Artigos - Dossiê Temático
RACISMO AMBIENTAL, ESQUECIMENTO E SELETIVIDADE ESTATAL: Quilombo Vidal Martins e o Parque Estadual do Rio Vermelho/SC
RACISMO AMBIENTAL, ESQUECIMENTO E SELETIVIDADE ESTATAL: Quilombo Vidal Martins e o Parque Estadual do Rio Vermelho/SC
Revista de Políticas Públicas, vol. 25, núm. 2, pp. 701-719, 2021
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 08 Julio 2021
Aprobación: 20 Noviembre 2021
Resumo: Este artigo discute o racismo ambiental e as correlações com o esquecimento e a seletividade estatal ligados à problemática racial, fazendo um estudo de caso do Quilombo Vidal Martins e suas relações no território onde também se encontra o Parque Estadual do Rio Vermelho/PAERVE, em Florianópolis, SC. Trata-se de um estudo com base bibliográfica, documental, entrevistas e questionários com os atores envolvidos buscando na análise de conteúdo a reconstrução histórica da realidade. Por meio da pesquisa empírica e da observação foi possível compreender e apresentar elementos que demonstram como o racismo estrutural se reconfigura em injustiça e racismo ambiental desta Comunidade de remanescentes de pessoas escravizadas, indicando uma seletividade do Estado em políticas ambientais que tende a reproduzir estas situações estruturais criando uma contraditória "preservação socialmente predatória".
Palavras-chave: Racismo estrutural, Dívida social, Política ambiental, Instituto do Meio Ambiente IMA/SC, Preservação socialmente predatória.
Abstract: This article discusses environmental racism and the correlations with forgetfulness and state selectivity linked to racial issues, making a case study of Quilombo Vidal Martins and its relations in the territory where the Rio Vermelho/PAERVE State Park is also located, in Florianópolis , SC. This is a study based on bibliography, documents, interviews and questionnaires with the actors involved, seeking, in content analysis, the historical reconstruction of reality. Through empirical research and observation, it was possible to understand and present elements that demonstrate how structural racism is reconfigured in injustice and environmental racism in this Community of remnants of enslaved people, indicating a selectivity of the State in environmental policies that tends to reproduce these structural situations creating a contradictory "socially predatory preservation".
Keywords: Structural racism, Social debt, Environmental policy, IMA/SC Environment Institute, Socially predatory preservation.
1 INTRODUÇÃO
Mais da metade da população brasileira (54,9%) é composta de pretos ou pardos, sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres negras (IBGE, 2017a). Contudo, a população negra é a mais atingida pelo desemprego, violência, baixo acesso à educação e falta de representatividade. Esta situação reverte-se numa das bases da luta por justiça ambiental que vai além da contaminação tóxica de resíduos, englobando distribuição desigual de impactos de mudanças climáticas, racismo ambiental e políticas públicas socioambientais (ACSELRAD, 2010; BULLARD, 2004; RBJA, 2018; HERCULANO, 2002).
Dessa forma, estudar o tema de racismo ambiental supera a ideia de lutar por um planeta mais sustentável para as futuras gerações, usando a definição de Sachs (1986), mas sim lutar por um planeta mais justo, em que a dignidade do ser humano seja respeitada, redesenhando conceitos que visões coloniais procuram manter intocados (SANTOS, 2007). Assim, parte-se de uma definição de racismo ambiental como a ideia de desigualdade na distribuição de danos ambientais pautadas no fator racial.
No entanto, no decorrer da busca de dados e análise do objeto de pesquisa que resulta neste artigo, notou-se a ocorrência de um certo racismo ambiental em que, sob o pretexto da preservação do meio ambiente, ocorre um processo de exclusão de remanescentes quilombolas de suas terras históricas, combinado com sequência de sua ocultação, invisibilidade e deslegitimação. Não fosse o bastante, observa-se a ação sistemática da seletividade estrutural do aparelho de Estado que culmina na constante negação de direitos dos povos tradicionais, perigosamente justificado pelo bordão de certa "preservação ambiental".
Dessa forma, neste artigo discutem-se o racismo ambiental e as correlações com o esquecimento e a seletividade estatal ligados à problemática racial e impactos ambientais, fazendo um estudo de caso do Quilombo Vidal Martins e suas relações no território onde também se encontra o Parque Estadual do Rio Vermelho (PAERVE), em Florianópolis, SC.
O trabalho inclui uma base bibliográfica e documental, além de utilizar-se de observação não participante, questionário e entrevistas semiestruturadas. A observação se deu no conhecimento prévio das situações territoriais, políticas e institucionais, seguida de participação (apenas ouvinte) nas reuniões do seu Conselho Consultivo (07 encontros assistidos no período de abril/2018 a junho/2020). Em seguida foi realizada a análise de atas e demais documentos oficiais do PAERVE, do período de 2007 a 2020, bem como dos relatos e processos envolvendo a Comunidade do Quilombo Vidal Martins (da mesma região). No conjunto, procurou-se utilizar da análise de conteúdo via reconstrução aproximada da realidade vivida pelos atores com cruzamento das informações coletadas.
2 RACISMO AMBIENTAL E SELETIVIDADE NO APARELHO DE ESTADO
No Brasil, o racismo ocorre baseado no fenótipo e está arraigado na sociedade e nas instituições públicas ou privadas. A isenção da identificação racial se dá pela ideia positiva da miscigenação enraizada por autores como Gilberto Freyre em sua obra Casa Grande e Senzala, em que o mestiço, ao ser aceito socialmente, representaria a nova configuração do povo brasileiro (FREYRE, 2003). No entanto, em oposição a essa ideia de Freyre, conhecida como “democracia racial”, surge o debate de que essa teoria seria um mito.
Florestan Fernandes, buscando entender a situação do negro na sociedade brasileira a partir da teoria marxista, defende que o brasileiro é racista, mas tem vergonha de assumir seu racismo. Para o sociólogo, um dos maiores opositores à Freyre, independentemente das classes, o negro sempre será o mais desfavorecido em todas as desigualdades sociais. Para ele, o negro é a maior prova de que o Brasil não é uma sociedade democrática, uma vez que não há igualdade plena de raças nas instituições sociais na sociedade brasileira (FERNANDES, 1989).
Ser negro no Brasil, portanto, é enfrentar não só a discriminação racial, mas o racismo estrutural. Como salienta Almeida (2018, p. 1),
[...] cabe considerar que o “ser negro” é muito mais do que a cor da pele. Em primeiro lugar, ‘‘ser’’ exprime uma condição existencial. E existir implica em estar no mundo com os outros. “Ser”, portanto, é situação e relação. “Ser negro” ou “ser branco” é pertencer a uma imensa rede de experiências cujos significados só se apresentam mediante a análise da situação concreta e das relações histórico-sociais que formam este “ser’”. [...] Assim, a diferença entre um branco e um negro não pode jamais ser explicada pela biologia, mas somente pela análise social. [...] “Branco” não se refere apenas à cor da pele, mas a todo um conjunto de atitudes e de privilégios políticos e econômicos que nossa sociedade atribui aos que possuem um fenótipo europeizado.
Na população desocupada, em relação à distribuição por cor ou raça, os pretos ou pardos constituem 62,6% - a maioria da população desocupada, contra 36,7% da população branca, em 2016 (IBGE, 2017b). A realidade confirma que as consequências do período de escravidão abordadas por Fernandes (1989) ainda imperam no Brasil.
Segundo o Ministério Público do Trabalho, “[...] no Brasil, a população negra ganha menos do que a branca. Mulheres afrodescendentes têm situação econômica pior” (BRASIL, 2014, p.1). Ainda, estima-se que apenas em 2089, daqui a pelo menos 72 anos, 200 anos depois da abolição da escravidão, brancos e negros terão uma renda equivalente no Brasil. Em média, os brasileiros brancos ganhavam, em 2015, R$ 1.589,00, o dobro do que os negros, R$ 898,00 mensais, e cerca de 80% das pessoas negras ganham até dois salários-mínimos (OXFAM, 2017).
A remuneração também está associada ao nível de escolaridade. No mercado de trabalho, de acordo com o IBGE (2017a), em 2016, dentre os trabalhadores pretos ou pardos, 34,7% não tinham instrução ou tinham ensino fundamental incompleto; em contrapartida, dentre os trabalhadores brancos o percentual era de 21,2%. Por outro lado, 11,0% dos pretos ou pardos possuíam nível superior, enquanto entre os trabalhadores brancos esse percentual atingiu 26,4%. Nota-se que a questão educacional está diretamente ligada ao emprego e desemprego e que o negro lidera a estatística de pessoas sem instrução e ensino fundamental incompleto, acarretando menor remuneração.
Daniel Cerqueira, coordenador de pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que os “jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra” (CERQUEIRA et al., 2017, p. 30). O autor explica que a naturalização dos homicídios se dá por processos históricos e econômicos de desigualdade no país, que fazem com que a sociedade não se identifique com a parcela que mais sofre com esses assassinatos, cujos dados oficiais não deixam dúvidas sobre seu sofrimento (BRASIL, 2012)
Mesmo diante de todos esses dados ainda há um grande silenciamento do fator racial para estudar questões sociais no Brasil e isso desponta da ideia de democracia racial. Enfatizar o componente racial para se estudar as bases da sociedade brasileira é indispensável, uma vez que o racismo e as discriminações raciais emergem de um contexto histórico de escravidão, e afetam além da esfera do “indivíduo”, pois englobam uma classe majoritária, em quantidade, da sociedade, embora minoritária em representação, silenciada diariamente. Nas últimas décadas, à questão racial brasileira foram incorporados o debate sobre injustiça ambiental e racismo ambiental.
O fato de o conceito de (In)justiça ambiental ter sido atrelado às lutas raciais gerou possibilidades de expansão de interpretações para uma diferente denominação, o racismo ambiental, que foi fundamentado através de estudos realizados por acadêmicos americanos como Robert D. Bullard e associações como a Comissão de Justiça Racial da United Church of Christ. Procuraram estes precursores demonstrar que o componente racial era fator determinante nas políticas de distribuição espacialmente desigual da poluição e degradação ambiental (BULLARD, 2004). Dessa forma, Bullard explana que a parcela da população mais desfavorecida socioeconomicamente é a mais afetada pelo atual modelo de exploração dos recursos naturais e, intrigantemente, são os que menos geram danos ambientais. Além do mais, não se beneficiam igualmente dos resultados de tais explorações e dificilmente participam ou são representados no processo de regulamentações políticas e legais acerca do meio ambiente. Essa é a maneira mais expressiva da injustiça ambiental.
Da mesma forma que o movimento negro estadunidense batalhava nas suas lutas por direitos civis e igualdade, citando casos como o legado de Jim Crow em Selma, Montgomery, Birmingham e algumas das comunidades "Up South" em Nova York, Boston, Filadélfia, Detroit, Chicago e Los Angeles, a luta contra o racismo ambiental concentra-se na equidade e na justiça pelas comunidades afro-americanas, segundo Bullard (1994). Mas o protagonismo dos negros nas reivindicações por justiça ambiental nos Estados Unidos na década de 80 não ocorreu da noite para o dia. Emergiu da crescente hostilidade às decisões de localização de instalações de indústrias com alta taxa de poluição e depósitos de lixo tóxico, que foram vistas como injustas e discriminatórias em relação a pessoas pobres e negras.
No documento Environment and Morality: Confronting Environmental Racism in the United Statesdo Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social, Bullard (2004) define racismo ambiental:
O racismo ambiental reforça a estratificação das pessoas (por raça, etnia, status e poder), lugar (em cidades centrais, subúrbios, áreas rurais, áreas não incorporadas ou reservas indígenas) e trabalho (em que trabalhadores de escritório, por exemplo, têm maiores proteções que os trabalhadores rurais). Institucionaliza a fiscalização desigual, comercializa a saúde humana com fins lucrativos, coloca o ônus da prova nas “vítimas” em vez dos poluidores, legitima a exposição humana a substâncias químicas nocivas, pesticidas e substâncias perigosas, promove tecnologias “arriscadas”, explora a vulnerabilidade econômica e comunidades politicamente desprivilegiadas, subsidia a destruição ecológica, cria uma indústria em torno da avaliação de riscos, atrasa as ações de limpeza e não desenvolve os processos de prevenção e precaução da poluição como a estratégia dominante e abrangente (BULLARD, 2004, p.3, tradução nossa).
Em 1998, integrantes do Movimento de Justiça Ambiental estadunidense se reuniram com pesquisadores brasileiros na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no intuito de expor seus princípios e estabelecer relações. Como resultado deste encontro, foi publicada a coleção intitulada Sindicalismo e Justiça Ambiental, no ano de 2000, pela Central Única dos Trabalhadores (CUT/RJ), em conjunto com o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/ UFRJ), e com apoio da Fundação Heinrich Böll. Apesar da baixa divulgação desse debate no Brasil a essa altura, a publicação foi suficiente para incentivar grupos acadêmicos e ONGs a dar continuidade a esse debate (HERCULANO, 2002).
Foi então que elaboraram, em 2001, o Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania, no campus da Universidade Federal Fluminense (UFF) na cidade de Niterói – Rio de Janeiro. Tal evento ainda reuniu pequenos grupos de intelectuais americanos, contando com a presença de Robert D. Bullard (ACSERALD, 2010). Para criação deste colóquio, Selene Herculano declarou que a definição do nome do movimento a ser defendido foi emblemática, como salienta:
Na preparação deste encontro, discutimos entre nós se o tema seria ‘racismo ambiental’ ou ‘justiça ambiental’. (Retomávamos um debate que os livros nos contam, realizado há décadas no Brasil e que discutiu se os operários negros deveriam se identificar como negros ou como operários: raça ou classe?) A opção foi por ‘justiça ambiental’, tema mais amplo, agregador (evitaríamos ser vistos como quem quer imitar os EUA e incluir aqui contendas que não teríamos), era uma expressão mais fácil de explicar etc. (HERCULANO, 2006, p. 2).
Com esse engajamento de definição teórica e implementação do movimento no Brasil, em 2005, a Universidade Federal Fluminense - UFF/PPGSDLACTA e a FASE/Projeto Brasil Sustentável e Democrático elaboraram o I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, que contou com a participação de pesquisadores da academia, gestores federais e ativistas representantes de movimentos sociais negros e indígenas. O intuito do evento era debater as injustiças ambientais que afetam estritamente os "negros urbanos, ribeirinhos, extrativistas, geraizeiros, pescadores, pantaneiros, caiçaras, vazanteiros, ciganos, índios, pomeranos, comunidades de terreiro, faxinais, quilombolas, etc." (HERCULANO, 2006, p.2).
A autora ainda relata que no ano seguinte, em 2006, com a expansão do termo Racismo Ambiental no Brasil, a Universidade Federal do Ceará realizou o I Seminário Cearense contra o Racismo Ambiental. Porém, destaca que, apesar do termo ter ganhado notoriedade de alguns movimentos sociais, como o dos quilombolas, não cativou o movimento negro urbano e a academia brasileira. Um dos argumentos que a autora utiliza para justificar a desprezo acadêmico por adotar o racismo ambiental como uma luta legítima no Brasil é de que não existem raças, apenas a raça humana. No entanto, existe racismo, que para ela é motivado por questões econômicas, ou seja, atinge os mais vulneráveis e desprovidos economicamente. Ainda, Herculano (2008, p.16) expõe que o racismo ambiental é um dos segmentos da Injustiça Ambiental, bem como cita:
[...] o racismo ambiental não se configura apenas pormeio de ações que tenham uma intenção racista, mas igualmente por meio de ações que tenham impacto racial, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. Diz respeito a um tipo de desigualdade e de injustiça ambiental muito específico: o que recai sobre suas etnias, bem como sobre todo grupo de populações ditas tradicionais – ribeirinhos, extrativistas, geraizeiros, pescadores, pantaneiros, caiçaras, vazanteiros, ciganos, pomeranos, comunidades de terreiro, faxinais, quilombolas etc. – que têm se defrontado com a ‘chegada do estranho’, isto é, de grandes empreendimentos desenvolvimentistas – barragens, projetos de monocultura, carcinicultura, maricultura, hidrovias e rodovias – que os expelem de seus territórios e desorganizam suas culturas, seja empurrando-os para as favelas das periferias urbanas, seja forçando-os a conviver com um cotidiano de envenenamento e degradação de seus ambientes de vida. Se tais populações não-urbanas enfrentam tal chegada do estranho, outras, nas cidades, habitam as zonas de sacrifício, próximas às indústrias poluentes e aos sítios de despejos químicos que, por serem sintéticos, não são metabolizados pela natureza e, portanto, se acumulam.
No Brasil, o termo "Injustiça Ambiental" foi mais amplamente aceito do que o termo Racismo Ambiental, uma vez que os principais articuladores e precursores desse debate consideram que o fator social é mais determinante que o fator de raça (HERCULANO, 2008; PACHECO, 2008).
Para Rammê (2012, p.18), "o racismo ambiental exprime o fenômeno pelo qual muitas das políticas públicas ambientais, práticas ou diretivas acabam afetando e prejudicando de modo desigual, intencionalmente ou não, indivíduos e comunidades de cor", tendo em vista a menor representatividade política dessa minoria racial, fato intrínseco a todas as nações que passaram por períodos de escravidão. Sinteticamente, no pensamento brasileiro as questões de injustiça ambiental são interpretadas de forma que os principais afetados são os pobres, premissa que já inclui a população negra. Com isso, não se faria necessária a abordagem do termo Racismo Ambiental como nomenclatura oficial do movimento contra injustiças ambientais, pois restringiria outros grupos pobres da sociedade brasileira não-negros. Assim, Rammê (2012, p.23) salienta que “entre os teóricos é unânime a conclusão de que, atualmente, a expressão justiça ambiental traduz outros significados, para além do racismo ambiental”.
Em contrapartida, Marcelo Paixão (2004) destaca a questão racial como impreterível para análises de injustiças ambientais no Brasil, uma vez que a população brasileira negra passou por um processo histórico de exclusão social e cultural devido aos períodos seculares de escravidão enfrentados. Como resultado disso, após abolição, essa população continuou predominando as áreas rurais, bem como áreas vulneráveis e marginalizadas socialmente, como entornos de lixões e áreas de assentamentos urbanos informais com índices de miséria (favelas). Como exposto acima e corroborado por Paixão (2004), são as áreas mais afetadas por desigualdades socioambientais, e, por sua vez, caracteriza a população negra como a maior vítima também.
O autor salienta que o relevo para o fator racial na interpretação das injustiças ambientais brasileiras é desconsiderado na academia brasileira, tendo em vista a ideia instaurada na nossa sociedade de democracia racial, reduzindo de certa forma todas as lutas raciais para questões socioeconômicas. Ainda, o Movimento Negro não é amplamente difundido e aderido pela comunidade negra, pois grande parte dos afrodescendentes brasileiros não reconhecem suas origens ou se identificam com a luta. Por isso, não conquistaram ainda, em plenitude, direitos básicos humanos, deixando assim questões ambientais em segundo plano, e, por conseguinte, silenciando as demandas e vozes desse grupo no movimento pela justiça ambiental no Brasil (PAIXÃO, 2004).
O silêncio e a invisibilidade em relação à questão racial talvez ocorram pelo fato de que, no Brasil, naturaliza-se o racismo de tal modo que ele não aparece diante da classe dominante (homens brancos ricos) como problema, e, quando aparece, é algo externo das prioridades das pautas políticas e não um fator que caminha em sinergia com outras pautas sociais.
A discriminação de que os negros deste país historicamente são vítimas produziu tamanha distorção social que é possível afirmar que a universidade brasileira é eminentemente branca, principalmente a pública, em que, paradoxalmente, estudam os mais ricos que, não por acaso, também são brancos. Esses autores brasileiros em parte estão corretos em expandirem a temática de forma generalizada para abarcar diferentes povos, pois sim, afetam outros povos, mas ao mesmo tempo, diminui a luta do negro, o seu espaço, a sua voz.
Como exposto, no Brasil, esse movimento não adere ao termo Racismo Ambiental porque as pessoas se preocupam mais se sua causa será bem aceita, ou compreendida pelas elites acadêmicas e aos fundos de investimento de pesquisa, bem como universidades, do que se vai colaborar para que a sociedade visualize a problemática do negro. Embranquecer o tema do racismo ambiental é mais socialmente aceito. Se fosse uma luta estritamente do Negro, não teria impacto, e isso é racismo estrutural.
No entanto, descartar a concepção de que a maioria dos afetados são os negros é esconder todas as estatísticas da representação do negro na sociedade. A comunidade negra é a que mais morre, mais ocupa presídios, menor índice de educação, representatividade midiática e política, e a que ocupa os cargos mais desvalorizados ou a maior classe desempregada.
Nesse sentido, verifica-se, a priori, que o enfrentamento da problemática no Brasil demanda não somente leis e políticas públicas que efetivamente atentem para as práticas de injustiça e racismo ambiental, mas políticas de combate às desigualdades sociais e ao racismo institucionalizado e disseminado na sociedade brasileira. Isto porque, na medida em que se constata que o racismo pode naturalizar a pobreza e a vulnerabilidade de determinada parcela da população com menor grau de escolaridade e receita, resta invisibilizada – a sujeição dessas mesmas pessoas a piores condições sanitárias e ambientais, em razão da sua “raça”.
Além da sociedade, o negro precisa também superar o racismo estrutural que se instala no Estado produtor de políticas públicas ambientais. O Estado aqui é entendido, como definido em Poulantzas (1978), enquanto a materialização de uma relação de forças. Assim, num Estado onde se cristaliza o racismo estrutural, sua materialidade tende a reproduzir esta característica, até que novas relações de contraposição a esta noção estrutural possam reverter a situação posta.
Por outro lado, na ação deste Estado com seu racismo estrutural entranhado em sua máquina, ocorre o que Offe (1984) chama de seletividade estrutural do Estado capitalista, onde a ação que tende a ser contrária aos interesses das classes dominantes é limitada e anulada de forma sistemática sem dar margem para contestações, naturaliza-se. Assim, o racismo estrutural encontra nas políticas públicas ambientais do Estado capitalista um ambiente capaz de naturalizar uma seletividade que o transforma em racismo ambiental, como exploramos neste artigo no caso do Quilombo Vidal Martins.
3 DA ESCRAVIDÃO AO AUTORRECONHECIMENTO COMO REMANESCENTE QUILOMBOLA
No início do século 19, uma quarta parte dos moradores da Ilha de Santa Catarina eram de negros escravizados que vieram desde o século anterior para o Estado de Santa Catarina. Esta parcela da população é amplamente utilizada na construção civil do centro da cidade, e em atividades de agricultura e pesca nas regiões afastadas, como foi o caso do nordeste da Ilha, na região do Rio Vermelho, da Barra da Lagoa e da Costa da Lagoa da Conceição (CARDOSO; IANNI, 1960; VALDEZ, 2017).
Foi assim que ancoraram na praia dos Ingleses (vizinha ao território do Rio Vermelho) os Vidal Martins como escravizados para trabalharem nos engenhos de mandioca. No entanto, quando em 2013 duas das descendentes, as irmãs Helena Jucélia Vidal de Oliveira e Shirlen Vidal de Oliveira foram em busca das comprovações de que eram remanescentes do Quilombo, se depararam com uma realidade cruel, mas muito comum. No cartório, descobriram que o bisavô delas havia sido registrado como branco, uma ação que ajudava a inviabilizar os escravizados, seus reconhecimentos e direitos sobre o território onde viveram. As irmãs precisaram rebuscar Livros de registros de chegada de escravos na região para encontrarem a comprovação de vínculo e a construção de sua árvore genealógica e obterem o direito de ter reconhecimento de sua origem e preservação de sua cultura (IAREK; ANTUNES, 2019; ZANOTTO; MAWÉ; WANDELLI, 2018)
Ilka Boaventura Leite afirma que a historiografia de Santa Catarina repetidamente negou a presença de populações afrodescendentes na formação da sociedade estadual. Para a autora, isso carregava um forte pressuposto ideológico de valorizar o branqueamento da sociedade de Santa Catarina, que se apresenta como o estado mais “europeu” do Brasil. “...o mecanismo da invisibilidade se processa pela produção de um certo olhar que nega sua existência (do negro) como forma de resolver a impossibilidade de bani-lo totalmente da sociedade” (LEITE. 1996, p. 41).
Até 2019, a comunidade Vidal Martins estava composta por 28 famílias (cerca de cem pessoas) residindo em duas moradias coletivas; uma parte com 18 famílias residente em uma propriedade de cerca de 900m2, localizada a poucos quilômetros ao norte da entrada do PAERVE, enquanto as outras 10 famílias estabelecidas na região às margens da Costa da Lagoa, ambas vizinhas do PAERVE.
Como parte do reconhecimento da dívida social que resulta nas definições anteriormente apontadas neste trabalho de injustiça racial e racismo ambiental, o Governo brasileiro, desde 2003, passou a adotar ações afirmativas de resgate desta dívida, regulamentando as possibilidades de retomada de seus territórios para diversas comunidades e assinando e ratificando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que dá ampla proteção às comunidades tradicionais. Assim é que as irmãs Helena e Shirlen conseguem o primeiro passo para o reconhecimento de sua família como Quilombolas, gerando os direitos ao território. Em 24 de outubro de 2013 é expedido o Certificado pela Fundação Cultural Palmares de autorreconhecimento da Comunidade de Vidal Martins, localizada no município Florianópolis/SC, registrada no Livro de Cadastro Geral n.º 016, Registro n.2.020, fl.039 - processo nº 01420.005775/2013-16.
Em novembro de 2019, com a entrega do relatório de identificação da comunidade pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), estabelecem-se as informações históricas e antropológicas da comunidade remanescente do Quilombo, além da delimitação da área reivindicada para regularização fundiária. O território do Quilombo Vidal Martins foi englobado por todo o histórico de criação de Reserva Florestal e Unidade de Conservação, compreendendo cerca de ⅔ (dois terços) do PAERVE, com 1.014 hectares. Como resultado, o que deveria ser o resgate da dívida social com a Comunidade, resulta numa série de entraves para a efetiva reintegração dela em seu território histórico, revelando outras facetas da seletividade estatal, da invisibilidade dos negros, e de injustiça e racismo ambiental, como será visto na sequência deste artigo.
4 PAERVE - FORMAÇÃO, SELETIVIDADE ESTRUTURAL ESTATAL E INVISIBILIDADE DOS QUILOMBOLAS
O Parque Estadual do Rio Vermelho - PAERVE é uma Unidade de Conservação (UC) de Proteção Integral criado em 24/05/2007 através do Decreto Estadual nº 308, cujo Artigo 6º definiu que caberia à Fundação do Meio Ambiente – FATMA (hoje Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina – IMA), órgão vinculado à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico Sustentável – SDS/SC, administrar o Parque Estadual do Rio Vermelho, adotando as medidas necessárias à sua efetiva implantação e gestão.
Situado no município de Florianópolis, no nordeste da Ilha de Santa Catarina ao sul do Brasil, entre a Praia de Moçambique (12,5 km de extensão), a leste, e a Lagoa da Conceição, a oeste, com área de 1.532 hectares, na década de 1950 a área do Parque era uma restinga identificada como degradada. Essa área que estaria degradada, inicialmente foi definida como Estação Florestal do Rio Vermelho, sendo destinada à experimentação e a identificação das espécies mais aptas para crescer e proteger a orla marítima de Santa Catarina (Decreto Estadual nº 2.006 de 1962), usando-se espécies exóticas, principalmente Pinus elliottii, Pinus taeda e Eucalyptus (VENTURIERI, 2013).
Neste momento de implantação da Estação Florestal, início da década de 60, os remanescentes do Quilombo Vidal Martins são retirados da área pelo Governo do Estado de Santa Catarina e colocados à margem de um território em que viviam há mais de 180 anos, criando mais uma dívida social com a população negra descendente de pessoas escravizadas. Segundo os antigos moradores do Quilombo, os eventos que resultaram nesta expulsão ainda são muito misteriosos, mas o certo é que a estrutura estatal, envolvendo inclusive o antigo Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina (IRASC), foi amplamente utilizada para a marginalização das famílias quilombolas, abrindo caminho para uma desenfreada corrida com especulação imobiliária que também assola toda a Ilha de Santa Catarina desde então (IAREK; ANTUNES, 2019)
Quando de sua efetivação pelo Decreto 308/2007, o território do PAERVE contava com uma série de ocupações por diferentes instituições e estruturas: a trilha ecológica; o Camping da Associação de Cabos e Soldados Policiais e Bombeiros Militares de Santa Catarina; o Campo Escoteiro Paulo dos Reis, administrado pela União dos Escoteiros do Brasil; o Camping do Parque Estadual do Rio Vermelho, administrado pelo IMA; o 1º Pelotão da 1ª Companhia da Polícia Militar Ambiental – BPMA; o Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS); o CETAS Marinho do Projeto de Monitoramento de Praias (PMP); Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN); o Terminal Lacustre Luiz Osvaldo D’Acampora Filho, administrado pela Cooperativa de Trabalho dos Barqueiros da Costa da Lagoa (COOPERCOSTA) e o Quartel de Bombeiros da Barra da Lagoa.
A essas estruturas e instituições já estabelecidas no território (esteve) estava assegurada sua permanência até a concretização do Plano de Manejo que, segundo o Decreto de criação, deveria ser concluído em 2 (dois) anos e, segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), deve ser concluído em até 5 (cinco) anos. Aqui já se encontra uma ação diferenciada do gestor do PAERVE que, apesar de ter a garantia de poder fazer o Plano de Manejo pelo Decreto Estadual definido em 2 (dois) anos, adotou o parâmetro do SNUC de 5 (cinco) anos como referência.
O Plano de Manejo, por fim, foi efetivado apenas em 2020. Não obstante, durante todo o período pós Decreto de criação foram verificados movimentos de construções e reestruturações físicas que deveriam ser considerados irregulares no território, justamente pela falta do Plano de Manejo.
No caso da estrutura construída posteriormente à instalação da UC ou os acréscimos e reformas feitas nas estruturas prediais já existentes, ocorreram, sem a aprovação do Plano de Manejo, entre outras: a reforma do antigo Campo Escoteiro Paulo dos Reis, administrado pela União dos Escoteiros do Brasil; reformas na ala de administração do Camping do Parque Estadual do Rio Vermelho; as ações de gestão, sem a participação do Conselho, desenvolvidas pelo 1º Pelotão da 1ª Companhia da Polícia Militar Ambiental – BPMA, no que diz respeito ao controle e fiscalização do Parque, como a construção de uma (da) trilha ecológica (o projeto da trilha foi decidido e implantado sem que o Conselho emitisse a sua opinião ou posição, sendo que hoje o empreendimento é conhecido mais como a trilha da Polícia Ambiental do que (a) trilha ecológica do PAERVE); a construção do Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS); e a construção da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN).
Ao final de 2019, na última reunião ordinária daquele ano, foi realizada a discussão de um Plano Emergencial (PE) que poderia ser aplicado até que se efetivasse o Plano de Manejo. O PE foi proposto por um dos Conselheiros, que é ambientalista com experiência em gestão de UC e representante de uma ONG local. No entanto, apesar de todo o movimento de construções e reformas apontados acima, a Presidência do IMA destacou que o PE não poderia ser aplicado enquanto não houvesse Plano de Manejo. Esta é uma situação que demonstra o quanto a seletividade estrutural do órgão gestor tem sido utilizada e que ficam mais evidentes nos casos envolvendo o Quilombo Vidal Martins.
De acordo com o estatuto do PAERVE, o seu Conselho é órgão consultivo, integrante da estrutura do Parque Estadual do Rio Vermelho, atuando em conjunto com o IMA, com composição inicial instituída pela Portaria n° 057/07 – FATMA de 30 de julho de 2007, posteriormente modificada pela Portaria n° 093/08 – FATMA de 30 de julho de 2008, tudo em conformidade como o SNUC e pela Lei Estadual n° 11.986/01, que criou o Sistema Estadual de Unidades de Conservação - SEUC. Atualmente (2020) o Conselho é composto por 09 (nove) entidades públicas e 11 (onze) entidades civis.
A representação do Quilombo entrou no Conselho apenas em 2017, pedindo sua retirada em 2018, retornando em 2021, num processo de reaproximação capitaneado por algumas representações da sociedade civil local. Apesar de sua certificação como Comunidade Quilombola ter sido expedido em 2013, não há um reconhecimento, de fato, de sua existência com reflexos nas ações no PAERVE, de seu gestor e do Conselho.
No período de 2007 até 2020 foram realizadas 48 (quarenta e oito) Reuniões do Conselho Consultivo, 29 (vinte e nove) delas ordinárias e 19 (dezenove) extraordinárias. Na leitura e análise das ATAS destas reuniões não houve uma única em que a questão da Comunidade Quilombo Vidal Martins tenha sido tratada como ponto de pauta. A invisibilidade do Quilombo é ampla, tanto dos gestores do Parque quanto das Representações públicas e privadas no Conselho Consultivo. Como diversas representações estão inseridas no território do Parque e seu entorno, nota-se que há uma resistência estrutural na Comunidade do entorno para notar a existência dos descendentes de pessoas escravizadas na região. Além disso, acredita-se que há também o esquecimento, um processo talvez não-intencional de simplesmente não pautar a questão quilombola por parte de ativistas ambientais membros do Conselho Consultivo.
Foi apenas em junho de 2021 que o Conselho se reuniu extraordinariamente para tratar da questão do Quilombo Vidal Martins, numa ação de algumas representações e moradores ativistas para reaproximar novamente a Comunidade Quilombola do Conselho e do Parque. Como se verá a seguir, esta situação só foi possível em função das dificuldades que o Gestor do Parque está tendo com relação à aplicação do Plano de Manejo, e não necessariamente uma mudança de postura quanto ao reconhecimento da existência e o direito dos remanescentes de escravizados na região.
5 CONEXÕES RACISMO ESTRUTURAL, AMBIENTAL E SELETIVIDADE ESTATAL
Uma das principais estruturas implantadas no território em meados da década de 70 foi o Camping do Rio Vermelho, que até recentemente era administrado pela EPAGRI (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina), e é em torno deste equipamento/estrutura que permeiam as principais conexões de racismo estrutural, ambiental e de sua expressão na seletividade estatal. Isto porque em 15 de fevereiro de 2020, ou seja, pouco após a delimitação do território pelo INCRA, que ocorreu em novembro de 2019, a Comunidade tomou posse do Camping neste momento como território retomado por direito, aumentando ainda mais as pressões sobre os quilombolas que já estavam tensas após a demarcação de suas terras englobando ⅔ de onde está o PAERVE. O IMA entrou com ação contra o Quilombo, pedindo reintegração de posse, o que em 2021 ainda está sob judice.
De 2013 a 2017 houve um processo de desmonte e desmobilização do Conselho Consultivo e este período coincide com várias ações de transformação/reforma e implantação de estruturas na região do Parque, como a construção da "trilha ecológica", apontados acima. Em 2013 o IMA (naquele momento era Fundação do Meio Ambiente - FATMA) faz uma revitalização do Camping e terceiriza para uma ONG assumir a sua administração, modelo que teria continuidade desde então.
No ano de 2017, o IMA e a Comunidade Quilombola começaram a fazer tratativas para que esta assumisse a gestão do Camping, havendo inclusive criado uma OS (Organização Social) chamada "Associação dos Remanescentes do Quilombo Vidal Martins" tendo esta, inclusive, relatado as reuniões em ATA com assinatura dos representantes do órgão do Estado de SC. No entanto, em 2018 o IMA voltou atrás nas tratativas e decidiu abrir processo de concorrência pública do tipo carta convite, incluindo pontuação extra para Comunidades Tradicionais, o que daria boa vantagem para a Associação Vidal Martins, como preveem as legislações.
A primeira etapa da concorrência teve a desclassificação da Vidal Martins como comunidade tradicional, motivando o MPF, na liderança da Procuradora da República Ana Lúcia Hartmann, a entrar com processo por racismo institucional, processo que corre em 2a instância, em julho de 2021. A ONG que administra a Trilha Ecológica dentro do Parque, a ECO PAERVE (Educar, Conscientizar e Orientar no Parque Estadual do Rio Vermelho), foi a outra única participante e vencedora da concorrência, não assumindo por que a Justiça Federal manteve o Camping fechado dando liminar ao pedido do MPF.
Em suma, o Estado não reconhece os Quilombolas e estes não encontram espaço de diálogo dentro da estrutura estatal. O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (DTID) do Incra, o Edital do Camping e a sua posse pela Associação são contestados pelos Gestores do PAERVE. O Plano de Manejo, que ficou por anos sem ter iniciativa, teve sua construção feita de forma acelerada nos três últimos meses de 2020, causando estranheza nas representações do Conselho Consultivo e desconfiança de que se trata de ação estratégica para dificultar a concretização da retomada do território pelo Quilombo. O MPF judicializou o Plano de Manejo em junho de 2021, tendo a justiça interrompido os seus efeitos, em função de que à Comunidade Vidal Martins não foi dada capacidade de participar das oficinas de sua construção.
Durante a análise de dados das ATAS e da observação foi possível detectar os principais pontos de tensão que possam gerar conflitos que, por certo, estão atuando nos resultados da dinâmica do PAERVE. O quadro com estes pontos foi introduzido num questionário aplicado em 2020 com os Conselheiros para se buscar o grau de correspondência, tendo 16 (dezesseis) respondentes dentre 20 (vinte) Representações.
O Gráfico 1 demonstra o resultado deste item no questionário e quanto cada respondente confirmou os pontos de tensão sugerido,
Além das sugestões de pontos de tensão indicados no Gráfico 1, no questionário ficou aberta a possibilidade de serem sugeridos novos temas ou dar destaque para algum, mas de fato não houve menção à situação da Comunidade Quilombola. Salta aos olhos, efetivamente, a menor incidência de preocupação com as famílias Vidal Martins, seu território e a retomada dele iniciada pelo Camping. Os incêndios, que aparecem como o maior ponto de tensão na visão das/os Conselheiros/as respondentes, sempre existiram dentro do Parque. No entanto, após a retomada do Quilombo e sua posse do Camping eles nunca foram tão grandes e constantes, ensejando desconfianças de que se trata de incêndios criminosos para incutir acusação à Comunidade Vidal Martins. Num segundo momento, a Comunidade Quilombola se organizou e montou brigadas civis de combate aos incêndios e tem conseguido revertê-los muitas vezes antes da chegada do Corpo de Bombeiros.
Além da seletividade e do racismo estrutural e ambiental institucionalizados no aparelho estatal envolvido no caso, pelas entrevistas foi possível verificar que a preocupação da Comunidade do entorno diz respeito apenas ao território que "não lhes pertence mais", numa expressão da invisibilidade de sua causa, uma deslegitimação silenciosa. Mesmo para aqueles atores mais ativos na região, ligados aos movimentos ambientalistas, existe uma limitação de enfoque, arraigada na questão ambiental, mas desprendida da questão quilombola. Presumem que o território com os Vidal Martins seria uma perda de autonomia para a preservação ambiental, mas este ponto de vista ignora que a gestão ambiental do PAERVE, feita pelo IMA, tem sido pouco transparente, democrática e muito seletiva em termos de autorização de mudanças no território, como apontado anteriormente.
Retomando alguns autores apontados na parte inicial deste texto, ficam algumas reflexões para avanços de pesquisa, estudos e ações. Conforme aponta Florestan Fernandes (1989), o Brasil é racista, só tem medo de assumir e ficam escondidos ou invisíveis seus reflexos. Patina-se na ideia de criação de uma democracia em nossa nação, pois como aponta Almeida (2018), sem democracia racial não teremos uma verdadeira democracia. Com baixa ou nenhuma participação nas políticas públicas, como aponta Bullard (2004), os negros quilombolas sofrem o racismo estrutural e são a maneira mais expressiva de injustiça ambiental, por isso racismo ambiental.
O caso do Quilombo Vidal Martins indica que se tem racismo ambiental enquanto injustiça ambiental, mas de um ponto de vista diferente. Se na perspectiva de Bullard (1994) o racismo ambiental se revela na incidência das externalidades em cima do contingente negro da população, aqui no caso Vidal Martins a ação de política ambiental em direção à preservação causa a injustiça ambiental, e, por serem negros, quilombolas remanescentes de pessoas escravizadas dentro de uma estrutura que os tornam invisíveis e silenciosos são vítimas do que podemos chamar de "preservação socialmente predatória".
Assim, ao invés de torná-las invisíveis, escondê-las ou utilizar-se da seletividade estatal para excluí-las das políticas públicas ambientais, a sociedade e o aparelho de Estado devem trazer estas pessoas para um convívio coletivo em busca de objetivos comuns. Assim como a Comunidade ambiental da região advoga a gestão integrada da Unidade de Conservação PAERVE, pode, da mesma forma, se colocar disponível para uma gestão integrada e compartilhada de soma positiva com os que no território já estavam há muito. Podem, assim, comungar com seus saberes trazidos e transmitidos por seus ancestrais que possuem uma relação extremamente preservacionista e comunitária entre sociedade-natureza, tema e objeto já abordado em trabalhos de profundidade, como o de Izabel dos Santos (SANTOS, 2020).
6 CONCLUSÃO
Ser negro no Brasil é carregar marcas profundas institucionalizadas e estruturadas do passado. Ser quilombola é a maior manifestação de resiliência identitária que uma comunidade negra pode viver hoje. São reflexos dos cerca de 400 anos de silenciamento e tratamento sub-humano. Essa população hoje luta pelo mínimo que o Estado, em todas as esferas, deveria reconhecer – sua origem, cultura, dignidade, direitos fundamentais e voz.
A constatação de ausência de debate da questão racial nessa realidade de injustiça ambiental enfrentada pela comunidade do Quilombo Vidal Martins, situada em Florianópolis, expõe a omissão de responsabilidade de dívida social da sociedade como um todo com o Negro. Este fato não ocorre com outros descendentes de imigrantes não negros, cujos estudos mais aprofundados e comparados poderão contribuir para selar esta afirmação. Dessa forma, compreendemos a seletividade de justiça pautada em Cor/Raça, como resultado de uma longa jornada de racismo estrutural que se construiu no Brasil desde seu descobrimento.
Considera-se que o Brasil encara uma realidade de racismo estrutural provocada por um mito de democracia racial que silencia a imagem do negro nas discussões sociais e ambientais. No caso aqui apresentado e discutido, foi abordada a problemática da injustiça ambiental, que também pode ser considerada como uma forma de racismo ambiental. No entanto, este racismo ambiental aparece de uma forma diferente, ensejando a apresentação aqui de um novo caminho a ser trilhado na discussão racial e ambiental, o de uma "preservação socialmente preatória".
A invisibilização dos quilombolas e da questão racial é praticada mesmo por aqueles ativistas ambientais e instituições representadas, contribuindo com a marcha do racismo estrutural. A máquina e estrutura do Estado apresentam-se reforçando a seletividade já cristalizada no aparelho estatal, dando contornos mais difíceis para o resgate da dívida social. Apontar essas contradições, como se tenta fazer neste artigo, parece ser um caminho que acelere a redução das enormes diferenças raciais vividas na sociedade contemporânea, sem o que se estará, também, distante de uma verdadeira democracia.
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