Artigos - Dossiê Temático

TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS: acumulações capitalistas e patriarcais sobre o corpo das mulheres negras

Silvane Magali Vale Nascimento
Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Brasil

TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS: acumulações capitalistas e patriarcais sobre o corpo das mulheres negras

Revista de Políticas Públicas, vol. 25, núm. 2, pp. 673-686, 2021

Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 14 Julio 2021

Aprobación: 20 Noviembre 2021

Resumo: Este trabalho traz reflexões sobre os territórios quilombolas no contexto da acumulação capitalista. Considera o racismo como estrutura determinante para esse processo de acumulação, ao mesmo tempo em que tambémanalisa que a sua constante reconfiguração é determinada pela necessidade de reprodução e ampliação da acumulação na Europa e cuja expansãofoi, posteriormente, atualizada no Novo Mundopor meio de variados processos de colonização. Aponta que hoje a reatualização do racismo é expressão das novas configurações das acumulações capitalistas (ancoradas no patriarcado) sobre os territórios negros, que, neste trabalho, se volta para os territórios quilombolas no Brasil, e mais, especificamenteao Maranhão, trazendo a debate as lutas das mulheres quilombolas nas perspectivas antirracistas e antipatriarcais no enfrentamento ao domínio desses territórios.

Palavras-chave: Lutas Antirracistas, Lutas anticapitalistas, Mulheres quilombolas, Territórios quilombolas, Acumulação capitalista.

Abstract: His work reflects on quilombola territories in the context of capitalist accumulation. We consider racism as a determining structure for this accumulation process, while we also consider that its constant reconfiguration is determined by the need for reproduction and expansion of capitalist accumulation that originated in Europe and whose expansion was later updated in the New World through varied colonization processes. Today, the re-updating of racism is an expression of the new configurations of capitalist accumulations (anchored in patriarchy) on black territories, which in this work, focuses on quilombola territories in Brazil, and more specifically in Maranhão, bringing to the debate the struggles of women quilombolas from an anti-racist and anti-patriarchal perspective in confronting the domination of these territories.

Keywords: Anti-racist struggles, Anti-capitalist struggles, Quilombola women, Quilombola territories, Capitalistaccumulation.

1 INTRODUÇÃO

O racismo e as relações étnico-raciais tornaram-se temas de debates e estudos desde as duas últimas décadas do século XX, e consequentemente, vêm ocupando cada vez mais espaços em agendas públicas e agendas de governos em âmbito internacional motivados principalmente pela reação da população negra e diversas etnias ao crescimento das desigualdades sobre essas populações e, mais recente, (precisamente em 2020), as lutas antirracistas adquiriram capilaridade entre diversos movimentos sociais e setores mais democráticos e progressistas desses países em função do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, ocorrido em maio de 2020, pelo policial Derek Chauvinque se ajoelhou no pescoço de Floyd durante oito minutos e quarenta e seis segundos, ajudado por mais dois policiais que seguravam Floyd e outro que observava a cena, enquanto Floyd com os braços presos e sufocado pelo joelho do policial no seu pescoço, repetia a frase: não consigo respirar. Esse fenômeno passou a simbolizar mundialmente durante os anos de 2020 e 2021, a resistência, persistência e reatualização do racismo que se institucionaliza nas práticas cotidianas dos países e continuamente opera como pilar do capitalismo.

Importa também destacar a luta de refugiados e a migração compulsória que coloca na clandestinidade milhares de pessoas, obrigando-as a condições desumanas. É fundamental compreender que nenhuma dessas práticas é isolada das desigualdades étnico-raciais que se fundamenta ao longo da história na construção do “outro” (países, etnias, classes sociais, gênero, orientação sexual, religião e outras diferenças) como inferior, desqualificado e sujeito a classificações e hierarquizações que o desumaniza.

O racismo originado no século XV, como parte constitutiva do processo da acumulação primitiva gerada no mercantilismo, se estruturou como processo econômico, político e ideológico fortalecendo, portanto, a acumulação em curso e o Imperialismo posterior, adquirindo características correspondentes a cada realidade. Nesse sentido é importante observar quando Almeida ressalta que “A especificidade da dinâmica estrutural do racismo está ligada às particularidades de cada formação social” (itálico do autor, 2018, p. 42). Assim, compreender o racismo exige o movimento de identificação da universalidade, particularidade e singularidades. Os fios universais que movem o racismo adquirem materializações diferenciadas a depender das formações sócio-históricas e suas dinâmicas. Imprescindível compreender a intrínseca relação do racismo com o capitalismo, quando a aparência dos fenômenos parece negar essa relação.

Não por acaso, em épocas de crise do capital, as desigualdades raciais se acirram. A população negra é profundamente afetada: representa de forma mais acentuada os maiores índices de desemprego, subemprego e explorações em geral; ou seja, é a mais atingida pela dinâmica do capital com vistas a amenizar as crises cíclicas. E no contexto da exploração e crescente desigualdades sobre a população negra, o capital consegue hierarquizar tais desigualdades criando uma espécie de “os mais desiguais entre os desiguais”, onde as mulheres negras ocupam a base dessa hierarquização. Se pensarmos em termos geográficos campo-cidade, destacaremos as mulheres trabalhadoras rurais (considerando aqui todas as identidades de trabalho e etnias: campo, floresta, águas, quilombolas etc.) que vivem como segmento expressivamente desigual nesse processo e mais, especificamente, as mulheres quilombolas pelo significado político, econômico e social que essas mulheres e seus territórios representam no processo de acumulação do capital e, novamente, ressaltamos o movimento do universal ao singular, ou do local ao global para pensarmos como o capital continua a capturar esses territórios a partir dos seus interesses. Nessa captura o fenômeno da expropriação funciona como estratégia para a dominação, uma vez que torna despossuídos/as aqueles que são do território e que constituem a territorialização do lugar. Lembremos Marx (2001) quando descreve o processo de acumulação primitiva com e expropriação de camponeses e cerceamento de suas terras comuns e domínio sobre os recursos naturais ocorridos na Inglaterra.

Galeano (1991, p. 14), ao descrever e analisar a colonização na América Latina (1991), diz:

É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até os nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal, tem se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo.

Com base em Galeano, refletimos a reprodução do capital, os seus processos de atualizações e como os territórios continuam a orientar essa reprodução. O território, como lembra Milton Santos (2000), é um conceito para ser considerado a partir do uso que se faz dele. Esse autor chama a atenção para os diversos usos do território feitos por diversos sujeitos e como esses interesses ultrapassam o território, se conflitam por vezes. Santos mostra (idem) o quanto se torna importante debater e analisar os territórios. Os lugares em meio à globalização. O global não prescinde do local. Ao contrário, é recriado por ele.

Compreender a reprodução contemporânea do capital implica incorporar as relações étnico-raciais como intrínsecas a essa dinâmica. Não é uma relação à parte, mas sim, um dos pilares de sustentação dessa reprodução. Por essa razão, discutir emancipação humana não se sustenta teórica e empiricamente se prescindir de trazer para o centro do debate essa questão. São diversas concepções e precisamos colocá-las em diálogos e confrontos, enfim, considerar que o debate se faz exigência para compreendermos o real e pensarmos a ação.

Como observa Basso, “[...] a raça é ainda hoje uma categoria plena de significados. No Ocidente, há anos o racismo está em ascensão. Em todos os campos e em todas as suas formas [...]” (2015, p. 71).

Os territórios precisam ser “limpos” para o desenvolvimento pretendido. Não é qualquer lugar a ser expropriado. Não são quaisquer sujeitos a serem espoliados. São aqueles a servirem aos interesses do capital. O lugar e os sujeitos. Os corpos a serem dominados de diferentes formas serão submetidos a esse processo por uma lógica de destruição, humilhação e dominação. Logo, a dinâmica de reprodução do capital não separa expropriação, exploração, dominação, opressão. O capital realiza esses processos em formas capitalistas e não capitalistas de produção, uma vez que cria e recria formas de articulá-las para os seus interesses. Os corpos a serem prioritariamente dominados são sempre os corpos das mulheres, e, em particular, das mulheres negras, utilizados pelo patriarcado desde a senzala. E os corpos explorados sexualmente, na labuta diária, na perda da sua identidade material e imaterial, uma vez expulsa de seus territórios, servem ao capital.

Nessa compreensão, os territórios étnicos, em sua maioria tidos como espaços não localizados na órbita do capital pelas relações não capitalistas de produção ali existentes, são alvos de acumulação atualizada dos lucros do capital. De formas diferentes, periférica ou centralmente, esses territórios são alcançados. As contribuições de Harvey (2005) são ricamente valiosas para nós na busca da compreensão da acumulação do capital com base no Imperialismo, tendo como fundamento o pensamento de Marx da Teoria Geral de Acumulação do Capital numa escala geográfica expansível e intensificada. Harvey nos possibilita identificar na Teoria Geral de Acumulação do Capital elaborada por Marx, elementos para compreender o Imperialismo (ainda que Marx não tenha criado uma Teoria do Imperialismo) e a expansão geográfica do capital. Quando Harvey escreve “A geografia da acumulação capitalista: uma reconstrução da teoria marxista”, nos brinda com elementos para a interpretação do Imperialismo e suas atualizações na relação com os territórios rurais quilombolas no Brasil, e, no caso específico deste texto, no estado do Maranhão.

Do ponto de vista de sua exposição, o presente texto se encontra assim organizado: Esta Introdução que apresenta conceitos gerais pertinentes ao objeto em análise; o item 2 aborda a domesticação do corpo das mulheres, o item 3 analisa o território e as estratégias de dominação sobre territórios e mulheres, o item 4 demarca especificidades das mulheres em território maranhense e, por fim, a Conclusão que sintetiza dimensões centrais da análise apresentada.

2 DOMESTICAR PARA DOMINAR: a lógica capitalista sobre os corpos das mulheres

O livro Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva de Silvia Federici (2017) nos permite para além da descrição e análise de Marx sobre a acumulação primitiva, compreender as mudanças na posição social das mulheres, e igualmente, a sua posição na força de trabalho. Federici (2017, p. 26) elenca fenômenos ausentes em Marx nessa descrição:

A autora analisa, na Europa, os processos elencados a seguir com intrínsecos à acumulação primitiva ou dela decorrentes e as mulheres invibilizadas nessa dinâmica social: a dominação sobre os corpos das mulheres desde o estupro à procriação obrigatória para gerar força de trabalho para o capital, a desqualificação, subordinação e exploração do seu trabalho, a perseguição aos seus saberes a exemplo da caça às bruxas e a instalação da ideologia patriarcal como ordem a ser seguida. A referida autora mostra como a justificação de “punir” a demonização das bruxas serviu para acumulação do capital no Novo Mundo:

[...] os destinos das mulheres na Europa e dos ameríndios e africanos nas colônias estavam tão conectados que suas influências foram recíprocas. A caça às bruxas e as acusações de adoração ao demônio foram levadas à América para romper a resistência das populações locais, justificando assim a colonização e o tráfico de escravos ante os olhos do mundo (FEDERICI, 2017, p. 357).

Embora Federici não descreva o Brasil especificamente em seus estudos, cabe a nós observarmos que a demonização, a bestialização e a sexualização de africanos e ameríndios serviram igualmente aos propósitos da acumulação de riquezas no país, criando condições para a transição capitalista e sobre os corpos das mulheres negras no Brasil se edificou parte substancial da riqueza do colonizador.

E tal qual na Europa, todo um arsenal ideológico foi utilizado pelo colonizador para justificar quão necessária era a domesticação dos corpos rebeldes ou imbecis para o trabalho, para a civilidade. Algo realizado sem muitos esforços uma vez que a escravidão era reconhecida como necessária para o desenvolvimento do mundo.

Como afirma Fanon (1965),

Não basta ao colono limitar fisicamente, quer dizer, com a ajuda da sua polícia e dos seus soldados, o espaço do colonizado. Como para ilustrar o carácter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quinta-essência do mal (5). A sociedade colonizada não se define apenas como uma sociedade sem valores. Não basta ao colono afirmar que os valores o abandonaram, ou melhor, não habitaram nunca o mundo colonizado. O indígena declarou-se impermeável à ética, ausência de valores, mas também negação de valores. É, atrevemo-nos a dizê-lo, o inimigo dos valores. Neste sentido, é um mal absoluto.

As mulheres negras brasileiras, juntamente com as indígenas, permaneceram invisíveis na historiografia do país durante séculos e, de certa forma, essa invisibilidade ainda persiste; sem que isso represente ausência de dominação, exploração e opressão e, por conseguinte, da sua participação na acumulação do capital, afinal: ausente para que e para quem?

Na Casa Grande, nas plantations, nas ruas, no trabalho doméstico nas “casas dos brancos”, nas fábricas, as mulheres negras foram parte fundamental da força de trabalho. Criaram pequenos comércios, comércios ambulantes quase sempre, e em muitos casos, assumiram a chefia financeira familiar no período pós-abolição. O corpo da mulher negra “moldou-se ao trabalho subalterno” como forma de resistência, mais do que como resignação. Alimentar a si e à sua família era uma forma de reproduzir uma trajetória evidenciada em muitas histórias. Era manter viva a si e aos seus.

Esse corpo também resistia através das roupas e adornos que demarcavam territórios de identidades, de pertencimentos vividos em processo ancestrais; contudo, em sua maioria, a resistência nem sempre se traduzia em pertencimento étnico-racial, em consciência de um pertencer à África e da dissolução de seus laços como SER COLONIZADO; pois essa foi uma hábil estratégia da escravidão negra no Brasil: apagar a memória, a história dos colonizados. Mas as mulheres negras se reproduziram nas religiões, nas músicas, nas histórias contadas entre gerações, na culinária, na medicina caseira. E tudo foi se transformando em patrimônio imaterial, em resistência de algo que as ligavam a um passado que as faziam fortes...uma continuidade.

O racismo, como ideologia, precisa de aparelhos que o divulguem como naturalização do viver humano. Dessa forma, os sujeitos racializados precisam consentir que são responsáveis pela sua condição. Em depoimentos, Lélia Gonzalez descreve com base em sua autobiografia como a ascensão da população negra, por menor que seja, tende a “embranquecer” a identidade. Dessa forma, o ideal a ser seguido está na narrativa do colonizador. A construção de uma identidade ancestral significava a contraposição a esse embranquecimento ao qual, conforme descreve Lélia Gonzalez, estava se “resignando”. Por essa razão, afirmamos que o corpo da mulher negra explorado, sexualizado, torna-se resistência na vida cotidiana contraditória e conflitante. Foi por meio de encontros e desencontros com esse passado aqui e lá (na ancestralidade) que as mulheres negras foram se reencontrando e tornando-se rebeldia; destacamos aqui aquelas que lutaram nas Senzalas e Casas Grandes, que formaram e conduziram quilombos.

As mulheres negras rurais, com forte presença nos espaços rurais do Brasil como moradoras e produtoras do campo, formaram comunidades negras rurais, terras de pretos, mocambos, quilombos e outras denominações que representam os territórios negros. São territórios de vida: produção e reprodução dessa população quilombola. As mulheres negras são as responsáveis pela preservação do patrimônio material e imaterial desses territórios. Elas têm o conhecimento dos manejos produtivos, da relação entre os recursos naturais e as religiosidades ancestrais que envolvem e sustentam as suas lutas nos territórios (NASCIMENTO, 2011). Nesses territórios, têm confrontado a acumulação do capital que se atualiza por meio do agronegócio, dos projetos de exploração mineral, e outros grandes “projetos de desenvolvimento” do capital. Projetos esses que insistem na dualidade: moderno X atrasado como justificativa para a ostensiva entrada do capital nesses lugares.

A privatização das terras, das águas, da fauna e da flora, da natureza enfim, é o objetivo desse processo de acumulação do capital porque assim se expropria, se espolia e se coloca essas mulheres destituídas à mercê do capital; assim como as suas famílias e todos os territórios quilombolas nos entornos de reprodução do capital. Esse é o projeto capitalista em curso: a barbárie na dominação e destruição da natureza. Tais projetos destroem os recursos naturais que garantem o autoconsumo e a inserção dessas populações nas cadeias produtivas da agricultura familiar, expondo assim, as mulheres quilombolas e suas famílias no âmbito da insegurança alimentar.

3 MULHERES QUILOMBOLAS E AS LUTAS ANTIRRACISTAS PELOS TERRITÓRIOS RURAIS: corpos e territorialização de resistências

No estado do Maranhão, cuja expansão do agronegócio desde início dos anos 2000 o insere na região do MATOPIBA (região que inclui Maranhão, Tocantins, Pará e Bahia como estados de maior produção da soja no Norte e Nordeste), encontram-se algumas regiões fortemente impactadas por essa expansão do capital protagonizada pela soja. Considerando que o Maranhão não ocupa um lugar central no país em termos de industrialização, a economia do estado tem ocupado com desenvoltura a reprimarização da economia, funcionando como economia de enclave ao disponibilizar produtos primários para outros países (no caso da soja, produto in natura). Essa dinâmica do capital, que se dá em movimento de concentrar recursos do território (especialmente a terra), centralizar o território e acumular, tem se dado em detrimento dos interesses desses territórios, porém, não sem conflitos com a população ali presente.

No enfrentamento a tal dinâmica, as mulheres quilombolas fortalecem suas lutas e as ampliam na articulação gênero, raça/etnia e capitalismo. Compreendem o racismo como prática cotidiana, porém com determinações estruturais na sociedade capitalista. Nesse sentido, as lutas antirracistas e antipatriarcais passam a ocupar as agendas de lutas dessas mulheres e ganham visibilidade como demandas para as políticas públicas.

A lógica do capital é de explorar: pessoas, natureza e, nesse processo, hierarquiza os seres humanos. As mulheres não são essencialmente defensoras da natureza, e os homens seus destruidores; contudo, os processos civilizatórios construíram essas sociabilidades, o que em parte, reafirma masculinidades e feminilidades, mas é inconteste que as mulheres, pelas suas vivências, são em maioria mais ligadas aos cuidados, à preservação, à comunidade e aos recursos que sustentam essas relações; por essa razão, os impactos ambientais decorrentes da expansão e reprodução do capital atingem mais fortemente as mulheres. Como afirma Ávila (2012, p. 40),

Sobre serem as mulheres as mais atingidas quando ocorrem os desastres ecológicos, isso se deve também ao fato de serem elas as responsáveis pela manutenção da vida cotidiana. E, dentro de um contexto de escassez e reconstrução, recaem também majoritariamente sobre elas as tarefas de produzir os meios de manter a sobrevivência.

A reprodução das mulheres quilombolas biológica e culturalmente é ameaçada pela expansão do capital e inúmeros adoecimentos que ocorrem em função dessa destruição, a jornada de trabalho se intensifica sobre os corpos dessas mulheres com a destruição de recursos fundamentais como a água e frutos para a sua reprodução orgânica cotidiana. Nelas recaem os cuidados com a casa e toda a infraestrutura.

As pessoas existentes nos territórios quilombolas, nada ou quase nada significam para o capital, a não ser a necessidade de mantê-las dominadas para explorá-las. Trata-se do que se denomina na contemporaneidade de Racismo Ambiental, que é a escolha desses territórios para implantação de determinados projetos por serem considerados lugares de reservas importantes para a expansão do capital, seja em recursos naturais (hidrologia, terra etc.), seja pela localização favorável para escoação (estradas, portos e outros). Esses se tornam territórios do capital. Embora local, estão associados à lógica de expansão do capital em escala mundial. Na globalização, o capital utiliza cada vez mais o local como lugares para a mundialização do capital. Nessa dinâmica, às vezes unidades federativas são mais ou menos articuladas para tais implantações, mas nunca alheias às mesmas, embora reconheçamos relativas “autonomias” do capital em alguns aspectos em relação a governos locais para instalarem-se nos territórios.

O capital busca expansão, reprodução em larga escala com baixo custo e condições favoráveis, daí a importância de investimentos tecnológicos, inclusive com centros de pesquisas em algumas regiões. “[...] as tecnologias hoje permitem ampliar e deslocalizar as áreas para produção, pois a terra passou a ser um mero suporte” (LEROY, 2010, p. 220). Leroy observa ainda que “o capital procede à desconstrução e reconstrução permanente do território, esvaziando-o de sentidos e de povos conforme seus interesses” (LEROY, 2010, p. 226). A captura de territórios pelo capital se diversifica e se atualiza de acordo com as condições específicas e singulares dos lugares e dos territórios. Nada é linear. Mas, sem dúvida, a observação atenta desses processos nos permitirá encontrar muitas semelhanças com os processos de colonização e com os imperialismos de outrora.

Novamente recorrendo a Fanon (1965), entendemos que o capital utiliza de estratégias pacíficas ou não, com vistas aos seus interesses. A preocupação é a recriação do território que interessa, logo serão criadas as relações necessárias ao capital e nem sempre será com base na espada, como diz o autor, pois nem sempre a burguesia necessita da espada. Então, ressaltamos com base em Fanon, que as narrativas em prol do desenvolvimento, elaboradas pelo capital e divulgadas por vezes pelo Estado, devem se constituir em pautas importantes no debate, na agenda e nas lutas das mulheres quilombolas. E assim tem sido.

As mulheres quilombolas vêm se apropriado do espaço como estratégia para construção de alianças em várias frentes e com vários segmentos. Nesse processo descortinam, problematizam a realidade vivida e, assim, se aproximam da compreensão das realidades locais e globais, compreendem o Estado e o papel que desempenham na reprodução do capital correlacionado à reprodução do racismo, bem como do patriarcado.

Essas mulheres, ao entenderem a dinâmica de acumulação do capital para além de dinâmica local e regional, também nacionalizam e, quando possível, transnacionalizam as suas lutas. Constroem agendas que dialogam com outras pautas e outros sujeitos, incluindo o mercado. Os produtos do seu trabalho são por essas mulheres ressignificados na relação com o mercado. Colocam-se como produtoras que diante da consciência do processo de apropriação e expropriação no seu território, ora confrontam o mercado e o Estado, ora dialogam, propõem e protagonizam conflitos. E cada vez mais compreendem que o racismo é elemento determinante do processo de destruição e recolonização sobre os seus territórios. Compreendem isso à medida que fazem da luta um exercício de reflexão e diálogo do imediatamente vivido.

Para tal, essas mulheres têm buscado a relação também com a academia, e em muitos casos específicos, com a intelectualidade feminina e feminista. A desigualdade racial, o racismo, o machismo/patriarcado, o capitalismo e as relações étnico raciais são temas fundamentais nesse processo formativo para as lutas antirracistas se posicionarem como tal. Compreender a materialização desses conceitos e categorias vividas por essas mulheres em sua cotidianidade lhes permite ultrapassar a imediaticidade e fragmentação com que observam e buscam compreender essas relações.

As lutas antirracistas e suas atualizações têm uma anterioridade que precisa ser conhecida; dado o conhecimento e entendimento dessas mulheres e sobre esse desafio, elas têm se debruçado. Muitas são as dificuldades para o avanço desse processo: a velocidade da globalização na captura dos territórios, a atuação de um Estado que em esfera federal se tornou ínfimo para essa população nos últimos cinco anos, mais precisamente desde 2016, fato que acarreta entre outros prejuízos a sobrecarga do trabalho feminino nos cuidados dessas mulheres com a família e a comunidade. Porém, essas também são dimensões compreendidas e ampliadas para a esfera coletiva das suas lutas, e não tomadas individualmente como “questões pessoais”.

À medida que as mulheres quilombolas ampliam seus horizontes de lutas, se impõem na teorização e construções de narrativas que dialogam criticamente também com o movimento feminista predominante branco, trazendo para o centro do debate a ausência das especificidades das mulheres negras e, consequentemente, o debate do racismo. Daí o conceito do feminismo negro ou a necessidade de enegrecer o feminismo, como ressalta Sueli Carneiro (s/d).

Importa concluir essa parte da reflexão dizendo que essas lutas requerem alargarmos os nossos olhares para as realidades do ontem e do hoje, bem como do aqui e do acolá para pensarmos as lutas planetárias quando novos sujeitos se impõem nas cenas como protagonistas de realidades (que dialeticamente se altera), sem perder a conexão com as suas determinações de origem.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ publicou, em 2018, um livro intitulado Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil em que demonstra em números subestimados os assassinatos e outras violências contra as comunidades e territórios quilombolas, o que demonstra diferenças na forma de identificar essas violências, afirma a CONAQ:

[...] a vulnerabilidade que atinge o modo de vida quilombola e seus territórios, produzida pela ação combinada de diferentes elementos, como a ação de agentes privados associados ao agronegócio e ao latifúndio, a ausência de políticas sócias básicas e o racismo institucional, geram ciclos de violência que se manifestam, não raras vezes, de maneira interna e invisibilizada (2018, p. 44).

É evidenciado em denúncias de organizações como a CONAQ e outras representativas dos quilombos, bem como por outras organizações de trabalhadores/as do campo, assim como por noticiários de imprensa e pesquisas acadêmicas, o aumento das violações de direitos sobre esses territórios. A disseminação do racismo constitui hoje, no Brasil, uma prática nociva de agentes do Estado ancorada em narrativas institucionais das mais elevadas autoridades do país na esfera federal, ganhando capilaridade em outras instâncias de poder, fato que em direção contrária amplia para essa população a persistência do racismo e a necessidade do seu combate, a exigência do Estado se posicionar com ações efetivas nesse sentido, tendo nas políticas públicas instrumentos de intervenção significativa nessa perspectiva.

4 TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS NO MARANHÃO E A RESISTÊNCIA DAS MULHERES

O Maranhão apresenta novas ruralidades, advindas, em parte, da expansão do capital nos anos de 1970 com projetos agropecuários financiados pelas agências de desenvolvimento do Estado. Outras regiões apresentam transformações mais recentes devido à presença de segmentos do capital globalizado, mais especificamente, o agronegócio. Neste trabalho nos reportamos aos territórios quilombolas da Região Leste Maranhense, com destaque para o município de Brejo, e na Região da Baixada Ocidental Maranhense, compreendendo o litoral, região essa denominada na Política Territorial do Governo Federal, implementada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA (governos Lula e Dilma) como Território da Baixada Ocidental Maranhense.

As análises aqui apresentadas resultaram do projeto de Pesquisa e extensão financiada pelo CNPq nos anos de 2013 e 2014 intitulados: “RELAÇÕES DE GÊNERO E TRABALHO: mulheres recriando o cerrado na Mesorregião Leste Maranhense em meio à monocultura de soja.”

“Em se tratando da Baixada Ocidental Maranhense, traremos a pesquisa desenvolvida de 2016 a 2018, naquela região, intitulada: ‘‘Território e Desenvolvimento Rural com Gênero: uma experiência de pesquisa-ação na Baixada Maranhense”, inserida na Política Territorial dos governos já mencionados.

A reprodução do capital ocorre de maneira bastante diferente nessas regiões ou territórios. A forma de apropriação do capital nesses territórios apresenta, por vezes, aparentes contradições entre o que supostamente se diria: o “moderno” e o “atraso”. No Leste Maranhense verifica-se o predomínio das monoculturas com destaque para a expansão da soja. Na região da Baixada temos territórios quilombolas cuja influência de monoculturas não se faz tão presente, embora experimentos de soja comecem a se instalar em alguns municípios desde a década passada. Porém, a bubalinocultura, que já foi alvo de intensos conflitos entre camponeses, quilombolas e criadores de búfalos nos anos de 1980, 1990 e na primeira década de 2000, volta a ocupar espaço nos campos e lagos natural desse território em alguns municípios nessa década; assim como a pesca predatória com a presença de sujeitos de últimas regiões e até de outros estados, configuram ameaças aos territórios.

Diante de direitos ameaçados e negados pelos executivos e judiciários locais e com atuação pouca expressiva no combate à ação de grupos de produtores empresariais e também de especuladores de terras, as mulheres tornam-se porta-vozes às instituições (governamentais e não-governamentais e à Academia) das violências vividas. São as mulheres a maioria presente no cotidiano das organizações sindicais e nas organizações quilombolas; são elas também a maioria na Associação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (ACONERUQ) com fins de denunciar e buscar soluções. Por meio das suas lutas e ações cotidianas, a denúncia do racismo e a presença do capital vão se tornando um debate acessível às demais populações, ganhando dimensão pública e, consequentemente, compondo agendas de governos.

Porém, as políticas públicas que resultam dessa dinâmica ainda não correspondem a essas demandas e necessidades, com as devidas exigências que a realidade impõe. Nem o Estado, nem municípios (e na conjuntura atual), menos ainda, a esfera federal tem conseguido barrar o crescimento das violências sobre essas populações e as explorações sobre os corpos das mulheres quilombolas que em última instância se tornam territórios para exploração do capital. Exploram esses corpos: o capital, o mercado e o Estado, e a sociedade naturaliza essa exploração.

Faltam ainda às políticas públicas voltadas a combater o racismo ou as desigualdades raciais, a efetiva incorporação do racismo como realidade existente e organicamente colada ao capital. Não se combate o que não se considera como presença real. O racismo não está aqui ou ali, o racismo estrutura a sociedade brasileira. O racismo não está ao acaso nos territórios quilombolas. O binômio capitalismo-racismo não explora os corpos de mulheres quilombolas ao acaso quando as destituem de seus territórios. Esse binômio se articula ao patriarcado que é reproduzido, também, no interior das organizações antirracistas coordenadas por homens, uma vez que, igualmente ao racismo, o machismo se fundamenta em ideias que precisam se tornar hegemônicas.

O Estado brasileiro acolhe o patriarcado e o racismo ainda que se utilize de uma narrativa não racista. A omissão e indiferença às práticas racistas torna o Estado legitimador do racismo. Os questionamentos apresentados pelo Coletivo de Mulheres da CONAQ refletem muito do que estamos também a questionar. Por que o Estado não contribui para romper o reconhecimento que silencia as mulheres quilombolas como seres políticos atuantes na defesa, sobrevivência e proteção dos quilombos? Esse reconhecimento pelo Estado é importante, não é suficiente.

Ainda se tem muito o que debater e confrontar na construção da agenda pública com vistas à centralidade do racismo e, portanto, das lutas contra a recolonização dos territórios quilombolas. Essa situação, embora local, é uma luta transnacional como nos lembra, Davis (2018). É importante que as mulheres quilombolas conheçam suas histórias em âmbito nacional, para que possam conhecê-las, também, em âmbito transnacional. Essa parece ser uma condição fundamental para o alcance das lutas antirracistas em escala local-global.

5 CONCLUSÃO

Os territórios quilombolas são repletos de significados religiosos, espirituais, produtivos, culturais que remetem à conceituação de patrimônios materiais e imateriais. As mulheres são as guardiãs desses patrimônios.

A oralidade dos griôs (os mais velhos) se constitui patrimônio preservado pelas mulheres. O território se torna lugar de resistência porque o território quilombola não se aparta da ancestralidade. Mesmo com as transformações ocorridas no espaço rural e que impactam esses territórios, são as mulheres as que avaliam as demandas e as ofertas do Estado e demais agentes externos. O sentido é de bem comum, de bem viver da comunidade.

Assim, as lutas antirracistas, por vezes, se dão nas resistências sub-reptícias que nem se engajam em grandes escalas, mas têm a dimensão de resistir naquele ligar de pertencimento e o entendimento de que SER PRETO/PRETA e, sobretudo SER MULHER PRETA dá o tom da desigualdade, e ao mesmo tempo, da resistência.

As lutas antirracistas realizadas por essas mulheres nos ensinam muito desse fazer político em escala local, sem perder a dimensão do global. São diversas dinâmicas. Os momentos de maturidade de acúmulo desse fazer político são diversos, pois representam a própria luta. Mulheres que já conseguem se emancipar em várias dimensões e outras cujos grilhões do machismo e do racismo reafirmam a sua subalternidade diante do capital e, nesse sentido, as lutas antirracistas ainda aparecem como lutas individualizadas ou isoladas, quando a coletividade maior que alcançam no entendimento do vivido é a própria comunidade.

É fundamental demarcar, entretanto, que a construção da luta antirracista é a luta contra o racismo obviamente; mas só dizer isso não basta. É preciso compreender o racismo, reconhecê-lo em sua processualidade, conhecer as suas histórias nas formações singulares, o que não é diferente para o patriarcado/machismo.

As mulheres quilombolas têm se colocado nessa perspectiva; quando as oportunidades lhes são concedidas para tal, elas têm buscado essa condição,

O Estado não faz luta antirracista, não é sua função, embora deva ter por princípio em regimes democráticos, práticas não racistas; logo, as institucionalidades no Estado democrático de Direito devem coibir o racismo e promover as igualdades étnico-raciais, assim como a igualdade entre os gêneros.

REFERÊNCIAS

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