Entrevista
RACISMO, MOVIMENTO NEGRO E POLÍTICAS PÚBLICAS: a história de luta do povo negro - Entrevista especial com o Professor Doutor Carlos Benedito Rodrigues da Silva
RACISMO, MOVIMENTO NEGRO E POLÍTICAS PÚBLICAS: a história de luta do povo negro - Entrevista especial com o Professor Doutor Carlos Benedito Rodrigues da Silva
Revista de Políticas Públicas, vol. 25, núm. 2, pp. 776-787, 2021
Universidade Federal do Maranhão
Essa entrevista foi realizada com o Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva – o Professor Carlão – com o objetivo de conhecer suas análises acerca da luta do movimento negro contra o racismo e suas demandas por políticas públicas antirracistas. Poucos têm a legitimidade e a experiência militante e acadêmica para fazer reflexões sobre os processos discriminatórios e luta antirracista desenvolvidas pelo povo negro no Brasil. O professor Carlão não apenas é um militante da causa negra desde a juventude, como é um dos principais acadêmicos e pesquisadores das relações étnico-raciais na formação social brasileira. Nesta entrevista ele discorre sobre racismo, a luta do movimento negro e as conquistas e desafios ainda necessários para se atingir a igualdade racial.
Entrevistador – Professor Carlão, o racismo no Brasil tem sido estudado, combatido e denunciado pelo movimento negro há séculos. Contudo, foi e ainda é negado por uma significativa parcela de intelectuais, instituições e agentes públicos. Qual a sua caracterização do racismo no Brasil?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva - Eu penso que a elaboração de uma ideia de mestiçagem, desde o final do século XIX e a construção da ideologia da democracia racial, a partir dos anos 1930, impôs como diz o historiador Joel Rufino dos Santos, uma forma peculiar de se pensar as relações raciais no Brasil, de maneira tanto a abafar as possibilidades de reação quanto de fazer crer que nosso racismo é mais brando, porque a comparação é sempre com a segregação racial estadunidense e com a apartheid sul africano. Nas primeiras décadas do século XX, desenvolve-se a política de branqueamento da cultura brasileira, um projeto deliberado, segundo Abdias do Nascimento, de extermínio do negro afro-brasileiro, através da adoção de concepções teórico-científicas que definiam os negros como uma raça inferior, cuja emancipação somente seria possível, através da assimilação dos valores europeus. Essas noções, apesar do protesto negro estar presente desde antes da abolição, ainda contaminam as relações sociais no país, fazendo com que os brancos ignorem o racismo e muitos negros não admitem serem atingidos por ele. Parece-me então, concordando com o professor Kabengele Munanga, que o racismo no Brasil é um crime perfeito, porque mesmo tendo sido definido como crime inafiançável na Constituição Federal de 1988, em que pesem os vários casos já constatados e denunciados diariamente, até hoje ninguém foi punido por praticar racismo no Brasil.
Entrevistador – De que forma o racismo tem estruturado as desigualdades sociorraciais na formação social brasileira?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva – Embora não tenhamos leis segregacionistas, a exemplo das Jim Crow nos Estados unidos e Apartheid na África do Sul, as relações sociais no Brasil são definidas racialmente, neste sentido, o racismo é estruturante das relações sociais, porque o lugar social dos indivíduos é definido pelo fenótipo, ou seja, como eu disse inicialmente, construiu-se no Brasil por parte das elites intelectuais e administrativas, uma ideia de país mestiço, que nada mais é do que a definição de um ideal de branqueamento não apenas genético, mas um branqueamento cultural e do pensamento sobre a nação. Dessa forma, a mestiçagem alimenta um processo de hierarquização da população brasileira no sentido de que os mestiços de pele clara são privilegiados seja no campo da administração do país, do acesso às melhores escolas e ao mercado de trabalho. Por exemplo, desde o final do século XIX foram elaboradas leis que proibiam negros de ter acesso à educação, consequentemente, os negros e negras descendentes de africanos escravizados não tiveram as mesmas oportunidades de qualificação para alcançar a emancipação social. Mesmo que o racismo não seja explicitado em atitudes perceptíveis, existem processos silenciosos que orientam a seleção para o mercado de trabalho, seja em grandes empresas ou em pequenas lojas comerciais. Esse processo é orientado com base no fenótipo, neste sentido, embora tenhamos um percentual de mais de 50% de população negra, embora sejamos o maior país de população negra fora do continente africano, esses percentuais não estão representados no quantitativo de pessoas negras, em cargos de direção ou em espaços de poder político na sociedade brasileira. E dessa forma é que o racismo se constitui como estruturante das relações sociais no Brasil, reproduzindo exclusão e desigualdades.
Entrevistador – No imaginário e na práxis racista brasileira constituíram-se duas imagens acerca do homem e da mulher negra: ou eles eram bandidos, criminosos, perigosos, vadios, lascivos e vagabundos; ou eram preguiçosos, ordeiros e pacíficos. Qual a sua opinião sobre essas visões da população negra e como combatê-las?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva – As concepções sobre negros e negras no Brasil, sempre foram estereotipadas e contribuem para impor aos corpos negros uma situação de incapacidade mental atribuída à nossa origem biológica. Há um grande paradoxo nessa concepção, que precisa ser desvelado pelo ativismo e pela intelectualidade negra, embora nem sempre essas duas categorias sejam estanques; na maioria das vezes, quando falamos em ativismo negro ou intelectualidade negra, estamos nos referindo às mesmas pessoas. Ou seja, homens e mulheres engajados na produção de conhecimento e ao mesmo tempo comprometidos com as lutas antirracistas na sociedade e no espaço acadêmico. Penso que esses grupos precisam refletir de maneira mais efetiva e contundente sobre essa questão. O paradoxo me parece residir no fato de o Brasil ser um país de maioria negra, e ter um projeto branco para a população. Ou então, ao mesmo tempo em que se reafirma a mestiçagem, atribui-se a um dos grupos envolvidos nesse processo de mestiçagem, uma incapacidade de assimilação dos valores culturais, morais e religiosos da civilização ocidental, permanecendo na condição de raça inferior. Essas ideias de inferioridade, propensão ao trabalho físico, incapacidade de assimilar valores civilizatórios, da classificação de mulheres e homens negros apenas do ponto de vista da sexualidade, etc., herdadas do processo colonialista e da escravização, permanecem orientando as relações sociorraciais no Brasil. Certamente, devido às reações do ativismo negro, algumas mudanças ocorreram e as representações de negros e negras no imaginário nacional já não são tão violentadas, mas ainda assim, permanecemos excluídos de setores importantes da sociedade brasileira, devido a esse imaginário racista. Talvez um caminho de superação desse imaginário seja por meio da educação que enfatize a importância da diversidade e do respeito às diferenças nas relações entre os povos do mundo, e no caso da população negra, promover atividades que enfatizem a África em toda a sua diversidade, destacando a importância das contribuições e da presença africana na formação da cultura brasileira, não apenas do ponto de vista do entretenimento ou da ludicidade, mas na cultura como expressão de valores, como um modo de estar no mundo. Penso que, enfatizando de forma positiva essas questões no processo educacional, poderíamos reeducar a sociedade para se redefinir e superar as noções estereotipadas que se reproduzem sobre a população negra.
Entrevistador – Qual tem sido a ação do Estado brasileiro e de outras instituições como escola, universidade, igreja, mídia, etc., na reprodução ou no combate ao racismo?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva – De uma forma geral, essas instituições se assentaram sobre o ideário da democracia racial e da mestiçagem, sob o argumento de que “todos somos iguais” perante Deus e a justiça. Mas esse discurso é um engodo que nunca serviu para eliminar as desigualdades sociorraciais no Brasil. É interessante observar que o Estado brasileiro é signatário de vários documentos internacionais de combate ao racismo e às desigualdades sociorraciais, como Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, da Assembléia Geral das Nações Unidas, 1965, ratificada pelo Brasil em 1968, a Convenção nº. 111, aprovada pela OIT em 1958, que trata da discriminação em relações de emprego e ocupação, a Convenção nº. 117, aprovada pela Conferência Internacional do Trabalho, em 1962, que faz referência específica à discriminação de trabalhadores por motivo de raça ou cor, assim como a Declaração de Durban de 2001, documento produzido como resultado da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban na África do Sul em 2001. (Conferência de Durban). Além desses instrumentos, foi aprovado pela Câmara dos Deputados Federais, depois de longos debates e muita celeuma, o Estatuto de Igualdade Racial – Lei nº 12.288/2010, destinada a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Apesar de reconhecer todos esses mecanismos, o Estado brasileiro nunca adotou medidas eficazes para que essas leis sejam levadas a efeito, no sentido de assegurar proteção às populações atingidas por quaisquer práticas discriminatórias, ou mesmo para extirpar o racismo. As ações do Estado tem se dado muito mais por exigências e por pressões e proposições do movimento social negro, do que por iniciativa institucional de combate o racismo. As práticas racistas continuam se reproduzindo em todos esses setores, na seleção para o mercado de trabalho, para a ascensão social, para o processo educativo, pois se dão muito mais pela aparência física do que pela competência e aí a exclusão se perpetua, porque a maioria da população não preenche os padrões determinados pela ideologia do branqueamento, volto a dizer, apesar dos discursos sobre a mestiçagem como um elemento importante da identidade nacional.
Entrevistador – Sobre o movimento negro brasileiro, qual a importância dele na História do Brasil?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva – As ações do movimento negro brasileiro não se restringem às denúncias contra o racismo. Elas se ampliam especialmente do ponto de vista pedagógico, com proposições históricas sobre uma educação emancipatória para brancos e negros no Brasil, desde a educação básica. E essas proposições estão sistematizadas nas diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico- raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Ao longo do século XX, o movimento negro foi assumindo formas diferenciadas de mobilização, sem, entretanto, perder o foco principal que é a luta contra o racismo e pelo empoderamento da população negra, do ponto de vista intelectual, político e econômico, ampliando diálogos cada vez mais qualificados, com outras organizações da sociedade civil e órgãos governamentais dos estados e municípios, especialmente com o acesso crescente, mas ainda não proporcionalmente igualitário, de negros e negras no ensino superior. Nessa perspectiva, lançando mão dos ensinamentos da professora Nilma Lino Gomes, o movimento negro se reeduca e educa a sociedade brasileira, apontando para a perversidade do racismo como uma barreira ao desenvolvimento do país, pois exclui a maior parte da população brasileira do processo produtivo e educacional racistas que continuam orientando as ações institucionais como reprodutor das desigualdades e da exclusão. As proposições apresentadas historicamente pelo movimento negro resultam de reflexões forjadas em várias atividades e ações de resistência como as lutas quilombolas, o Festival Comunitário Negro Zumbi, que ocorre anualmente na semana da consciência negra em algumas cidades do Estado de São Paulo, nos Encontros de Negros do Norte e Nordeste, no SENUN, do I Encontro de Pesquisadores e Pós-Graduandos Negros das Universidades Paulistas, realizado em Marília-SP, em l989. Dos COPENES, etc., que ganham corpo sistematizado nas diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Certamente esse debate se ampliou para outras instâncias progressistas com as quais precisamos fortalecer parcerias, sem, entretanto, perder a dimensão do protagonismo negro
Entrevistador – É possível dizer que sem o movimento negro o Brasil não teria políticas públicas antirracistas?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva – Sim, essa é uma afirmação possível, especialmente quando observada a reação de diversos setores da sociedade brasileira, contrária à implementação de políticas públicas de caráter racial. Todos sabemos que os debates e proposições sobre políticas afirmativas, cotas raciais e reparações das injustiças causadas à população negra, em consequência do racismo, tiveram a sua origem nas lutas históricas de ativistas e intelectuais negros e negras, mesmo antes do ano 2000, com Abdias do Nascimento, por exemplo, já no início do século XX, denunciando o racismo e a desigualdade racial no Brasil, bem como as orientações racistas na definição dos cargos de poder e decisão, na vida política, nas artes, na cultura, educação básica e superior. Denúncias que se ampliaram com a apresentação de dados sobre as desigualdades sociais com os desdobramentos na categoria raça/cor, exigindo compromisso internacional do governo brasileiro em implementar políticas de combater as desigualdades sociorraciais.
Entrevistador – Sobre as políticas públicas antirracistas, qual a importância delas para a população negra?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva Mesmo considerando as limitações impostas para a sua implementação efetiva, que podem ser atribuídas a vários fatores: racismo, má vontade, descaso, fanatismo religioso, etc., as políticas públicas antirracistas são de grande importância para a emancipação social das famílias negras e também para amplos segmentos populacionais de baixa renda. Essas políticas têm o caráter de assegurar à pulação negra, direitos à educação, ao mercado de trabalho e à saúde, ou seja, políticas que vislumbrem novos horizontes às famílias negras vitimizadas pelo racismo. Possibilitam, também, que as diversas instituições públicas do ensino superior e os Institutos Federais possam conviver com a diversidade enriquecedora das relações socioculturais desse país, representada agora nas salas de aulas, por um contingente de pessoas negras e pobres das periferias, quilombolas, pessoas LGBTQIA+, pessoas com deficiências, indígenas, entre outros e outras que compõem a plurietnicidade brasileira, constituindo um grande desafio para um sistema educacional que não estava até então, habituado a tratar com esse público, a não ser de maneira abstrata. Seguindo com Nilma Gomes, é possível afirmar, que a luta por políticas afirmativas ressignificou, e muito, a nossa própria gramática acadêmica, a nossa própria gramática política, trazendo um entendimento do ensino superior como um direito, como um horizonte a ser alcançado pelo nosso povo, que nunca teve as possibilidades nem o direito de escolha, sendo limitado, quando muito à conclusão do ensino médio. Efetivamente, o ensino superior nunca nos foi apresentado como um caminho comum, a exemplo daqueles e daquelas com as condições econômicas, culturais, raciais e de gênero que sempre lhes garantiram a representatividade nos lugares de poder e decisão. Por isso é preciso reconhecer que estamos tratando das possibilidades de quebra dos privilégios, ressignificando a luta pelo direito à educação no Brasil, algo que nos foi negado desde o século XIX. A presença, portanto, de um contingente de estudantes que denotam uma representação mais fiel à diversidade étnico-racial nas instituições brasileiras de ensino superior, se, por um lado serve de estímulo às famílias negras, que passam acreditar nas possibilidades de seus filhos e filhas chegarem à universidade, por outro lado, causa incômodo em uma sociedade que reproduz e alimenta, cotidianamente, as estruturas racistas e excludentes, forjadas desde o sistema escravista. Em uma sociedade com a tipologia de relações raciais como o Brasil, que desde o final do século XIX reproduziu o discurso da mestiçagem, como uma prática de invisibilização dos conflitos raciais, o que causa incômodo é a possibilidade de convivência com sujeitos historicamente tratados como desiguais no ensino superior público, forjando novos diálogos, desconstruindo a rigidez eurocêntrica do currículo, por meio da articulação didático-pedagógica, entre o currículo e as experiências da vida cotidiana desses novos sujeitos, com suas vivências locais, comunitárias, seus repertórios culturais, suas relações com a ancestralidade, com seus corpos demarcados por desigualdades e violências. Compreender essas relações do ponto de vista da produção do conhecimento é um grande desafio apresentado pelas políticas afirmativas. Sem dúvidas, as políticas afirmativas possibilitam um olhar mais democrático sobre a sociedade brasileira, do ponto de vista da compreensão e busca de caminhos para superação das desigualdades sociorraciais, fortalecendo o compromisso das universidades com a sociedade em toda a sua diversidade, por meio da produção de conhecimento. Nesse sentido, entendo que os NEABS têm um papel fundamental no diálogo com as gestões acadêmicas, exigindo comprometimento efetivo com a diversidade, na proposição e desenvolvimento de ações acadêmicas voltadas para uma melhor qualificação intelectual de estudantes das várias áreas e da produção de conhecimentos que valorizem a diversidade étnico-racial do país. Os NEABs e correlatos têm, também, importância na interlocução com o movimento social negro, como na sensibilização de intelectuais não negros, cujas produções são igualmente importantes para a valorização das diversidades e para a implementação de ações antirracistas. A ampliação dos NEABs, especialmente a nossa articulação por meio do Consórcio Nacional, demarca, efetivamente, um momento da sociedade e da universidade brasileira, onde as questões étnico-raciais ganham evidência.
Entrevistador – Professor Carlão, como poderemos avançar mais nas conquistas das políticas públicas antirracistas? Como superar as limitações das atuais políticas públicas com recorte racial?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva - Eu enfatizo sempre a importância de nos articularmos coletivamente, com outros setores progressistas no sentido de ampliar as lutas antirracistas como um mecanismo importante para o desenvolvimento do país. Sem dúvidas, precisamos fortalecer parcerias, sem, entretanto, perder a dimensão do protagonismo negro. Esse protagonismo precisa ser reconhecido e encampado solidariamente também, por aqueles e aquelas que defendem, seja individual ou coletivamente, a democratização dos saberes, do acesso, permanência e sucesso nas instituições públicas do ensino superior, a democratização do ensino com qualidade e do conhecimento científico, que levem em conta plurietnicidade brasileira, desde a educação básica. Evidentemente e infelizmente, a educação brasileira ainda é reprodutora de estereótipos racistas, machistas e de desigualdades, mas, é neste campo que precisamos atuar com mais contundência pra fazer valer as conquistas já alcançadas e ampliar as condições de acesso da maioria da população brasileira – onde está a população negra – aos direitos humanos e à justiça social. Como já dissemos, esse processo não é novo, tem sido pauta de muitos debates entre intelectuais e ativistas negros e negras em todas as instituições do ensino superior no país, mesmo de ensino privado. Entretanto, ele tem sido ignorado pela maior parte da intelectualidade brasileira, principalmente entre aqueles e aquelas que construíram suas carreiras, com uma vasta produção de pesquisas, escrevendo sobre negros e negras no Brasil.
Entrevistador – Contemporaneamente temos observado o racismo mais escancarado no mundo inteiro, inclusive, no Brasil. Como você avalia esse fenômeno?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva - Temos observado em alguns países, a revitalização de grupos extremistas que estavam um tanto “escondidos” dos holofotes universais. Muitos desses grupos têm como alvo, imigrantes, mulheres e negros. Evidentemente, essa explicitação tem despertado também reações do antirracismo, em atitudes importantes de solidariedade em valorização e defesa da vida humana. Pensando sobre o Brasil, eu diria que, as mudanças sociais ocorridas nessas primeiras décadas do século XXI, exigem análises mais efetivas sobre as ações do Estado brasileiro em relação à população negra, especialmente neste momento da pandemia de Covid 19, que abalou o mundo desde o final de 2019, com a explicitação de grupos extremistas no país, negacionismo científico, racismo religioso, feminicídio, etc., Um olhar, que nem precisa ser muito atento sobre a população negra, revela a alta taxa de letalidade que recai com maior contundência, sobre esse grupo. Esta situação me permite considerar o conceito de necropolítica, elaborado por Achille Mbembe, como assertivo na compreensão do genocídio a que está exposta a maioria da nossa população, especialmente jovens e mulheres negras. A morte, o extermínio da população negra, especialmente em sua parcela mais jovem passa a ser a forma de gestão na atualidade das relações sociorraciais brasileiras. Matar ou deixar morrer é definido a partir da orientação pelo racismo. Neste contexto, se empresas comerciais brasileiras ainda mantêm códigos para alertar seguranças sobre a entrada de clientes negros em suas lojas, quando negros são assassinados com 80 tiros, quando uma parlamentar negra é assassinada em plena luz do dia, sem que os assassinos sejam punidos, quando alguém entre em uma casa legislativa portando uma bandeira nazista sem punição, certamente temos muito ainda a avançar em termos de combate ao racismo no Brasil.
Entrevistador – Professor Carlão, é possível ter esperança que conseguiremos eliminar o racismo e construir uma sociedade sem práticas discriminatórias?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva – Continuamos sim, não somente acreditando, mas esperançando, no sentido de nos empenharmos efetivamente a partir de nossas condições intelectuais em um processo permanente de lutas e vigilância contra o racismo. O momento atual exige ações mais contundentes diante das atitudes de um governo genocida que mantém a população negra em uma perspectiva de morte iminente, não como defeito do sistema, mas como projeto estruturalmente construído ao longo da história e que se evidencia com muita eficácia nesse momento. Assim, é preciso redimensionar as lutas antirracistas, tanto das ações do ativismo negro, quanto dos movimentos sociais em geral, pois a conquista da democracia pressupõe a superação do racismo. Não se trata de um repúdio moral ao racismo, mas de ações concretas de promoção e preservação de valores que fortaleçam a diversidade étnico-racial brasileira, para a construção sistemática de ações afirmativas e apoio a políticas públicas antirracistas. Questões que envolvem a juventude negra, as comunidades quilombolas, o feminismo negro, as questões de gênero e todas as questões LGBTQI+. Nesta perspectiva, é necessário pensar o antirracismo plural, com toda a diversidade de organizações que compõem os movimentos sociais negros, com o ativismo acadêmico, em articulações com os movimentos antirracistas internacionais e com brancos antirracistas, pois cabe ressaltar, que as lutas históricas da população negra brasileira sempre foram pela democracia e pela construção de uma sociedade sem racismo.
Entrevistador – Você está próximo da aposentadoria depois de décadas dedicado à profissão de professor e pesquisador das relações raciais. Que avaliação você faz desses anos todos na Universidade: as barreiras, os desafios, as conquistas e o que ainda falta conquistar.
Carlos Benedito Rodrigues da Silva – Bem, ao longo dos quase 40 anos de atuação na UFMA, tenho me dedicado a colaborar com a formação de alunas e alunos, especialmente como orientador, desde a iniciação científica até a pós-graduação. Considero que tive poucos orientandos ou orientandas, tanto na graduação, quanto na pós, apesar de ter acolhido muitos e muitas nas sessões de estudos do NEAB. Não sei muito bem ainda ao que atribuir. Fico pensando que talvez, não tenha sido suficientemente convincente teoricamente para seduzi-los, além do fato de ser um intelectual negro, pesquisando sobre as questões étnico-raciais e, ao mesmo tempo, me autodefinindo como ativista do movimento social negro, não tenha sido muito bem visto entre estudantes das ciência sociais. Mas, ouso uma reflexão a esse respeito, especialmente por integrar um grupo de intelectuais negros e negras, que tradicionalmente, tem sido estudado pelas ciências sociais, e agora propõe romper com a passividade, buscando a construção de uma epistemologia que leve em consideração o pensamento negro forjado nas vivências com o racismo e suas mazelas.
Entrevistador – Sobre sua importante contribuição científica e bibliográfica para o entendimento da cultura e identidade negra no Maranhão, o que é possível falar sobre esse legado?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva - Minha trajetória está articulada com minha atuação no movimento social negro, desde a década de 1970, quando do processo de criação de um núcleo do Movimento Negro Unificado, em 1979, em Campinas-SP, até o Centro de Cultura Negra do Maranhão. Uma trajetória que começou há quase meio século quando, após concluir um curso supletivo (que na época era conhecido como Madureza), iniciava minha graduação em Ciências Sociais na Unicamp, em 1974, já aos 25 anos. A partir de minhas incursões no universo acadêmico, tive a oportunidade de trocar experiências e aprender muito sobre as relações étnico-raciais no Brasil, com intelectuais negros e negras, entre os quais estavam Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Kabengele Munanga, Joel Rufino dos Santos, Helena Teodoro, Vânia Sant Àna, Caetana D`Amasceno, Ana Lúcia Valente, etc. compartilhando alguns trabalhos e reflexões nas reuniões regionais da Associação Brasileira de Antropologia. A antropologia possibilitou-me alguns aprendizados importantes, um deles é que o Brasil é extremamente pluralizado e que suas regiões são amplamente diversificadas nos ritmos da vida. Essa constatação ajudou-me a direcionar o olhar para as peculiaridades de São Luís do Maranhão. Penso haver adquirido ao longo desses anos, experiência necessária tanto para as devidas relativizações, como para reformular minhas concepções, que também eram frutos dos estereótipos produzidos no meu lugar de origem. Meu envolvimento além da UFMA foi com o Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN), primeira organização do Movimento Negro Maranhense, da qual exerci a presidência no período de 1993 a 1995. Entre outros, integrei a equipe de elaboração do Projeto Vida de Negro, desenvolvido pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, em parceria com o CCN. Experiência que possibilitou um conhecimento e envolvimento político importante com a vida corajosa, sofrida e, também, alegre e solidária das comunidades quilombolas do Maranhão. Participo também das atividades culturais do CCN, integrando o grupo de compositores e intérpretes do Bloco Afro Akomabu, criado em 1984. Nessa condição me foi possível explorar uma capacidade que, até então, eu mesmo não percebia, ou seja, passei a compor e cantar as músicas relacionadas com os temas escolhidos para o carnaval do Bloco Afro Akomabu. No âmbito da UFMA, em 1985, sob a coordenação do doutor Sérgio Ferretti, participei da criação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. Em 1992, conclui o curso de Mestrado em Antropologia Social na Universidade de Campinas-UNICAMP com a dissertação “Da Terra das Primaveras à Ilha do Amor: reggae, lazer e identidade cultural”, orientada pela doutora Vanessa Rosemary Léa, do Departamento de Antropologia daquela instituição. A pesquisa sobre o reggae possibilitou um envolvimento importante com o universo regueiro de São Luís, resultando em uma publicação, com o mesmo título pela EDUFMA, em 1995 e reedição em 2016. Na dissertação de mestrado, meu enfoque foi sobre as questões de etnicidade e identidade cultural, analisando a presença do reggae jamaicano em São Luís, com suas festas, radiolas e programas de rádio. Minhas análises sobre o universo regueiro caminharam no sentido de interpretar aquelas manifestações como um instrumento importante no processo de definição da identidade para alguns segmentos da população maranhense, especialmente jovens negros e negras de baixa renda, moradores(as) das periferias, urbanas e palafitadas da Ilha. Em l997 ingressei no Doutorado do Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, onde defendi a tese RITMOS DA IDENTIDADE: mestiçagens e sincretismos no Maranhão, publicado em 2007 e reeditado em 2020. Do ponto de vista analítico, meu argumento é que, mesmo em sociedades enraizadas a uma forte tradição cultural, como é o caso de São Luís e outras capitais do Nordeste, existe uma dinâmica de trocas culturais, entre os repertórios regionalizados da cultura tradicional e os conteúdos ofertados pelos sistemas midiáticos. Esse processo influencia na redefinição de identidades dos grupos que as compartilham, possibilitando uma multiplicidade de expressões e formas de vida, expressas em um rico repertório de ritmos, danças e culinária, reveladores da identidade maranhense. Em 2001, retornando do doutorado, assumi a coordenação do NEAB e, desde então, tem sido ali, que concentro as minhas principais contribuições à UFMA e à sociedade maranhense por meio da pesquisa, ensino e extensão, na área das relações étnico-raciais. Tenho, portanto, produzido minhas reflexões sobre e neste cenário. Com formação mais qualificada ao nível do doutorado, pude contribuir com meus colegas para a criação do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFMA. Enquanto ações do NEAB registro duas que considero da maior importância: a proposição de um programa de ações afirmativas e cotas raciais para a UFMA, aprovado em 2006; a criação da Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, em 2015, Ainda por meio do NEAB e da nossa articulação com a ABPN, desde 2018, estou coordenando o “Projeto Afro cientista: Identificando Talentos”, com o objetivo de despertar a vocação científica e incentivar talentos entre estudantes negros e negras matriculados em escolas de ensino médio, para a vida acadêmica, mediante sua participação em atividades de estudos e pesquisas científica ou tecnológicas. As experiências têm demonstrado que ações individuais contribuem decisivamente para nossa desarticulação e isolamento. Portanto, ainda que nossos trabalhos estejam relacionados com nossas aspirações individuais de qualificação é fundamental fortalecermos nossos laços de solidariedade em um quadro de identificação coletiva.
Entrevistador – Para finalizar, que orientações acadêmicas e políticas você pode deixar para as gerações mais novas que têm se identificado cada vez mais com a causa negra e a luta antirracista?
Carlos Benedito Rodrigues da Silva – Eu penso que as novas gerações também enfrentam e enfrentarão dificuldades, mas de certa forma já encontraram o caminho amaciado. Quando eu comecei, fui praticamente o único aluno negro da graduação em Ciências Sociais da Unicamp, durante os quatro anos de curso. Hoje, com as políticas afirmativas e cotas raciais aplicadas nas instituições púbicas, é possível formar os grupos de solidariedade e lutar coletivamente contra racismo acadêmico e, principalmente, contra o epistemicídio. Não significa que seja mais fácil do que antes, porque os racistas se rearticulam com muita competência pra continuar nos excluindo. É necessário que as gerações mais novas não se percam dos que vieram antes, ou seja, façam valer na prática o discurso de respeito à ancestralidade porque esse é um dos valores que herdamos das culturas africanas. Mas é preciso, também, traçar seus próprios caminhos com competência e comprometimento. É evidente que nem todos e todas que entraram nas universidades pelos programas de ação afirmativa se dedicarão a trabalhar com as questões relacionadas à população negra, mas, independente da área de estudos, é preciso se afirmar como intelectuais negros e negras, para ampliar nosso reconhecimento na sociedade brasileira. Cada vez mais estamos nos qualificando ao nível de pós-graduação e da consolidação de nossas carreiras; penso que a continuidade das nossas lutas para consolidação de nossas conquistas depende, também, da maneira como nos percebemos e nos articulamos nesse campo da intelectualidade negra, para além das realizações pessoais. Na verdade o que deixo aqui nem seria como orientação, não tenho essa pretensão, mas é uma constatação de que temos hoje uma parcela importante de jovens negros e negras, produzindo conhecimento no ensino superior, debatendo nas redes sociais, articulando-se em grupos culturais, etc., com um nível de pluralidade identitária problematizando as relações sociorraciais que merecem reconhecimento. Mas não podemos perder de vista que tudo isso é consequência do racismo; então, seja lá com qual desses grupos ou de outros ainda nos identifiquemos, não podemos perder de vista nosso lugar social e nosso compromisso enquanto população negra em um país racista.