Resumo: A inclusão digital faz parte das dez áreas apontadas pelo Programa Nacional de Assistência Estudantil. Este termo apareceu com mais frequência nos sites das Instituições Federais de Educação Superior durante a pandemia do novo coronavírus. Este artigo busca refletir sobre as ações de inclusão digital desenvolvidas pelas universidades e institutos federais de educação, antes e após a pandemia da COVID-19, mormente pelos setores da assistência estudantil. Foi realizado um levantamento nos sites das 26 instituições federais de educação da Região Nordeste, no período de setembro de 2020 a janeiro de 2021. Os resultados apontaram que a pandemia impulsionou o desenvolvimento de ações de inclusão digital, pouco desenvolvidas antes desse período. Destaca, ainda, a necessidade de avanços, por parte das instituições, na ampliação do repertório dos estudantes para estudo em ambiente virtual.
Palavras-chave: ensino remoto, ensino superior, PNAES, COVID-19.
Abstract: Digital inclusion is part of the ten areas identified by the National Student Assistance Program. This term appeared more frequently on the websites of Federal Institutions of Higher Education during the new coronavirus pandemic. This article seeks to reflect on the digital inclusion actions developed by universities and federal education institutes, before and after the COVID-19 pandemic, especially by the student assistance sectors. A survey was carried out on the websites of the 26 federal education institutions in the Northeast Region, from September 2020 to January 2021. The results showed that the pandemic boosted the development of digital inclusion actions, little developed before that period. The need for advances by institutions to expand the students' repertoire for study in a virtual environment is highlighted.
Keywords: Remote teaching, University education, PNAES, COVID-19.
Artigos - Dossiê Temático
A INCLUSÃO DIGITAL NAS IFES NORDESTINAS: reflexões a partir das ações desenvolvidas durante a pandemia
Recepción: 21 Septiembre 2021
Aprobación: 20 Mayo 2022
Para Alonso, Ferneda e Santana (2010, p. 156) a inclusão digital pode ser compreendida como “ações que buscam inserir o cidadão por meio do aprendizado, oferecendo-lhes as habilidades necessárias para manipular a tecnologia de acesso à informação”. Ela é uma das dez áreas que compõem o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), documento que fundamenta as ações desenvolvidas no âmbito da assistência estudantil das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). No entanto, é em 2020, com o surgimento da pandemia do novo coronavírus, que este termo aparece com mais frequência nas páginas e ações dessas instituições.
Em 2007, por meio do Plano Nacional de Assistência Estudantil, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino (ANDIFES), fundamentada nas Pesquisas do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das IFES, realizadas em 1997 e 2003/2004 pelo Fórum Nacional de Pró-reitores de assuntos Comunitários e Estudantis (FONAPRACE), apontou que o resultado referente ao conhecimento básico de informática dos estudantes reafirmou a necessidade de investimentos “para viabilizar a execução de projetos que se alinhem ao Plano Nacional de Assistência Estudantil” (ANDIFES, 2007, p.9). Ainda conforme este documento,
[...] o acesso à internet está relacionado ao aumento no nível de conhecimento em informática que em 1997 era de 22,85, passando para 43,9% em 2003/2004. O percentual de estudantes que não dominam este recurso reduziu de 24,65%, na primeira pesquisa, para 4,7%, na 2ª pesquisa. O acesso à internet está diretamente relacionado à posse do equipamento. Os dados apontam para a necessidade de desenvolver políticas e ações de inclusão digital nas IFES, principalmente, junto aos estudantes da categoria C, D e E, 43,1% raramente utiliza a Internet e 10,1% nunca utilizou (2007, p. 12).
É nesse sentido que, em 2010, a inclusão digital passa a fazer parte das dez áreas apontadas no Decreto 7.234 que trata do PNAES, devendo compor as intervenções realizadas pelos setores da assistência estudantil nas IFES e IFs. O objetivo dessa ação seria ampliar os índices de permanência do estudante de graduação, propiciar a inclusão social através da educação e garantir o desempenho enquanto sujeito social, "tendo em vista a indiscutível importância da informática como veículo de informação e realização de pesquisas científicas” (ANDIFES, 2007, p. 8).
Ocorre que, no início de 2020, o Brasil se deparou com a pandemia da COVID-19 causada pelo novo coronavírus (SARS-COV-2). Em função das medidas adotadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mormente o distanciamento físico, as atividades rotineiras da população foram paralisadas, como atividades laborais diversas e a educação em seus diversos níveis. Como consequência, foi observado o acirramento da desigualdade social e o uso mais frequente das chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) que figuraram como alternativa para garantir a continuidade de muitas atividades laborais e “retorno” às aulas, bem como para amenizar as consequências do distanciamento físico.
Em face desta realidade, coube às IFES e IFs, por parte da assistência estudantil, a elaboração de novos auxílios (MAURÍCIO et al, 2020). Dentre estes, os de suporte às atividades do Ensino Remoto Emergencial (ERE), através de ações denominadas de inclusão digital, seja por meio de auxílio para compra de pacote de dados, contratação de serviço de internet ou para compra de equipamentos como smartphones, tablets, etc., conforme demonstrou a nossa experiência como profissionais da assistência estudantil em IFES e IFs nordestinas (uma universidade federal e um instituto federal).
Considerando o exposto, algumas questões se apresentaram: o investimento em ações denominadas de inclusão digital, durante a pandemia, seria uma realidade em todas as IFES e IFs do Nordeste? Quais as ações de inclusão digital foram desenvolvidas pelos setores da assistência estudantil durante o ano de 2020? Que atividades de inclusão digital foram desenvolvidas antes do ano de 2020 pelos setores da assistência estudantil? Podemos afirmar que a pandemia impulsionou o desenvolvimento de atividades de inclusão digital nas IFES e IFs? Considerando o conceito de inclusão digital apresentado por Alonso, Ferneda e Santana (2010), bem como a proposta do PNAES (2010), podemos afirmar que o suporte oferecido pelas IFES, durante a pandemia, pode ser considerado ação de inclusão digital?
Assim, este texto propõe refletir sobre as ações de inclusão digital desenvolvidas pelas IFES e IFs, antes e durante a pandemia da COVID-19, mormente pelos setores da assistência estudantil. Para fundamentar a discussão, foi realizado um levantamento nos sites das 26 instituições federais de educação da Região Nordeste com intuito de identificar essas ações. Espera-se que a discussão e reflexão aqui realizadas ampliem o olhar para esta área e favoreçam a implementação de práticas em inclusão digital nas universidades e institutos federais de ensino.
No início de 2020 o Brasil se deparou com a pandemia da COVID-19 causada pelo novo coronavírus (SARS-COV-2). Visando diminuir a propagação da doença e proteger vidas, algumas orientações foram indicadas pela OMS, dentre as quais se destacaram: a higienização das mãos, distanciamento físico e uso de máscaras (WHO, 2020). Em função das medidas adotadas, mormente o distanciamento físico, as atividades educacionais foram paralisadas e diversas alternativas foram tomadas para garantir a saúde da população.
Nesse cenário, as TICs se tornaram a alternativa principal para garantir a continuidade do retorno às aulas nas instituições de ensino por todo mundo, por meio do ERE, no qual o processo de ensino-aprendizagem é mediatizado pelas plataformas digitais ou não, através de momentos síncronos e assíncronos, com a finalidade de garantir atendimento escolar durante o período de restrições (LEITE; LEITE, 2020). Para que ele ocorresse, passou-se a falar, com mais afinco, em ações de inclusão digital por parte das IFES e dos IFs, visando garantir suporte enquanto durasse a pandemia. A título de exemplo, de acordo com uma matéria publicada no site da Universidade Federal de Sergipe (UFS), em 05 de junho, o reitor Ângelo Roberto Antoniolli apontou a urgência em enfrentar as dificuldades e entraves da instituição para o retorno das atividades acadêmicas respeitando as rotinas de biossegurança, e destacou “o debate sobre os usos das novas tecnologias da informação e da comunicação, bem como o problema do acesso dos discentes à internet”.1
De acordo com levantamento realizado nos 26 portais das Universidades e das Instituições de Educação Profissional, Científica e Tecnologia que fazem parte da Rede Federal nos 9 estados da Região Nordeste do país2, no período de setembro de 2020 a janeiro de 2021, as ações ocorreram, em sua maioria, após o segundo semestre de 2020, concentrando-se principalmente no período de agosto a outubro. Excepcionalmente, a UFS e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) implementaram iniciativas relacionadas à inclusão digital ainda no primeiro semestre daquele ano, momento no qual havia grande incerteza em relação à adoção do ensino remoto ou híbrido, pois a implementação dessas medidas dependia da evolução da pandemia do novo coronavírus no Brasil.
Conforme resultados, todas as instituições apresentaram ações denominadas de inclusão digital ou correlatas, podendo ser agrupadas em quatro segmentos: ações de conectividade para contratação de serviço de internet fixa ou móvel; ações direcionadas à aquisição de equipamento de tecnologia de informação e comunicação (TIC) e tecnologia assistiva; ações voltadas para a oferta de espaço adequado com segurança sanitária e condições de conectividade para os discentes; oferta de cursos de manuseio das tecnologias digitais, conforme tabela a seguir:
As ações relacionadas à contratação de serviço de internet receberam as mais variadas denominações: auxílio inclusão digital, auxílio emergencial de inclusão digital, auxílio internet,auxílio inclusão digital - acesso à internet, entre outras, e estiveram presentes em 60% das instituições pesquisadas. Por meio delas, foram ofertados recursos financeiros para custear despesas com internet de tipo fixa ou móvel (via satélite, rádio, fibra óptica, dados móveis). Os valores variaram de R$55,00 a R$230,00 mensais.
Apenas a Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) implementou uma ação diretamente voltada para a aquisição de internet rural. Para tanto, foi lançado um edital específico para contemplar estudantes residentes em localidades da zona rural e/ou comunidades tradicionais, onde não existia disponibilidade de rede de dados móveis. Conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua de 2019, os dados referentes ao funcionamento de serviço de rede móvel celular no domicílio da área rural se apresenta substancialmente inferior quando comparado à área urbana (IBGE, 2019). É importante pensar a particularidade das áreas rurais, visto que, normalmente, são locais de difícil acesso e possuem uma oferta de serviço de internet bastante limitada e onerosa.
As ações direcionadas à oferta de equipamentos de tecnologia de informação e comunicação (TIC) foram implementadas em 100% das instituições pesquisadas e aglutinaram uma variedade de ações referentes à doação, empréstimo, concessão de recurso financeiro para aquisição de equipamento mediante compra, conserto, manutenção ou melhorias de aparelhos eletrônicos já existentes. As instituições nomearam essas iniciativas de Auxílio Instrumental, Auxílio à Inclusão Digital – Recurso Tecnológico de Informação e Comunicação, Auxílio de Inclusão Digital - modalidade equipamento, dentre outras.
Algumas instituições realizaram a doação de dispositivos móveis como tablet para garantia da conectividade dos discentes, a exemplo da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), do Instituto Federal do Ceará (IFCE) e do Instituto Federal de Alagoas (IFAL). Já a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), o Instituto Federal da Bahia (IFBA), o Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), o Instituto Federal de Alagoas (IFAL) e o Instituto Federal de Sergipe (IFS) realizaram o empréstimo de equipamentos comotablet e/ou notebook. Todavia, a compra de equipamento para a doação ou para cessão temporária demanda o cumprimento de uma série de exigências burocráticas relativas ao processo licitatório e/ou ao patrimônio que foram incompatíveis com a urgência das instituições em implementar as medidas de conectividade indispensáveis para a execução do ensino remoto. Por isso, não foram estratégias largamente adotadas pelas IFES e IFs.
Já os editais de concessão de auxílio financeiro para a aquisição de equipamento mediante compra de aparelhos eletrônicos como notebook, tablet, computador, smartphones, desktop, chrome books foram recorrentes na maioria das instituições pesquisadas, atingindo 84% delas. Algumas instituições como a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e o Instituto Federal da Bahia (IFBA) permitiram a utilização do recurso para conserto, manutenção ou melhoramento dos equipamentos que os estudantes já possuíam, bem como a compra de acessórios como mouse, teclado, caixa acústica, etc. Nesta modalidade de auxílio instrumental, os valores variaram de R$300,00 a R$1700,00 pagos em até três parcelas.
Destaca-se aqui a particularidade da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) e da Universidade Federal do Piauí (UFPI) ao oferecerem uma modalidade de auxílio exclusivo para estudantes com deficiência (física, intelectual, auditiva, visual e transtornos do espectro autista), permitindo a aquisição de equipamentos de tecnologia assistiva, que são fundamentais para a aprendizagem e inclusão social/digital deste público específico. Sobre tecnologia assistiva, Maurício et al. (2020, p. 200) explica:
A tecnologia assistiva está relacionada, exclusivamente, a produtos, equipamentos e dispositivos de acessibilidade que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social.
No que diz respeito às ações voltadas para a oferta de espaço adequado com segurança sanitária e condições de conectividade para os discentes acessarem às atividades remotas, destaca-se uma iniciativa que se revelou inovadora: o “Projeto Tenda Virtual”. Vinculada à Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE) da UFBA, a proposta teve a finalidade de ofertar espaços propícios, considerando a segurança sanitária no contexto da pandemia do COVID-19, com equipamentos para acesso à internet, para estudantes que estivessem regularmente matriculadas/os na instituição. O projeto ainda mobilizou estudantes colaboradores da área de saúde para atuarem no desenvolvimento das ações mediante recebimento de bolsa.
Tal ação é relevante porque muitos estudantes não possuem local adequado para estudar em suas casas, devido ao fato de morarem em residências pequenas, com famílias numerosas ou extensas, podendo ter relação com o baixo poder aquisitivo. Dados da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES apontaram que 0,7% dos estudantes universitários brasileiros estavam sem nenhuma renda em 2018, fazendo parte do universo de 70,2% de estudantes com renda per capita de até 1 salário-mínimo e meio. Em relação à região Nordeste, a pesquisa mostrou que, de três a cada dez estudantes, ou seja, 28,2% possuíam renda mensal bruta do grupo familiar na faixa de 1 a 2 salários-mínimos (ANDIFES, 2019). Análise de dados do IBGE realizada por Ferrario e Cunha (2012) mostra que as famílias mais numerosas são as que possuem, em média, a menor renda per capita. Percebe-se que o perfil socioeconômico dos estudantes universitários está diretamente relacionado à falta de estrutura nos domicílios para o desempenho de atividades acadêmicas em formato remoto.
Por fim, temos a ação de inclusão digital mediante a oferta de curso de manuseio de tecnologias ofertado pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Durante a pandemia, o Centro de Inclusão Digital (CID), vinculado à Pró-Reitoria Estudantil (PROEST), em parceria com uma empresa multinacional de serviços de internet, ofereceu um treinamento básico em Google Cloud, com o objetivo de capacitar estudantes para o mercado de trabalho na condição de “Analistas de Nuvem nível Jr.” ou para realizarem estágio em áreas de Tecnologia da Informação (TI) que possuem sistemas e informações em nuvem pública. A ação beneficiou 250 estudantes distribuídos pelos três campi da instituição.
Além das ações acima citadas, observamos também a implementação do “Projeto Alunos Conectados” do Ministério da Educação (MEC) em todas as 26 instituições pesquisadas - IFES e IFs. O projeto distribuiu chips para acesso à internet, através da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), com pacote de dados móveis de até 40gb mensais, a alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica e matriculados em instituições de ensino da rede federal. Teve como objetivo "contribuir para democratizar o acesso à educação, impulsionar a inclusão digital e diminuir as desigualdades no acesso a Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC)” (RNP, 2021). Esta ação, de cunho nacional, foi também relatada em pesquisas realizadas em universidades de outras regiões (MAURÍCIO et al, 2020).
O acesso às diversas modalidades de auxílios financeiros e outras ações de inclusão digital, em todas a instituições pesquisadas, obedeceram ao critério da condição de vulnerabilidades socioeconômica estabelecida pelo PNAES, o qual destaca a prioridade de atendimento para os estudantes com renda per capita familiar de até um salário-mínimo e meio (BRASIL, 2010). Também foi possível identificar outros critérios de acesso que variaram de acordo com a instituição, tais como: estar matriculado no período letivo especial, excepcional, suplementar (entre outras denominações); já ser atendido pelos programas da assistência estudantil; estar cadastrado nas pró-reitorias estudantis ou correlatas; ser estudante com deficiência; responder a formulário/levantamento das condições de acesso a recursos remotos; residir em localidades da zona rural e/ou comunidades tradicionais; ter ingressado na instituição pela lei de cotas de renda; ser proveniente de escola pública.
Em relação ao financiamento das ações de inclusão digital, destaca-se que a principal fonte de recursos foi o orçamento da Assistência Estudantil que beneficia universidades e institutos federais (Ação 2994 - Assistência aos Estudantes das Instituições Federais de Educação Profissional e Tecnológica e Ação 4002 - Assistência ao Estudante de Ensino Superior). Mas, também, houve complementação de recurso por parte das reitorias e dos campi através do remanejamento do orçamento de custeio.
É importante destacar que a implementação de ações voltadas à inclusão digital aconteceu em meio à ofensiva ultraconservadora do governo federal em relação às universidades públicas que vêm sofrendo um duplo ataque: ideológico e econômico. O primeiro devido à desqualificação da ciência, do pensamento crítico/criativo e defesa da neutralidade axiológica na produção do conhecimento (LIMA, 2021). E o segundo, por meio da retaliação financeira às universidades públicas e institutos federais através do bloqueio de 30% do orçamento das IES por dois anos consecutivos, associado ao estímulo à mercantilização/privatização da educação superior com o programa Future-se, cuja ideia central é que as instituições “[...] devem ser refuncionalizadas como organizações de serviços para que possam iniciar o seu autofinanciamento [...]” (LEHER, 2019, p. 31) através da captação de recursos nas bolsas de valores.
Em sua maioria, as iniciativas denominadas de inclusão digital, executadas pelas instituições federais de ensino superior e profissional, tiveram como canal de acesso aos editais de seleção a própria internet. No atual contexto de isolamento social, apesar de ter sido uma estratégia importante de divulgação, ao nosso ver, revela-se como alternativa contraditória, pois objetivava beneficiar justamente discentes com perfil de vulnerabilidade socioeconômica e com limitações de acesso aos recursos tecnológicos. Logo, é possível que uma parcela deste público tenha continuado desassistida mesmo com a implementação de várias ações.
Tal fato está associado ao caráter improvisado com o qual o ensino remoto foi implementado nas instituições, de modo a ignorar as desigualdades sociais no ambiente acadêmico e sem considerar a necessidade de adequação do trabalho docente e técnico-administrativo à excepcionalidade do contexto pandêmico. Argumentando especificamente sobre as práticas pedagógicas adotadas no ensino remoto emergencial, Leite e Leite (2020, p. 67) constataram em sua pesquisa que o discurso dos docentes envolvidos nesta modalidade de ensino era de medo de não dominar as Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação (TDTIC), “[...] tornando suas aulas, práticas improvisadas e desinteressantes, em algumas situações ridicularizadas”. Nessa direção, concordamos com Farage (2021, p. 56) ao afirmar que:
[...] a adesão ao ERE, independentemente do nome que tenha recebido em cada IES, se deu de forma autoritária, desrespeitando as instâncias democráticas da instituição, como os conselhos superiores, sem nenhum diálogo com as entidades representativas, como sindicato docente, de técnico-administrativos e diretório central dos estudantes, bem como sem debate com os docentes via departamentos e colegiados de cursos. A imposição por parte dos gestores sequer considerou questões materiais, como a possibilidade de acesso e condição de manejo das tecnologias por parte de docentes e discentes, assim como o MEC, que inicialmente não demonstrou nenhuma preocupação sobre as condições de trabalho remoto, de acesso à tecnologia por docentes e discentes e nem sobre as condições de saúde.
De maneira geral, é possível dizer que as iniciativas denominadas de inclusão digital desenvolvidas pelas IFES e IFs, durante a pandemia da COVID-19, tiveram como objetivo viabilizar a continuidade das atividades acadêmicas por meios digitais, dada a necessidade de adoção do ERE. Ao mesmo tempo, essas iniciativas sugerem repensar a relevância dessas ações no contexto ensino, bem como eixo dentro do PNAES, pois, como veremos logo adiante, pareceu incipiente nas IFES e IFs antes da pandemia.
A inclusão digital faz parte do PNAES, sendo apontada como área a ser desenvolvida nas IFES e IFs, de modo que possa facilitar o processo de inclusão e permanência no ensino superior. No entanto, conforme observamos no levantamento, poucas instituições, antes da pandemia, desenvolviam ações com a proposta de inclusão digital, como observado na tabela 2, sugerindo ser uma área pouco explorada pelas IFES e IFs junto ao seu corpo discente:
Do total de 26 instituições, apenas cinco universidades desenvolviam ações com foco na inclusão digital antes da conjuntura da pandemia do novo coronavírus, com relevância para os anos de 2017, 2018 e de 2019, períodos em que essas ações passaram a ser implementadas. Apenas uma universidade, a UFAL, demonstrou histórico mais remoto da atividade, com curso realizado em 2009, proposta que antecede a implementação do Decreto 7.234, de 2010. Conforme a UFAL, no ano de 2009 foi oferecido, em Maceió, um curso básico de noções de informática para bolsistas permanência para quatro turmas (cada turma com 20 vagas). Esse curso efetivou-se a partir da inauguração do CID nas unidades em Maceió e Polos Penedo, Palmeira dos Índios e Viçosa.
Mesmo não tendo sido localizadas ações específicas, identificamos que o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe (IFS) incluiu em sua política de assistência estudantil a inclusão digital como uma ação universal do Programa de Acompanhamento e Assistência ao Estudante. As ações universais abarcam “(...) projetos, auxílios financeiros e bolsas que independem da situação de vulnerabilidade socioeconômica” (IFS, 2017, p. 15). O documento ainda define inclusão digital como “[...] o processo de democratização do acesso às tecnologias de informação de modo a permitir a inserção de todos na sociedade da informação [...]” (IFS, 2017, p. 21). Embora consideremos fundamental a demarcação na política, observa-se a necessidade de avanços nas ações institucionais de inclusão digital.
Destaca-se também a iniciativa da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) por se tratar de uma ação que não ficou restrita ao setor de assistência estudantil, mas sim a um conjunto de pró-reitorias (Pró-reitoria de Administração e Planejamento, Pró-reitoria de Gestão Acadêmica e Pró-reitoria de Sustentabilidade e Integração Social). Além disso, é relevante pontuar que em 2019, período anterior à pandemia, a assistência estudantil fortaleceu a inclusão digital de estudantes com deficiência via adaptação da Política de Cessão de Notebooks da universidade com a criação de fluxo institucional específico para empréstimos.
Os dados apontaram que, além das poucas ações implementadas, essas eram cronologicamente recentes. Tal realidade sugere que as ações denominadas de inclusão digital foram de fato impulsionadas pela pandemia da COVID-19, mesmo existindo demanda estudantil conforme nos apresentou pesquisas do Fonaprace realizadas em 1997 e 2003/2004. Esta constatação pode estar relacionada ao modo como o Pnaes vem se materializando nas IFES e IFs brasileiras, uma vez que vem se apresentando de modo focalizado com ações voltadas, mais especificamente, para as áreas de moradia, alimentação e transporte (SANTOS et al, 2015; LEITE, 2015; GOMES; OLIVEIRA, 2019).
Nessa direção, destacamos a necessidade de investimentos, não apenas financeiros, mas, também, das equipes das IFES e IFs em face da inclusão digital, através de pesquisas das necessidades do corpo discente, articulação com setores específicos internos e externos às instituições e planejamento adequado, além de discussões e reflexões constantes sobre a inclusão digital e social no ensino superior, possuindo como componente a pandemia e as ações nela desenvolvidas. Mas, podemos dizer que as ações desenvolvidas, mormente na pandemia, conseguiram incluir digitalmente? Conseguimos alcançar a inclusão digital?
Mais acima foi apontado pelo IFS que inclusão digital se trata do “[...] processo de democratização do acesso às tecnologias de informação de modo a permitir a inserção de todos na sociedade da informação [...]” (IFS, 2017, p. 21). Difere do conceito apresentado por Alonso, Ferneda e Santana, (2010, p. 156) que aponta a inclusão digital como “ações que buscam inserir o cidadão por meio do aprendizado, oferecendo-lhes as habilidades necessárias para manipular a tecnologia de acesso à informação”. Trata-se, portanto, de uma espécie de "alfabetização digital” (YOUNG, 2006) de modo que não basta apenas o acesso às tecnologias, tal qual apontado pela IFs, pois não garantem a adoção e uso mais equitativo dos recursos on-line disponíveis (SENNE et al, 2020).
Respaldado nas ideias de Elizabeth Rondelli, professora da Universidade do Rio de Janeiro, Young (2006, p.97) aponta os quatro passos necessários para a inclusão digital:
1 – permitir acesso, em rede, às “tecnologias da informação e do conhecimento” (TICs); 2 – criar oportunidades para que os aprendizados feitos a partir dos suportes técnicos digitais possam ser empregados no cotidiano da vida e do trabalho; 3 – criar um “ambiente institucional” propício à inclusão digital, com empresas, governos e sociedade civil organizada discutindo e propondo novas formas de utilização dos recursos tecnológicos; 4 – buscar constantemente a inovação para produzir e fazer circular a informação e o conhecimento, modos diferentes dos tradicionais que estamos acostumados a ter acesso ou freqüentar.
Considerando as etapas mencionadas, podemos afirmar que as IFES e IFs, mormente durante a pandemia, focaram seus esforços na primeira etapa, uma vez que observamos a priorização do debate e posterior investimento nos usos das TICs, bem como nas dificuldades de acesso dos discentes à internet. Parece ter ficado distante outros fatores cruciais para o ERE, como por exemplo a existência de um lugar/ambiente propício não só para o estudo, mas também onde os docentes pudessem preparar e ministrar as aulas. Porém, esse lugar/ambiente é quase inexistente para muitos estudantes que, quase sempre, não dispõem de um local reservado em suas casas onde possam acessar as aulas remotas e tão pouco dispõem, por conta das condições socioeconômicas familiares, de outros meios necessários para garantir o mínimo de conforto durante as aulas, como cadeiras ou mesas e principalmente a falta de privacidade.
Nessa direção, concordamos com Demo (2020) quando aponta que, em se tratando da esfera pública, o acesso é mais complexo, uma vez que “muitas famílias não têm acesso nenhum ao mundo digital; outras teriam algum acesso, mas quase sempre inepto para armar ambientes digitais de aprendizagem” (DEMO, 2020, p. 10). Segundo dados do IBGE, em 2019, 43,0% dos estudantes da rede pública acessaram a internet pelo computador e 64,8% tinham telefone móvel para uso pessoal, enquanto na rede privada esses valores se apresentaram mais expressivos: 81, 8% e 92,6% (IBGE, 2019).
Com isso não queremos dizer que a oferta de dispositivos de acesso como notebooks, chips, iniciativas tomadas pelas IFES e IFs não foram necessárias. Elas continuam sendo, haja vista o contexto de desigualdade brasileiro, acirrado na pandemia da COVID-19, demanda principal nos setores da assistência estudantil nas IFES e IFs. No entanto, as instituições federais de educação precisam avançar no que se refere à inclusão digital em sua dimensão total, ou seja, tal qual seu conceito representa.
Para que ele ocorra, ainda neste período de pandemia, e quiçá depois dele, Gusso et al (2020, p. 7) nos apresentam um caminho que segundo eles é complexo, mas que “viabiliza melhores condições de trabalho e de ensino, garantindo o atendimento do papel do Ensino Superior na sociedade”. Nesse caminho, dois aspectos devem ser considerados: o primeiro deles se refere ao acesso à internet; o segundo “diz respeito ao repertório dos estudantes para estudo em ambiente virtual, o que exige deles maior grau de autonomia e sofisticação em habilidades acadêmicas, como leitura e escrita, bem como no uso de recursos digitais”. Desafios que se apresentam às IFES e IFs, mormente em um cenário de contingenciamentos e descredibilização do ensino superior público federal como já apontado.
Buscou-se refletir sobre as ações de inclusão digital desenvolvidas pelas IFES e IFs antes e durante a pandemia da COVID-19, tendo como fundamento um levantamento realizado nos sites das 26 instituições federais de educação do Nordeste brasileiro, no período de setembro de 2020 a janeiro de 2021. De modo geral, observou-se que, no atual contexto de pandemia, a implementação do ERE nas instituições federais de educação aumentou a demanda por ações de “inclusão digital”, ocasionando a discussão de ações específicas voltadas para estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, por parte de gestores e profissionais.
Conforme pesquisa realizada, propostas diversas denominadas de inclusão digital ou correlatas foram implementadas por todas as instituições, principalmente, após o segundo semestre de 2020, podendo ser agrupadas em quatro segmentos: ações de conectividade para contratação de serviço de internet fixa ou móvel; ações direcionadas à aquisição de equipamento de tecnologia de informação (TI); ações voltadas para a oferta de espaço adequado com segurança sanitária e condições de conectividade para os discentes; oferta de cursos de manuseio das tecnologias digitais.
No entanto, tal intensificação de ações não foi observada antes da pandemia. Mesmo em se tratando de uma das dez áreas do PNAES, apenas cinco instituições apresentaram ações denominadas de inclusão digital, o que pode estar relacionado ao modo com a Política de Assistência Estudantil vem se materializando nas IFES e IFs, através de ações focais voltadas para auxílios financeiros diversos. Assim, é possível dizer que a pandemia impulsionou o desenvolvimento de ações denominadas de inclusão digital, mas não necessariamente foram realizadas ações de inclusão digital, tal qual seu conceito denota.
Para que a inclusão digital ocorra, destaca-se a importância em garantir o acesso à internet, proposta realizada por muitas IFES e IFs durante ERE, e, principalmente, ampliar o repertório dos estudantes para estudo em ambiente virtual. Desafios que se apresentam às IFES e IFs, mormente em um cenário de contingenciamentos e descredibilização do ensino superior público federal como já apontado.
É importante destacar que, mesmo em face do contexto de acirramento das desigualdades apresentadas pela pandemia, intensificado pelos cortes nas políticas públicas realizados pelo atual governo, não podemos deixar de considerar a inegável importância que as ações institucionais, encabeçadas majoritariamente pelos setores de assistência estudantil nas IFES e IFs, tiveram e têm tido na garantia dos meios mínimos para a retomada do ensino por meio remoto.