Artigos - Dossiê Temático
A NOVA CEPAL: projetos de desenvolvimento e o neoestruturalismo na América Latina pós-2008
A NOVA CEPAL: projetos de desenvolvimento e o neoestruturalismo na América Latina pós-2008
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 1, pp. 62-82, 2022
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 13 Agosto 2021
Aprobación: 20 Mayo 2022
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar o projeto desenvolvimentista da Cepal em suas diferentes fases, focando nos seus postulados acerca do papel do Estado e em desdobramentos sobre as políticas públicas. Com base no materialismo histórico, realiza uma pesquisa teórica que procurou reconstruir a trajetória política-intelectual cepalina desde sua criação no pós-guerra até a redução de sua influência nos anos de 1980 diante da ascensão do neoliberalismo na América Latina. Por meio de análise documental, evidencia as mudanças e permanências dos fundamentos teóricos que orientam suas propostas, especialmente pós-1980, quando a Cepal opera uma inflexão teórico-metodológica para o neoestruturalismo. Discute, por fim, o deslocamento do conceito de equidade para o de igualdade como um eixo operativo essencial da atual estratégia cepalina.
Palavras-chave: Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), Políticas públicas, Desenvolvimento, Políticas sociais.
Abstract: The aim of this article is to analyze ECLAC’s developmental project in its three different phases, focusing on its premises about the State’s role and its consequences on public policies. Based on the historical materialism, theoretical research has sought to retrace the political-intellectual path of ECLAC since its creation in the post-war until the reduction of its influence in the 1980s with the neoliberalist ascension in Latin America. Through a documental analysis, change and permanence of theoretical fundamentals is highlighted, managing its proposals, mainly after 1980, when ECLAC adopts a theoretical methodological change to the neostructuralism. Finally, it discusses the conceptual displacement from equity to equality as an essential operational axis of ECLAC’s current strategy.
Keywords: Economic Commission for Latin America and the Caribbean (ECLAC), Public policies, Development, Social policies.
1 INTRODUÇÃO
Em 2015, na Conferência Rio + 20 das Nações Unidas, foram traçados os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) cujo objetivo é o de orientar as políticas globais nos próximos anos. Referem-se a um conjunto de metas para redução da pobreza, promoção social e proteção ao meio ambiente a serem alcançadas até 2030. Essa agenda orienta o plano de desenvolvimento de muitos países, diretamente, por seus representantes de governo, ou indiretamente, por meio dos Organismos Internacionais. No continente latino-americano, a Comissão Econômica Para a América Latina e o Caribe (CEPAL), criada em 1948, foi fundamental na formulação e difusão de ideias desenvolvimentistas ao longo do século XX, e hoje continua a ser um polo difusor e orientador de políticas públicas.
Nos anos 60, os precursores da teoria marxista da dependência (TMD) (MARINI, 1990; BAMBIRRA, 2013) teceram fundamentadas críticas às teses cepalinas para a suposta superação do subdesenvolvimento que, como a história mostrou, longe de atender às demandas populares, alimentou um projeto de modernização amalgamando interesses das oligarquias agroexportadoras e da burguesia. Desde o final daquele século, porém, a Comissão passou por profundas transformações que impactaram sua concepção de desenvolvimento e, consequentemente, suas propostas para alcançá-lo.
Sessenta anos depois, a Cepal volta a assumir o destaque na região ao coordenar esforços de planejamento para o “novo” desenvolvimento, que agora aparece adjetiva do como “sustentável”. Não por acaso, vemos coetaneamente o crescimento do interesse pelo resgate crítico da TMD no Brasil (CARCANHOLO, 2008; 2013; BICHIR, 2018)
Este artigo resulta de uma pesquisa teórica bibliográfica e documental em que se analisa os principais documentos de organizações multilaterais da América Latina (CEPAL, BID, OREALC/Unesco), procurando identificar as mudanças nos conceitos estruturantes das novas propostas de desenvolvimento para a região, bem como os novos slogans e o que revelam sobre as mudanças nas políticas públicas direcionadas à “questão social” para as próximas décadas.
O presente trabalho elege como objetivo discutir, com apoio de autores fundadores da TMD (MARINI, 1990;2012; BAMBIRRA, 2013) e analistas contemporâneos (CASTELO, 2013; BICHIR, 2018; CARCANHOLO, 2008; LIRA, 2018), a proposta desenvolvimentista da Cepal ao longo de suas diferentes fases, com foco no papel do Estado e nos desdobramentos sobre as políticas públicas. Fundamentados no materialismo histórico, realizamos a análise documental concomitantemente com uma reconstrução da trajetória política-intelectual da Cepal, desde sua criação no pós-guerra, passando por seu período régio ao longo das décadas seguintes, até a redução de sua influência a partir dos anos de 1980 diante da ascensão do neoliberalismo no continente. Nessa empreitada lançamos mão de fontes primárias e secundárias. Dentre as primárias, coletamos dados da página web e analisamos os seguintes documentos da Cepal: Transformação produtiva com Equidade (1990); Educação e Conhecimento: eixo da transformação produtiva com equidade (1992); A Hora da Igualdade: brechas por fechar, caminhos por abrir (2010); Mudança Estrutural para a Igualdade: uma visão integrada de desenvolvimento (2012); Pactos para la igualdad: Hacia un futuro sostenible (2014) e Horizontes 2030: A igualdade no centro do desenvolvimento sustentável (2016). Muitas informações foram obtidas de fontes secundárias, especialmente na revisão bibliográfica sobre a CEPAL (ALBUQUERQUE, 2017; MORAES; IBRAHIM; MORAIS, 2020; BIELSCHOWSKY,2018; 2020).
Tomando esses documentos como empiria, buscamos alcançar sua concretude, compreender os motivos que os levam a serem produzidos. Orientamo-nos pelos pressupostos metodológicos do materialismo histórico-dialético entendendo que as proposições contidas nos documentos da Cepal derivam de determinações históricas que devem ser apreendidas no movimento da pesquisa, posto que não estão imediatamente dadas na documentação. Um dos grandes desafios do método, segundo Evangelista e Shiroma (2019, p.90) é o de “explicitar o que o discurso dominante esconde sob sua aparência de verdade”. As autoras observam que
[...] a política em sua concretude não pode ser apreendida imediatamente na documentação. Necessitamos das mediações da teoria, da intelecção, da disciplina intelectual, da reflexão para que possamos ultrapassar os fenômenos, descolarmo-nos de sua aparência imediata para conhecê-los em suas determinações, isto é, alcançar sua essência” (EVANGELISTA; SHIROMA, 2019, p. 94)
Refazer, por meio dos documentos, o caminho de construção das propostas da Cepal foi importante para compreendermos as mudanças e permanências dos fundamentos teóricos que orientam a Comissão, principalmente pós-1980, quando opera uma inflexão teórico-metodológica para o chamado neoestruturalismo, e a nova versão que este assume após a crise de 2008.
Este artigo está organizado em cinco partes. A introdução oferece uma aproximação ao tema e aos objetivos, metodologia e fontes da pesquisa. A segunda parte aborda a criação da Cepal no pós-guerra, e suas proposições embasadas no estruturalismo que norteou a construção de suas propostas de nacional-desenvolvimentismo para a região na década de 1950. A terceira parte aborda o período de ascensão do neoliberalismo na América Latina e as transformações no papel do Estado sob a égide do Consenso de Washington. Na quarta parte, abordam-se as intensas mudanças na última quadra do século XX, marcada pela reestruturação produtiva, avanço das políticas de corte neoliberal, reformas administrativas e políticas que propiciam a emergência da Nova Cepal. A quinta parte discute o fundamento epistemológico neoestruturalista da Nova Cepal pós-crise de 2008, procurando evidenciar a estratégia cepalina que atualiza seu projeto de Mudança Estrutural Produtiva conjugando com o discurso da igualdade no centro do desenvolvimento. E, por fim, apresentam-se as considerações finais.
2 CEPAL: estruturalismo clássico e nacional-desenvolvimentismo
Ao fim da Segunda Guerra Mundial tornou-se imperativa a necessidade da criação de órgãos multilaterais globais de organização de políticas articuladas para lidar com a crise global do capitalismo e as consequências das lutas de libertação nacional em África e Ásia no contexto do início da Guerra Fria. O que se configurava era uma conjuntura de instabilidade econômica, política e social. Em 1948 foi criada a Cepal com o propósito de difundir uma teoria do desenvolvimento para a América Latina. A partir de 1949, com a entrada de Raúl Prebisch, a Comissão passou a desenvolver uma linha teórica que se posicionava criticamente à ortodoxia liberal clássica e neoclássica, o que constitui sua principal contribuição para entender as condições econômicas e sociais dos países latino-americanos. Pautada numa concepção metodológica-científica histórico-estruturalista, a Cepal construiu sua análise em torno da tese do desenvolvimento mundial desigual (CEPAL, 1949).
A contribuição de Prebisch nesta formulação foi fundamental, pois foi ele quem introduziu a noção de centro e periferia do sistema capitalista apoiado nas críticas à teoria ricardiana das “vantagens comparativas” nas trocas internacionais. Nesse corpo teórico de referência, a Cepal constatou uma tendência à deterioração dos termos de trocas entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos e que, portanto, a especificação produtiva decorrente das vantagens comparativas não seria positiva. A produção industrial e tecnológica dos países desenvolvidos possibilita um progresso técnico dinâmico que incorporado à produção permitia poupar trabalho. A relevância econômica da indústria e a organização dos trabalhadores deste setor para reivindicar melhores salários nos países centrais confluía para que esse avanço técnico não redundasse em desemprego massivo e nem em redução dos salários. Esse processo corrobora a tese de que o aumento da composição de capital não implica uma redução dos preços de mercado, ao contrário, possibilita, por um período, a produção de mais valia extraordinária (MARX, 1987). Nos países periféricos, por outro lado, a estrutura produtiva agroexportadora não possuía na década de 1950 tal dinamismo tecnológico, além de uma classe trabalhadora menos organizada. Essa situação, fruto do desenvolvimento histórico da região, conduziu a uma oferta demasiada de força de trabalho nos setores exportadores e, portanto, a uma redução dos salários e, junto dela, a redução dos preços (CARCANHOLO, 2008) viabilizando, no comércio internacional, a troca desigual (MARINI, 1973).
Essa troca desigual entre os países periféricos e os países centrais implica uma transferência de valor da periferia, que recebe cada vez menos por suas mercadorias e precisa produzir cada vez mais valor a ser enviado para o centro, que recebe cada vez mais pelo que produz. Essa dinâmica própria do comércio internacional, calcada na divisão internacional do trabalho construída sobre o princípio das vantagens comparativas, aprofundou o subdesenvolvimento da periferia (CEPAL, 1949). A partir dessa análise, a Comissão passa a elaborar suas propostas de política econômica para o desenvolvimento propondo a industrialização dos países subdesenvolvidos por meio da “substituição de importações”. É uma estratégia que visa a internalização produtiva de bens até então importados, levando à diversificação produtiva, geração de empregos e aumento de salários. Os principais atores sociais situados no centro dessa proposta foram, essencialmente, a burguesia nacional, detentora de parte do capital a ser investido na expansão produtiva, e o Estado que se torna empreendedor e coordenador da política industrial, além de detentor da outra parte desse capital (MORAES; IBRAHIM, MORAIS, 2020). Considerando que a burguesia nacional dos países latino-americanos não dispunha, à época, de capital suficiente para promover a industrialização sozinha, o Estado assumiu um papel primordial na atração de capitais e direcionamento dos investimentos aos setores estratégicos.
A proposta cepalina clássica foi extremamente original para o seu período histórico, oferecendo novas respostas para velhos problemas, e também colocou novas perguntas e novos problemas. Sua formulação estruturalista que articula o reconhecimento das desigualdades entre os países com uma política de industrialização deu corpo ao “nacional-desenvolvimentismo” que impactou fortemente os países latino-americanos no século XX, com desdobramentos até os dias atuais. Contudo, reconhecer a importância fundamental da contribuição cepalina para o continente não significa isentá-la de críticas. Desde o seu surgimento, a teoria cepalina sofreu muitos questionamentos pelo pensamento crítico latino-americano,
[...] seja porque desenvolvimento e subdesenvolvimento seriam tratados apenas por uma diferenciação quantitativa, não percebidos como uma relação dialética de oposição e unidade, seja porque a concepção de Estado fosse neutra, como se estivesse fora da sociedade, alheio às contradições de classe, e possuísse uma racionalidade própria, ou ainda porque a industrialização não resolveria os problemas do subdesenvolvimento e da dependência, apenas conferindo-lhes outras formas de manifestação (CARCANHOLO, 2008, p. 135).
O estruturalismo clássico da Cepal constituiu uma força teórica que influenciou grandes pensadores do continente, como Celso Furtado e Aníbal Pinto, impactando diretamente a formulação de políticas desenvolvimentistas nos países da região. A força deste pensamento foi se dirimindo a partir de 1970 com a intensa crise do capitalismo.
Marini (1973) caracteriza a especificidade da formação econômica dos países da América Latina pelo processo de dependência e de superexploração em decorrência do intercâmbio desigual e transferência dos valores gerados nos países dependentes para os países dominantes. Na síntese de Lira (2018, p. 908), a superexploração nas economias dependentes permitiria produzir uma mais valia extraordinária que
[...] viabiliza que a mais-valia produzida nesses países seja apropriada no centro, o que implica na transferência de valor, da periferia para o centro. E que isso somente é possível, sem que se inviabilize o processo de acumulação de capital nas economias dependentes, se usado o recurso da superexploração da força de trabalho como a única forma de elevar a taxa de mais-valia internamente. Trata-se de uma forma particular que a América Latina desenvolve para reverter sua perda de lucro na relação de dependência com o mundo, o que implica aumentar os gastos com a força de trabalho ou elevar a taxa de mais valia através de arrocho salarial e/ou aumento da jornada e intensidade do trabalho. O resultado é uma violenta e exacerbada exploração da força de trabalho.
A conjuntura dos anos 70, com os efeitos da crise do petróleo e a crise da dívida na América Latina, deixou evidente que mesmo após investimentos e políticas pró-industrialização, o subdesenvolvimento e a heterogeneidade estrutural não foram superados na periferia; ao contrário, aprofundaram a heteronomia econômica, ideológica e cultural (FERNANDES, 2008).
Frente à crise estrutural do capital que se exacerbava, o nacional-desenvolvimentismo deixou de oferecer as respostas necessárias às burguesias locais e imperialistas para assegurar a acumulação capitalista. Articula-se a isso, o efervescente contexto sociopolítico dos anos 60 dos países do continente, subsumidos em ou recém-saídos de ditaduras empresarial-militares, e as intensas transformações técnico-científicas que ocorriam no mundo, como o avanço na área da informática, comunicações e microeletrônica. Essa revolução técnico-científica (SANTOS, 2019) possibilitou a descentralização da produção pelo planeta ao lado da vultuosa concentração e centralização de capitais, com o crescimento das multinacionais. Para o mundo globalizado, que despertava para a nova etapa do capitalismo de hegemonia do capital financeiro, e para os novos problemas que emergiram com as crises econômica, política e social, o estruturalismo cepalino deixou de ter utilidade em sua forma clássica.
No contexto da finança mundializada (CHESNAIS, 2005), o capital precisava garantir as suas condições de valorização e a saída proposta pelo capital-imperialismo (FONTES, 2010) foi o resgate das formulações teóricas do “neoliberalismo” ortodoxo1.
3 NEOLIBERALISMO: Consenso de Washington e o Estado
Com o acirramento da crise de superprodução de capital ao final da década de 1960, o capital precisava garantir as suas condições de valorização, o que tornou insustentável a opção pelo keynesianismo. Entre os principais postulados surgidos nesse período, encontramos um almejado “retorno” à uma economia de livre mercado idealizada e a consequente necessidade de se operar uma completa liberalização comercial, econômica, financeira, cambial e da concorrência em todos os países, o que permitiria a troca livre entre os agentes econômicos do mundo globalizado.
Os postulados neoliberais condensados no Consenso de Washington indicavam, em 1989, recomendações às economias subdesenvolvidas para atingirem o equilíbrio fiscal e se ajustarem ao novo estágio do capitalismo mundial. Dentre as principais medidas propugnadas, estavam a privatização de empresas e serviços estatais, a flexibilização das legislações trabalhistas, as aberturas econômicas, financeiras e comerciais e a redução do gasto público nas áreas sociais, com a reordenação do Estado para priorizar a busca pelo equilíbrio macroeconômico. Os efeitos dessas medidas foram, em termos de desenvolvimento econômico e social, pífios e desastrosos. Os índices de crescimento dos países latino-americanos na vigência das políticas neoliberais não atingiram sequer o patamar por eles alcançados na década de 1960. Além disso, as consequências sociais das políticas de liberalização e privatização foram perversas: retrocesso nos direitos sociais e à organização dos trabalhadores, escalada do desemprego, precarização e informalização do trabalho, aumento da desigualdade e pobreza em todo o continente (SANTOS, 2019).
As noções de “Estado mínimo” e “retirada do Estado” associadas ao neoliberalismo, mesmo na literatura crítica, dificultaram a compreensão do fenômeno que emergia: vimos, na verdade, “um Estado forte para garantir a economia de mercado” (BURGINSKI, 2018, p. 408). Nessa perspectiva, entendemos que não houve “redução” do Estado, mas uma reconfiguração, deslocando parte significativa do financiamento das áreas sociais, e interferindo diretamente na economia, por meio de legislações, regulações e operações para assegurar as condições sociais de reprodução do capital. O Estado não se ausentou; esteve sempre muito presente e ativo impulsionando os movimentos de privatização e terceirização dos serviços públicos facilitando a captura do fundo público pelo capital portador de juros (SILVA, 2012; BEHRING, 2012).
4 A “NOVA CEPAL”: uma coleção de velhos “neos”
A ascensão do neoliberalismo significou o declínio do desenvolvimentismo como paradigma econômico hegemônico e da corrente nacional-desenvolvimentista que ganhara adeptos tanto à direita quanto à esquerda. O contexto mundial dos anos de 1980, com o exemplo “alternativo” de industrialização e desenvolvimento associados dos Tigres Asiáticos confluiu para apontar o esgotamento da teoria cepalina e do modelo de substituição de importações. A Cepal, naquela década, passava por um movimento de revisão teórica e, com as teses de Fernando Fajnzylber, começou a desenhar uma mudança de direção nas proposições para o desenvolvimento sem, contudo, assumir um abandono do método histórico-estruturalista. Fajnzylber situava o pensamento estruturalista como crítico ao neoliberalismo emergente ao mesmo tempo em que se opunha ao modelo de desenvolvimento defendido pela CEPAL até então. Mantinha, nesse sentido, a defesa do Estado como agente importante para o desenvolvimento, mas recomendava reformas liberalizantes e a política macroeconômica para um equilíbrio fiscal como centrais para o novo período (CEPAL, 1990).
As reformulações iniciadas nos anos de 1980, com a entrada de Fajnzylber na Comissão, apareceram sistematizadas nos documentos “Transformación Productiva con Equidad” (CEPAL, 1990) e “Educación y Conocimiento: eje de la transformación productiva con equidad (CEPAL, 1992) que representam um marco a partir do qual a Cepal procurou se distanciar do estruturalismo clássico assumindo-se neoestruturalista. As principais diferenças que podemos ver nessa atualização do corpo teórico-analítico são: a relativização da noção de divisão mundial entre centro e periferia, ao apontar para a necessidade de maior integração e inserção das economias latino-americanas no comércio internacional; a centralidade atribuída à questão da equidade, evocando a função do Estado intervir para garantir os direitos sociais; o ajuste fiscal como peça chave para permitir o desenvolvimento; defesa das privatizações para “melhorar a eficiência” sem preocupação com a nacionalidade do capital privado a assumir as empresas, inclusive no campo dos serviços sociais (ALBUQUERQUE, 2017).
Um novo modelo de desenvolvimento Transformação Produtiva com Equidade (TPE) foi proposto, ressaltando a necessidade da abertura externa para aproveitamento das oportunidades do mercado internacional, bem como para a incorporação do progresso técnico em busca de competitividade. O desenvolvimento da periferia, nesse sentido, seria fruto de uma determinada estratégia do centro: garante-se, primordialmente, o equilíbrio macroeconômico necessário para prover a segurança dos agentes econômicos; fazem-se reformas liberalizantes, de desregulamentação dos mercados e privatização das estatais e, então, supostamente se atingiria uma ordem harmônica de retomada dos investimentos, com crescimento econômico e ações para distribuição de renda (CARCANHOLO, 2008).
Os teóricos cepalinos foram irredutíveis em justificar tratar-se de uma adaptação ao novo momento histórico mundial globalizado, alegando a construção de uma alternativa ao receituário do Consenso de Washington, apesar da incorporação de alguns postulados neoliberais:
Isso foi feito, destacadamente, nos casos da crítica da abertura financeira, da defesa enfática da agenda de políticas industriais, tecnológicas e de comércio exterior, da reorientação nas reformas dos sistemas de seguridade e dos desenhos de políticas sociais em diferentes áreas, e na questão da sustentabilidade ambiental. Além disso, e não menos importante, foi feito no plano das recomendações na área fiscal, simbolizado pelo conceito de ‘pacto fiscal’ (CEPAL, 1998), numa abordagem que busca conciliar as demandas sociais com a saúde fiscal e o equilíbrio macroeconômico, em condições de amadurecimento das práticas democráticas (BIELSCHOWSKY, 2020, p. 19).
Contudo, segundo autores mais críticos (BURGINSKI, 2018; CARCANHOLO, 2008), a Cepal se aclimatou ao neoliberalismo, e não buscou oferecer uma alternativa a ele. Em essência, não se contrapôs ao neoliberalismo, mas propôs diferentes caminhos para a execução da agenda neoliberal. Como revela em seus documentos ao adotar a expressão “reforma das reformas”, a Cepal apontou para diferentes ferramentas táticas, consideradas não ortodoxas, para implementar a agenda ortodoxa do neoliberalismo, apresentando, assim, uma proposta alternativa para administrar e gerenciar as reformas na região. A Cepal abandonou o seu posicionamento crítico ao conservadorismo e buscou ocupar um espaço específico dentro do próprio pensamento ortodoxo liberal. Dessa forma, manteve intacto o núcleo central das reformas neoliberais, mas no plano operacional abriu brechas para algumas formulações neokeynesianas, para se pensar uma intervenção específica do Estado vista pelos neoliberais como legítima (BURGINSKI, 2018) e, também, neodesenvolvimentistas que enxergam na integração ao mercado internacional a via de um desenvolvimento nacional associado (XAVIER, 1990). O significado dessa abertura à heterodoxia é desvendado na síntese certeira de Burginski:
Para garantir a supremacia, o capital não pode abrir mão das condições sociopolíticas para sua reprodução ampliada que não se limita apenas à esfera da política econômica, mas, sobretudo, através da reconfiguração das políticas sociais direcionadas à reconstrução do consenso, atendendo algumas necessidades mais urgentes no tocante às frações mais pauperizadas da classe trabalhadora. Essas formulações não retroagem à agenda contra reformista, mas recorrem a técnicas interventoras do Estado para gerir as crises, fazendo concessões parciais e limitadas, transformando o combate à pobreza em meta prioritária ao desenvolvimento e veiculada a um dever moral. No centro do redirecionamento dessas formulações ideológicas está a supremacia neoliberal, com o objetivo de aproximar as economias ao ideal preconizado pelo mercado (BURGINSKI, 2018, p. 413, sem grifos no original).
Este “neoestruturalismo de primeira fase” (ALBUQUERQUE, 2017), surgido nos anos 90, sofreu poucas modificações na primeira década dos anos 2000. Entretanto, constata-se uma nova inflexão cepalina com os acontecimentos da crise mundial de 2008, lida pela CEPAL como crise essencialmente financeira. A Comissão continua se reivindicando neoestruturalista, porém em uma “segunda fase”, alterando significativamente seu corpo teórico-analítico e incorporando conceitos que definem os contornos de um novo modelo de desenvolvimento.
5 NEOESTRUTURALISMO DA NOVA CEPAL PÓS-2008
O alvorecer do século XXI foi marcado pelo aprofundamento das contradições, o crescimento dos índices de desemprego, subemprego, desigualdade e, como consequência, irrompem movimentos dos excluídos – sem-terra, sem teto, sem salário, sem direitos – aos quais se somaram as lutas étnico-raciais, feminista e de emancipação sexual. Em meio a essa efervescente conjuntura política, eclode, ao final da primeira década do novo século, a maior crise econômica global desde os anos de 1970.
O ano de 2008 foi um divisor de águas no novo século: demonstrou com clareza ímpar a ingovernabilidade do capital e a inviabilidade do desenvolvimento diante do neoliberalismo ortodoxo adotado. O montante do capital fictício em circulação excedia sobremaneira o lastro de capital real nos bancos estadunidenses. A bancarrota do Lehman Brothers desencadeou um efeito dominó que colocou todo o setor financeiro em crise, o que, dada a integração com os demais setores da economia, implicou numa crise generalizada e de impactos mundiais profundos. Os efeitos mais desastrosos foram sentidos nas economias dependentes.
Foi também em 2008 que Alícia Bárcena foi eleita Secretária Executiva da Cepal e passou a articular mudanças que, a partir de 2010, evidenciam uma radicalização, no plano do discurso, das colocações cepalinas contrárias à financeirização e à liberalização absoluta e irregrada da economia. Esse novíssimo período da Nova Cepal pode ter seu início situado em 2010, com a publicação do documento “A hora da igualdade: Brechas por fechar, caminhos por abrir” (CEPAL, 2010). Nele, a Comissão afirma que vivemos uma crise industrial, financeira e “de época” que necessita de transformações urgentes (CEPAL, 2010, p. 15). Argumenta que o novo cenário requer menores taxas de crescimento econômico mundial, um novo papel das economias emergentes, desaceleração dos fluxos comerciais, menor transnacionalização financeira a partir dos países do norte e a transição para economias com menores emissões de carbono (CEPAL, 2010, p. 23-29). Ressaltam que esse novo cenário exige novos atores: o Estado é reiteradamente colocado no centro das preocupações devendo, na ótica da Cepal, assumir um perfil mais ativo e regulador (CEPAL, 2010, p. 216-217). Para além do Estado, alertam para a necessidade de uma nova arquitetura financeira global, uma reformulação do multilateralismo internacional que garanta uma liderança mundial “democrática” e comprometida com as mudanças necessárias (CEPAL, 2010, p. 29). Este novo momento da Cepal se expressa também em outras duas publicações: “Mudança estrutural para a Igualdade: uma visão integrada de desenvolvimento” (2012) e “Pactos para a Igualdade: rumo a um futuro sustentável” (2014). Esses três documentos, resultados dos 33º, 34º e 35º períodos de Sessões da Cepal, são por ela referidos como a “trilogia da igualdade”, e apresentam as bases essenciais sobre as quais se assenta a nova proposta de desenvolvimento cepalina.
Nos tópicos subsequentes, analisamos dois aspectos centrais das formulações cepalinas característicos dessa novíssima fase: a centralidade da categoria de “igualdade” e a Mudança Estrutural Produtiva para a Igualdade, a atualização de seu projeto de desenvolvimento.
5. 1 A igualdade no centro do desenvolvimento
Ao longo de sua história, a Cepal construiu elaborações abrangendo a distribuição de renda e a dimensão social do desenvolvimento. Nas décadas de 1990 e 2000, o conceito escolhido pela Comissão para expressar o tratamento da “questão social” no processo de desenvolvimento era o de “equidade”, conforme elaborado e difundido por Fajnzylber (CEPAL, 1990). Aquela noção de equidade exprimia, de um lado, os valores democráticos defendidos por uma sociedade burguesa que preconiza direitos iguais aos seus cidadãos e, de outro, mantinha proximidade com a ideologia neoliberal entendendo a “desigualdade como um valor positivo” (BURGINSKI, 2018). Contudo, o caráter da busca pela equidade dentro do escopo maior da proposta de desenvolvimento da Cepal revelava uma concepção compensatória no setor social (CARCANHOLO, 2008). Isto é, ao Estado caberia compensar as falhas e ausências do mercado onde ele não consegue garantir o acesso aos serviços básicos e condições de vida e de renda suficientes para a sobrevivência. Apesar da equidade ser apresentada como objetivo do desenvolvimento, os meios para atingi-la continuavam sendo aqueles que geram, na dinâmica neoliberal e do livre mercado, a perpetuação e o aprofundamento da desigualdade.
O documento de 2010 indica, já no título, a mudança de paradigma na análise da questão social: “A hora da igualdade”. Constatamos, então, que a noção de “equidade” foi substituída pela de “igualdade”, o que não é, a nosso ver, uma questão semântica de menor importância. A introdução daquele documento revela a centralidade dessa categoria ao afirmar que “é preciso crescer para igualar, e igualar para crescer” (CEPAL, 2010, p. 12). O desafio é compreender o que significa essa mudança em termos concretos para as formulações cepalinas. O que essa troca de categorias revela sobre a estratégia de desenvolvimento da Cepal? Argumentamos que, mais do que mera finalidade discursiva, as palavras e conceitos utilizados são escolhidos por responderem a necessidades e interesses práticos daqueles que os adotam. Se houve uma mudança conceitual, ela implica em mudança de entendimentos, leituras da realidade e/ou nas soluções que oferecem aos países da região. Objetivamos, portanto, compreender por que tal mudança importa para a Cepal, e no que ela impacta e modifica suas propostas de políticas.
A diferença central que distingue a produção pautada na “equidade” da atual produção referenciada na “igualdade” está em que a igualdade pressupõe uma perspectiva universal de direitos (CEPAL, 2010). Por mais que a equidade não divergisse tanto desse sentido na ótica da Cepal (2010), seus aportes teóricos não permitiram tomá-la como centro das políticas sociais da Comissão, e nem conseguiu articular as demais políticas para o desenvolvimento com essa noção. A igualdade, por outro lado, vem acompanhada de diferentes instrumentos teóricos para compreensão da desigualdade em suas múltiplas dimensões e expressões na América Latina. Novos indicadores dessa desigualdade são exemplos de alterações analíticas que acompanham o novo conceito. Dessa forma, a igualdade se torna, necessariamente, uma igualdade de direitos multidimensional: “Também significa avançar rumo a maior igualdade em termos de acesso, sobretudo em campos como a educação, a saúde, o emprego, a habitação, os serviços básicos, a qualidade ambiental e a seguridade social (CEPAL, 2010, p. 11).
Constatamos que a igualdade foi tomada como uma categoria articuladora da atual proposição teórica cepalina. Entendida como meio e como fim, permite não só que a Cepal assuma para si as tarefas de propor políticas econômicas, mas abre caminho, também, a associar a elas uma política educacional, de saúde, de assistência social, de distribuição de renda, de cultura, de distribuição territorial nas cidades, de empoderamento feminino, e de n outros setores, supostamente acionados para se atingir a igualdade. Nessa direção, o desenvolvimento, nos termos cepalinos, abrange quatro dimensões: social, macroeconômica e financeira, produtiva e comercial e ambiental (BIELSCHOWSKY; TORRES, 2018). Para cada dimensão, existe uma análise específica, um corpo teórico e analítico próprio, com suas ênfases e propostas. Mas considerando que o desenvolvimento é um só, como articular essas diferentes dimensões num corpo teórico único e coerente? É a noção de “igualdade” que vai possibilitar isso. Em síntese, é pela igualdade que a Cepal, como organização desenvolvimentista, não fale só de política econômica, industrial e financeira, mas passe a versar também sobre educação, saúde, comunicação, governança, direitos sociais e trabalhistas, e sobre sustentabilidade (OLSKA, 2021).
Cabe destacar que, más allá del mérito de la inclinación ideológica que motivó el acento en la igualdad, el concepto resultó funcional a la articulación de las diferentes dimensiones del análisis del desarrollo al que la CEPAL se ha dedicado históricamente (BIELSCHOWSKY; TORRES, 2018, p. 41, sem grifos no original).
A igualdade é utilizada, portanto, como um conceito integrador das reformas propostas, uma vez que passam, todas elas, a se orientar para o mesmo fim – a conquista da igualdade. Elas são interligadas, complementares e necessárias como um corpo coeso de políticas sistêmicas. É, claro, uma estratégia discursiva de recorrer à igualdade como um slogan para criar consensos, mas principalmente visa dar legitimidade para o alargamento de sua atuação e influência para todas as áreas da vida social. D’Amico (2016, p.225) conclui que o “‘problema de la desigualdad’ constituye una nueva noción articuladora para orientar dichas intervenciones”. Especificamente sobre a Cepal, a autora acrescenta que a preocupação com o “desenvolvimento integrado permite resgatar uma
[...] unidad de encuentro entre la política económica y social, que el neoliberalismo había constituido como esferas separadas. Luego, como el modo de participación de los sujetos en la sociedad, cuyo objetivo queda planteado en términos de inclusión social” (D’AMICO, 2016, p. 230).
A autora chama a atenção para que, junto da igualdade, caminham as noções de “pobreza” e “desigualdade”. O reconhecimento da desigualdade e da pobreza como elementos da “questão social” é necessário. A Cepal assume que a desigualdade se manifesta não só no diferencial de renda, mas em variados âmbitos da vida socioeconômica e cultural, caracterizando o que a Comissão chama de “enfoque multidimensional da desigualdade”. Para a Comissão, essas desigualdades decorreriam da heterogeneidade estrutural da América Latina e do Caribe, isto é, de sua pouca diversificação produtiva e sua dependência em empregos pouco qualificados (BIELSCHOWSKY; TORRES, 2018).
Segundo D’Amico (2016), a pobreza foi perdendo centralidade enquanto conceito da “questão social” no final dos anos de 1990 na formulação das organizações internacionais porque esse enfoque para as políticas sociais não teria trazido os resultados esperados. Obviamente, isso não quer dizer que a categoria deixou de ter importância nas análises de tais órgãos. Nos documentos cepalinos, a pobreza também é entendida sob um enfoque multidimensional, relacionada não só com renda, mas com acesso a componentes essenciais do bem-estar. Entre os elementos utilizados para mensurar a pobreza estão a privação à terra e moradia, à água e saneamento, energia, acesso a bens duráveis, carências educativas, desemprego e mais indicadores (BIELSCHOWSKY; TORRES, 2018). Percebe-se, até aqui, a ênfase dada à igualdade dirigida aos direitos e garantia de acesso a componentes de bem-estar - educação, saúde, trabalho, proteção social, entre outros. Por oposição, a desigualdade seria a privação desses direitos:
La igualdad de derechos es, para la CEPAL, el eje primordial de la igualdad y se refiere a la plena titularidad de los derechos económicos, sociales y culturales como horizonte normativo y práctico para todas las personas (sin distinción de sexo, raza, etnia, edad, religión, origen, situación socioeconómica u otra condición) y a la inclusión de todos los ciudadanos y ciudadanas en la dinámica del desarrollo, lo que implica una efectiva pertenencia a la sociedad (“ciudadanía social”). En sentido contrario, la desigualdad se manifiesta en que no todos los individuos pueden ejercer plenamente sus derechos económicos, sociales y culturales y, por tanto, en la vulneración del principio de universalidad (BIELSCHOWSKY; TORRES, 2018, p. 239).
Como conclusão, a situação daqueles que não podem exercer plenamente seus direitos é entendida como sendo de pobreza. Pobre é, para a Cepal, a pessoa que não tem acesso a direitos básicos. Em outras palavras, a pobreza está intimamente relacionada à impossibilidade de “participação plena” na sociedade. Aqueles que vivem em situação de pobreza não poderiam participar integralmente da chamada “sociedade do conhecimento”. A concepção de “participação” aqui merece atenção. Entende-se, nessa concepção, o “pobre” como elemento externo à sociedade capitalista, como se para fazer parte da sociedade fosse necessário atender a alguns critérios. Essa noção também está presente quando se fala em “inclusão social”. Essa visão dicotômica da realidade tenta ocultar, embora acabe por revelar, que parte expressiva da humanidade se encontra incluída nas dinâmicas sociais, mas de modo precário e desumano, de acordo com a sua serventia para a sociedade do capital. Mas então, o que é, para a Cepal, “participar” da sociedade, ser “incluído” nela? Quais seriam esses “critérios” que permitem dividir a sociedade entre aqueles que participam e os que não participam, os incluídos e os não incluídos?
A conclusão a que se chega pela análise das principais publicações cepalinas do último período (CEPAL, 2010; 2012; 2014; 2016; 2018; BIELSCHOWSKY; TORRES, 2018) é a de que participar é consumir. Ter acesso a direitos significa a possibilidade efetiva de consumir bens e serviços. Ter acesso à educação corresponderia a consumir o “bem-educação”; ter acesso à saúde, seria consumir o “bem-saúde” e, em âmbito mais geral, se alguém participa da sociedade, é porque, em tese, pode consumir os bens, os direitos, oferecidos por ela. No fim, o enfoque em “direitos” reflete a extensão de uma lógica econômica essencialmente liberal para todas as esferas da vida social: quem não tem direitos, não está incluído na sociedade – mas pode vir a ser. Essa possibilidade estaria aberta a todos da base da pirâmide social, anunciando não mais a chance de ascensão e mobilidade social, mas a de “inclusão pelo consumo”.
Além disso, podemos apreender nas formulações da Cepal uma relação direta de “combate à pobreza” com o “desenvolvimento” não restrito à sua dimensão social. Desse modo, a igualdade também se torna um imperativo econômico. Se a política desenvolvimentista atual é pautada em uma industrialização de novo tipo, também será preciso pensar na contrapartida pelo lado do consumo: se não houver possibilidade de expansão do consumo, não haverá incremento produtivo-industrial. “Combater a pobreza” significa que mais pessoas terão acesso a uma maior possibilidade de consumir, mesmo que para tanto precisarão vender sua força de trabalho. O maior consumo conduziria a um aumento da demanda por produtos e bens em geral. É o “círculo virtuoso” abrangendo crescimento, desenvolvimento e políticas sociais2 que a CEPAL almeja, agora, pela ideologia da igualdade. Tal guinada teórico-política expressa um movimento de conversão da ideia de igualdade como fim para igualdade como meio.
5. 2 Mudança Estrutural Produtiva para a Igualdade (MEPI): atualização do projeto
A avaliação da Cepal é de que o modelo de desenvolvimento que vem sendo promovido é insustentável em diversos sentidos. Entramos numa época de mudanças aceleradas em que as contradições desse modelo, antes latentes, vêm à tona e precisam ser superadas (CEPAL, 2016). Ela se refere ao modelo neoliberal de desenvolvimento, baseado na exploração predatória dos recursos humanos e naturais, na financeirização desregulada da economia e na marginalização de segmentos sociais. Como vimos, a primeira proposta de desenvolvimento que o neoestruturalismo formulou, a Transformação Produtiva com Equidade (TPE), é um projeto de nova industrialização associada ao mercado internacional com políticas sociais de caráter compensatório que vigorou até 2010. Nossa leitura é de que a crise de 2008 impulsionou uma reformulação na estratégia, a partir da adoção da “igualdade” como eixo central, junto de diversas outras mudanças analíticas e políticas decorrentes da nova leitura do mundo, conforme expressa no documento “A Hora da Igualdade” (CEPAL, 2010) onde a Comissão apresenta como projeto a Mudança Estrutural Produtiva para a Igualdade (MEPI).
O movimento produzido com a MEPI é um distanciamento da TPE, com a manutenção de alguns de seus pressupostos. Um deles é entender a industrialização como fundamental para o desenvolvimento, mas não reduzir o segundo à primeira. Apenas industrializar não é suficiente, seria esperada uma posição ativa do Estado para distribuir os ganhos do crescimento para a sociedade. Como principal diferença, destaca-se a análise das questões político-sociais que colocam no centro do debate tópicos como a desigualdade e a “cultura do privilégio” (MORAES; IBRAHIM; MORAIS, 2020).
Albuquerque (2017) identifica os pilares da nova proposta Cepalina em: (i) equilíbrio macroeconômico; (ii) convergência produtiva para diminuir os desníveis de produtividade; e (iii) Estado como dinamizador do desenvolvimento, fomentador do crescimento econômico e fornecedor de bens públicos. De acordo com o autor, nessa nova fase, o papel do Estado na economia e na sociedade é amplificado se comparado aos anos de 1990, “sem, no entanto, romper com muitos dos dogmas liberais que pautaram o pensamento cepalino depois da década de 1980” (ALBUQUERQUE, 2017, p. 10). Existe, portanto, um movimento contraditório entre um certo retorno ao passado do estruturalismo “clássico”, reativando a defesa de uma forte política industrial estatal, e a preservação de postulados neoliberais.
A Mudança Estrutural Produtiva para a Igualdade (MEPI) expressa uma grande inflexão da Cepal na orientação para a nova política industrializante dos países latino-americanos. Essa proposta parte da crítica à insuficiência da especialização produtiva nos moldes ricardianos que, para a Comissão, teria produzido a heterogeneidade estrutural e a brecha tecnológica vivida nos países da região. Em substituição à “eficiência ricardiana” (BIELSCHOWSKY; TORRES, 2018), propõe-se uma industrialização pautada em duas outras eficiências: keynesiana e schumpeteriana. Uma mudança estrutural produtiva que se oriente para a igualdade precisaria, dessa forma, buscar uma estrutura produtiva voltada à produção de bens de alto valor agregado que possam gerar inovações e um dinamismo tecnológico para diferentes setores da economia nacional (eficiência schumpeteriana), e para bens que garantam uma balança comercial sustentável, isto é, que responda às tendências da demanda interna e externa, priorizando bens e setores cuja procura se mostra crescente (eficiência keynesiana). Assim, para a Cepal, o setor produtivo poderia se tornar mais dinâmico, reduzindo a brecha tecnológica com os países centrais e aumentando a produtividade. Em 2016, o documento “Horizontes 2030: A igualdade no centro do desenvolvimento sustentável” procurou articular a proposta cepalina aos recém aprovados Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2015), adicionando um terceiro tipo de eficiência ao esquema, a eficiência ambiental, que diz respeito ao desenvolvimento prioritário de setores econômicos ligados à redução da emissão de carbono e à proteção do meio ambiente.
5. 3 Cepal hoje: neoliberalismo e construção do consenso
As alterações teórico-analíticas do corpo cepalino pós-2008 operaram uma guinada significativa no trato da questão multidimensional do desenvolvimento. Novos elementos, novas perspectivas, novos dados e formas de coletá-los e dimensioná-los integram essa nova etapa do método histórico-neoestruturalista.
Carcanholo (2008) argumenta que se pode entender a proposta cepalina dentro do pensamento neoliberal se considerarmos o fato de ela tomar como dadas as reformas liberalizantes e de abertura comercial e financeira. Ora, esse elemento continua intocado mesmo após as alterações pós-2010. O documento “A hora da igualdade” (2010) tece elogios à gestão macroeconômica neoliberal, principalmente pelo controle da inflação, e postula que um equilíbrio fiscal é o ponto de partida para o desenvolvimento. Por outro lado, apresenta diversas críticas à gestão ortodoxa das reformas, alegando que para haver desenvolvimento, não basta disciplina fiscal por si, uma vez que o mercado não gera desenvolvimento sozinho. Nessa leitura, seria preciso forte atuação estatal para que a entrada de capital financeiro no país se direcione para o setor produtivo, e não apenas para os setores especulativos da economia. Na avaliação da Cepal o problema que impediu um crescimento suficiente e um desenvolvimento adequado pós-1990 foi a liberalização econômica e financeira prematura, indiscriminada e mal sequenciada. Ou seja: para a Cepal, o problema não reside na liberalização em si, e sim na forma em que foi feita, que permitiu a reprodução e aprofundamento das falhas inerentes ao mercado que busca o lucro rápido e fácil. Volta-se, então, a uma culpabilização dos atores financeiros, sem criticar a dinâmica própria do mercado financeiro globalizado feito para funcionar desse modo. Sem se desvencilhar do Consenso de Washington, a Cepal busca encontrar soluções para as contradições do capitalismo monopolista e financeirizado nos mecanismos e ferramentas de regulação e controle do mercado de capitais. A essência daquilo que caracteriza o Consenso permanece inalterada.
Nesse sentido, pode-se situar a atual proposta cepalina no rol das ideologias pós-Consenso de Washington que buscam administrar de modo “alternativo” as reformas neoliberais, especialmente no campo das políticas sociais (CARCANHOLO, 2008). A filiação à ortodoxia é facilmente identificada quando se alega que a economia ideal para os países latino-americanos é uma economia de mercado, com abertura econômica, comercial e financeira, regida por uma macroeconomia que busque o equilíbrio e a disciplina fiscal, e construa suas intervenções sempre através de parcerias entre o público e o privado (CEPAL, 2010).
Atentar para o caráter discursivo é importante, ainda mais tendo em vista o objetivo de construção do consenso enunciado pela Comissão. As “descontinuidades” observadas em relação ao período anterior têm suas funções dentro desse quadro ideológico geral e não são fortuitas nem meramente discursivas. Levantar como bandeiras a igualdade, o empoderamento feminino, o combate à desigualdade multilateral, a política industrial, a renda básica universal e a extensão de serviços públicos, para citar alguns exemplos, parece colocar a Cepal em consonância com o interesse universal de todos. São slogans para convencer sobre o caráter progressista de propostas que buscam o “bem comum”. Na realidade, tais slogans funcionam como arma ideológica. Em primeiro lugar, confundem os reais interesses subjacentes às políticas que são, principalmente, o de garantir novas formas de acumulação de capital, seja por meio da produção industrial, do setor financeiro, ou dos serviços públicos que passam a ser providos, cada vez mais, por meio de parcerias com o privado. Em segundo lugar, procuram confundir e alienar a classe trabalhadora de suas bandeiras históricas de luta contra as opressões, a exploração e a destruição capitalistas. Tentam encapsular a luta necessariamente anticapitalista, antissistema e revolucionária num formato adequado para moldes institucionais de “reforma das reformas” da estrutura que gerou os próprios problemas que diz combater. Dessa forma, promove a cooptação de parte da classe trabalhadora e de intelectuais, desmobilizando-os e enfraquecendo a luta política.
O uso do termo “igualdade”, como envoltório dos documentos, esconde que o projeto neoliberal e suas diferentes formas de administração, incluindo a defendida pela Cepal, são projetos que mantêm intactos os interesses burgueses e servem inteiramente para atender às necessidades desta classe (OLSKA, 2021). A construção do consenso é estratégica, pois permite aglutinar forças sociais tanto das frações burguesas quanto dos trabalhadores, em torno de um objetivo, aparentemente, comum, em prol da almejada coesão social. No atual momento de crise e recrudescimento das lutas de classes, identificamos a produção cepalina como expressão do social-liberalismo (CASTELO, 2013) que alude à noção de igualdade para construir consensos promovendo, contraditoriamente, políticas sociais de interesse do capital.
5 CONCLUSÃO
Valemo-nos das contribuições dos pesquisadores que têm problematizado a ideologia do desenvolvimento para analisar os projetos de desenvolvimento da Cepal em suas distintas fases. Nos anos 80, a comissão desferiu leves críticas ao neoliberalismo, buscando formas alternativas de gerenciamento das consequências sociais das reformas e de regulação das supostas falhas do mercado. O desenvolvimento do pensamento neoestruturalista a partir de 1990 operou uma mudança significativa na Cepal, transformando-a em agente ideológica do neoliberalismo, mesmo empunhando a bandeira da igualdade em suas publicações do último período.
No atual estágio do capitalismo mundial, em que a crise estrutural mostra suas consequências mais lascivas, diferentes saídas para a sustentabilidade da acumulação capitalista são apontadas por diferentes frações da burguesia: as mais tradicionais apostam num recrudescimento das “democracias liberais” com nuances ditatoriais, e até apontando para a constituição de regimes autoritários; outras buscam a “terceira via” ou a “via 2 e meio” (Touraine apud CASTELO, 2013, p.301), com toques de justiça social que parecem ceder a pautas históricas da classe trabalhadora, como garantia de direitos humanos e, em especial, trabalhistas, defesa do meio-ambiente e conquista da emancipação feminina, mas mantendo as engrenagens fundamentais do sistema capital intocadas.
A proposta cepalina pós-2010 se insere nesse último rol de propostas burguesas. Sem arranhar a ordem vigente, propõe uma reforma das reformas que nutrem o capitalismo dependente na América Latina. Com um discurso recheado de slogans que visam educar o consenso, atuam aparentemente preocupados com a pobreza, mas efetivamente com a construção de consensos, impulsionando a agenda na região como operação de contrainsurgência (BICHIR, 2018). A produção teórica da Cepal, em torno da igualdade como centro da política da Agenda 2030, articula-se, a nosso ver, com os objetivos do desenvolvimento sustentável numa formulação ideológica alinhada com o grande capital monopolista e que visa a perpetuação, com alterações de forma, da situação de dependência dos países latino-americanos e caribenhos.
Com Wood (2011), conclui-se que o segredo último da produção capitalista é político. Combinação de interesses e ações da classe dominante com o Estado tornam possível a expropriação dos produtores, manutenção da propriedade privada e o controle da apropriação. Mais de 60 anos depois, vemos a atualidade e importância do resgate crítico da teoria marxista da dependência (TMD) que teceram críticas às teses cepalinas, demonstrando que não se tratava de criar as condições para uma superação do subdesenvolvimento para o estágio de desenvolvimento associado, mas que o essencial era a superação do modo de produção capitalista.
REFERÊNCIAS
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Notas