições não governamentais, entre elas o Instituto de Cidadania Raízes e o Grupo Malungo.
Percebe-se que no contexto dos processos de mobilização e organização, e das estratégias político-pedagógicas de resistência e defesa dos territórios ancestrais, a questão do autorreconhecimento das comunidades de suas identidades quilombolas foi se constituindo. Dessa forma, na busca pelo direito de pertencimento territorial, é possível situar vozes que buscam preservar os costumes, saberes e práticas culturais da ancestralidade.
As narrativas tanto do senhor Tiba como do senhor Ronaldo, consideraram a tentativa de implantação do curtume como o fio comum que teceu os processos de mobilização das comunidades. O reconhecimento de que uma atividade dessa natureza iria comprometer sobremaneira os rios e igarapés, que se constituem como fonte de vida das comunidades, provocou a reação das comunidades.
Seu Ronaldo relata que os técnicos responsáveis pelo laudo ambiental não deram acesso ao relatório completo à comunidade, embora várias reivindicações neste sentido tenham sido feitas pelas comunidades locais.
A construção da rodovia PA-483 (Alça Viária) em 2002, que inclui a implantação de três pontes de estrutura metálica e concreto sobre três rios, dentre eles o rio Acará, foi uma obra que teve grandes repercussões em face das desestruturações socioambientais nas práticas das comunidades tradicionais, ribeirinhas, quilombolas e vilas rurais em áreas de terra firme, que secularmente ocupam terras nos quadrantes da rodovia.
Quando indagado sobre possíveis mudanças na vida das comunidades com a construção da rodovia Alça Viária, seu Ronaldo Sousa avaliou que a chegada dessa rodovia agregou aspectos que ele considerou bons e ruins ao cotidiano das comunidades. Para o seu Ronaldo um dos aspectos bom estava no fato de as comunidades passarem a ter maior rapidez na escoação dos seus produtos. Antes da rodovia o deslocamento de mercadorias e de pessoas para centros urbanos era feito por meio de barquinhos e dependia sempre dos fluxos das marés.
Quanto aos aspectos negativos da construção do complexo de pontes e estradas ele destacou o grande número de atropelamentos tanto de animais, que viviam soltos, como de pessoas, em consequência da falta de experiência em circular por vias nas quais carros e principalmente caminhões transitam em alta velocidade.
Outro aspecto negativo diz respeito à questão da violência que passou a ser uma constante. Vários delitos eram praticados por pessoas que não pertenciam às comunidades, segundo o seu Ronaldo. De acordo com os seus relatos, depois da construção da rodovia passou a ser “comum” notícias relacionadas a corpos não identificados encontrados nos arredores da estrada, assaltos, invasões de terra etc. situações que contribuíram para a construção de uma “má fama” da Alça Viária. Ele se queixou da ausência de uma delegacia de polícia ao longo da rodovia.
Outra questão que integra a disputa de interesse territorial diz respeito à titulação de terras. Durante a entrevista seu Ronaldo mostrou algumas fotos da entrega de títulos de terras aos moradores de Jaquarequara e demais localidades. Ele relatou que a entrega começou um ano antes da inauguração da Alça Viária. No entanto, ressaltou que o acesso aos títulos de suas terras foi resultado de lutas pautadas em reivindicações étnicas frente ao Estado, e não consequência da construção darodovia, pois na sua percepção trata-se de uma obra que não foi construída ou pensada para atender às necessidades das comunidades e o desenvolvimento local destas populações.
Segundo essa liderança local, no projeto original da rodovia as terras das comunidades quilombolas eram apenas passagem. Ele ressaltou que participou de todas as audiências públicas para a construção da alça viária, e durante as suas realizações pôde constatar que no mapa do projeto não constava a presença de comunidades naquela região. Porém, as imagens de satélite usadas no mapeamento acusavam vários pontos rosa, o que indicava a existência de pequenas povoações. Assim, por meio da participação nas audiências públicas e da “descoberta” da omissão da presença de comunidades, as lideranças iniciaram um processo de negociação a respeito das indenizações das famílias donas das terras por onde a estrada passaria.
O órgão público que representou o governo do Estado do Pará nas negociações foi o Instituto de Terras do Pará – ITERPA, que na ocasião constatou uma quantidade elevada de posseiros nas regiões que estavam reivindicando indenizações. Trata-se de pessoas que tinham vindo das cidades próximas para tentar tirar proveito do benefício concedido pelo governo. Seu Ronaldo relatou ainda que na época todas as famílias realmente donas das terras e mesmo muitos posseiros foram indenizados.
De acordo com o seu Ronaldo, após a entrega dos títulos de terra foi necessário realizar outras mobilizações para reivindicar dessa vez o fornecimento de energia elétrica. Segundo informações obtidas frente aos órgãos responsáveis no projeto inicial da Alça Viária, não havia previsão de estrutura física capaz de permitir a passagem de cabos de rede por cima ou por baixo. Os líderes comunitários se dirigiram ao governo em busca do auxílio do Programa “luz para todos”. Conversando com representantes de órgãos públicos responsáveis foram informados de que o programa só daria assistência à região apenas em 2015.
A população de São José e de outras comunidades localizadas no entorno da Alça Viária avaliaram que não poderiam esperar por todo este período, e, mesmo não estando acostumados a fazer manifestações, fizeram uma ampla mobilização das comunidades e decidiram fechar a estrada. Com isso, a comissão da Alça e as autoridades foram negociar com eles. Na oportunidade prometeram a implantação da estrutura que permitiria o acesso à energia elétrica, porém não seria de imediato, pois segundo alegavam as instâncias governamentais, a companhia de distribuição de energia elétrica não dispunha de cabos próprios para este fim, naquele momento. A comunidade São José esperou pelo período (de tempo) de um ano após os fatos narrados até a chegada de luz elétrica em suas casas.
As narrativas e situações relatadas indicam que ao iniciarem o processo de mobilização e de organização, as comunidades começaram se fortalecer enquanto coletivo em defesa dos seus territórios ancestrais. A “pedagogia do movimento” começou a se constituir por meio de atos de protestos, ao mesmo tempo em que os seus protagonistas se constituíam como sujeitos históricos de um processo de luta e resistência.
De acordo com Caldart (2012, p.546), a “pedagogia do movimento”, além de outros sentidos “afirma os movimentos sociais como um modo específico de formação dos sujeitos sociais que pode ser compreendida como um processo intensivo e historicamente determinado de formação humana”. Graças a essa formação inicial dos sujeitos locais, por meio de processos de mobilizações frente às questões socioambientais e da elaboração de material de divulgação, foi que os processos político-pedagógicos foram assumindo materialidade.
Ainda de acordo com o senhor Tiba, por meio dos debates, das reflexões de grupo, o coletivo mobilizado foi constituindo o seu protagonismo, o que possibilitou que no caso da tentativa de implantação do curtume, os moradores compreendessem que a construção de um empreendimento daquela natureza iria contaminar os pequenos rios e igarapés, recursos naturais importantes, utilizados cotidianamente por todas aquelas comunidades quilombolas da região do Baixo Acará. Tratava-se da possibilidade de instalação de uma problemática cuja complexidade teria repercussão abrangente nas territorialidades quilombolas. Graças à mobilização coletiva, luta de resistência, organizadas especificamente, ou seja, como uma prática organizativa voltada para defesa da realidade que a produziu, foi que as comunidades lideradas por Catiuaia conseguiram não só a vitória que embargou a construção do empreendimento, como também, na luta social, a construção de uma percepção ampliada de suas realidades, constituindo-se como sujeitos históricos no contexto do agir, enquanto base de uma práxis política. Nesse contexto, de acordo com Konder (1992, p.115), a práxis assume o sentido de uma “atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva, para poderem alterá-la, transformando-se a si mesmos”.
Os processos político-pedagógicos foram se constituindo nas lutas de resistência pautados na defesa de suas práticas de trabalho, de suas culturas e seus modos de vidas. Ao mesmo tempo em que orientavam as mobilizações locais em defesa dos seus territórios ancestrais, de suas diversidades socioambientais, se constituam como elementos que informavam a modificação da realidade objetiva, resultando em motivações para a continuidade dos processos organizativos das comunidades. Neste sentido, de acordo com as lideranças locais, foram criadas várias associações: Associação de Moradores de Catiauia; Associação de Moradores de São José, além da Associação de Moradores de Jacarequara, que congrega ao todo 17 comunidades. Essa luta, ao que parece, elevou o reconhecimento das possibilidades do protagonismo dos sujeitos locais, que historicamente sempre estiveram excluídos das políticas públicas, por fazerem parte do universo das populações negras do Brasil, que, silenciadas, foram deixadas à margem das políticas territoriais.
As alianças e parceria que foram sendo construídas ao longo dos seus processos organizativos refletem o entusiasmo para construções coletivas e articulações externas, que começaram a resultar na formatação de algumas experiências produtivas em torno de alguns projetos internos, como os citados por Tiba (apud SILVA et al, 2014), Projeto do Açaizal, Projeto de viveiro de peixes, Projeto de Mandioca, Projeto da Casa de Farinha e Projeto Minha Casa Minha Vida. Alguns com marcas diferenciais do sistema social e práticas culturais locais, como a criação de peixe em viveiros e a arquitetura habitacional.
Questionados sobre os resultados desses projetos do ponto de vista da contribuição para a produção da existência para a formação humana, por tratar-se de atividades que se diferenciavam dos sistemas sociais tradicionais das comunidades, o que por certo demandava outros formatos de formação humana e de aprendizagens, segundo as lideranças entrevistadas, um dos entraves indicado era que, por tratar-se de um tipo de prática de trabalho que exigia um acompanhamento sistemático, portanto, um envolvimento direto das comunidades, à época foi avaliado que os projetos tinham começado a “desandar”, ou seja, sofrer descontinuidade dado que os comunitários começaram a participar menos e alguns projetos ficaram centralizados em apenas uma das comunidades, a São José.
As lideranças entrevistadas avaliaram ainda que graças aos processos de mobilização e articulação políticas e apoio externo, a comunidade conseguiu barrar o projeto de construção do curtume. Fato que se deu em consequência de as comunidades terem se autodefendido como povos descendentes de quilombolas, o que lhes garantiu a proteção das políticas públicas voltadas para o atendimento dos interesses destes povos. Seu Ronaldo relatou que esses fatos ocorreram aproximadamente há cinco anos, antes da realização do trabalho de pesquisa, portanto, na ocasião, eram de certa forma recentes. De acordo com o seu Ronaldo, por estarem pouco habituados com o novo conceito, muitas pessoas das comunidades da região, na ocasião da pesquisa, ainda não gostavam de se identificar como remanescentes quilombolas ou populações tradicionais.
A realização do diagnóstico foi avaliada pela equipe como uma das atividades mais significativas da pesquisa, porque contribuiu para a ampliação dos seus resultados. Além de muitas informações que contribuíram para enriquecer o processo de interação entre a equipe do projeto e representantes das comunidades, trouxe revelações empíricas da urbanização mal planejada. Problemas tais como os meios de vida de uma comunidade rural dependente dos rios e igarapés, e de toda a biodiversidade e alimentação local, que de repente passaram a se comunicar mais rápido por estradas, sem os devidos serviços de infraestrutura de gestão de resíduos sólidos, por exemplo, e políticas de assistência social oferecidos pelo Estado.
Contribuiu como novos conhecimentos práticos para a equipe envolvida acerca de uma comunidade tradicional e suas problemáticas; registros socioambientais e cartográficos de Catiuaia e São José importantes, que foram disponibilizados para as comunidades, assim como contribuições para posteriores pesquisas acadêmicas que tenham como objeto de estudo realidades locais; além da incorporação de outras práxis, como foi a realização do curso de compostagem e cultivo de hortaliças; o repasse dos materiais de consumo do projeto para a Escola Municipal que fica dentro da comunidade para o desenvolvimento das atividades cotidianas com as crianças até a 4ª série; e a interação com os comunitários.
Por meio de suas formas organizativas, práticas culturais e experiências de trabalho as comunidades, particularmente suas lideranças, revelaram uma preocupação local com os seus direitos territoriais ancestrais, seus ambientes, com a continuidade de suas práticas socioculturais e educacionais, em face das disputas territoriais e o acesso a sua biodiversidade, tão necessária para a realização de suas práticas produtivas e produção da existência. Neste sentido, firmavam o propósito de manter as lutas de resistência voltadas para a busca por reconhecimento de seus direitos pautados na diversidade.
Portanto, as lideranças reafirmavam de forma quase unânime a questão da necessidade de se manter a defesa dos seus territórios e os processos de organização em face das ameaças constantes que a diversidade de grupos sociais tradicionais amazônidas sofre, na perspectiva de assegurar o fortalecimento dos seus processos de organização social.