Artigos - Dossiê Temático

DEMOCRACIA DO BOATO: a era da pós-verdade e os desafios para a cidadania

Isis Maria da Graça Ferreira Santos
Universidade Federal Fluminense - UFF, Brasil
Arnaldo Provasi Lanzara
Universidade Estadual Paulista - UNESP, Brasil
Soraia Marcelino Vieira
Universidade Federal Fluminense - UFF, Brasil

DEMOCRACIA DO BOATO: a era da pós-verdade e os desafios para a cidadania

Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 1, pp. 115-132, 2022

Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 20 Diciembre 2021

Aprobación: 20 Mayo 2022

Resumo: O artigo analisa o valor da verdade nas sociedades pós-modernas e discute em que medida a verdade se torna abstrata ou de pouca importância. O estudo debate os desafios enfrentados pela cidadania e como os espaços públicos estão sendo ameaçados pelas novas tecnologias e mídias. Em tempos de desinformação, como a comunicação influencia o exercício da cidadania e, especificamente, o voto e a concretização de políticas públicas. A ignorância e a informação, unem-se a poderosas estruturas manipulativas radicadas em instrumentos tecnológicos. A “pós-verdade” surge como conceito curinga para compreender as dinâmicas que assolam as democracias.O estudo adota a pesquisa exploratória e bibliográfica, e conclui que é necessária a reflexão acerca de qual democracia se descortina e quais são os instrumentos democráticos capazes de se sobrepor à ausência de neutralidade e imparcialidade midiática.

Palavras-chave: Democracia, Pós-verdade, Comunicação, Cidadania, Desafios.

Abstract: This article analyzes the value of truth in postmodern societies and discusses how truth becomes abstract or of little importance. The study discusses the challenges faced by citizenship and how public spaces are being threatened by new technologies and media. In times of misinformation, how communication influences the exercise of citizenship and, specifically, the vote and the implementation of policies. Ignorance and information, are put together with powerful manipulative structures rooted in technological instruments. The "post-truth" emerges as the wildcard concept to understand the dynamics that plague democracies. The study is based in exploratory and bibliographic research and concludes that reflection is needed on what kind of democracy is unveiled and what are democratic instruments capable of overlooking the absence of neutrality and media impartiality.

Keywords: Democracy, Post-truth, Communication, Citizenship, Challenges.

1 INTRODUÇÃO

Tudo o que sabemos sobre a nossa sociedade e sobre o nosso mundo, como afirma Niklas Luhmann, sabemos através dos meios de comunicação [de massa] (LUHMANN, 2005). Mas sabemos também que as generalizações não abarcam a realidade em sua totalidade. Com o passar do tempo, os meios de comunicação tornaram-se um negócio de “audiências”, formados por grandes conglomerados e controlados por poucos, imersos em uma rede de poder que tem influência sobre as esferas política, econômica e social.

Com a transição, ao longo dos séculos XIX e XX, dos meios de comunicação tradicionais, aos meios como conhecemos hoje, com a existência de grandes grupos no controle, surge o seguinte questionamento: em que medida ainda é possível identificar a existência de um autêntico espaço público, minimamente assentado nas bases da teoria democrática tradicional?

A experiência histórica da democracia demonstra que esta representa um movimento calcado em mutações evolutivas. E não somente a democracia e suas instituições têm evoluído, mas também os sistemas que ameaçam e assumem novas formas, tornando o exercício da democracia ainda mais desafiador, como aponta Urbinati (2014) em seu livro Democracy Disfigured. Se por um lado, a concentração das fontes de informação no século XX, controladas por grandes corporações capitalistas, representou um enorme desafio para o acesso à informação de forma livre, no século XXI, com o advento da Internet e, especialmente das redes sociais digitais, as estruturas, não somente da democracia, mas da sociedade como um todo foram postas em xeque. Tudo passa a existir dentro da Internet Protocol, hiperconcentrada.

Conceitos como espaço público e privado tornam-se cada vez mais imbricados no espaço cibernético. A opinião pública confunde-se com a opinião publicada. Os novos meios de comunicação digitais existem em um espaço de transterritorialidade, de instantaneidade, onde a origem da informação tem pouca importância. A vida social passa a ser a vida digital e os processos eleitorais, parte significativa das democracias, migram para o atoleiro das mídias sociais, em busca de suas parcelas da conhecida “democracia de audiência” (MANIN, 1997).

Apesar do direito à livre expressão e das inúmeras fontes de informação, a democracia nunca esteve tão ameaçada como agora. As tecnologias abalaram a cultura, as artes, a música e as democracias não seriam exceção. Com a superabundância de informação e sofisticados mecanismos de manipulação, alguns autores sugerem estarmos vivendo a “era da desinformação” ou a “era da desrazão”.

Novas estratégias surgem, então, para vestir a mentira com a roupa da verdade. A pós-verdade, que será analisada neste artigo, seria uma espécie de “o que eu decido fazer com a verdade” ou então, acrescenta-se uma parcela de verdade na mentira central para que o assunto se torne mais crível. Essas estratégias incluem a descontextualização, insinuações, versões alternativas, montagens e recortes, rumores ou exagerações descabíveis, entre outras, como forma de manipulação.

Importantes temas para a democracia como os processos eleitorais e a formação das agendas de políticas públicas dependem de um instrumento: a informação. A pós-verdade, nesse sentido, representa um enorme desafio para o exercício da cidadania nas sociedades que pretendem viver a social-democracia. Não é de se surpreender ver nos noticiários resultados controversos em eleições ou políticas públicas trazidas à pauta não para atender interesses coletivos, mas como “bomba de fumaça” para crises políticas governamentais.

As novas mídias trabalham para pôr um fim: a racionalidade neoliberal, assujeitando e aprisionando os indivíduos em suas falsas liberdades e encorajando-os a exporem suas mazelas como se fossem virtudes. Na sociedade algorítmica não é necessário fazer escolhas, os dispositivos eletrônicos as fazem por nós. Assim, o presente artigo busca relacionar e debater como a comunicação, a verdade e a política, com base no fenômeno da pós-verdade, irão moldar os espaços públicos e como os cidadãos devem estar atentos a este sequestro da verdade na vida plataformizada.

Para realizar a pesquisa e apresentar respostas à questão proposta, foi utilizada a pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico de modo a sistematizar, por meio de referências teóricas, diferentes perspectivas sobre a temática apresentada. Assim, recorreu-se à revisão bibliográfica, consulta às reportagens a fim de observar como a temática é abordada por diferentes perspectivas

Dessa forma, no tocante ao referencial teórico, foram visitados autores como: Chauí (2017),Cesarino (2021), Chomsky (2014), Dahl (2001), Urbinati (2006), (2013a) e (2013b), (2014), Signates (2019) e Luhmann (2005).

Para se chegar ao momento atual, de descrença e desencanto coletivo, da proliferação dos meios de comunicação digitais sem rigor de conteúdo e do cidadão manifestante-virtual, faz-se necessário percorrer um breve, mas denso caminho sobre o peso e valor da verdade nas sociedades, perpassando as injunções político-midiáticas que se desenvolveram no século passado e chegando aos fenômenos mais recentes, em especial a partir de 2016, quando a tecnologia, as mídias digitais e a democracia selaram uma controversa e intrigante relação.

Este texto está organizado em duas seções, além desta introdução e da conclusão. Na primeira, é discutido sob o prisma histórico, como os principais temas deste artigo se relacionam e como conformam a comunicação política nos dias atuais. Na segunda seção é abordada a origem e o conceito do termo pós-verdade e de que forma a desinformação representa uma ameaça à cidadania, à existência dos espaços públicos e à formulação de políticas públicas sob a lógica do credo neoliberal.

2 VERDADE, COMUNICAÇÃO E POLÍTICA

Comunicação política e opinião pública parecem ter convergido em uma tênue similaridade. O fenômeno da opinião pública, cabe destacar, é sociológico, político e comunicativo. Surge no período do Iluminismo, quando o indivíduo passa a ser reconhecido pela sua razão e capacidade de exprimir ideias sobre si mesmo e sobre a vida pública. O fenômeno da opinião pública, portanto, nasce como instrumento da classe burguesa para fazer valer seus interesses.

No século XIX, com o rompante das democracias de massas e a inserção da classe trabalhadora no discurso político, a opinião pública ganha novos contornos, tal como a conhecemos hoje. A opinião pública deixa de ser a manifestação individual e passa a ser a soma de todas as opiniões, perdendo a unidade e ganhando as multidões.

Esse movimento confere um novo desafio para as democracias: sendo a opinião pública uma massa coletiva, qual seria a sua forma, onde estariam as suas bordas e de que substância ela é feita? Quem obtém essas respostas é capaz de influenciar e manipular o curso da história, como uma espécie de Nostradamus das democracias.

Entre os principais baluartes da democracia, figuram o pluralismo informativo, a garantia de acesso à informação, por meio de uma imprensa livre, a participação cidadã em debates político-sociais, a transparência pública e a possibilidade de revisão constante e aberta da democracia e da cidadania que se pretende alcançar.

Uma democracia em grande escala exige: 1. Funcionários eleitos; 2. Eleições livres, justas e frequentes; 3. Liberdade de expressão; 4. Fontes de informação diversificadas; 5. Autonomia para as associações; 6. Cidadania inclusiva. (DAHL, 2001, p. 99).

Nesse aspecto, Robert Dahl (2001), ao criar o conceito de poliarquias, afirma que a poliarquia plena depende de dois fatores: a participação política e a possibilidade de contestação do governo. Dahl, (2001, p. 104) descreve que “uma democracia poliárquica é um sistema político dotado das seis instituições democráticas”1.

As pautas e projetos políticos não são mais discutidos amplamente. Opta-se por um debate político em pequenas doses, desestruturado, com grande predileção ao interesse privado em detrimento do público, o que confere grande volatilidade às votações. As campanhas eleitorais unem-se às mídias digitais, ganhando um alcance inimaginável nesse quebra-cabeça.

É possível considerar, especificamente no caso brasileiro, que poucas vezes a população esteve tão informada, pelo menos em termos numéricos, e pôde aceder a tantas fontes de informação como no presente momento. Entretanto, essa mesma população parece sofrer do mesmo mal que o “cão de Baudelaire”2, que preferia o cheiro do lixo ao perfume sofisticado de seu dono, fazendo alusão à preferência por notícias falsas escabrosas à checagem dos fatos.

As agendas políticas perdem, assim, espaço para as publicações e “posts” nas mídias digitais que, assim como o fizeram os meios de comunicação tradicionais, passam a determinar a forma e a criação de cada conteúdo, bem como a manutenção de sua relevância. Lima (2001, p.191), observa que:

[...] a mídia atual, além de substituir os partidos políticos na função de principais mediadores entre os candidatos e os eleitores nas campanhas eleitorais, tem desempenhado outras funções que tradicionalmente eram atribuídas aos partidos, tais como: a) definir a agenda dos temas relevantes para a discussão na esfera pública, b) gerar e transmitir informações políticas, c) fiscalizar a ação das administrações públicas, d) exercer a crítica das políticas públicas, e, finalmente, e) canalizar as demandas da população junto ao governo.

É sabido que a “não-verdade” sempre fez parte das sociedades, em especial das arenas políticas, mas estamos diante de uma nova combinação sociopolítica. Se antes as mentiras circulavam de porta em porta nas vizinhanças, ou nos jornais locais, atualmente as falsas noticiais alcançaram o status da ubiquidade, da onipresença ou até mesmo o status de “informação-zumbi”3 (O'CONNOR, 2019), que permanece circulando de tempos em tempos mesmo depois de ser desmascarada.

Chauí (2014) traz um interessante conceito conhecido como “isegoria”, que seria o direito a nos expressarmos de forma livre nos espaços públicos, em debates democráticos de ideias e opiniões, onde estas poderiam ser aceitas, descontruídas ou refutadas.

A isegoria prevê uma parte central das democracias, que é a civilização do conflito. O conflito, como matéria-prima da democracia, deve ser organizado a fim de garantir os espaços de convivência e o cumprimento dos papéis societários dos diferentes atores e instituições. Todavia, à medida que o palco da democracia passa a ser a Internet, e observamos a paulatina desorganização do conflito – ocorrendo de forma espontânea ou arquitetada – quais são os riscos para a cidadania na era das democracias digitais? Sobre conflito e democracia vemos que: “[...] forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos” (CHAUÍ, 2017, p. 19).

Soma-se a esta instável arquitetura, a combinação do uso das mídias digitais e do Big Data, para se alcançar os objetivos políticos e interesses privados em grandes campanhas eleitorais. O exercício de cooptação de eleitores já não é feito à moda antiga e, sim, com um pesado maquinário que se utiliza de engenharia de sistemas e empresas de marketing e comunicação, que não estão mais interessadas em entregar panfletos e “santinhos”, oferecendo um produto totalmente novo e revolucionário, baseado nas “Psy-Op” (Psychological operations) – em tradução livre operações psicológicas.

As técnicas de operação psicológica, largamente utilizadas em guerras, seria uma espécie de arma secreta com a capacidade de influenciar o raciocínio crítico, o comportamento, os valores, as crenças e os medos dos indivíduos. Trazidas para a esfera política, as “Psy-Op”, representam uma manipulação jamais vista nos processos eleitorais.

Esse efeito de verdade, constitutivo da natureza comunicacional da pós-verdade, não representa propriamente uma novidade: o boato, a mentira, o engano e o autoengano sempre circularam dessa forma, tanto quanto, igualmente, as proposições verdadeiras, embora para estas possam ser reivindicados os fundamentos lógicos da filosofia e da ciência. Porém, a circulação dos elementos simbólicos atingiu, com a internet, dimensões muito mais vastas e preocupantes, o que motiva os estudiosos à denúncia e à busca de terapêuticas para as distorções provocadas pela desvinculação orgânica entre comunicação e verdade. (SIGNATES, 2019, p. 19).

A desinformação, por meio das fake-news – notícias falsas – não atinge somente os períodos eleitorais, por meio do incremento da polarização das sociedades. As pseudoverdades ou mentiras articuladas afetam o exercício da cidadania, o acesso às informações, ou até mesmo o direito à vida, se essa mentira for circulada em um período pandêmico.

As múltiplas fontes de informação e as variadas formas de comunicação e influência que os cidadãos ativam através da mídia, movimentos sociais e partidos políticos dão o tom da representação em uma sociedade democrática, ao tornar o social político. (URBINATI, 2006, p. 202).

Ao buscarmos o significado da palavra verdade nos dicionários, apresentam-se conceitos como “estar em conformidade com a realidade”, ou ainda “ater-se aos fatos ou a um evento real”. Os sinônimos desse conceito seriam substantivos como autenticidade, axioma ou sinceridade. Não causa estranhamento as definições sobre o termo, que talvez seja uma das primeiras palavras inseridas no vocabulário dos indivíduos e que irá acompanhá-lo por toda sua vida, pois a verdade é o que dá sentido à sua existência. Seja a busca da verdade interna ou externa.

Ao longo da história das civilizações, a “substância da verdade” foi tema recorrente, tanto no espectro social, como no político, religioso e econômico. Seria a verdade uma matéria mais próxima à razão ou mais afeta ao que nos parece ser mais fácil de acreditar?

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade, isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros..., os meios pelo qual cada um deles é sancionado, as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, p.12-13).

Nesse sentido, Signates (2019, p. 12) pontua que “a noção de verdade é, sem dúvida, a mais complexa e central no debate epistemológico em filosofia”. A relação entre a política e a verdade, ou entre política e a mentira são discussões que perpassam os séculos e as relações sociais, e este artigo certamente não poderia abarcar todo esse debate. Entretanto, um dos elos que conecta esses elementos, a comunicação, será analisada pelo prisma político, a fim de avançarmos para o momento atual e entendermos por que são indispensáveis as reflexões acerca de conspirações, “fake-news” e a era da desinformação.

[...] os diferentes tipos de verdade coexistem em regime de conflito, prevalecendo concepções mais rigorosas no meio acadêmico, enquanto que mecanismos pragmáticos de variado teor sobrevivem nos âmbitos do senso comum. Tais condições de verdade não podem ser menosprezadas, e sim devem ser compreendidas, a fim de que possam ser desenvolvidos tipos de dialogicidade que permitam, como previu Santos (2000), a construção paulatina de um ‘senso comum esclarecido’ (SIGNATES, 2019, p. 18).

Partindo de eventos não tão distantes, do início do século XX, verificamos o esboço do que seria uma primeira propaganda política, engendrada por Woodrow Wilson em sua campanha eleitoral, em plena Primeira Guerra Mundial. Seu objetivo, obviamente, era convencer o eleitorado de sua agenda política, marcadamente bélica. Aparentemente, a estratégia funcionou e sua candidatura converteu-se em eleição em 1916.

A celebre frase “I want you for U.S. Army” – em tradução livre “quero você no Exército dos EUA” – figurou em diversos cartazes no ano de 1917, como campanha massiva de alistamento e convencimento para que os Estados Unidos abandonassem sua neutralidade e entrassem na Guerra. Na época, o país investiu pesadamente em propaganda, por meio da atuação de seu Comitê de Informações Públicas.

A propaganda política avançava não somente na América, mas sobretudo na Europa, em campanhas de recrutamento, de convocação das mulheres às fábricas, de racionamento de comida e muitas outras formas de apelo e sensibilização em massa.

O incipiente exercício de imiscuir política, comunicação e propaganda governamental chamou a atenção de diversos atores políticos que começaram a utilizar-se da tática a fim de buscar o consenso [ou convencimento] das massas. Cabe destaque ao Ministério da Informação (MOI) na Grã-Bretanha e suas propagandas e campanhas massivas durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Essas propagandas possuíam slogans, panfletos, sátiras, músicas e todo tipo de técnica de persuasão a fim de combater o inimigo.

O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento) (ARENDT, 1989, p. 526).

O compromisso com a verdade era a estampa externa, mas os mesmos meios de comunicação que ajudaram a difundir o “Pânico Vermelho” ao final da Primeira Guerra, foram os que se regozijaram com o Exército Vermelho ao final da Segunda, pois, naquele momento, possuíam um inimigo em comum. Nesse sentido, as manipulações e o controle da opinião fabricada puderam ser vistos cada vez mais frequentemente.

[...] a propaganda política patrocinada pelo Estado, quando apoiada pelas classes instruídas e quando não existe espaço para contestá-la, pode ter consequências importantes. Foi uma lição aprendida por Hitler e por muitos outros e que tem sido adotada até os dias de hoje. (CHOMSKY, 2014, p. 6).

Os exemplos do estabelecimento do Ministério da Propaganda do Reich, em 1933, da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em 1939, no Governo Vargas, são emblemáticos nesse sentido e confirmam que de fato “a propaganda era a alma do negócio”.

Ao longo do século XX, os meios de comunicação de massa pautaram as discussões, a bipolaridade, as motivações para iniciar ou encerrar guerras, funcionando como margens balizadoras que conduziam a população a um deságue coletivo. A Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, e mais tarde a Guerra do Golfo, foram todas “vendidas” por meio de instrumentos sofisticados de comunicação e persuasão.

Os movimentos de independência dos países nesse mesmo século davam lugar a incipientes democracias que já nasciam embebidas pelo elixir da manipulação das massas. O controle da informação não era requisito exclusivo dos regimes totalitários, mas ferramenta amplamente utilizada nos governos democráticos. Chomsky (2014, p.8) destaca dois importantes elementos da democracia nesse sentido:

Ora, existem duas ‘funções’ numa democracia: a classe especializada, os homens responsáveis, assume a função executiva, o que significa que eles pensam, planejam e compreendem os interesses de todos. Depois, temos o rebanho desorientado, e ele também tem função na democracia. Sua função na democracia, dizia ele, é a de “espectador”, e não de participante da ação. Porém, por se tratar de uma democracia, esse rebanho ainda tem outra função: de vez em quando ele tem a permissão para transferir seu apoio a um ou outro membro da classe especializada. Em outras palavras, ele tem a permissão de dizer: ‘Queremos que você seja nosso líder’ [...].

Se a comunicação tem o poder de levar as nações à guerra e influenciar a política externa, certamente funcionaria em campanhas eleitorais nacionais. As campanhas eleitorais, utilizando-se do viés político dos meios de massa, elegeram candidatos com agendas que notadamente não eram favoráveis às políticas domésticas. É quase como se o eleitorado votasse em um candidato com a profunda esperança de que suas promessas não se cumprissem.

Segundo Gerstlé (1992), a comunicação política possui três dimensões básicas e distintas: a primeira seria a dimensão pragmática, onde se verifica a função da fala e do discurso e a preocupação com o que é dito e o que não pode ser dito. A segunda é identificada como a dimensão simbólica, em que são identificados os ritos, a retórica, a tecnicidade do comportamento e da fala, exprimindo simbolismos pessoais, partidários, institucionais, entre outros. A Terceira dimensão da comunicação política seria a dimensão estrutural e trata propriamente do canal em que são veiculadas e transmitidas as informações.

Como dizia Marshall McLuhan, em 1977, o meio é a mensagem. E esta frase nunca foi tão atual. A terceira dimensão da comunicação política, que destaca a dimensão estrutural é de suma importância para entendermos os fenômenos recentes experenciados nas democracias ao redor do mundo. No que tange a essa dimensão, Gerstlé (1992) compartimenta ainda mais o conceito, definindo a existência de quatro principais meios de comunicação na política que são os meios institucionais, organizacionais, midiáticos e, por fim, os interpessoais.

[...] A mais evidente demonstração do vínculo da pós-verdade com a comunicação é o que poderíamos denominar “efeito Goebbels”. Ao ministro da propaganda de Hitler atribui-se a frase: ‘Uma mentira dita mil vezes torna-se uma verdade’. Para além das interpretações conspiracionistas ou manipulacionistas dessa apreensão, parece-nos relevante acentuar que ‘dizer mil vezes’ constitui reiteração, sendo, pois, um modo comunicacional de circulação de uma mensagem qualquer. (SIGNATES, 2019, p. 19).

Com a utilização em larga escala da Internet, foi possível observar uma convergência e coexistência de todas as dimensões da comunicação política para um novo espaço: o cibernético, onde os sujeitos são afeitos à espetacularização da vida privada nas mídias, onde os bancos e o capital são inteiramente virtuais, onde as relações são individualizadas, onde o próprio conceito de sociedade é questionável. Na seção seguinte, serão abordados outros aspectos da ciber-vida.

3 PÓS-VERDADE E DEMOCRACIA: o que restou dos espaços públicos?

Em 2016, fatos marcantes moldaram o curso da história. E não por coincidência, neste mesmo ano, a “pós-verdade” foi eleita pelo Dicionário Oxford4 como a palavra do ano devido a sua ampla utilização. A Post-truth (pós-verdade), foi descrita na ocasião “como um adjetivo que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” (OXFORD, 2016, s/p).

No cenário da comunicação da pós-verdade, pessoas (principalmente políticos) dizem qualquer coisa que possa funcionar em uma determinada situação, seja o que for que possa gerar o resultado esperado, sem nenhuma preocupação com a valor de verdade, ou veracidade das afirmações. Se uma afirmação funciona, se o efeito desejado aconteceu, ela é boa; se fracassa, ela é ruim (ou pelo menos não vale a pena tentar de novo). (MCCOMINSKEY, 2017 apud SIGNATES, 2019, p. 18).

O Dicionário Oxford fez ainda um levantamento, constatando que o termo não é novo e que teria sido empregado, com o mesmo significado, em 1922, em um artigo de Steve Tsich que dizia “como povo livre, decidimos livremente que queremos viver em uma espécie de mundo da pós-verdade” (OXFORD, 2016, s/p), referindo-se à Primeira Guerra do Golfo. No ano de 2004, o termo reaparece em um livro denominado “The Post-truth Era” (A Era da Pós-Verdade), de autoria de Ralph Keyes.

A consolidação do conceito pós-verdade na arena política é de suma importância para entendermos as novas dinâmicas ocorridas nos países ditos democráticos. Nas democracias representativas, a autonomia e soberania popular são delegadas a representantes e instituições que governam em nome do povo. Assim, a vontade do povo passa a ser filtrada por uma densa malha até chegar aos centros de poder e decisão. A mídia é precisamente uma dessas camadas que filtra a opinião pública e, talvez, seja a mais densa de todas as camadas.

[...] desde que o povo é assumido como apenas um público visual que não tem nenhum papel no processo de decisão, o que só poucos têm, a partir deque momento ele passa a assistir? Ao excluir as pessoas de sua “capacidade de serem autoras de normas e leis” (direta ou indiretamente), faz-se com que a esfera pública desempenhe um papel meramente estético, que tem seu impacto mais por entreter do que controlar. O povo, na democracia ocular, não tem objetivo, ou, mais precisamente, não tem nenhum outro objetivo do que o próprio assistir. A diarquia da decisão e da opinião é o que faz com que as pessoas na democracia sejam atores controladores porque ela contempla uma comunicação estrutural entre representantes e representados. (URBINATI, 2013a, p. 15)

O “boom” da palavra pós-verdade ocorreu na esteira do referendo britânico sobre o Brexit – saída do Reino Unido da União Europeia – e das eleições norte-americanas protagonizadas por Donald Trump e Hillary Clinton, todos eventos de 2016. Algo havia mudado naquela circunstância. Que exagerações, montagens e falsas acusações faziam parte da política não era novidade, mas com as mídias digitais, especialmente com o Facebook e Twitter, as mentiras escabrosas atingiam um número sem fim de pessoas antes mesmo de ser possível checar sua veracidade. Como aponta Chomsky (2014, p. 21):

Essa é uma das grandes diferenças do impacto das informações veiculadas na mídia tradicional, que independente de ter viés ideológico, apresentam como característica a busca por informações “verídicas, do que é veiculado nas mídias sociais, caracterizadas por mensagens curtas, diretas e que chegam a milhões de pessoas em instantes e cuja veracidade, raramente, é um atributo. É atribuída a Mark Twain a frase que corrobora esse fenômeno: “uma mentira pode dar a volta ao mundo no mesmo tempo que a verdade leva para calçar seus sapatos.” [...] qualquer que seja a situação, a imagem do mundo que é apresentada à população tem apenas uma pálida relação com a realidade. A verdade dos fatos encontra-se enterrada debaixo de montanhas e montanhas de mentiras.

O risco para as democracias tornava-se iminente com a utilização dos meios digitais de forma deliberada para veiculação de notícias falsas, pois, como seria possível combater um leviatã que não possuía uma única identidade, mas múltiplas cabeças e braços? Em 2017, a ONU emitiu uma Declaração Conjunta – em tradução livre Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão, “Fake-News”, Propaganda e Desinformação – expressando grande preocupação com a crescente prevalência da desinformação nas mídias sociais, alimentada por atores estatais e não estatais.

Em seu uso atual, pós-verdade significa um estado em que a linguagem perde a referência aos fatos, verdade e realidade. Quando a linguagem não tem referência aos fatos, verdades ou realidades, ela torna-se puramente um meio estratégico. (MCCOMISKEY, 2017 apud SIGNATES, 2019, p. 17).

Se por um lado, a Internet e as mídias digitais democratizaram o conhecimento e o acesso à informação, por outro lado, as mídias sociais tornaram-se um elemento “pós-sinóptico”, atento a todos os movimentos, ações, comentários, curtidas, compartilhamentos, a fim de se extrair um novo e refinado produto desses meios: os dados digitais pessoais que, ao serem tratados e organizados, são uma infinita e poderosa fonte de controle e poder, como afirma Shoshana Zuboff (2021) em sua obra A Era do Capitalismo de Vigilância.

Segundo Zuboff (2021), a utilização massiva de algoritmos preditivos para influenciar o comportamento dos consumidores sugere a emergência de um novo “capitalismo de vigilância” cujo modus operandi é a extração e a comercialização extensiva de dados pessoais obtidos pelas grandes Big Techspor meio das plataformas digitais. Para Zuboff, a extração e o acúmulo de informações pessoais pelas empresas digitais constituem-se em nova matéria prima para a criação de um “mercado de dados”, cuja ausência de regulamentação torna as relações entre produtores e consumidores no espaço digital ainda mais assimétricas.

Em uma releitura dos termos originais (FOUCAULT, 1999), o “pós-sinóptico” seria não somente a combinação do panóptico5, onde muitos vigiam poucos, com o sinóptico6, onde poucos vigiam muitos, em um ambiente de monitoramento tecnológico. Mas sobretudo, um mundo que não está mais preocupado em disciplinar as almas, com a contenção de suas emoções e autovigilância, mas um mundo propenso às confissões coletivas, uma ciber-vida, em que quanto mais dados e informações pessoais são expostos, mais a máquina do “pós-sinóptico” é alimentada, podendo entregar a cada um, a mentira sob demanda, com base nas preferências, gostos e crenças pessoais. Ao acessar e circular pelo espaço “público” das mídias digitais, deixamos registrado nosso DNA cibernético.

Essa possibilidade foi avistada e utilizada em larga escala em campanhas eleitorais recentes. Os chamados “dark posts” são o exemplo dessas notícias sensibilizantes sob demanda, funcionando como publicações com mensagens hiperpersonalizadas que depois de um certo tempo desaparecem das mídias. O cidadão comum, ao acessar suas mídias, tem contato com uma informação aparentemente aleatória, mas que na verdade foi pensada e produzida especificamente para afetar sua percepção da realidade material, ou mais precisamente, sua percepção política.

Sendo o voto partidário, retrospectivo, político e radicado em uma memória, qual seria o impacto de estarmos sendo bombardeados com informações falsas sob medida a fim de controlar os processos políticos e o resultado das eleições? E mais, qual seria o impacto no resultado das eleições se essa máquina pós-sinóptica investisse em alcançar eleitores indecisos que não deixaram evidentes suas preferências políticas nas mídias? Certamente que, se existe uma ferramenta capaz de aliciar os indecisos de última hora, essa massa de leitores pode ser decisiva no curso do resultado das eleições “democráticas”7.

O escândalo envolvendo a Cambridge Analytica8 teve esse e outros tantos mecanismos de manipulação psicológica, utilizados em campanhas políticas. As empresas de marketing passam a, não somente analisar o perfil psicológico de clientes para que empresas sejam bem sucedidas em seus nichos, mas a atuar em prol de um ou outro candidato, aliando mineração de dados, Psy-Op, Dark Posts, Fake-News e a terra-sem-lei das redes sociais como canal de veiculação.

Mas por que a desinformação, as fake-news e a pós-verdade são tão cruciais nos espaços democráticos? No caso brasileiro, os desafios apresentados à democracia, oriundos da atuação dos meios de comunicação, não são recentes, mas sua construção histórica contribui para o entendimento do momento peculiar que vivemos. Estamos diante de um desafio duplo, verificado por um lado pelos oligopólios que controlam a mídia tradicional e por outro pela utilização das mídias digitais alienadoras em larga escala.

No caso do Brasil, o poderio econômico dos meios é inseparável da forma oligárquica do poder do Estado, produzindo um dos fenômenos mais contrários à democracia, qual seja, o que Alberto Dines chamou de “coronelismo eletrônico”, isto é, a forma privatizada das concessões públicas de canais de rádio e televisão, concedidos a parlamentares e lobbies privados, de tal maneira que aqueles que deveriam fiscalizar as concessões públicas se tornam concessionários privados, apropriando-se de um bem público para manter privilégios, monopolizando a comunicação e a informação. (CHAUÍ, 2017, p. 22).

O ativismo digital à brasileira não está imune aos tentáculos da pós-verdade. Segundo o Relatório de consumo das mídias digitais pelos países, elaborado pelo Reuters Institute (Digital News Report9 2020), no Brasil, no ano de 2020, pela primeira vez desde que a pesquisa foi implementada, as mídias sociais ultrapassaram a televisão quando se trata do consumo de notícias em mídias.

Nessa esteira, o Relatório aponta ainda que os meios de mídias sociais e de mensagem mais utilizados para consumo de notícias no Brasil foi respectivamente o Facebook (54%), o WhatsApp (48%) e o Youtube (45%), confirmando a previsão de que a veiculação de notícias se descolou dos meios tradicionais.

O WhatsApp é provavelmente o aplicativo de mídia social mais presente nos smartphones dos brasileiros. Os esquemas de zero rating das operadoras de telefonia fazem com que, para muitos, ele seja a única fonte de acesso à internet – o que impossibilita, notadamente, a checagem de fatos a partir de outras fontes. Na minha pesquisa, um dado importante da capilaridade excepcional do WhatsApp é que ele propicia acesso a conteúdo circulados em mídias sociais como o Facebook ou Twitter a usuários que não se encontram registrados, ou que acessam pouco, essas plataformas. Nesse caso, o conteúdo já chega ao usuário final enviesado, filtrado através de múltiplas mediações tanto algorítmicas quanto humanas. (CESARINO, 2019, p. 3).

No que concerne aos riscos da pós-verdade no mundo cibernético, e em especial no caso brasileiro, há um elo que une todas as partes nesse quebra-cabeça de desinformação, desestruturação social, ciber-ativismo, populismo digital: o credo neoliberal.

[...] arquitetura digital do neoliberalismo, ou arquitetura neoliberal das mídias digitais. Esses fenômenos estariam ligados à difusão massiva de mediações digitais em todos os domínios da vida, desde o ecossistema de mídia e a esfera pública, passando pela infraestrutura da financeirização do capital, até o modo mais íntimo como cada indivíduo cuida da saúde, escolhe um parceiro, elege representantes e constitui sua subjetividade na era das mídias sociais, economia da atenção e plataformização. (CESARINO, 2021, p. 78).

Com o esvaziamento do debate público, o incremento do capitalismo de dados e a predileção à espetacularização da vida privada em espaços públicos, a democracia que se descortina passa por mutações terminantes que não podem ser subestimadas. Apesar de o Brasil ainda ser marcado por forte desigualdade digital, com utilização majoritária dos serviços de Internet pelas classes que possuem recursos tecnológicos, toda a sociedade está exposta à pós-verdade.

O prognóstico, entretanto, não é o mais favorável para a manutenção da Ágora10 nos moldes do conceito grego. Os espaços públicos, no plural porque são muitos, convergem em um aspecto: na diferenciação do privado. Mas sob a égide da pós-verdade e do cibernético, torna-se um grande, quase impossível desafio delimitar essa fronteira tão necessária para o exercício da cidadania, como afirma (CESARINO, 2021, p. 85).

A digitalização dissolve a separação entre contextos que o arranjo moderno da esfera pública buscava delimitar: público e privado, consumidor e produtor de conteúdo, fã e celebridade, espontaneidade e fabricação, indivíduo e coletivo (CHUN, 2016; LURY; DAY, 2019). Também dissolve a separação funcional entre as esferas ou os campos sociais: os fatores de eficácia da política, marketing, entretenimento, parentesco, mundo do trabalho, religião passam a se confundir cada vez mais (ZOONEN, 2012). Três décadas antes, Foucault (2008) já havia notado como o avanço da neoliberalização também se dá por processos de desdiferenciação: entre patrão e empregado, vida e trabalho, produtor e consumidor, na figura híbrida do empreendedor de si.

O derretimento das esferas públicas comprometem sobremaneira não somente os processos eleitorais, mas também a conformação de políticas públicas. Como aponta (SOUZA, 2006, p. 24) sobre Laswell (1936/1958), as políticas públicas visam responder “quem ganha o quê, por quê e que diferença faz”. Ou ainda nas palavras de Dye (1984), a política pública seria “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”.

Com base nessas afirmações fica a reflexão: ainda é possível identificar um autêntico espaço público de debate de ideias, para a produção de eleições justas, para a execução do ciclo de políticas públicas com a participação representativa e efetiva da sociedade? Para 2021, e provavelmente ainda nos próximos anos, a resposta será depende, pois estamos em um longo processo de dilatação das fronteiras da subjetivização da vida pública.

Na construção da identidade popular pelo bolsonarismo em 2018, essa gramática bivalente neoliberal-conservadora se expressou, por exemplo, na desqualificação moral da luta por direitos e proteções pelo Estado como privilégios indevidos por parte de “vagabundos” e “parasitas”. Políticas de redistribuição e de regulação do mercado (inclusive, o das mídias digitais) são rechaçadas por supostamente coibirem a livre iniciativa e a liberdade de expressão. Os mesmos padrões foram renovados no contexto da pandemia da Covid-19 em 2020[...]. Com frequência, essa narrativa aparece como uma visão do Estado e da coisa pública como irreversivelmente corrompidos, sendo seu desmonte e substituição por mediações mercadológicas – estas sim, autênticas fontes de valor, verdade e liberdade – a única forma possível de purificação.[...] Em outras palavras, a batalha conservadora de Bolsonaro contra o “marxismo cultural”e o “socialismo” é, fundamentalmente, a batalha neoliberal contra regulações, direitos e políticas redistributivas protagonizados pelo Estado social. (CESARINO, 2021, p. 84-85).

A instrução cidadã e o acesso à educação de forma ampla e de qualidade são condição sine qua non para que o entendimento esclarecido seja estabelecido e as notícias falsas sejam combatidas. O exercício democrático está intimamente ligado à capacidade de os indivíduos desenvolverem um raciocínio-crítico sobre sua realidade material, diferenciando fatos objetivos de opiniões pessoais.

No lugar do indivíduo liberal clássico, a neoliberalização e a digitalização convergem numa dinâmica de formação de subjetividade que parece paradoxal do ponto de vista do individualismo moderno: uma “individuação em rede” que é, ao mesmo tempo, singular e plural (CHUN, 2016, p. 15); altamente relacional (divídua) e centrada no “eu” (ZOONEN, 2012; LURY; DAY, 2019). Em todos os casos, métricas algorítmicas tornam-se centrais a formas de subjetivação altamente performativas. (CESARINO, 2021, p. 86).

Importantes avanços podem ser verificados no âmbito normativo brasileiro, com a Lei nº 13.834/2019, que criminaliza a desinformação e determina que propagar fake-news é crime. Órgãos e instituições que mantêm o estado democrático de direito no Brasil têm se ocupado em combater as falácias e as ameaças da pós-verdade em processos eleitorais. O Tribunal Superior Eleitoral, na esteira das eleições de 2018, dada a avalanche de fake-news, criou um sítio eletrônico11 na internet para que o eleitorado brasileiro pudesse realizar a checagem dos fatos das notícias disseminadas.

Atualmente, o “Dia Internacional da Checagem de Fatos12”, celebrado todo dia 02 (dois) de abril, logo após o dia da mentira, corroborando a nova era que, transitoriamente, foi denominada de a era da pós-verdade, mas que com o fortalecimento da democracia tornar-se-á a sociedade da checagem dos fatos e do bom senso.

4 CONCLUSÃO

De Homo Sapiens, a Homo Videns chegando a “Homo Alienatis”? Teria o excesso de informação na sociedade atual levado o indivíduo a um ponto de exaustão crítica?

A simples desmistificação da mentira não é suficiente para se combater a era da desinformação. O caminho regulatório é, sem dúvida, necessário para delimitar as margens do virtualmente aceitável, mas não é o único. As denominadas FAANGs –Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google – como foram batizadas pelo Financial Times, juntamente com outras gigantes da tecnologia de comunicação, pautarão as relações societárias daqui em diante.

O fenômeno da pós-verdade não pode ser encarado de forma isolada, como o simples compartilhamento de notícias falsas, mas sim como o ajustamento de um comportamento mais amplo, em que as paixões e as crenças pessoais suplantam o debate público. Outros elementos somam-se a este fenômeno como o recrudescimento de governos populistas e disputas políticas polarizadoras.

Se a democracia depende da civilização do conflito e o mundo cibernético neoliberal propõem uma espécie de produção do consenso (Chomsky, 2014), então temos um impasse. Para que haja democracia, o conflito deve existir. Mas vivemos também um processo de colapso de contextos e de performatividade (Cesarino, 2021) e da monetização de tudo e de todos no capitalismo de vigilância (Zuboff, 2020), o que coloca o exercício da cidadania sob uma nova epistemologia.

Cada vez mais é possível identificar políticos como coachesea tiktorização da vida em sua forma mais ampla, onde a cidadania dá lugar a cyberania e as mídias funcionam como o maquinário da reprodução do neoliberalismo.

A pós-verdade, no contexto de comunicação política neoliberal, coloca em xeque as estruturas democráticas da sociedade, sugerindo uma fundação ou refundação da cidadania que vive uma espécie de vácuo em sua gramática e prática. A democracia que se descortina confronta o excesso de informação subjetiva não verificada (ignorância) versus informação checada e rastreável.

O viés político é somente mais um dentro do arranjo da ciber-vida, devendo os cidadãos estarem atentos aos sistemas e redes de vigilância e controle. A participação cidadã é também parte da existência do indivíduo e, enquanto sociedade, devemos nos perguntar por que fazemos o que fazemos e por que defendemos o que escolhemos. Voltemos à reflexão deixada por Pink Floyd – na canção Another Brick In The Wall - para que não sejamos” só mais um tijolo na parede”.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Robert A. Dahl (2001) em Sobre a democracia, elenca as seis instituições políticas que a democracia em larga escala exige: 1. Funcionários eleitos; 2. Eleições livres, justas e frequentes; 3. Liberdade de expressão; 4. Fontes de informação diversificadas; 5. Autonomia para as associações; 6. Cidadania inclusiva.
2 Referência ao poema “O cão e o frasco”, de Charles Baudelaire. (BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas e prosa. Rio de Janeiro, José Olympio – trad. Aurélio Buarque de Hollanda. p. 25, 1950).
3 Termo utilizado por Cailin O'Connor, autora de “A Era da Desinformação” (Yale University Press, 2019).
4 Post-truth (pós-verdade), eleita a palavra do ano em 2016. Word of the Year 2016. Disponível em: https://languages.oup.com/word-of-the-year/2016/.
5 Joint declaration on freedom of expression and “fake news”, disinformation and propaganda – Disponível em:https://www.osce.org/fom/302796
6 Termo originalmente cunhado por Jeremy Bentham (1785) e ampliado na obra de Michel Foucault (1999), em FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 20 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
7 Termo originalmente cunhado por Thomas Mathiesen (1997), em MATHIESEN, Thomas. The viewer society: Michel Foucault’s ‘panopticon’ revisited. Theoretical Criminology, v. 1, n. 2, p. 215-234, 1997.
8 Agência privada, fundada em 2013 e que encerrou suas atividades em 2018. Participou da campanha eleitoral que elegeu Donald Trump. Foi acusada da coleta indevida de informações pessoalmente identificáveis de até 87 milhões de usuários do Facebook. Mais informação em: https://brasil.elpais.com/noticias/caso-cambridge-analytica/ .
9 O Relatório “Reuters Institute Digital News Report 2020 pode ser acesso na íntegra em: https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/sites/default/files/2020-06/DNR_2020_FINAL.pdf.
10 Síntese do conceito de espaço público na Grécia Antiga. Lugar onde os gregos se reuniam para decidir sobre o futuro da cidade e a elaboração das leis.
11 Disponível em: https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/.
12 Disponível em: https://factcheckingday.com e em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Abril/dia-internacional-de-checagem-de-fatos-movimenta-as-redes-sociais-do-tse-1
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