Editorial
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Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 1, pp. 7-13, 2022
Universidade Federal do Maranhão
MIDIA, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO DO CONSERVADORISMO E DO ULTRALIBERALISMO é o tema do Dossiê do v. 26, n. 1, janeiro/junho 2022, da Revista de Políticas Públicas (RPP), periódico acadêmico-científico publicado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). A formulação desse núcleo temático expressa a nossa intenção de prosseguir avançando na materialização da opção teórico-metodológica e editorial norteadora dos dossiês temáticos da RPP: - na reconstrução analítica de processos pertinentes ao ser social e a sociabilidade contemporânea deve-se buscar situar os processos analisados no horizonte da história examinando-os tanto em suas manifestações atuais, como em sua gênese e em suas perspectivas, e afirmar a relevância da análise conjuntural como produto da urgência e desafios concretos do presente histórico.
A conjuntura econômica e sociopolítica e certas ênfases do debate no campo do pensamento social e político nos levaram a reconhecer, no presente histórico, dinâmicas nas quais o conservadorismo vem medrando para o reacionarismo, como concepção de mundo, e o ultraliberalismo advoga em favor da lógica do capital investindo contra quaisquer entraves aos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciados como ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política, cultural, moral e estética.
No quadrante das análises sobre a reatualização do conservadorismo1 e do liberalismo, resguardadas as singularidades da trajetória e da proposta teórico-política dessas duas tradições de pensamento, fundadas no escopo da modernidade, destacam-se subsídios de caracterização e crítica voltados para demarcar as orgânicas relações entre esses determinantes e os processos mediante os quais a democracia, em várias sociedades concretas2, quadras conjunturais diversas e circunstâncias particulares, vem sendo posta em questão, por meio da disseminação de valores e ideários político-culturais pertinentes. Almeida (2018, p. 32) considera tal processo como a “virada hegemônica neoconservadora”.
O discurso neoliberal clássico, baseado no universalismo e no multiculturalismo, não é capaz de amparar enquanto ideologia a necessidade de uma prática política brutal de extermínio e de rebaixamento das condições de vida. Só pessoas capazes de articular um discurso de violência contra minorias, de intolerância e de hiperindividualismo podem dar conta de justificar o estágio atual da economia capitalista, e eles o fazem justamente invocando o direito e como o apoio das instituições de repressão do Estado.
Nesse âmbito, também se sobressaem evidências e estudos quanto à inconteste contribuição da mídia no desenrolar desses acontecimentos substantivamente ameaçadores às conquistas democráticas. De fato, na atual conjuntura, tanto na arena político-cultural quanto no campo da subjetividade, o ascenso do conservadorismo reacionário vem sendo construído e apoiado, em grande medida, nos meios de comunicação de massa, nas novas tecnologias de informação e na popularização dos dispositivos móveis digitais e redes sociais3.
Parte substantiva desse arsenal aprofunda a moldagem de uma comunicação para dominar, alienar, reificar, implementada por inúmeros mecanismos de manipulação, dentre os quais as chamadas fakenews, favoráveis a configuração, veiculação e difusão de um pensamento antidemocrático, antipopular e antiprogressista deliberadamente dirigido para escamotear compreensões abrangentes quanto as reais determinações do conservadorismo contemporâneo e do ultraliberalismo e para deslegitimar e desqualificar os seus críticos.
De fato, a expansão do denominado ultraliberalismo4 emerge na nova dinâmica que conjuga uma superposição de crises do capitalismo impulsionadas por dois elementos centrais articulados: o primeiro é processo de superprodução de mercadorias que exige uso intensivo dos recursos da natureza, com a exportação de indústrias que necessitam de grande consumo energético e emissão volumosa de poluentes; o segundo é a erosão da credibilidade e da legitimidade social das instituições de representação política e organização da vida comunitária que compõem o Estado moderno, incapazes de articular a arrecadação de impostos com os interesses contrapostos da acumulação e da garantia de direitos sociais conquistados em grandes lutas coletivas ao redor do planeta.
Nas palavras de Löwy (2015), o discurso totalitário que se forja nesse contexto é um fenômeno que não encontra precedentes desde os anos 1930. São ideias que contaminam também a direita “clássica” e até parte da esquerda social neoliberal. Para Mbembe (2018, p.1) trata-se do “principal choque da primeira metade do século XXI entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo”. Não só a defesa de uma ordem regulada pelo mercado, mas a contraposição à democracia, aos direitos sociais e à proteção social. Na dinâmica das relações construídas para consolidação desse movimento, estimula-se, de um lado, o ódio de classes, fazendo com que, os conflitos sociais assumam a forma de “racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais” (MBEMBE, 2018, p.1).
No contexto da expansão mundial do conservadorismo reacionário e do ultraliberalismo, o Brasil se particulariza pela presença de movimentos e ações de natureza privada e estatal que sintetizam, no presente histórico, o ideário conservador nacional, suas teses economicistas e sua natureza opressora abertamente racista, misógina, homofóbica e devastadora da natureza. São práticas ora dominantes, apesar de se concretizaram em frontal descompasso a marcos constitucionais, tratados internacionais de direitos humanos e a pluralidade de lutas sociais em prol da defesa e ampliação de direitos e da emancipação humana e contra a destruição da natureza e retrocessos sociais e civilizatórios.
Estamos, portanto, diante de uma obscura quadra conjuntural, na qual o atual Governo brasileiro ataca sistematicamente a frágil democracia burguesa e a garantia de direitos individuais, sociais e econômicos, elementos cruciais da reprodução da sociabilidade capitalista, pois convergentes ao controle ideológico-político das contradições e desigualdades sociais e ao reforço da ideia de unidade e coesão social. Nesse horizonte, na definição das possibilidades de análise e crítica do núcleo temático que orienta o Dossiê deste volume da RPP, que põe em relação as categorias Mídia, Democracia e Políticas Públicas, é alvissareira a resposta do jornalista Franklin Martins à pergunta “Na sua opinião, a ágora sobreviverá à bolha e às fakenews?” do jornalista e professor Franklin Douglas na especial e instrutiva entrevista que integra esta edição da RPP. Eis a resposta:
Eu sou otimista. A sociedade humana só chegou aonde chegou, até hoje, porque ele foi capaz de enfrentar os problemas que foram sendo criados no seu desenvolvimento. A ágora, o espaço público, a praça pública, se ela não prevalecer sobre as bolhas, a sociedade não consegue se encontrar. Ela fica uma sucessão de individualidade batendo, de segmento batendo, se dispersa, se enfraquece e se deteriora. Então, é um processo de construção. Em alguns momentos, a bolha predomina sobre a ágora, mas a ágora volta a prevalecer. Eu penso que nós estamos vivendo no Brasil e no mundo, e aqui de uma forma muito dramática hoje em dia, a necessidade de que o debate público e a praça pública voltem a ser aquilo que definam o rumo do país. De um jeito ou de outro, se a gente não se submeter ao que está aí e enfrentar, nós vamos reconquistar a praça pública.
À chamada pública desta edição respondeu um número substantivo de pesquisadores e pesquisadoras, cujos trabalhos reúnem percursos investigativos e argumentações agudas e pertinentes ao escopo editorial da RPP.
Embora, apenas 25 textos sejam publicados nessa edição da Revista, em razão dos limites de ordem editorial, um grande número de outros artigos tiveram seu mérito acadêmico-científico reconhecido pelos avaliadores ad hoc. A todos os autores e autoras, portanto, agradecemos pela relevante participação na configuração da RPP.
Os artigos publicados na presente edição da RPP estão disponíveis nas seções Dossiê Temático e Temas Livres. São apresentados, a seguir, por seção e por ordem alfabética dos seus títulos.
Compõem o Dossiê Temático: A INCLUSÃO DIGITAL NAS IFES NORDESTINAS: reflexões a partir das ações desenvolvidas durante a pandemia de Lucélia Maria Lima da Silva Gomes, Kamilla lves Duarte, Andreza Freire da Silva e Danielle Marinho Barros da Silva Moura; A DUPLA CRISE: a pandemia e os migrantes nos relatos da mídia de Luan Prado Piovani e LíriaBettiol Lanza; A MÍDIA E A PRODUÇÃO DO CONSENSO EM TORNO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS: o caso do Novo Ensino Médio de Maria Carolina Andrade e Vânia Cardoso Motta; A NOVA CEPAL: projetos de desenvolvimento e o neoestruturalismo na América Latina pós-2008 de Eneida Oto Shiroma e Bruno Augusto Olska; A SOCIOEDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA E COMUNITÁRIA APLICADA AO INSTAGRAM de Priscilla Swaze Anchieta Silva, Melissa Silva Moreira Rabelo e Patrícia Rakel de Castro Sena; CLASSE MÉDIA E LUTAS SOCIAIS NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO de Fernanda Iracema Moura Arnaud; DEMOCRACIA DO BOATO: a era da pós-verdade e os desafios para a cidadania de Isis Maria da Graça Ferreira Santos, Arnaldo Provasi Lanzara e Soraia Marcelino Vieira; DIMENSÃO SOCIAL DO MERCOSUL: as políticas públicas e as assimetrias transfronteiriças de Vera Maria Ribeiro Nogueira e Ester Taube Torreta; O RETRATO DE UM BRASIL-QUE-PASSA-FOME: a fome como expressão do subdesenvolvimento de Laís Duarte Corrêa, Heloísa Teles e Isadora Rech Andrighetti; PERCURSO ARTESANAL SOBRE AS DESIGUALDADES CONTEMPORÂNEAS: notas de pesquisa de Maria Ferreira de Oliveira Filha, Edinalva Julio e Eugenia Aparecida Cesconeto; REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS: uma análise com a perspectiva dos trabalhadores “taskers” brasileiros de Ana Carolina Gimenes dos Santos, João Batista Pamplona e Maria Cristina Cacciamali. Concluem o Dossiê Temático uma Entrevista Especial e uma Resenha. A primeira, concedida pelo jornalista Franklin Martins ao também jornalista e professor Franklin Douglas, intitulada NÃO TEVE UMA POLÍTICA DE COMUNICAÇÃO NOS GOVERNOS LULA E DILMA”: um balanço das políticas públicas de comunicação do Governo Federal (2003-2016) Entrevista especial . A Resenha do livro A CONSTRUÇÃO INTERNACIONAL DA IGNORÂNCIA: o mercado das informações falsas. Rio de Janeiro: Editora Mauad X. 2020 de autoria de RÊGO, Ana Regina e BARBOSA, Marialva foi elaborada pela Profa. Francinete Louseiro de Almeida.
A seção Temas livres comporta os seguintes textos: AS CONDIÇÕES DE MORADIA DAS FAMÍLIAS POBRES EM CANAÃ DOS CARAJÁS, UMA CIDADE MINERAL DA AMAZÔNIA de Daniel Nogueira Silva e Rithielly Lira Sousa; CONFLITOS URBANOS EM MEDELLÍN E SÃO PAULO: dispositivos de publicização e cursos de ação para o direito à cidade de Morgana G. Martins Krieger e Marlei Pozzebon; EFEITO DA RENÚNCIA FISCAL NA FORMAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO PIAUIENSE – 2015 a 2018 de Tatiana Maria Almeida Saiki e Osmar Gomes de Alencar Júnior; EMPODERAMENTO”: fundamentos históricos, ideológicos e práxis política feminista de Lívia de Cássia Godoi Moraes; DIREITOS CULTURAIS E DESENVOLVIMENTO NA CALHA NORTE DO RIO AMAZONAS de Luciana Goncalves de Carvalho; IDOSOS NA PANDEMIA: políticas públicas brasileiras em instituições de longa permanência de Maria Clarice Alves da Costa, Vera Lúcia Conceição da Silva e Haroldo de Sá Medeiros; O IMPACTO DA PANDEMIA COVID 19 SOBRE A POLÍTICA DE SAÚDE E OS DESAFIOS DA CLASSE TRABALHADORA de Nathália Moreira Albino, Aline Cristina do Prado Maríngolo e Andréia Aparecida Reis de Carvalho Liporoni; OS DESAFIOS DE CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NA GUINÉ-BISSAU: questões preliminares de Vladimir Bucal de Eduardo Gomes Machado; OS MODELOS CHILENO E BRASILEIRO DE PROTEÇÃO SOCIAL: conjuntura, rupturas e similaridades de Rose Kelly Carvalho, Airton Adelar Mueller,Sérgio Luis Allebrandt, Nelson José Thesing e Maria Margareth BaccinBrizolla; RISCOS E AGRAVOS OCUPACIONAIS EM INTERFACE COM A PROTEÇÃO SOCIAL BRASILEIRA de Deise Regina da Silva Souza, Eduardo Souza Passini, Daniela Trevisan Monteiro, Carmem Regina Giongo, Andreia Mendes dos Santos e Jussara Maria Rosa Mendes; SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL: entre o público e o privado de Vanessa Mendes Sales; SAÚDE MENTAL EM TEMPOS DE CRISE: desafios da e na atualidade de Laína Jennifer Carvalho Araújo, Edna Maria Goulart Joazeiro e TRANSPORTE COLETIVO E MOVIMENTO TARIFA-ZERO-BH: repertórios de ação e incidência na política local de Ricardo Carneiro. Flávia de Paula Duque Brasil. Rodolfo Pinhón Bechtlufft e Marcella Raphaella Faustino.
Esperamos, enfim, que a publicação de presente edição da RPP materialize nosso compromisso editorial de contribuir para interpretar os desafios da sociabilidade contemporânea e para a produção do conhecimento no campo das Políticas Públicas.
Boa leitura!
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Neoconservadorismo e liberalismo. In: GALLEGO, Esther Solano (org). O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
LÖWY, Michael. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serv. Soc. Soc. São Paulo, n. 124, p. 652-664, out. / dez. 2015.
MBEMBE, Achille. A era do humanismo está terminando. 2016. Disponível em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando. Acesso em: 12 jun 2019.
NETTO, José Paulo. Condições atuais das lutas de classe no Brasil e na América Latina. In: MORGADO, Rosana (org.). Lutas e resistências ao conservadorismo reacionário: Jornada Internacional de Pesquisadores. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, 2020. (Coleção Carlos Nelson Coutinho; v.2).
NETTO, Leila Escorsim. O conservadorismo clássico: elementos de caracterização e crítica. São Paulo: Cortez Ed, 2011.
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