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O RETRATO DE UM BRASIL-QUE-PASSA-FOME: a fome como expressão do subdesenvolvimento
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 1, pp. 147-164, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Artigos - Dossiê Temático



Recepción: 23 Diciembre 2021

Aprobación: 20 Mayo 2022

DOI: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v26n1p147-164

Resumo: O artigo, ancorado no método materialista histórico-dialético, é produto das reflexões realizadas no grupo de estudos e pesquisas “Trabalho e Política Social na América Latina – Veias Abertas''. Trata-se de um estudo qualitativo que busca, com a obra de Josué de Castro e Carolina Maria de Jesus, relacionar a fome com a questão étnico-racial, desde a formação sócio-histórica brasileira, contribuindo para a apreensão da fome na dinâmica do capitalismo dependente. Josué revela, em sua obra, o caráter estrutural da fome e do racismo quando apresenta dados sobre as regiões assoladas pela fome, em decorrência das determinações histórico-sociais. Carolina, mulher, negra e favelada, relata a vivência diária da fome, explicitando o padrão de dominação e as violações, advindas da cor da sua pele.

Palavras-chave: Fome, População negra, Estado, Formação sócio-histórica.

Abstract: The article, anchored by the historical-dialectical materialist method, is the product of reflections carried out in the study and research group “Labor and Social Policy in Latin America – Open Veins''. This is a qualitative study that seeks, with the work of Josué de Castro and Carolina Maria de Jesus, to relate hunger with the ethnic-racial issue, from the Brazilian socio-historical formation, contributing to the apprehension of the hunger on the dynamics of dependent capitalism. In his work, Josué reveals the structural character of hunger and racism when he presents data on regions devastated by hunger, as a result of their historical-social determinations. Carolina, a woman, black and slum dweller, reports the daily experience of hunger, explaining the pattern of domination and violations arising from the color of her skin.

Keywords: Hungry, Black population, State, Socio-historical formation.

1 INTRODUÇÃO

“A pior coisa do mundo é a fome!”

(Carolina Maria de Jesus)

A análise crítica da formação sócio-histórica brasileira, ancorada no método materialista histórico-dialético, revela que a fome é uma expressão latente da realidade de milhares de brasileiros(as) que, em sua grande maioria, são negros(as). A busca pelo deciframento desse fenômeno se constitui como objetivo principal das reflexões que serão apresentadas, mediadas pelas obras “Geografia da Fome”, de Josué de Castro; e “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus. Além de artefatos culturais (músicas, documentários e poesias), que contribuíram para as mediações analíticas sobre a temática da fome no Brasil.

Destarte, o presente artigo é resultado de discussões realizadas durante o segundo semestre de 2020, no Grupo de Estudos e Pesquisas Trabalho e Política Social na América Latina – Veias Abertas, vinculado ao Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) e ao Departamento de Serviço Social (DSS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Participam dos encontros do grupo: estudantes de graduação e de pós-graduação, professores/as e demais interessados/as nas temáticas que compõem o eixo categorial marxista latino-americanista do Veias Abertas.

Importa registrar que no ano em que se realizou este estudo, o Brasil, assim como os demais países do mundo, vivenciava a pandemia do Covid-19, que desencadeou uma crise sanitária, agudizando as crises política, econômica e social pré-existentes, tornando mais explícitas e aprofundadas as contradições do modo de produzir e reproduzir capitalista na particularidade das economias dependentes. Essas contradições atingem, de modo direto, a classe trabalhadora superexplorada e se desdobram na elevação dos níveis de desigualdade, pobreza e de insegurança alimentar1.

Isso decorre uma vez que, durante a pandemia do Covid-19, conforme dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN, 2021), a vivência de situação de insegurança alimentar passou de 84,9 milhões de pessoas em 2017-2018 para 116,8 milhões em 2020. Durante o ano de 2020, 19,1 milhões passaram fome (insegurança alimentar grave) e 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) (PENSSAN, 2021).

Buscando apreender como a questão étnico-racial incide nesse cenário, observa-se que, conforme o IBGE (2019), em 2018, entre o estrato dos 10% mais ricos do país, apenas 27,7% eram pretos ou pardos. Em contrapartida, no estrato dos 10% mais pobres, 75,2% eram pretos ou pardos. Além disso, durante o mesmo período, 2017 e 2018, a pesquisa relativa à segurança alimentar em domicílios, realizada pelo IBGE (2020), demonstra que: nos domicílios com segurança alimentar, 51,5% eram de brancos; enquanto esse número diminui para 36,9% para pardos e 10% para pretos. Por outro lado, nos níveis de insegurança alimentar, são os domicílios cuja pessoa de referência se declarou parda que apresentam os maiores percentuais, mantendo-se acima de 50% tanto para insegurança alimentar leve como moderada e grave: 50,7% para leve, 56,6% para moderada e 58,1% para grave. Em relação aos domicílios com pessoas de referência autodeclaradas pretas, 15,8% apresentaram insegurança alimentar grave, e, apenas, 10% apresentaram segurança alimentar leve (IBGE, 2020).

No tocante à questão étnico-racial com recorte de gênero, se em 2017-2018 o IBGE (2020) apontava que 10,3 milhões de pessoas tiveram privação severa de alimentos ao menos em algum momento, mais da metade residiam em domicílios chefiados por mulheres (IBGE, 2020). Durante a pandemia, 11,1% das famílias chefiadas por mulheres passaram fome, contra 7,7% daquelas chefiadas por homens (PENSSAN, 2021). Ainda, 10,7% das famílias chefiadas por mulheres pretas passaram fome, porcentagem maior em relação ao índice de 7,5% de famílias chefiadas por mulheres brancas que passaram fome (PENSSAN, 2021). Os dados expostos permitem apreender que as pessoas pretas sofrem em maior percentual do que as brancas os dilemas da fome no país, e que, em relação a essas, as mulheres pretas sofrem mais do que os homens pretos e do que as mulheres brancas. Essa realidade expressa a sociedade desigual e violenta em que vivemos, tendo o racismo e o machismo como definidores da estrutura social brasileira. Dessa forma, concordando com Souza (2020, p. 143), é necessário “interpelar como a dinâmica do capitalismo dependente produz e reproduz o racismo como parte da sua estrutura”.

Diante desse contexto, as obras de Josué de Castro e Carolina Maria de Jesus se mostram relevantes e atuais, mesmo tratando da realidade de meados do século XX (décadas de 1940 e 1950), pois evidenciam o caráter sócio-histórico que a fome apresenta, bem como a relação intrínseca mantida com a questão étnico-racial. A fome, ao mesmo tempo em que adquire novas características e expressões, resguarda a tendência de continuidade e transformação, inata à contradição da própria realidade social.

O descortinar das obras de Josué de Castro e de Carolina Maria de Jesus sobre a fome contribui, pois ao realizar sua análise desde a interpretação da produção econômica, social, ideológica e política da fome no Brasil, possibilita articulações entre elementos aparentemente desvinculados entre si e complexificados na sociedade atual. Dessa forma, as produções contribuem para se apreender como o trabalho escravo, o latifúndio e a monocultura fundamentam a herança colonial brasileira e criam as bases para o capitalismo dependente.

Isso posto, este artigo pretende, a partir das obras de Josué de Castro e de Carolina Maria de Jesus, problematizar a fome como produto do desenvolvimento capitalista dependente, a iniciar pela formação sócio-histórica brasileira e a particularidade latino-americana. Ademais, explicitamos como a fome é vivenciada, majoritariamente, pela população negra.

O artigo está organizado em dois itens: primeiramente, faremos um resgate acerca da formação sócio-histórica latino-americana e brasileira, na qual se encontram as raízes do capitalismo dependente e do Estado no Brasil, bem como a relação com a fome de ordem estrutural; em um segundo momento, explicitaremos os dilemas da vivência diária da fome; para isso, mostraremos os relatos de Carolina, mulher, preta, pobre e chefe de família, que revelam as violações advindas da cor da sua pele.

2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O CAPITALISMO DEPENDENTE E O ESTADO NO BRASIL

“Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não sou da época do Brasil bom…”

(Carolina Maria de Jesus)

Para compreender a fome no Brasil, é necessário apreender que ela “é consequência, antes de tudo, de seu passado histórico” (CASTRO, 1982, p. 280). Dessarte, ao articulá-la com a questão étnico-racial, é emergente resgatar, mesmo que de forma breve, alguns elementos que decifram como o Brasil, inserido no bojo latino-americano e no circuito de acumulação de capital em escala global, ou seja, na condição de capitalismo dependente, atende às necessidades exógenas de acumulação global, tendo como consequência o subdesenvolvimento de sua economia.

Em meados do século XX, Castro já denunciava que a [...] fome e o subdesenvolvimento são uma mesma coisa” (1982, p.47), evidenciando a relação umbilical mantida entre a produção da riqueza para os países de economia central e a produção da miséria para os países de economia dependente. A percepção de Josué de Castro guarda os pressupostos que serão explicitados pela Teoria Marxista da Dependência e que explicam o segredo da troca desigual e da superexploração da força de trabalho como mecanismos fundamentais para a manutenção da dependência.

Nessa linha, cabe sinalizar que, de acordo com os estudos de Fernandes (2008), os países considerados subdesenvolvidos não representam um passo inferior na escala de desenvolvimento, como se estivessem em um estágio transitório que permitiria evoluírem no escopo do modo de produção capitalista para o mesmo destino dos países desenvolvidos. Pelo contrário, a condição de subdesenvolvimento reflete o domínio externo sob o qual as nações latino-americanas estão submetidas desde a sua incorporação na divisão internacional do trabalho.

Pensar a consolidação do capitalismo latino-americano demanda considerar a combinação de elementos modernos do capitalismo central com relações sociais e de produção arcaicas, fundantes das economias latino-americanas. A subordinação do capital aos interesses externos, o caráter agrário-exportador da inserção da nossa economia na divisão internacional do trabalho e a elaboração de mecanismos ideológicos de dominação compatíveis com as novas formas de organização do trabalho e da exploração, tendo o racismo como mediação fundamental das relações contraditórias (SOUZA; TELES, 2021), são alguns dos elementos histórico-estruturais que marcam o desenvolvimento capitalista brasileiro e contribuem na explicação da própria dinâmica estabelecida entre o Estado e a luta de classes na região.

Essas condições de subdesenvolvimento e de dependência foram (e são) constituídas a partir da violência e da expropriação sem precedentes, cometidas na América Latina. Castro (1982, p.267), quando analisa a fome no Brasil, argumenta que o Brasil, inscrito na América Latina, desenvolveu "[...] sua vocação oceânica, exportando toda sua riqueza potencial - a riqueza do seu solo e de sua mão-de-obra por preços irrisórios". Essa compreensão é chave para apreender a inserção dos países latino-americanos e do Brasil no processo de acumulação capitalista e o modo de produção e reprodução particular, que vai sendo constituído em terras tupiniquins. Nesse contexto, a fome não advém da escassez. Mas, sim, do extermínio dos povos tradicionais e destruição de suas culturas ancestrais, da apropriação privada da terra e dos produtos que advém de seu cultivo e da privação da alimentação aos que na terra produziram.

Marini (2000) assinala que o problema posto pela troca desigual à América Latina se assenta na necessidade de compensar a perda de mais-valia no plano da produção interna, pois, segundo o autor, são estabelecidas relações comerciais baseadas em um sistema de trocas assimétricas e desfavoráveis, reatualizando, permanentemente, os termos do intercâmbio desigual. Através desse mecanismo, os condicionantes da dependência empreendem uma maciça transferência de valor produzido na periferia, que é, então, apropriado no centro da acumulação mundial, de modo que a dinâmica capitalista é garantida através de uma superexploração da força de trabalho na periferia.

A superexploração é caracterizada como um regime de regulação da força de trabalho, cuja acumulação de capital repousa sobre a maior exploração do trabalhador e não sobre o aumento da capacidade produtiva. De acordo com Marini (2000), o que, aparentemente, configura um dispositivo estrutural de compensação no mercado, caracteriza-se como um instrumento que opera internamente no âmbito das relações sociais de produção, gerando, nos países dependentes, efeitos severos sobre o trabalho, por meio de três mecanismos: “a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho” (MARINI, 2000, p. 125). Os efeitos da superexploração são sentidos pela classe trabalhadora pelas condições barbáricas a que estão submetidos e expressam a dinâmica estabelecida entre centro e periferia no capitalismo.

[...] o desenvolvimento do capitalismo como modo de produção global só pode se dar de maneira desigual e combinada, assentada em relações econômicas e de poder, que estabelecem os mecanismos para a drenagem de riqueza das economias menos desenvolvidas para as mais desenvolvidas, em termos capitalistas; seja pela troca desigual entre as regiões, pelo sistema da dívida pública ou pela manutenção das regiões mais subdesenvolvidas como fornecedoras de força de trabalho barata” (SOUZA; TELES, 2021, p. 48)

As determinações, impostas pela dependência, mitigaram as possibilidades de concretizar a dependência política e econômica; restringiram o desenvolvimento interno do mercado nacional; aprofundaram a condição de economia agrária-exportadora; radicalizaram as iniquidades sociais; consolidaram o racismo como instrumento de dominação fundamental na estrutura social racializada do país2; reduziram o papel do Estado a garantidor fundamental da subordinação econômica ao capital estrangeiro. Outros resultados concretos desse modo de desenvolvimento foram as restrições impostas à organização da classe trabalhadora, desde as ínfimas condições para a reprodução da força de trabalho até as dificuldades para mobilização e a constituição de frentes de lutas mais amplas.

a classe trabalhadora [...] solapada pela superexploração, pela marginalização e pela opressão de formas diversas, nunca pôde se constituir como uma esfera da sociedade que imputasse controle aos desmandos das oligarquias locais, tampouco ao crescente controle exercido pelo imperialismo no território” (SOUZA, 2020, p.132).

Nesse aspecto, sublinha-se que, no âmbito do capitalismo dependente, as diversas ações que buscavam a barragem da população negra (MOURA, 2021), através de políticas-ideológicas-biologicistas de branqueamento e democracia racial, resultaram, dentre outros, numa brutal invisibilização do negro e do indígena e de suas histórias de resistências, corroborando para o seu estranhamento como trabalhador no palco da luta de classes3.

Ademais, a escravização brutal e prolongada, ocorrida no Brasil, e os seus desdobramentos4 têm seu corolário na estruturação de uma sociedade racializada em que a população negra é considerada inferior e culpada pela vivência das inequidades sociais. Isto pois, “foi na pilhagem, exploração e transformação da terra e do produto do trabalho social em propriedades privadas, que se assentaram as contradições sociais nas quais se sustenta o racismo, o qual passa a ser estrutural na sociedade que se desenvolve sobre estas violências” (SOUZA, 2020, p. 15). Essa argumentação serve como ampla justificativa para a ação brutal e cotidiana sofrida pelos negros, em nosso país, que se expressa desde a violência direta contra seus corpos até a negação de iguais condições para acesso às políticas sociais.

Desse modo, a coerção e a violência, impetradas pelo Estado frente à mobilização dos(as) trabalhadores(as), tornam-se pressupostos para a manutenção da dinâmica da dependência e estrutura social racializada. Vale reconhecer que o Estado, nas economias dependentes, implica uma condensação das relações de poder e de dominação (OSÓRIO, 2019), representa o monopólio do poder político, sob o qual se reorganizam os mecanismos de dominação racistas e patriarcais. Agrava esse quadro à restrição da soberania dos países de capitalismo dependente, sendo uma caraterística estrutural situada no interior do capitalismo mundial (OSÓRIO, 2019).

Diferente da realidade política dos países centrais, em que a burguesia assume a tarefa de realizar uma “revolução democrático-burguesa”, a realidade brasileira apresenta um esvaziamento político marcado pela ausência de um projeto de nação e renúncia de qualquer possibilidade de mudança no curso do desenvolvimento do capitalismo dependente.

As elites, no controle do Estado, renunciaram a qualquer iniciativa política que alterasse a dinâmica de distribuição de riquezas, na sociedade brasileira, situação que instituiu mecanismos jurídicos de garantia da permanência na concentração da terra e do capital, perpetuando seus próprios privilégios e poder a despeito da grande maioria dos trabalhadores (SOUZA, 2020, p. 134).

Resultado disso é a fragilidade do Estado democrático de direito que, constantemente, sofre ameaças na sua institucionalidade5 e não garante o mínimo de dignidade para a população brasileira. A aliança realizada pela “burguesia nacional” com o capital internacional dispõe da modernização conservadora6 como balizadora de desenvolvimento e é responsável por criar uma identidade particular: a subsoberania.

A dimensão subsoberana do Estado do capitalismo dependente implica a subordinação/associação do capital e das classes dominantes locais frente ao capital e às classes soberanas do mundo desenvolvido e imperialista [...] uma condição de vida das classes dominantes locais, o que não exclui possíveis conflitos (OSÓRIO, 2019, p. 206)

Esses elementos particularizam as feições, assumidas pelo Estado no Brasil, e delegam a ele o exercício de funções ligadas, em especial, ao controle e à coerção da classe trabalhadora. A dominação, por meio da violência, dirigida à classe considerada perigosa, ou seja, a população negra, aparece como uma das principais estratégias de ação7. A práxis dessas funções é materializada de diferentes formas. Porém, expressam-se com mais intensidade a partir da ação dos seus agentes públicos. Os registros presentes no Diário de Carolina, ainda que em sua fase precedente, revelam essa prática:

Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa arvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatorio. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (JESUS, 2014, p.108).

Na atualidade, fazem-se mais do que presentes as intervenções, cada vez mais, repressivas do Estado, principalmente à população negra, legitimadas pelos seus representantes políticos. Dados do Atlas da Violência de 2021 (CERQUEIRA, 2021) revelam que, em 2019, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros foi de 29,2, enquanto a dos não negros foi de 11,2. Isso indica que a probabilidade de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. No recorte de gênero observa-se que em 2019, as mulheres negras representaram 66% do total de mulheres mortas no país, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, enquanto a taxa entre mulheres não negras foi de 2,5. Quando analisado os dados sobre as mortes por intervenção policial (Política civil e militar) o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2021) revela que em 2020 foram 6.416 mortos. Deste total, 78,9% dos assassinados são pessoas negras.

Expressa-se, assim, um Estado punitivo e ausente de compromissos com o atendimento das necessidades básicas da população, dentre elas: a manutenção da vida e a fome. Diante disso, em 1958, Carolina reivindicava: “...o que eu aviso aos pretendentes a política, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para descrevê-la [...]. O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora” (JESUS, 2014, p. 29).

Ao defender que “é preciso conhecer a fome para saber descrevê-la” e que o Brasil precisa ser governado por quem conhece a fome, Carolina Maria de Jesus relata, a partir de suas próprias vivências, a contradição do papel do Estado em um país que se moderniza ao mesmo tempo em que produz miséria; que se pretende democrático ao mesmo tempo em que atua de forma arbitrária; que se diz inclusivo, contudo, mantendo o racismo como arma ideológica, que considera “gente de favela” como marginais (JESUS, 2014, p.54).

Carolina reconhece, mesmo distante da cátedra acadêmica, sua relação com a não ação do Estado e com o interesse político-partidário por trás da fome:

Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos cerrados. Com orgulho que fere a nossa sensibilidade (JESUS, 2014, p.38).

Isso porque “quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre” (JESUS, 2014, p. 39). Nesse sentido, quando diz que o país precisa ser dirigido por quem já passou fome, reconhece que a representatividade e a direção política, econômica e social deste país é branca: “[...] o mundo é como o branco quer” (JESUS, 2014, p.70); “Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.” (JESUS, 2014, p.30); expressando o caráter racista, estruturante das relações sociais no Brasil.

A análise da autora coaduna com o exposto por Fernandes (1987), no que diz respeito à representação política, no Brasil, constituir-se a partir dos interesses das classes dominantes. Os dados do IBGE (2020) e da PENSSAN (2021) também reforçam a argumentação de que a população que majoritariamente passa fome é a negra, e, no seio dessa população, as mulheres negras são as que mais sofrem. Ademais, Josué de Castro (1982) reconhece que “mesmo os governos mais empenhados em nossa emancipação econômica não tiveram ainda sucesso neste setor vital para o bem-estar social do nosso povo” (p. 288), o que retoma o caráter estrutural da fome no país e da sua reprodução como determinante do caráter dependente de sua economia.

Dessa forma, mesmo distante da construção teórica e crítica de Josué de Castro, Carolina reconhece, na sua própria vivência, e descreve as contradições do papel do Estado e de seus candidatos-representantes, quando do interesse quadrienal na fome, que, quando eleitos, reproduzem racismo e miséria. (Re)mediador das necessidades sociais, o Estado se legitimou e permanece assim a partir de medidas ora pautadas na coerção ora pautadas na concessão.

3 A FOME COMO PROJETO DE DOMINAÇÃO

“Nós já estamos predestinados a morrer de fome!”

“...Pra mim o mundo em vez de evoluir está retornando a primitividade”

(Carolina Maria de Jesus)

A leitura do livro Geografia da Fome, de Josué de Castro, e de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, possibilita mediações da teoria com a concretude. Por meio de um movimento de investigação da formação histórico-estrutural da sociedade brasileira, visualizamos parte da dinâmica das relações sociais que engendram o país.

Tanto Josué de Castro quanto Carolina Maria de Jesus retratam a centralidade da fome e contrariam o pensamento hegemônico do período, que a explicava a partir do biologicismo. Josué (1982) examina o tema de modo mais detalhado. Para isso, descreve os aspectos qualitativos, um assunto considerado tabu da civilização, delicado e perigoso; Carolina faz o mesmo, já que revela como a fome se manifesta na sua realidade, porém, também expressa a falta de renda, a pobreza, a fome e como tudo isso se relaciona com a forma com que se utiliza a terra.

Discutir a produção da fome implica a consideração acerca da questão agrária no país, sendo esta entendida como

[as] relações sociais de produção demarcadas por diferentes concepções de terra, território e vida. Tem a ver, portanto, com como se produz alimentos, que tipo de relação social a fundamenta e qual forma-conteúdo do processo de trabalho e de produção. Cabe reforçar que se a questão agrária não pode ser vinculada somente ao capitalismo dado que terra e trabalho não são próprios somente deste modo de produção, [mas] é neste processo violento de transformação da terra e da força de trabalhos em mercadoria que a questão agrária ganha uma tônica hegemonizada na figura da propriedade privada sobre a vida ao longo dos últimos duzentos anos. (TRASPADINI, 2018, p. 1696, entre colchetes nosso).

O processo de invasão colonial suplantou a diversidade da produção da vida para transformá-la em propriedade, ou seja, território privado e instrumento de extração de recursos minerais e naturais e de exploração da mão de obra. Enquanto colônia, a questão agrária passa a ser “essência produtiva dos proprietários privados” (TRASPADINI, 2018, p. 1700) para a produção de uma mercadoria-padrão ou um recurso nas mãos dos proprietários. Além disso,

[...] implementa na conformação da modernidade e do moderno estado de direito, uma nova fase e dimensão da questão agrária: os que terão terra versus os sem terra. Os primeiros, serão os responsáveis por fazer dinheiro virar mais dinheiro, ou seja, valor que se valoriza; enquanto os segundos serão os que, na condição de condenados da terra (ou da ausência criminosa dela) serão forçados a trabalhar em diversos regimes de trabalho para produzir a mercadoria. [...] Na invasão colonial vão se assentar as bases de consolidação da terra como propriedade privada e dos/das sem terras como potencial futuro de exército industrial de reservas à disposição dos donos do capital no território. (TRASPADINI, 2018, p. 1701-1702)

Determinada pela questão agrária, desde a invasão colonial, e complexificada, na medida em que se engendra o capitalismo dependente, compreende-se que a fome não é fruto da escassez de alimentos, tampouco expressão de uma pobreza que existe autonomamente. A fome é constitutiva e produto do subdesenvolvimento ao mesmo tempo em que expressa seu aprofundamento: o par, formalmente, dissonante e antagônico – o subdesenvolvimento versus o desenvolvimento – é a pré-condição para que se compreenda a problemática do modo de produção capitalista em um contexto de dependência.

Quando tomada, apenas, como oposto da alimentação, a fome, por si só, não dá conta de expressar a contradição inscrita na realidade concreta dos sujeitos que convivem com ela. Se o antônimo da fome e da insegurança alimentar é a alimentação ou a sobrenutrição, “isto não pode ser real num país fertil igual ao meu” (JESUS, 2014, p.40), pois atualmente é um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Contudo, convive com mais de dezenove milhões de brasileiros que se encontram em situação de insegurança alimentar grave, dentre os quais a maioria é a população preta ou parda (PENSSAN, 2021). Essa realidade se explica a partir da compreensão de que:

A estrutura de reprodução do capitalismo dependente, imputa a permanência da desigualdade, da marginalização e da miséria, expressas de maneira devastadoras sobre os descendentes dos africanos escravizados e dos povos indígenas – negros, quilombolas, caboclos, mestiços, ribeirinhos sertanejos, etc., sujeitos estes submersos a condição de venda da força de trabalho em situações violentas de precariedade estrutural. (SOUZA, 2020, p. 134)

A precariedade estrutural, materializada na fome, em um país localizado na periferia do capital não deve, no entanto, ser tomada como homogênea, sem variantes históricas, culturais e geográficas. Enquanto subproduto do enriquecimento de uma classe minoritária, por meio da exploração econômica e extraeconômica de outra, a fome é fenômeno complexo, que deve ser entendido em sua totalidade. Não obstante, devem ser resguardadas as particularidades que a conformam.

Apesar dos dados apresentados, que mostram a intensificação do Brasil-que-passa-fome, antes e durante a pandemia do Covid-19, verificamos, por outro lado, que, no ano de 2020, o Brasil respondeu por 50% do mercado de soja, alcançando o posto de segundo exportador de milho. Além disso, consolidou-se como o maior produtor de açúcar e café e detém o maior rebanho bovino, sendo, portanto, o maior exportador desta carne no mundo (EMBRAPA, 2021).

Carolina, em sua obra, descreve a impossibilidade de comprar o direito à alimentação, pois “os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta contra as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista” (JESUS, 2014, p.60). Dessa forma, “[...] o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida” (JESUS, 2014, p.11), visto que a autora precisa fazer a escolha diária entre comer ou comprar um sapato diante do insuficiente recurso financeiro que recebe. O relato converge para a estrutura agroexportadora e de superexploração da força de trabalho em que se assenta o país. Relata que:

[...] o céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe” (JESUS, 2014, p.43).

O alto custo dos gêneros alimentícios dificulta ou impede o seu acesso. Isso explicita o caráter estritamente mercadológico que o alimento apresenta no contexto capitalista. Com a impossibilidade da compra, tanto por Carolina quanto pelo restante da população, muitos gêneros alimentícios acabam inválidos e são descartados pelos atacadistas, armazéns e frigoríficos:

[...] Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: É assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subir na ganancia de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados (JESUS, 2014, p.34).

Nessa perspectiva, a autora questiona: “[...] porque é que o homem branco é tão perverso assim? Ele tem dinheiro, compra e põe nos armazéns. Fica brincando com o povo igual gato com rato” (JESUS, 2014, p.148). A perversidade, ainda, é descrita quando “[...] no Frigorifico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer.” (JESUS, 2014, p.44). Contudo, é no lixo onde muitos favelados, inclusive Carolina, recorrem para acessar alimento, pois “o custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animais” (JESUS, 2014, p.114), e, assim, “os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos” (JESUS, 2014, p.41).

Na sequência da obra, a escritora acrescenta a preocupação e faz uma crítica, por meio de uma analogia:

Não sei porque é que estes comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui perto da favela, para as crianças ver e comer. ... Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome. Naquela época, os que não queria morrer deixavam de amar a Cristo. Mas nós não podemos deixar de comer (JESUS, 2014, p.146).

Tomar a temática da vivência da fome, na sua complexidade, significa denunciar o verdadeiro descompasso entre: a realidade da população, que não se alimenta; a produção agrícola de um país, que não se destina a suprir as próprias necessidades; e a transformação da fome em recurso político de um Estado, propositalmente, conformado sob os moldes do desenvolvimento da monocultura mercantil, sob o alicerce do latifúndio, cujo sujeito do processo de trabalho foi o negro, independentemente da condição de escravo ou assalariado.

A fome é projeto operacionalizado pela burguesia e protagonizado pela omissão do Estado, que perpetua sistemas de (des)proteção social (TELES; CORRÊA, 2021) e que se estrutura na naturalização da condição de desigualdade, herdada pelo escravismo colonial e reforçada institucionalmente no capitalismo dependente. Assim como os alimentos a serem exportados, a fome também é produzida diária e massivamente em todo território nacional, seja pela ausência de terra, seja pela ausência de renda.

De acordo com dados do IBGE (2020), dos 10,3 milhões de brasileiros que tiveram privação severa de alimentos, mais da metade residiam em domicílios chefiados por mulheres. Neste sentido, olhar para a obra literária de Carolina Maria de Jesus, mulher, preta, favelada, residente do sudeste e chefe de família, significa, em última instância, olhar para a forma com que esta transforma em narrativa literária suas experiências de pobreza e miséria, representando a síntese da mulher negra no Brasil urbano (PUREZA, 2017).

Sobre a sua própria experiência, relata que “Cheguei em casa, aliás do meu barracão, nervosa e exausta. Pensei na vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta” pois “tem dia que eu não tenho nada para os meus filhos comer” (JESUS, 2014, p.12, 102). A realidade de Carolina é de uma mulher que possui diferentes fontes de renda. Mas, todas são advindas do trabalho informal e insuficientes para uma família de quatro pessoas (ela e os três filhos) não passarem fome. Ademais, a autora registra no texto a sua tristeza e o desapontamento dos filhos, quando não têm nada para comer ou mesmo, quando come, ainda resta fome. Para a escritora, a fome é a escravatura atual.

Diante desse cenário, a protagonista ressalta que pensou, em diversos momentos, em suicídio:

Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo? (JESUS, 2014, p.174).

Ainda, relata que “ouvia as mulheres lamentando com lagrimas nos olhos que não aguenta o custo de vida” (JESUS, 2014, p. 94), retratando o quadro da fome vivenciada por mulheres chefes de família. Ciente dessa realidade, conclui que “[...] se os pobres do Brasil resolver suicidar-se porque estão passando fome, não ficaria nenhum vivo” (JESUS, 2014, p. 162). Essas vivências escritas materializam os efeitos nocivos e barbáricos da superexploração da força de trabalho, que nega, historicamente, à população negra, em sua maioria, o acesso à terra, ao alimento, ao trabalho, ao consumo e, por conseguinte, à própria subsistência.

Articular a fome, personificada na vivência de Carolina e sua família, com a interpretação acadêmica de Josué, significa não mais fragmentar a realidade social de milhões de pessoas. As duas obras são referências como instrumento de mediação entre o que se presentifica, na contemporaneidade, e o que é histórico-estrutural da sociedade escravista-capitalista brasileira.

O estereótipo preguiçoso do Nordeste açucareiro, de Josué de Castro, colore-se do amarelo anêmico, oriundo do adoecimento físico; o subdesenvolvimento no território do progresso também é colorido de amarelo por Carolina pelas lentes da fome. Relata Carolina após comer: “[...] que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos” pois percebeu que “a tontura da fome é pior do que a do alcool. A tontura do alcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrivel ter só ar dentro do estomago.” (JESUS, 2014, p.44).

Das cores que colorem a vida de Carolina: amarela é cor da lente pela qual ela vê tudo, quando está com fome, bem como a cor dos corpos, quando desnutridos; roxa é a cor da agrura, que está no coração dos brasileiros famintos; preta, quando analisa a cor da vida que tem vivido, bem como a cor de sua pele e a cor do lugar onde mora, o quarto de despejo. (JESUS, 2014).

Sobre este último, considera que, se o centro da maior cidade do centro-sul do país é a sala de visitas, a favela é o seu quarto de despejo: “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (JESUS, 2014, p.37)

É, nesse quarto de despejo, ou seja, na favela, onde “os favelados comem quando arranjam o que comer.” (JESUS, 2014, p.35). Porém, se não bastasse, Carolina registra que é de lá que se despede do arroz e do feijão, que dão lugar à macarronada:

Antigamente era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo. Quem não nos despresou foi o fubá. Mas as crianças não gostam de fubá. (JESUS, 2014, p.43)

Frente ao exposto, entende-se que o subdesenvolvimento também impõe o que se come, como se come, por que se come e onde se come. O agronegócio, atualmente, representa 60% da balança comercial do país, cujos produtos são destinados, majoritariamente, à exportação, o que significa que 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros vêm da agricultura familiar, que produz em um território, em média, entre um e dois hectares de terra (BBC, 2020). No entanto, as políticas de incentivo à agricultura familiar mostram-se incipientes frente ao poderio do agronegócio que, desde 2016, vem intensificando a desarticulação e desmonte de qualquer ação que se mostre contrária à sua lógica. A prevalência da lógica dos royalties, a desigualdade de acesso às tecnologias, maquinário e insumos básicos para o plantio e as condições para manutenção da terra têm sido determinantes para a expulsão das famílias do campo. O modelo agrário-exportador, adotado no Brasil desde o período colonial, é responsável por uma série de consequências. Dentre elas, uma das mais importantes é o estabelecimento da dinâmica geral de acumulação de capital e a necessária transformação dos recursos minerais e naturais e o humano em mercadorias rentáveis (TRASPADINI, 2018).

O agronegócio, uma das principais facetas do capitalismo dependente, dita quem come e quem não come nesta sociedade. Embora com especificidades contemporâneas, não significa mais que a manutenção de uma visão colonialista. Isso nos convida a revisitar o passado-presente agroexportador.

O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão. O processo de “libertação” da exploração compulsória e coisificada da população preta foi precedida da Lei de Terras, datada de 1850, inscrevendo a seletividade étnico-racial do acesso à mesma. Sendo assim, ao abordar a fome, é salutar discutir acerca da produção. Porém, ressalta-se que é impossível discutirmos produção sem acesso à terra. Em outras palavras, colocar a fome na ordem do dia pressupõe o esforço no desvelamento da questão agrária, da questão da terra, ou seja, na questão étnico-racial, determinando as formas de ser e existir dos negros ou, nas palavras de Carolina, “Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome” (JESUS, 2014, p.44).

4 CONCLUSÃO

Ao longo deste artigo, deparamo-nos sobre o fenômeno da fome no cotidiano concreto, vivido pela população brasileira, questionamos: as causas pelas quais a maior parte da população, que passa fome, é preta ou parda; refletimos sobre o porquê dessas pessoas não terem acesso à terra; buscamos saber os motivos pelos quais se é, historicamente, negada a mudança nas bases da estrutura agrária deste país; procuramos saber o porquê o racismo não se configura, apenas, no plano ideal, mas qual o grau de incidência do racismo na materialidade do cotidiano-histórico desses sujeitos.

As tímidas políticas sociais, favorecedoras da agricultura familiar nos tempos recentes, foram incapazes de modificar, estruturalmente, os determinantes da fome, isto é, mantiveram o papel de resguardar a classe dominante, a burguesia agrária do país. A burguesia, por sua vez, dá continuidade ao projeto da fome, por meio da monocultura, do latifúndio e da mão de obra negra. Dessa forma, se estrutura a fome no Brasil, acrescida, ainda, pela mecanização do campo e pela utilização de agrotóxicos.

Embora se reconheça a importância de políticas que minimizem a fome, é necessário vincular essa problemática à dinâmica concreta da luta de classes brasileira, manifestada na desigualdade social e racial de um país que pinta de amarelo-fome corpos negros, tudo que estes veem, e que se orgulham de ser o celeiro do mundo dos outros e quarto de despejo de si mesmo.

Com o destrinchar da análise, observamos que a fome não se apresenta, apenas, na atualidade, tampouco se trata de um fenômeno natural: é endógeno ao processo histórico-social estruturante do capitalismo no Brasil, ao mesmo tempo que é uma resultante inseparável da condição dependente sob a qual este país foi construído. É produto manifesto na insegurança alimentar de milhões de brasileiros/as, passando, necessariamente, pelo racismo em suas múltiplas formas de manifestações, nas quais o Estado burguês e dependente, inapto – e inepto – à sobreposição de interesses públicos aos privados, opera um projeto para a manutenção, reprodução e aprofundamento dos níveis de desigualdade social e racial.

REFERÊNCIAS

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CERQUEIRA, Daniel. Atlas da Violência 2021 / Daniel Cerqueira et al., — São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acesso em: 16 jun. 2021.

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FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de uma interpretação sociológica. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 5 ed. rev. São Paulo: Global, 2008.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Brasília (DF), ano 15, 2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiroseguranca-publica/. Acesso em: 25 ago. 2021.

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IBGE. 10,3 milhões de pessoas moram em domicílios com insegurança alimentar grave. IBGE, 2020. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/28903-10-3-milhoes-de-pessoas-moram-em-domicilios-com-inseguranca-alimentar-grave. Acesso em Dezembro de 2020.

JESUS, Maria Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Editora Ática, 2014.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini; organização e apresentação de Emir Sader. Petrópolis: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000.

MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. 2. ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois, coedição com Anita Garibaldi, 2014.

MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão?. 2. ed. São Paulo: Editora Dandara, 2021.

OSORIO, Jaime. O Estado no Centro da Mundialização: A sociedade civil e o tema do poder. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2019.

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SOUZA, Cristiane Luíza Sabino de. Racismo e luta de classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. 1. ed. São Paulo: Hucitec, 2020.

SOUZA, Cristiane Luiza Sabino de; TELES, Heloísa. Pressupostos Para Uma Análise Histórico-Estrutural Da Questão Social No Brasil. In: Revista Temporalis, Brasília (DF), ano 21, n. 42, p. 44-61, jul./dez. 2021. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/36842. Acesso em: 29 abr. 2022.

PENSSAN. Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil. PENSSAN, 2021. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf. Acesso em: 21 jun. 20021.

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TRASPADINI, Roberta. Questão agrária e América Latina: breves aportes para um debate urgente. Revista Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 1694-1713. 2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/36657. Acesso em: 12 jun. 2022.

Notas

1] A categoria de insegurança alimentar pode ser dividida em três: insegurança leve, moderada e grave. A insegurança leve acontece quando a família não tem certeza se terá acesso a alimentos no futuro, e quando a qualidade da comida já é ruim. Já a insegurança moderada surge quando os moradores já têm uma quantidade restrita de alimentos — menos comida na despensa do que o satisfatório. A insegurança grave aparece, nas palavras o IBGE, "quando os moradores passaram por privação severa no consumo de alimentos". É nesta categoria que se encaixa a definição tradicional de fome. (BBC, 2020).
2 Importa destacar essa reflexão, partindo do pressuposto de que “o racismo medeia, pois, todo um modo de ser e de existir, todas as relações sociais, desde: a psique dos indivíduos, os processos educacionais, passando pelas relações mercantis, toda a estrutura do Estado, as relações jurídicas, políticas, culturais, enfim, todas as dimensões da vida na sociedade marcada pelo colonialismo” (SOUZA, 2020, p. 15).
3 “Os colonizadores, ao classificarem, hierarquicamente, os colonizados, impuseram-lhes uma ontologia negativa do seu ser, exigindo que fossem negros ou índios — categorias criadas pelos colonizadores, que ao resumir o outro como inferior, justificava o fato de os terem feito escravos” (SOUZA, 2020, p. 147).
4 “No caso específico no negro brasileiro, que além de ter vindo da situação inicial de escravo, pertence a uma etnia que possui determinada marca, segundo os padrões brancos, o problema se agrava e surge, em consequência, uma série de barragens e razões justificatórias, capazes de impedir a sua ascensão social massiva. Dessa forma, os valores etnocêntricos das classes dominantes representam uma redoma ideológica que tem como função impedir a mobilidade vertical dos seus estratos inferiores” (MOURA, 2021, p. 37, grifos do autor).
5 Ilustram essa assertiva as rupturas político democráticas já ocorridas no Brasil como, por exemplo, a instituição do Estado Novo, em 1937, imposto a partir de um golpe, praticado por Getúlio Vargas. A ditadura militar, de 1964,

que perdurou por vinte e um anos, suspendendo direitos políticos e civis. E, mais recentemente, as constantes ameaças proferidas pelo atual presidente em relação à suspensão do processo eleitoral democrático em curso.

6 O termo “modernização conservadora” é utilizado para explicar o processo de desenvolvimento capitalista. Na particularidade brasileira, a modernização conservadora se expressou tanto no trabalho quanto em questões ideológicas, nas quais segmentos e grupos da sociedade escravista se modernizam, a partir da tecnologia e da ciência. Todavia, esse avanço passa a servir à classe dominante escravista, representando a permanência dos seus interesses e a negação à transformação social. “Em outras palavras: o moderno passa a servir ao arcaico” (MOURA, 2014, p. 86).
7 “No Brasil, [...], o capitalismo dependente se estruturou sobre a continuidade das formas de racionalização da dominação de classes, herdada do escravismo colonial e reforçou institucionalmente, por meio da atuação estatal, os mecanismos de reprodução dessa dominação. Mas o racismo estrutural no capitalismo dependente não é uma mera herança colonial, ele é parte inerente das relações sociais que se desenvolvem no seio desse modo de produção” (SOUZA, 2020, p. 136).


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