Artigos - Dossiê Temático
DIMENSÃO SOCIAL DO MERCOSUL: as políticas públicas e as assimetrias transfronteiriças1
DIMENSÃO SOCIAL DO MERCOSUL: as políticas públicas e as assimetrias transfronteiriças1
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 1, pp. 133-146, 2022
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 28 Diciembre 2021
Aprobación: 27 Mayo 2022
Resumo: Este texto aborda a relação entre estruturas sociais e políticas públicas como uma das possibilidades de ampliar a dimensão social do Mercosul em fronteiras internacionais. Tem como objetivos revisar os elementos estruturantes da dimensão social e cooperação transfronteiriça e evidenciar as assimetrias estruturais que reverberam positiva ou negativamente na construção da cooperação transfronteiriça no âmbito da proteção social. Aponta as principais questões que envolvem o tema e conclui com indicações para a implementação de políticas de cooperação transfronteiriça entre municípios situados nos limites internacionais.
Palavras-chave: –Serviço Social, Fronteiras internacionais, Proteção Social, Cooperação transfronteiriça.
Abstract: This text addresses the relationship between social structures and public policies as one of the possibilities for expanding Mercosur's social dimension across international borders. Its objectives are to review the structural elements of the social dimension and cross-border cooperation and highlight the structural asymmetries that reverberate positively or negatively in the construction of cross-border cooperation in the field of social protection. It points out the main issues surrounding the topic and concludes with indications for the implementation of cross-border cooperation policies between municipalities located on international borders.
Keywords: Social work, International borders, Social protection, Cross-border cooperation.
1 INTRODUÇÃO
Este texto aborda as possibilidades de se ampliar a dimensão social do Mercosul em contextos transfronteiriços a partir da interrelação entre estruturas sociais e políticas públicas e desigualdades territoriais. Parte de reflexões teóricas decorrentes de estudos realizados na linha da fronteira entre os países do bloco regional com um duplo objetivo: revisar os elementos estruturantes da dimensão social e cooperação transfronteiriça em sua relação com as políticas públicas e evidenciar as assimetrias estruturais que reverberam positiva ou negativamente na construção da institucionalidade das políticas protetivas na região fronteiriça entre os países integrantes do bloco regional.
As reflexões aqui apresentadas ancoram-se em referências que orientaram as investigações realizadas e a construção deste texto. A primeira seria entender como se constitui e se consolida, nos espaços fronteiriços, a reflexividade entre a estrutura social e a política pública, especialmente as políticas de corte social, tendo em vista a convergência de interesses e demandas no território transfronteiriço. Para tanto, recupera-se, brevemente, o quadro proposto por Adelantado et al. (1998), incluindo uma revisão da concepção de estrutura social apropriada para evidenciar, concretamente, a sua reflexividade com a política social. Essa intersecção possibilitou superar, conforme apontam os autores, as perspectivas que as analisavam em separado, impedindo visualizar concretamente como, onde e quais eram os fundamentos dos processos bidirecionais. Inclui a apreensão de como esferas específicas da estrutura social concorrem para a construção da igualdade e das desigualdades no mundo capitalista, realçando o papel do Estado nesse campo.
A segunda se localiza no entendimento das políticas públicas como resultantes de condensações de forças capazes de alterar a agenda do Estado capitalista, mas não a sua essência e forma política. As diferenças de agendas e, consequentemente, de instituição de políticas públicas em regiões de fronteira tornam-se, com frequência, um dos polos mais relevantes na construção das desigualdades e limitam a caminhada em direção a uma dimensão social universal em termos do Mercosul. Além das diferenças de agendas nacionais, um ponto nevrálgico se localiza na implementação das políticas, tanto as regionais, indicadas pelo bloco regional, como as determinações nacionais para a área social. O hiato entre o programado e o realmente efetivado vem sendo estudado e situado como um dos óbices a frear a dimensão social da cidadania.
A terceira evidencia o cenário transfronteiriço em suas dimensões simétricas e assimétricas, tal como se apresentam nos setores da saúde e proteção social, expresso pela presença de recursos humanos (profissionais e técnicos) e oferta de serviços em pares de cidades gêmeas. Concluindo o texto, apresentam-se algumas considerações que se constituem mais como sugestões a serem refletidas no sentido da garantia da fruição da dimensão social em áreas transfronteiriças.
Os objetivos propostos e os pressupostos acima indicados conduzem o conteúdo deste capítulo para o campo da análise das políticas públicas, buscando contribuir para a construção desse campo de conhecimento sob a visão disciplinar do Serviço Social.
2 REFLEXIVIDADE ENTRE ESTRUTURA SOCIAL E POLÍTICA SOCIAL
A política social não se institui naturalmente, ela se materializa em um espaço no qual distintos atores políticos articulam um conjunto de decisões administrativas e econômicas na esfera estatal. Estas incidem sobre a organização e distribuição dos recursos da política pública, mediante regulações, serviços e transferências. Um processo que é social e histórico, capaz de influir sobre o acesso aos direitos sociais. Nesse âmbito, a política social sintetiza um modelo de proteção social, substanciando a forma, a estrutura e o significado no campo das forças políticas e econômicas, e ocasionando alterações em médio ou longo prazo nas estruturas sociais em uma relação de reciprocidade.
Para apreender como se processa a interrelação entre a estrutura social e a política social, tomou-se como referência teórica a proposta de ADELANTADO et al. (1998) sobre a reflexividade entre política social e estrutura social, ou seja, a ideia de que se influenciam mutuamente e operam o eixo igualdade/desigualdade. Nessa construção, inicialmente, os autores delimitam uma concepção particular de estrutura social para estudar a sua relação com a política social, visando identificar os mecanismos concretos de influência recíproca, além de distinguir os fenômenos sociais de acordo com a sua duração e seu ritmo, moldados pelas políticas sociais:
El conjunto de los modos en que las prácticas de grupos e individuos están organizadas (instituciones) y relacionadas entres i (procesos sociales), de manera que se crean unos ejes de desigualdad que configuran la identidad de esos individuos y grupos, así como los cursos posibles de la acción social (individual y colectiva). Dicho de otro modo, la estructura social seria la configuración de instituciones, reglas y recursos que atribuye condiciones de vida desiguales a las personas en un momento y un lugar determinados (ADELANTADO et al., 1998, p. 127).
Para o objetivo pretendido de provar a reflexividade entre política social e estrutura social, os autores selecionaram três dimensões no campo estrutural: esferas de ação, eixos da desigualdade e atores coletivos. As esferas da ação são os eixos em torno dos quais se constrói o mundo concreto, ou seja, são as intervenções estatal, mercantil, familiar e relacional.
A esfera estatal diz respeito às disposições jurídicas sobre quais bens e recursos ficam sob a responsabilidade do Estado, definições que implicam um jogo político constante, expressando o conflito de classes que permeia a divisão do fundo público e a mercantilização da proteção social. Inclui o aparato institucional e administrativo público e o conjunto das atuações geradas nesta dimensão.
El mecanismo de coordinación de la acción que opera en esta esfera es el poder político, es decir, el monopolio estatal de las asignaciones colectivas vinculantes, que se plasma en varios instrumentos; principalmente, la capacidad de regulación por vía normativa y los procesos de administración y gestión de recursos, programas y servicios. Desde su posición central en una realidad social dada, la esfera estatal irradia a todos los ámbitos sus medidas de definición, reproducción y cambio de la estructura social (de la cual ella misma es parte integrante: la esfera estatal es tal vez la que cuenta con una mayor capacidad recursiva, esto es, de actuación sobre si misma) (ADELANTADO et al., 1998, p. 134).
Transpondo para o campo concreto, têm-se os grandes determinantes das políticas sanitárias, a organização do sistema do país e o sistema de saúde, ou seja, os macros determinantes das políticas de saúde (COSTA; SILVA; BIASOTO, 2008) e igualmente da assistência social.
A esfera estatal destaca-se como central na organização da desigualdade social e sua contribuição localiza-se no conflito distributivo (impostos, legislação econômica, orçamentos, políticas públicas e também na reprodução simbólica dos lugares ocupados na sociedade pela população. É a esfera que determina a cidadania e as condições de relação com o setor público. Nas fronteiras internacionais, é determinante para reduzir ou ampliar desigualdades territoriais e requisitos legais quanto à garantia e fruição de direitos. A intervenção reguladora dessa esfera sobre as demais pode definir os eixos de desigualdade, alterando as pautas de estruturação social, sendo sua ação limitada ou condicionada às pressões de grupos organizados e à própria burocracia estatal (ADELANTADO et al., 1998). Por sua vez, é pela via das políticas públicas/sociais que o Estado faz uso dos mecanismos estruturais de seletividade para gestionar as contradições entre o processo de valorizaçao do capital e de distribuição (OFFE, 1989).
Nas fronteiras há, em inúmeras situações, uma dubiedade causada justamente pela posição dos indivíduos ante a proteção estatal.
A esfera doméstico-familiar/parentesco e a relacional definem o espaço social de troca de ordem social e cultural, onde se distingue o que é valor, a concepção hegemônica de saúde e proteção social e a valoração atribuída ao direito social, incidindo no plano das práticas e efetivação dos serviços e sistemas protetivos. A primeira abarca todas as atividades inerentes às unidades familiares, as quais executam uma forma de trabalho que processos históricos atribuíram às mulheres. “Esta prestación se materializa por medio de actividades muy variadas: tanto cocinar o lavar dentro del hogar como mediar entre el hogar y el mercado (consumo) o entre el hogar y el Estado (uso de los servicios públicos).” (ADELANTADO et al., 1998, p. 132).
Constituem a esfera relacional as diversas associações produtoras de consenso e ação política local, podendo ser organizações associativas ou comunitárias, dependendo do vetor que as unifiquem e as institucionalizem. Entre as primeiras estão os grupamentos vinculados a interesses diversos, tais como sindicatos e questões de gênero, raça e outros. As associações comunitárias se identificam mais com o sentimento de pertencimento e apresentam um nível de organização relativamente frágil.
A esfera mercantil é o mundo da produção e o mecanismo de coordenação é a troca. “Esta esfera, por tanto, jerarquiza las relaciones sociales según la capacidad de vender o comprar mercancías; y, además, irradia un proceso general de mercantilización de las relaciones sociales que resulta clave para entenderla política social.” Embora não possua força legal vinculante, a esfera mercantil, pelo protagonismo na produção, é a que produz a principal desigualdade, que é a de classe, desigualdade enquanto controle dos meios de produção.
Ao se abordarem os eixos de desigualdade, além da desigualdade de classe, outras situações de desigualdade são reconhecidas e visibilizadas, como as referentes à cidadania, diferença de posição perante o Estado e das capacidades organizativas (sujeitos coletivos influenciando ou não as agendas públicas) (ADELANTADO etal., 1998).
Atualmente as desigualdades vêm sendo abordadas não apenas em relação à igualdade de oportunidades, individualizando as chances de acesso ou a posse de bens valorizados socialmente. Está em debate outra chave de apreensão, em que as desigualdades são reconhecidas como multidimensionais, ou seja “[...] uma pluralidade de formas de desigualdades (e não somente a econômica) impõe barreiras que dificultam a ascensão, o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida de segmentos socialmente vulneráveis ou tradicionalmente excluídos” (PIRES, 2019, p. 16).
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) aponta, além das desigualdades econômicas, entrelaçadas com os eixos de desigualdade de gênero e étnico-raciais, também as territoriais. No caso das fronteiras, inúmeras vezes estas podem provocar desigualdades marcantes ao incidirem sobre aspectos cruciais, como a vida e a sobrevivência.
Como indicado anteriormente, o poder estatal é central na regulação da desigualdade social, devido a sua intervenção no conflito distributivo, incidindo, como apontam os autores, na atribuição de impostos, na legislação econômica, nos orçamentos e nas políticas públicas, mas também atua, simbolicamente, na hierarquia social, acenando quem pode e quem não pode acessar a proteção do Estado. Por outro lado, a ação dos atores sociais, de grupos organizados em prol da igualdade, pode imprimir outro rumo à intervenção reguladora do poder estatal e redefinir de forma substancial os demais eixos de desigualdade, modificando as pautas de estruturação social. Nesse caso, exercem influência a maior ou menor força de grupos organizados e seu impacto na formulação das agendas públicas que, aliados à burocracia estatal, operam processos e mediações para compatibilizar ou filtrar os interesses das outras esferas de ação.
Ao se ter como objeto de estudo o direito à proteção social, e esta ser decorrente de condições históricas, culturais e ideológicas, sob o predomínio econômico, as indicações acima contribuem para se apreenderem as determinações sociais que expressam as desigualdades no peculiar território transfronteiriço. As mesmas esferas de atividades, de ação, são as responsáveis pelo trânsito entre igualdade e desigualdade, sendo à ação pública, dado o poder do Estado, o ponto nodal na modulação entre o acesso ou não a bens e serviços protetivos na linha da fronteira (ADELANTADO et al., 1998).
3 POLÍTICAS PÚBLICAS, IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS E A CONSTRUÇÃO DAS DESIGUALDADES
A intervenção do Estado na organização societária de cada país é determinada pelo nível de modulação necessária entre políticas sociais e econômicas em sua função estratégica de garantir e manter a coesão societária em torno da lógica do capital. Essa intervenção, balizada pelos interesses e capacidade de intervenção dos atores que os representam, define, em cada contexto histórico, as formas e os conteúdos das políticas sociais (SOUZA FILHO, 2013). “De fato, o Estado não tem plena autonomia em relação à sociedade. As ações estatais (e as próprias características do Estado) são produtos de processos sociais. Da mesma forma, tampouco são completamente dependentes da sociedade” (SERAFIM; DIAS, 2012, p. 3).
Para além das suas formas e de seus conteúdos – aspectos que vêm sendo exaustivamente estudados –, há um ponto a se aprofundar e que interessa especialmente para o objetivo deste texto, o da operacionalização das políticas públicas, ou seja, a materialização da intervenção estatal. Trata-se de perceber como as operações, processos e atos do Estado protagonizados pelos atores públicos dão concretude ao proposto e, metaforicamente, são o recheio que preenchem o cotidiano da atividade pública.
A implementação de políticas pública se relaciona com a agenda proposta para os diversos setores e corresponde à passagem da intenção à ação efetiva, unicamente capaz de alterar, ou não, as trajetórias previstas no plano formal. A concepção atual do ciclo das políticas como um processo e a interrelação e interpenetração entre as etapas devido à exigência de decisões em todos os seus momentos oferece possibilidades ou exige, inúmeras vezes, ajustes e redimensionamentos de planos e programas para a concretização das decisões políticas ante o jogo de interesses que se apresenta no plano local. Em áreas fronteiriças, esses aspectos assumem outras dimensões que tensionam as legislações nacionais e internacionais, favorecendo alterações dentro da regulação legal ou em arranjos paradiplomáticos que igualmente pressionam alterações de ordem estrutural.
O aprofundamento dos estudos sobre avaliação das políticas mostrou que, contrariamente ao que vinha sendo veiculado até então, a implementação, entendida como a efetiva concretização dos ideais, objetivos e princípios de uma dada política pública, “é enganadoramente simples” (FARIA, 2012, p. 8). A partir dessa constatação, reforçada pelos estudiosos das políticas públicas (HOWLLET; RAMESH; PERL, 2013; LOTTA, 2012, PIRES, 2019), a preocupação com a implementação tornou-se um tema de estudos de diversas áreas a partir de três evidências. A primeira foi a percepção dos interesses diversos que permeiam a atuação dos agentes públicos vis-à-vis os processos decisórios exigidos pela implementação, o que pode alterar radicalmente os resultados originais definidos para a ação estatal. A segunda foi o equívoco de tratar como distintas a etapa decisória – ou a formalização de planos, programas e projetos – e a etapa da implementação, entendida como isenta de escolhas e de novas modelagens em relação ao que se deveria executar. De certa maneira, entendia-se, de forma equivocada, a burocracia estatal como integrada por atores não políticos, não eleitos, mas profissionais ocupando uma carreira funcional competente para executar as políticas públicas decididas nas instâncias da “grande política”. Uma terceira evidência decorre do próprio locus da implementação, o espaço do vivido, e, como assinala Costa (2019, p. 62), “[...] as interações cotidianas são tanto espaços de construção da desigualdade e de reprodução de estruturas sociais como arenas nas quais as hierarquias sociais são negociadas e transformadas”.
Há certa concordância entre autores quando afirmam que a implementação corresponde à execução de atividades que permitem a realização de ações com vistas à obtenção de metas definidas no processo de formulação das políticas. Contrapondo-se a uma visão linear do policycicle, incorporam a ele uma perspectiva processual. A execução das atividades é também reconhecida como um momento de novas decisões e negociações, ou seja, institui políticas, recriando ou ajustando as definições programáticas regionais ou centrais. Assim,
[...] reforça-se a constatação de que leis e decisões políticas não são simplesmente executadas, tal como concebidas e planejadas, de forma direta, mecânica ou automática. Muito pelo contrário, esses estudos têm revelado os processos de implementação como momentos de criação e transformação (PIRES, 2019, p. 20).
Nessa ótica explicativa, as vicissitudes, os obstáculos e os problemas da implementação associam-se a questões de natureza variada, como a capacidade institucional e técnica dos agentes implementadores; problemas de natureza política na implementação dos programas ou questões políticas que “derivam da resistência e boicotes realizados por grupos ou setores negativamente afetados pela política – em muitos casos setores da própria máquina administrativa estatal” (SILVA; MELO, 1994, p. 10). Os estudos atuais identificam como os aspectos acima são resultantes de questões, conflitos e decisões que versam sobre interesses reais expressos pelos atores e usuários das políticas públicas.
Outra constatação derivada de estudos mais recentes se refere à implantação como moduladora da igualdade e desigualdade. Esse efeito, o qual Pires (2019, p. 21) denomina de efeito social da implementação, “[...] busca designar o conjunto de repercussões que o envolvimento com um serviço ou uma política pública pode gerar sobre a posição, a trajetória e a identificação social de um sujeito”.
Na tentativa de explicar os impasses da implementação, duas tendências teóricas foram se construindo na área das políticas públicas: a que entendia os processos de implementação a partir de uma visão descendente – ou top-down – e a que indicava que os problemas se localizam em uma visão ascendente – conhecida como botton-up.No modelo top-down, os pesquisadores “[...] ignoraram ou minimizaram a importância das armadilhas que cercavam esse estágio do ciclo político, pressupondo que, tão logo alguma decisão fosse tomada, o braço administrativo do governo simplesmente a levaria a cabo” (HOWLETT; RAMESH; PERL, 2013, p. 182). Enfatizava-se a relevância da burocracia de alto nível hierárquico, supondo uma linha de comando sem questionamento por parte dos níveis burocráticos situados nos níveis inferiores da administração, além de atribuir aos agentes um reduzido grau de discricionariedade. Supunha-se, ainda, uma articulação interna linear entre objetivos e ações a serem executados, com escassa liberdade para modificações e novos aportes ao longo da trajetória das políticas. A implementação seria a sequência lógica dos objetivos estabelecidos, tendo como premissa “[...] a hierarquia da autoridade, a racionalização dos recursos, a otimização dos resultados e a separação entre o mundo político e o mundo administrativo” (CAVALCANTI, 2007, p. 237). Essa perspectiva aproxima-se do modelo gerencial de gestão e afasta-se de procedimentos democráticos, considerando-os adequados unicamente aos processos decisórios da cúpula estatal.
Já no modelo bottom-up, a ideia-força é a impossibilidade de um controle perfeito no processo de formulação da política até o momento da implementação. Esta é percebida como resultante da interação entre diferentes níveis dos sistemas governamentais e não governamentais, dinamizada por atores políticos com interesses e expectativas distintas, além de arenas discursivas e formas de lutas políticas também diversas (HOWLETT; RAMESH; PERL, 2013; FREY, 2000). A formulação da política e a sua implementação não deteriam uma racionalidade inerente e articulada entre níveis hierárquicos, mas sim o ponto de convergência entre as propostas e os interesses imediatos dos cidadãos no momento de sua concretização. Estes, por sua vez, utilizam estratégias para garantir seu espaço na obtenção de bens e serviços públicos, as quais podem provocar mudanças radicais na ordem dos objetivos e metas decididos em níveis superiores, tanto modulando-os positivamente como negativamente, marcando simbolicamente o lugar que os usuários das políticas ocupam e reiterando valores culturais e sociais vigentes.
Cabe aqui um retorno à primeira parte do texto articulando a funcionalidade das políticas protetivas como moduladoras das relações entre as esferas mercantis, familiares e relacionais no momento de sua implementação. “A depender da maneira como um serviço público é implementado, podem emergir barreiras de acesso ou critérios de seleção não formalmente previstos e que incidam precisamente sobre os segmentos sociais mais precarizados” (PIRES, 2019, p. 25).
O aprofundamento da compreensão sobre a operacionalização das políticas via programas e projetos trouxe outras nuances a serem apreendidas, como, por exemplo, a indicada por Meggie (2010) quanto à impossibilidade de uma abordagem exclusivamente top-down ou botton-up, devendo-se considerar o conjunto de atores da ação pública e suas diferentes interdependências (verticais e horizontais). Entende o autor que há uma fragilidade na compreensão dos níveis de ação e do papel e dos interesses que permeiam a implementação das políticas em seu nível executivo, o que torna difícil mensurar o seu impacto na estruturação do espaço público – a relação biunívoca entre estrutura social e política social, indicada anteriormente. Conforme o autor, essa perspectiva favorece a dimensão entre os distintos níveis e recupera a transversalidade da ação pública (MEGGIE, 2010).
Esse enfoque sinaliza, também, para a relevância dos agentes estatais implementadores das políticas públicas. Alguns autores têm sublinhado a importância de se compreender como as decisões e diretivas do poder central são adaptadas, reformuladas e/ou bloqueadas pelos serviços locais, notadamente seguindo a lógica de legitimar a administração (LASCOUMES; LE GALÈS, 2004; OLIVEIRA; ABRUCIO, 2011; PIRES, 2012; ZITTOUN, 2013). Essa preocupação com a gestão dos recursos humanos decorre do fato de serem os agentes implementadores que colocam em ação as intenções formais. Assim, os processos relativos à implementação podem distorcer a produção de uma justiça distributiva na alocação dos bens e serviços públicos oferecidos, prejudicando, sobremaneira, os mais necessitados (PIRES, 2019).
Nessa linha, a estruturação jurídico-administrativa do pessoal do Estado configura uma situação delicada nas áreas fronteiriças e constitui uma das assimetrias mais graves em termos de tendência à dimensão social, conforme indicam estudos realizados.
4 ASSIMETRIAS FRONTEIRIÇAS INTERNACIONAIS E A DIMENSÃO SOCIAL1
Há um consenso em se apontar as assimetrias como um dos problemas de áreas fronteiriças, o que supõe reconhecer a região fronteiriça em sua realidade cotidiana, e não como uma construção discursiva descolada de seus determinantes políticos, sociais e econômicos. Unicamente nesta perspectiva é possível pensar em intervenções consistentes na área das políticas públicas e reconhecer as assimetrias estruturais em seus impactos na construção da cidadania social.
Os estudos que abordam as distinções entre as fronteiras assinalam assimetrias estruturais transfronteiriças em termos de:
a) Área geográfica – fator que determina a maior ou menor distância da linha da fronteira dos centros administrativos federais e de centros urbanos com equipamentos de proteção social e saúde mais qualificados e adequados. E, do outro lado da fronteira, a existência de recursos sociais para suprir as demandas;
b) ocupação populacional dos países – essa é outra variável assimétrica a ser incorporada nas análises e nos diagnósticos sobre fronteiras. Temos desde país com população indígena expressiva como o Paraguai, país com densidade populacional centrada majoritariamente na capital e, ainda, a baixa densidade da população na linha da fronteira, com algumas exceções. Essas distinções têm consequências na formulação e decisão sobre políticas públicas para a região;
c) a divisão jurídico-administrativa, ou seja, como se apresentam as organizações públicas, é outro componente estrutural a ser levado em conta na definição de ações prioritárias. Um país com uma organização ministerial mais centralizada ou descentralizada, com níveis de competência distintos entre os entes subnacionais e formas de envolvimento da população nos debates para formulação de agendas públicas implica formas de abordagens diferenciadas relacionadas às iniciativas estratégicas;
d) níveis de competência distintos entre os entes subnacionais que se expressam, inúmeras vezes, em iniciativas locais, como os acordos paradiplomáticos realizados entre gestores e profissionais das cidades gêmeas. Esses acordos, decorrentes da articulação entre governos subnacionais e organizações privadas, vêm ampliando a expansão das iniciativas externas dos países e incidem sobre ações no campo da ampliação da cidadania social e atividades culturais e econômicas;
e) a cultura política dominante no país e, consequentemente, em suas fronteiras, compreende o patamar de cidadania civil e social vigente expresso em um ideal de igualdade e justiça como valores a serem preservados. Identifica-se que os regramentos constitucionais e infraconstitucionais distintos, no espaço local, refletem os processos relacionais entre o Estado e a sociedade e seus interesses diversos.
A partir dessas assimetrias, é factível desenhar intervenções que levem em conta aspectos positivos que contribuam para a implementação de políticas públicas de indução de alteração da realidade da fronteira estudada e, na linha de raciocínio desenvolvida anteriormente, alterar elementos estruturais que obstaculizam a necessária e imprescindível cooperação transfronteiriça. Nessa linha indicam-se, a seguir, os principais elementos que adensam o debate sobre as alterações estruturais nas linhas de fronteira.
Os atores locais são os elementos-chave para o êxito, fracasso, alcance e direcionamento para os valores de igualdade e justiça, fundamentais para a construção da cooperação transfronteiriça. A forma como esses atores articulam os interesses locais – competência política – para resolução dos problemas da cidade parece ser um dos determinantes centrais a ser levado em conta ao se pensar em propostas de ação em áreas transfronteiriças. O discurso dos atores vinculados ao poder público expressa, reiteradamente, a intencionalidade de integração transfronteiriça na perspectiva de respeito aos direitos humanos, embora nem sempre acompanhada de ações concretas enquanto políticas públicas – Estado em ação. Uma questão difícil de ser equacionada é a própria debilidade de gestão de grande parte dos municípios fronteiriços devido à dificuldade de manter técnicos qualificados, em decorrência da distância dos grandes centros, ou inexistência de quadras administrativos.
Além dos aspectos positivos, foram constatadas outras questões a serem superadas para ampliação da cooperação transfronteiriça, no caminho da cidadania social prevista pelo Instituto Social do Mercosul, e alcance das normativas relacionadas ao tema da integração regional. Entre estas se reconhece a dificuldade de materialização em nível local pelo desconhecimento de acordos, normativas e regulações legais infraconstitucionais, por grande parte dos gestores, seja pela distância dos centros decisórios nacionais, seja pela debilidade de comunicação ágil e efetiva. Essa constatação parece apontar para uma relativa fragilidade nos encaminhamentos do poder público federal, especialmente no caso brasileiro, em relação às fronteiras, devido à distância dos centros administrativos vis a vis a reduzida influência de atores locais para inserir as suas preocupações na agenda pública nacional.
Uma dificuldade adicional em termos geopolíticos é a convivência de sistemas e estruturas governamentais distintos em um mesmo espaço geográfico, exigindo dos gestores governamentais locais a implementação de ações nem sempre condizentes com o ordenamento jurídico nacional, resultando em acordos informais na esfera da paradiplomacia. Este fato é agravado pela descontinuidade de ações exitosas, de curta duração, em razão de crises e alterações políticas e econômicas, nacionais e locais, reduzindo ou mesmo anulando processos transfronteiriços inclusivos. Essas crises têm alto impacto local e influência na dinâmica fronteiriça, contribuindo para permanência de desigualdades sociais e para dificuldades maiores de integração. As assimetria entre as cidades gêmeas vem sendo, inúmeras vezes, ignoradas na formulação dos programas nacionais, que não levam em conta não ser a fronteira um espaço homogêneo, o que impõe a exigência de estudos mais detalhados, de ordem qualitativa, para identificar os possíveis espaços de convergências relacionados às dinâmicas locais. Esse fato parece relacionar-se à reduzida eficácia da integração formal (acordos e normativas), quando não acompanhada de debates que favoreçam a sua apropriação pelos atores locais e pela população da faixa de fronteira. Esta situação parece se refletir na falta de fluidez das determinações dos Comitês de Integração, possivelmente devido à ausência de uma representação nacional no local para transpor as propostas para ação, com competência executiva. Esse aspecto fragiliza a concretização das iniciativas de transfronteirização oriundas de governos nacionais. Concorrendo para esse óbice, se situam as barreiras burocráticas como impedimento estrutural para o acesso de não nacionais aos serviços e ações de proteção social, além do modo de financiamento dos programas de proteção social, sempre aquém da demanda identificada.
5 CONCLUSÃO
O resgate de experiências positivas e os estudos indicam algumas evidências sinalizadoras de possibilidades a serem incluídas nas agendas de integração regional em áreas de fronteiras internacionais, compreendo a relação bidirecional entre políticas sociais e a estrutura social.
Um primeiro passo seria estabelecer um leque de investigação qualitativa para ampliação do conhecimento sobre a realidade da faixa da fronteira através do fomento aos grupos de estudos e pesquisas existentes nas universidades dos países limítrofes. Ou seja, conhecer com detalhes as necessidades da população, avaliar os serviços prestados nas áreas da proteção social e identificar sujeitos políticos intervenientes no sentido de favorecer a tomada de decisões dos gestores nacionais e locais. Esta iniciativa poderia favorecer o desenvolvimento de mecanismos estratégicos de articulação mais efetiva e eficiente entre o governo central e os municípios fronteiriços, ampliando o conhecimento sobre acordos e normativas através de debates, seminários e conferências com esta finalidade, envolvendo os diversos setores relacionados à cidadania social.
Um segundo passo seria relacionar as iniciativas do Mercosul em termos de ampliação da cidadania social às desigualdades territoriais por meio de políticas de indução e do fomento à cooperação entre os países na linha fronteiriça, ou de investimentos para reduzir o déficit de equipamentos e recursos pensando na cooperação transfronteiriça. As políticas de indução, na linha sugerida, exigiriam a instituição de mecanismos mais ágeis entre os níveis multiescalares, preferencialmente a partir do poder executivo, visando a materialização dos acordos e normativas do Mercosul e bilaterais. Em nível organizacional, complementando as iniciativas acima elencadas, seria interessante estudar e desenvolver ações no sentido de reduzir as instâncias burocráticas impeditivas de acesso aos bens e serviços sociais e de saúde em municípios transfronteiriços, evitando iniciativas policialescas que incidem sobre a população vulnerável, dificultando ou impossibilitando o trânsito entre os limites internacionais em busca de trabalho, ou satisfação de outras demandas sociais. As ações setoriais protetivas poderiam ficar sob a coordenação de um responsável no plano local com funções, para além de debater e propor ações transfronteiriças, com competência para articular iniciativas das distintas esferas de governo representadas nas cidades da linha da fronteira.
Um terceiro passo se localizaria na ordem de mobilização e esclarecimentos sobre os direitos sociais, envolvendo atores políticos da sociedade civil e do setor público, tendo como base o Plano Estratégico de Ação Social (PEAS), o Plano de Ação para Conformação do Estatuto da Cidadania e as experiências exitosas realizadas pelas cidades gêmeas nas áreas da educação, saúde e proteção social. Seria importante articular a reflexão sobre a construção da cidadania social nas regiões de fronteiras a partir das institucionalidades que estruturam a política social – legal, organizacional, técnico-operativa e fiscal (CEPAL, 2017), favorecendo a construção de um sistema institucional de garantia de direitos “[...] que opere no espaço supranacional e as possibilidades de superação do conceito clássico de cidadania, como vínculo jurídico centrado na nacionalidade.” (COSTA, 2019, p. 66).
REFERÊNCIAS
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Notas