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RÊGO, Ana Regina; BARBOSA, Marialva. A construção intencional da ignorância: o mercado das informações falsas. Rio de Janeiro: Mauad X, 2020
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 1, pp. 222-227, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Resenha


RÊGO Ana Regina, BARBOS Marialva. A construção intencional da ignorância: o mercado das informações falsas.. 2020. Rio de Janeiro. Mauad X. 192pp.

DOI: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v26n1p222-227

Começo o meu texto com uma citação que me salta aos olhos e me instiga para a análise de tempos atuais.

Vivemos novos tempos sombrios. Tempos de destruição de direitos. Tempos de negação do outro. Tempos de intolerância política e religiosa. Tempos de violência. Tempos de feminicídios. Tempos de dominação da mente e do controle dos corpos. Tempos de combate à ciência. E não, não estamos na Idade Média, conhecida como Idade das Trevas. (RÊGO; BARBOSA, 2020, p. 16)

A citação acima refere-se ao livro “A Construção intencional da ignorância: o mercado das informações falsas”, publicado pela editora Mauad X, no ano de 2020, e traz os achados da pesquisa de Pós-doutorado da Professora Ana Regina Rêgo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação da Professora Marialva Barbosa. Oriundas de pesquisas que destacam uma trajetória de pesquisas e estudos ligados à historicidade e historiografia, voltados para a história da comunicação, com vários artigos publicados em livros e revistas, no trabalho atual, as autoras enfocam que o texto construído na obra não é em si historiográfico, mas todo o trabalho de apuração e interpretação considera o momento enquanto histórico.

Em suas palavras, as autoras citam a metáfora da pandemia do coronavírus com a pandemia das informações falsas, pelo entendimento de que, ambas são mazelas amplamente disseminadas, e que um olhar contemporâneo as fazem observar a proliferação de narrativas mentirosas e de controle das emoções no ambiente do jornalismo.

Nossa investigação científica nos levou ao entendimento de um processo que conhecíamos por meio da historiografia e da historicidade das teorias da comunicação de massa, em que estruturas de poder, sobretudo em regimes totalitários e ditatoriais, manipulavam a sociedade por meio de técnicas psicológicas de controle de emoção das pessoas expostas a determinadas mensagens. (RÊGO; BARBOSA, 2020, p. 17)

Na obra, é ressaltado que muitas dessas técnicas não são utilizadas como na década de 30, porém, na contemporaneidade elas são potencializadas e empregadas num mundo que tornou virtual a vida das pessoas, em que se utilizam cada dia mais dados do Bigdata[1] e da mineração para definir grupos de afinidades que recebem mensagens personalizadas. Apesar de que essas movimentações acontecem de forma virtual, elas tornam-se quando vemos hoje cada vez mais o inter-relacionamento entre os indivíduos e os campos da comunicação, da cultura, da política e o social. Os acontecimentos no mundo virtual estão cada dia mais presentes na vida real e no cotidiano dos seres humanos.

É esse contexto que as professoras Ana Regina Rêgo e Marialva Barbosa trazem para a pesquisa, buscando um entendimento da complicada atualidade que despeja a todo instante informações falsas na sociedade. Para tanto, as autoras optam em começar o trabalho com o conceito de democracia, mídia, poder e representatividade, título do segundo capítulo, no qual iniciam uma discussão a partir do triunfo da democracia liberal em detrimento de um sistema democrático. A insatisfação com esse sistema democrático leva à ascensão de líderes populistas e autoritários.

Na década de 1990 cerca de 34% dos jovens americanos apoiariam um líder autoritário sem parlamento ou eleições, contra 44% dos jovens entrevistados em 2011. No que concerne aos adultos, em 1995 cerca de 24% apoiariam um tirano contra 32% dos entrevistados na última pesquisa, apontando um crescimento no sentimento de ódio à democracia e de apoio a um regime totalitário no EUA. (RÊGO; BARBOSA, 2021, p. 23).

No geral, tais líderes populistas tendem a se articular a partir de um discurso demagógico, que prega um governo majoritário, excluindo o direito das minorias. “Jair Messias Bolsonaro, Boris Johnson e Donald Trump são exemplos de personagens que se destacaram nesse cenário de desilusão com a democracia liberal” (RÊGO; BARBOSA, 2021, p. 27). O que as autoras articulam buscar no segundo capítulo é o entendimento da relação entre mídia, política, democracia e poder. Fundamentadas em autores como Dunker (2019), Arendt (2009), Foucault (1999, 2010, 2014) e Rancière (2014), elas concluem que:

A democracia como modelo liberal encontra-se em crise. A representação política está em processo de contestação permanente. Os eleitos para os poderes Legislativo e Executivo pouco representam o povo e suas necessidades, embora tenham sido eleitos democraticamente. A população brasileira e, em grande medida, mundial não confia nem nos políticos nem nos partidos. O processo de desconfiança é crescente e tem na raiz tanto as práticas corruptivas, agora não mais passíveis de se manter em segredo, como as fábricas de informações falsas que manipulam notícias e terminam por jogar todos no mesmo caldeirão da incredibilidade. (RÊGO; BARBOSA 2021, p. 50)

A partir dessa constatação da incredibilidade é que, no terceiro capítulo, as autoras discorrem sobre – Valores, verdades, acontecimento, informação e jornalismo. Iniciando a abordagem sobre o assunto, Ana Regina e Marialva, buscam na Filosofia com Descartes, a compreensão para além do método Cartesiano - “penso, logo existo”. O Filósofo que vivenciou tempos de crise deixou a dúvida como centro da construção do pensamento, “Esse filósofo duvida de tudo sobre o que em tese não poderia haver dúvida, e é duvidando que consegue chegar a uma proximidade com a verdade” (RÊGO; BARBOSA, 2020, p. 54).

Ainda sobre verdade, as autoras abordam Foucault (2009), que diz que em torno da verdade se buscam os consensos sociais e temporais e em Nietzsche se diz que é a vontade de verdade que guia os indivíduos em sociedade. Ana Regina e Marialva Barbosa chamam a atenção do leitor para o fato de que os métodos vão se articulando para que as construções de verdade sejam incontestáveis, porém a voz de Deus, que parecia estar enfraquecida, sempre permaneceu, mesmo que encoberta. A problemática dessa situação é a pluralidade de deuses e de vozes que surgem.

Considerando o que Foucault (2009) fala sobre um regime de verdade, as autoras afirmam que

Dentro do regime de historicidade da modernidade e a partir dos valores, alavancados por ela, como a objetividade e a imparcialidade em alguns casos, é que a ciência e os demais campos que se constituíram ou se modificaram a partir dos novos valores constituintes e circundantes ao campo da ciência, terminaram conquistando um locus veritas, tais como a academia, o jornalismo, o Direito e História. Entretanto, esse lugar encontra-se em permanente tensionamento e, na atualidade, em confronto com narrativas que procuram descredibilizá-los (RÊGO; BARBOSA, 2020, p. 61).

O conceito de verdade e imparcialidade sempre foi matéria muito discutida nos cursos de Comunicação Social – Jornalismo, por isso as autoras falam de um tensionamento. No entanto, o que se vê hoje está para além de tais discussões e se encontra na produção das narrativas falsas, as chamadas fake news. Ana Regina e Marialva Barbosa entendem que o desenvolvimento das fake news, bem como o próprio conceito de pós-verdade[2] estão diretamente ligados aos processos tecnológicos e à fantasia da obtenção de um poder de fala que as redes sociais carregam. Somada a isso, as autoras também abordam a proliferação das fakes news no contexto político e no fortalecimento de um conservadorismo que, na ausência de regulação nas plataformas digitais, leva a livre circulação de narrativas antiéticas e mentirosas.

Sobre a disseminação de narrativas falsas, as autoras fazem um capítulo intitulado – A construção intencional da ignorância, no qual elas começam abordando o livro Agnotologia da construção e desconstrução da ignorância, do historiador americano Robert Proctor da Universidade de Stanford, em parceria com Londa Schiebinger. Nas palavras das autoras “A agnotologia dedica-se a estudar os meios utilizados para a produção de um processo coletivo de ignorância no seio da sociedade [...]” (RÊGO; BARBOSA, 2022, p. 94).

Como exemplo do que é dito, Ana Regina e Marialva Barbosa citam as eleições de 2016 no EUA, as eleições de 2018 no Brasil e o caso BREXIT na Inglaterra.

Nesse capítulo, as autoras trazem a pesquisa de Zvereva (2018) que estuda a internet russa conhecida como Runet. De acordo com a pesquisadora, a Rússia tem se destacado como um país, entre os países europeus, que possui muitos usuários de internet, e essa ferramenta foi utilizada na primeira década do Séc. XXI, como uma forma de inserção da cultura Russa no mundo. No entanto, o que se percebe hoje é que esse espaço pode se tornar uma ilha incomunicável da rede mundial de computadores, pois o governo russo vem dedicando esforços para fazer da Runet um “[...] instrumento estatal de propaganda e contrapropaganda, dirigido tanto a russos como a usuários estrangeiros” (ZVEREVA apud RÊGO; BARBOSA, 2020, p. 181).

As autoras ainda trazem, no quarto capítulo, alguns pontos importantes na discussão sobre a produção intencional da ignorância e citam a Cambridge Analytica, uma empresa de Robert Mercer e do estrategista Alexander Nix, que combinava Big data com mineração de dados e perfis psicológicos com o intuito de criar conteúdo específico para grupos. O objetivo principal da empresa não era apenas a combinação de dados, mas sim, como utilizar esses dados considerando principalmente o seu uso em campanhas eleitorais. De certa forma, tais conteúdos eram produzidos e direcionados para alguns perfis psicológicos que eram fáceis de manipulação. E, nesse contexto, as autoras buscam o conceito de sociedade do controle em Deleuze (1990), que nasce a partir de uma distinção em relação à sociedade disciplinar de Foucault (2002). Essa nova sociedade do controle vê o sujeito social desaparecendo e se transformando em dados e em um produto para o mercado virtual.

Marcados por números que vão do cadastro de Registro Geral, passam pelo cadastro de Contribuinte Pessoa Física, pelo cadastro do Sistema Único de Saúde e nos levam aos números de cada cartão de crédito ou débito, assim como contas bancárias e todas as movimentações do sistema financeiro das quais participamos, terminamos de modo crescente nos transformando em números e senhas. (RÊGO; BARBOSA, 2020, p. 126).

Encerrando o capítulo quatro, as autoras retornam aos conceitos de Foucault (2002) – sociedade disciplinar e de Deleuze (1990) – sociedade do controle e lembram que entre uma sociedade e outra, houve um processo de mutação. Antes, na sociedade do controle, era necessário o isolamento social do indivíduo que havia cometido um delito; na sociedade atual a vigilância acontece por todo e qualquer tipo de movimentação dos sujeitos a partir dos seus avatares virtuais ou mesmo, pelas suas caixas de correio eletrônico.

No quinto e último capítulo do livro, Ana Regina e Marialva Barbosa trazem aos leitores a interpretação de um universo de fake news que desempenhou um importante papel junto ao eleitorado no pleito eleitoral de 2018. O processo interpretativo escolhido pelas autoras se fundamentou na Hermenêutica da Consciência Histórica – HCH, de Paul Ricouer. Na HCH, Ricouer busca transcender o passado como algo que já não existe mais e mostra uma mudança de postura em relação à tridimensionalidade temporal. Numa refiguração da experiência temporal, Ricouer chega ao que denomina perspectivas fraturadas que indicam um ser-afetado-pelo-passado. Na HCH a tradição é vista como “elemento que procura relacionar o futuro ao passado de forma tensionada com o presente” (RÊGO; BARBOSA, 2020, p. 133). As análises apresentadas no capítulo se baseiam numa amostra não probabilística e intencional, considerando as narrativas falsas que tiveram maior abrangência e reflexividade pública. Ressalta-se, também, a importância dos atores políticos envolvidos no processo de criação, construção e divulgação das informações falsas.

A primeira fake news que aparece no quadro de amostra intencional de interpretação é o famoso kit gay, que teria sido distribuído na gestão do então Ministro da Educação, Fernando Haddad. Em entrevista ao Jornal Nacional, de acordo com as autoras, Jornal de maior audiência no Brasil, o ainda candidato à presidência da república, Jair Bolsonaro, apresentou o livro Aparelho Sexual e Cia, de autoria de Helène Bruller e Phillipe Chappuis, como parte integrante do kit gay, e ainda gravou vários vídeos, colocando o ex- ministro, Fernando Haddad, também candidato à presidência, como o responsável pela criação do kit. A partir daí o que vemos é, além da proliferação dessa falsa informação pelas redes sociais digitais, surgem também outras narrativas falsas baseadas na ideia ridícula de que, a partir do kit gay, a orientação sexual das crianças seria direcionada para um mundo homossexual.

Na refiguração da narrativa sobre o kit gay, supõe-se que, os brasileiros e brasileiras que acreditaram nessa má e falsa narrativa, que circulou principalmente através de grupos familiares pelo WhatsApp, abominam a proliferação do homossexualidade no Brasil e cultivam a ideia de que a criança, por ser vulnerável, deve ser protegida. O ser-afetado-pelo passado, em Ricouer “se manifesta nos dois polos da recepção da narrativa e o faz reconfigurá-la como uma afronta imoral à sociedade” (RÊGO; BARBOSA, 2020, p. 145). Aqui se percebe que, na cabeça de tais indivíduos, o que mais lhes interessava era a preservação dos valores que desejam para as crianças no Brasil. No entanto, e em contraponto, o empenho em defender crianças brasileiras não acontece quando são noticiadas informações sobre maus tratos, violência e trabalho escravo infantil.

Finalizando o livro das professoras Ara Regina Rêgo e Marialva Barbosa, importa-nos registrar que as autoras evocam uma esperança quando relatam a ação do Sleeping Giants, organização liberal de ativistas digitais, que denunciam empresas que financiam sites produtores de informações falsas. Há esperança também de que seja aprovada uma legislação e regulamentação direta a possíveis punições para esse tipo de prática. No nosso entendimento, as práticas de produção e circulação das fake news devem ser combatidas pela força de lei, mas principalmente, a partir dos usuários das próprias redes sociais. É sabido que o falso poder que as redes colocam nas mãos de pessoas comuns levam muitos a terem suas vidas rechaçadas e seus cursos alterados. Basta ver os cancelamentos que algumas pessoas públicas sofrem por intermédio das redes sociais. No entanto, ainda enquanto esperança, sabemos que as redes estão povoadas por grupos e pessoas do bem que buscam informar e cultivam a verdade dos fatos. Num ano de eleições presidenciais, nossa avaliação é de que o livro “A Construção intencional da ignorância: o mercado das informações falsas”, das professoras Ana Regina Rêgo e Marialva Barbosa, nunca esteve tão atual e com uma leitura tão necessária.

Notas

[1] Em linhas gerais define-se como a capacidade de processamento e armazenamento de um grande número de informações.
[2] [...] circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal” (Oxford Dictionares, apud D’Ancona, 2018 p. 20)


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