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CONFLITOS URBANOS EM MEDELLÍN E SÃO PAULO: dispositivos de publicização e cursos de ação para o direito à cidade
Morgana G. Martins Krieger; Marlei Pozzebon
Morgana G. Martins Krieger; Marlei Pozzebon
CONFLITOS URBANOS EM MEDELLÍN E SÃO PAULO: dispositivos de publicização e cursos de ação para o direito à cidade
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 1, pp. 249-269, 2022
Universidade Federal do Maranhão
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Resumo: Altas taxas de urbanização e baixa capacidade de atender aos cidadãos resultam em constantes conflitos urbanos na América Latina. Remoções urbanas compõem este cenário e, apesar de causadas também por políticas públicas, são pouco estudadas nesta área de estudos. Este trabalho atua nesta lacuna, investigando como, no decorrer de um conflito urbano, os vários atores interagem para mudar o processo de transformação urbana. O artigo apresenta um framework analítico aliando o direito à cidade à sociologia dos problemas públicos, que é empregado para apreciar dois casos de remoção, em São Paulo e Medellín, elaborados a partir de ampla pesquisa de campo. O artigo avança em duas contribuições: na criação e operacionalização do framework para a análise de conflitos urbanos e na identificação dos dispositivos de publicização e cursos de ação que favorecem ou impedem o alcance do direito à cidade.

Palavras-chave: Conflitos urbanos, Remoções, Direito à cidade, Sociologia dos problemas públicos.

Abstract: High urbanization rates and low capacity to serve citizens result in constant urban conflicts in Latin America. Urban evictions make up this scenario and, although also caused by public policies, they are understudied in this area. This paper addresses this gap by investigating how, in the course of an urban conflict, the various actors interact to change the urban transformation process. The paper presents an analytical framework combining the right to the city with the sociology of public problems, which is employed to appreciate two cases of evictions, in São Paulo and Medellín, prepared from extensive field research. The paper advances in two contributions: in the creation and operationalization of the framework for the analysis of urban conflicts and in the identification of the publicizing devices and courses of action that favor or impede the attainment of the right to the city.

Keywords: Urban conflicts, Evictions, Right to the city, Sociology of public problems.

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Artigos - Temas livres

CONFLITOS URBANOS EM MEDELLÍN E SÃO PAULO: dispositivos de publicização e cursos de ação para o direito à cidade

Morgana G. Martins Krieger
Fundação Getúlio Vargas – EAESP, Brasil
Marlei Pozzebon
Fundação Getúlio Vargas – EAESP, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 1, pp. 249-269, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 21 Diciembre 2021

Aprobación: 20 Mayo 2022

1 INTRODUÇÃO

O crescente processo de urbanização, acompanhado pela manutenção e exacerbação das desigualdades urbanas, é uma questão que assombra a América Latina. O continente apresenta uma das maiores taxas de urbanização do mundo, aumentando a demanda por moradia, serviços públicos, infraestrutura e uso do solo, resultando em uma miríade de conflitos urbanos relacionados à incapacidade de atender às necessidades dos cidadãos (LUDERMIR; ALVARADO, 2017; SCHIAVO; GELFUSO; VERA, 2017). Remoções urbanas se inserem nos conflitos relacionados à moradia e acesso à terra e fazem parte desse cenário. Apesar da inexistência de dados globais consolidados, alguns números ressaltam a magnitude destes processos: em 2014, mais de 4 milhões de pessoas foram forçadamente removidas de suas casas na América Latina e Caribe (LUDERMIR; ALVARADO, 2017); e somente na Região Metropolitana de São Paulo, entre 2017 e 2021, mais de 37 mil casas foram removidas e outras 223 mil estão sob ameaça de remoção (OBSERVATÓRIO DE REMOÇÕES, 2022).

Remoções urbanas são causadas por motivos diversos, como situações de risco ambiental, incêndios, fatores de mercado e conflitos de propriedade, e, por fim, podem resultar da implementação de políticas públicas (LUDERMIR; ALVARADO, 2017; UN-HABITAT, 2011). Apesar de políticas urbanas serem uma das causas das remoções (MARQUES, 2018), o tema é pouco estudado no campo, como se as transformações urbanas decorrentes de políticas públicas não integrassem parte relevante da política ou como se fossem um mero efeito colateral. Este trabalho busca diminuir essa lacuna, examinando o conflito entre implementadores de projetos públicos que alteram o espaço urbano e aqueles afetados por tais projetos, respondendo à seguinte pergunta: no decorrer de um conflito urbano, como os vários atores interagem para mudar o processo de transformação urbana?

Para responder a tal pergunta, o artigo alia uma lente teórica proveniente dos estudos urbanos, a do direito à cidade (LEFEBVRE, 2008; PURCELL, 2013), à lente da sociologia dos problemas públicos, sob a ótica da sociologia pragmática francesa teórica, que tem sido cada vez mais mobilizada na área de ação pública (ANDION et al., 2017; CEFAÏ, 2017). O framework analítico que emerge a partir dessas lentes teóricas é utilizado para analisar dois casos de remoção, um na cidade de São Paulo e outro na cidade de Medellín. O artigo avança em duas contribuições apresentadas nos resultados e nas discussões: o desenvolvimento e operacionalização de um framework para a análise de conflitos urbanos, e a identificação dos dispositivos de publicização e dos cursos de ação que contribuem ou que dificultam o alcance do direito à cidade, desvelando as interações que constituem o conflito e que dificultam a adoção de práticas urbanas mais democráticas. Concluímos com potenciais frentes de pesquisa.

2 CONSTRUINDO UMA ESTRUTURA ANALÍTICA PARA COMPREENDER CONFLITOS URBANOS

Nesta seção apresentamos a construção teórica que conduziu o desenvolvimento do framework analítico utilizado para compreender conflitos urbanos. Inicialmente é trazida a abordagem do direito à cidade, seguida da sociologia dos problemas públicos. Por fim, apresentamos a complementariedade entre conceitos e premissas dessas lentes teóricas que possibilitam a criação da estrutura analítica.

2. 1 O urbanismo crítico e o direito à cidade

Estudos sobre conflitos urbanos expõem uma gama de situações consideradas conflituosas e utilizam distintas perspectivas teóricas para analisá-las (SEVILLA-BUITRAGO, 2013). Um número substancial de autores segue uma abordagem de urbanismo crítico, desenvolvida a partir dos anos 1960 por urbanistas e sociólogos que adotaram a teoria crítica para expor as estruturas de poder presentes na questão urbana (BRENNER, 2009). Nessa vertente, o direito à cidade assume um papel central. Cunhado em 1968 por Lefebvre (2008), o termo surge como uma crítica à abordagem funcional da cidade, à ênfase no valor de troca sobre o valor de uso, e à organização da sociedade para o consumo. Denuncia-se que a produção urbana é restrita a uma elite, que produz a cidade de acordo com seus interesses, transformando-a em mercadoria (BELDA-MIQUEL; BLANES; FREDIANI, 2016; LEFEBVRE, 2008).

Em contraponto, essa concepção oferece também um horizonte de como seria possível construir uma outra sociedade urbana: por meio de participação ampliada e apropriação dos espaços pelos usuários da cidade (BELDA-MIQUEL; BLANES; FREDIANI, 2016; GRAY, 2018; KRIEGER; POZZEBON; GONZALEZ, 2021). Por participação ampliada, entende-se a participação dos cidadãos na vida política e na administração da cidade, assumindo o controle total sobre as decisões que podem afetar a vida urbana. Tal participação permitiria uma nova noção de apropriação, concedendo os espaços e decisões sobre esses às pessoas que mais necessitam usá-los. Nessa nova perspectiva, o uso do espaço urbano é politizado, sendo o locus de lutas, conflitos e democracia radical (LACLAU; MOUFFE, 2015). Por isso, o direito não pode ser visto apenas como um direito individual ao espaço físico, mas uma forma de direito coletivo relacionado à cidade enquanto espaço político, demandando uma nova percepção sobre cidadania (SOUZA, 2010).

Ao direito à cidade foi incutido um “duplo registro – uma faceta teórico conceitual e outra prática-reivindicativa” (TAVOLARI, 2016, p. 94). Como parte desse último registro, o direito à cidade foi adotado como slogan e marco interpretativo pelos movimentos sociais (SCHIAVO; GELFUSO; VERA, 2017; TAVOLARI, 2016) e chegou a ser institucionalizado em arcabouços jurídicos. Tanto a faceta teórico conceitual quanto a prática-reivindicativa são alvo de críticas. Por um lado, os autores críticos repudiam a institucionalização do termo, que acarreta na desvinculação do termo de seu repertório original (SOUZA, 2010). Por outro lado, os autores que seguem a perspectiva crítica do direito à cidade têm sido responsabilizados por alocar indivíduos e grupos em categorias homogêneas, por não abarcar os possivelmente complexos, fragmentados e não universais interesses frente à cidade (BLOKLAND et al., 2015; UITERMARK; NICHOLLS; LOOPMANS, 2012), e pela falta de conteúdo empírico que possibilitem intervenções no campo (GRAY, 2018). Considerando os pontos fortes e as críticas conduzidas a esta significativa lente, decidimos enriquecer nossa perspectiva teórica com conceitos centrais da sociologia dos problemas públicos, conforme explicado a seguir.

2. 3 A sociologia dos problemas públicos

A sociologia dos problemas públicos é parte de uma virada pragmatista na sociologia, inspirada nos trabalhos dos pragmatistas estadunidenses da primeira metade do século XIX, retomando as questões relacionadas à experiência, público e problemas e democracia expandida (ANDION et al., 2017; STAVO-DEBAUGE, 2013). Para essa corrente, como a sociedade está em construção permanente, construtos sociais – como a própria democracia – não são fixos e precisam ser analisados em cada situação, elucidando o processo de surgimento dos públicos, suas interações e (des)articulações (CEFAÏ; VEIGA; MOTA, 2011). Essa perspectiva estimula a identificação dos interesses e necessidades dos atores no desenrolar-se de uma determinada situação, o acompanhamento das conversações in situ e a compreensão das dinâmicas do público ao longo do tempo.

A sociologia dos problemas públicos permite analisar o processo de desenvolvimento de uma política pública como uma forma de experiência coletiva, na qual os indivíduos estão enredados em “arquiteturas de situações complexas, da pessoa e do coletivo” (CEFAÏ, 2009, p. 4) que se configuram em uma arena pública. Os conceitos de mercado (lucro), campo (dominação) ou esfera pública (deliberação, racionalidade comunicativa) não são invalidados, e sim coexistem na amálgama que é a arena pública, sendo esta:

Um conjunto organizado de acomodamentos e competições, de negociações e arranjos, de protestos e consentimentos, de promessas e engajamentos, de contratos e convenções, de concessões e compromissos, de tensões e acordos mais ou menos simbolizados e ritualizados, formalizados e codificados, em que está em jogo um public interest. (CEFAÏ, 2017, p. 208).

A dinâmica coletiva que é a arena pública não possui fronteiras definidas e se desdobram ao longo do tempo, constituindo-se a partir e no decorrer de situações problemáticas, e nela os atores “se inquietam, se interrogam, investigam, experimentam, discutem. Tentam definir o problema, determinar suas causas, detectar seus fatores e estabelecer as responsabilidades” (CEFAÏ, 2017, p. 189). Esta dinâmica coletiva é responsável tanto por fazer emergir o problema, quanto por constituir o seu público (DEWEY, 2012).

2. 4 Criando um framework analítico

Nessa seção, apresentamos o framework analítico para analisar conflitos urbanos a partir de uma composição entre o direito à cidade e a sociologia dos problemas públicos. Iniciamos com a identificação dos fundamentos que permitem esta composição e seguimos com a exposição dos componentes analíticos que integram o framework.

Enquanto a perspectiva do direito à cidade se insere no paradigma crítico, o qual percebe a realidade por meio das estruturas sociais e relações de dominação, a sociologia dos problemas públicos faz parte de um paradigma pragmatista crítico, adotando uma visão mais plural da realidade e buscando estratégias descritivas de analisar as relações entre ações, atores e objetos (BÉNATOUÏL, 1999; GUBA; LINCOLN, 1994). Tomando tais diferenças não como amarras, mas como perspectivas complementares, nós seguimos a proposta de Bénatouïl (1999) de conduzir pesquisas nas bordas de paradigmas distintos, considerando que a fertilização cruzada abre a possibilidade de melhor compreender determinados fenômenos.

A complementariedade entre esses paradigmas também é justificada pelas premissas compartilhadas pelos seus autores seminais: John Dewey para o pragmatismo e Henri Lefebvre para o direito à cidade (PURCELL, 2017). Primeiro, os dois defendem que os construtos “democracia” e “direito à cidade” não devem ser concebidos enquanto formas de governo, mas sim como projetos contínuos em que as pessoas decidem constantemente como querem se organizar. Segundo, o agonismo, a luta, e o conflito são tidos como elementos essenciais deste projeto contínuo. Isto é, o conflito assume papel relevante tanto na construção cotidiana da democracia quanto na construção do direito à cidade (PURCELL, 2017).

Para o desenvolvimento desse framework analítico, combinamos os principais conceitos da sociologia dos problemas públicos referentes à arena pública – situação problemática, publicização, públicos e cursos de ação – com pressupostos fundantes do direito à cidade. Primeiro, caracterizamos o conflito urbano enquanto uma situação problemática, conceituada como uma situação em que atores não recebem uma resposta habitual do ambiente ou quando não se satisfazem mais com a resposta habitual (CEFAÏ, 2017). No entanto, tal situação problemática pode receber diferentes interpretações, sendo vivenciada distintamente por aqueles que são marginalizados do processo de produção da cidade ou pela elite que assume papel hegemônico nesta produção (MARCUSE, 2009). Essa situação problemática se tornará pública quando houver a mediação de uma experiência coletiva mediada pelos dispositivos de publicização (CEFAÏ, 2017). Entretanto, esses dispositivos – sejam eles simbólicos, legais, midiáticos ou institucionais – não são neutros e podem contribuir para uma maior captura da produção urbana pelas elites (SOUZA, 2010). Por outro lado, dispositivos como os laços formados pelo território e a adoção do termo “direito à cidade” em seu registro prático-reivindicativo poderiam contribuir para a mediação desta experiência coletiva (CEFAI et al., 2011; OCEJO, 2011). Nessa experiência coletiva, diferentes públicos emergem em torno do conflito urbano, os quais podem ser formados por atores individuais, coletivos ou organizacionais. De acordo com Marcuse (2009), é uma combinação dos materialmente desprovidos com os descontentes que conduzirá a luta pelo direito à cidade, e as elites que mantêm o poder hegemônico são os atores que se beneficiam ou subscrevem tais condutas da cidade do capital. De acordo com a sociologia pragmática, porém, estas identidades não podem ser fixadas de antemão nem serão necessariamente fixadas no decorrer do conflito (CEFAÏ, 2017).

A experiência coletiva destes públicos resultará na arena pública, na qual as identidades dos atores emergem e se transformam. É também nessa arena pública que os atores se engajam em diferentes cursos de ação (CEFAÏ et al., 2011). A preocupação do direito à cidade reside nas práticas conduzidas pelos movimentos sociais, ator considerado privilegiado na transformação da cidade. Por isso os principais cursos de ação envolvem participação ampliada, apropriação dos espaços, aprendizagem política, alianças de classe e luta coletiva (BELDA-MIQUEL; BLANES; FREDIANI, 2016; KRIEGER; POZZEBON; GONZALEZ, 2021; MARCUSE, 2009). No entanto, ao considerar um conflito urbano, faz-se necessário abarcar os cursos de ação da elite – ou de outros atores – que são fundamentais para a manutenção das práticas do fazer urbano. Nas próximas seções demonstraremos como esse framework analítico foi operacionalizado e quais foram os resultados obtidos.

3 A METODOLOGIA E OS CASOS
3.1 Estratégia metodológica

De cunho interpretativo e crítico (GUBA; LINCOLN, 1994), esta pesquisa adotou a construção de estudos de caso em profundidade como estratégia metodológica. Foram analisados dois estudos de caso relativos à remoção de moradores devido à implementação de políticas urbanas (MARQUES, 2018), escolhidos pelo potencial de aprendizados relacionados à formação da arena pública e pela possibilidade de acompanhamento in loco. Os dois casos foram acompanhados por um período de 18 meses, entre maio de 2017 e novembro de 2018, resultando na base de material empírico apresentada na tabela 1.

Tabela 1
Síntese da coleta de dados

elaborado pelas autoras.

Todas as entrevistas foram conduzidas de maneira presencial e posteriormente transcritas, enquanto os eventos observados foram gravados e posteriormente transcritos ou resultaram em um diário de campo (em momentos em que a gravação não era permitida). O corpus foi organizado utilizando o software MaxQDA, por meio do qual também foram conduzidas leitura e audição atentas de todos os materiais, levando à codificação. Esta foi desencadeada de forma abdutiva (ALVESSON; KÄRREMAN, 2007), em um processo contínuo de reflexão, conectando a lente teórica com os dados resultantes dos estudos de caso.

  • a. As remoções das Quadras 36, 37 e 38 dos Campos Elíseos

Nas últimas décadas, doze de projetos urbanísticos envolvendo a região dos Campos Elíseos, no centro da cidade de São Paulo, foram desenvolvidos e em certo ponto implementados (KRIEGER, 2022). Um dos mais recentes, o Nova Luz, previa a destruição massiva dos imóveis para a reconstrução de um novo bairro (GATTI, 2015). O projeto foi descontinuado, mas isso não quer dizer que as tentativas de reconfigurar o bairro cessaram. A remoção das Quadras 36, 37 e 38, localizadas na região pejorativamente chamada de Cracolândia, pode ser compreendida como uma continuação deste processo e afetou oficialmente 360 famílias com perfis bastante diversos. Por exemplo, quatro residiam no bairro há mais de 30 anos, enquanto a grande maioria vivia na região há menos de um ano. Ainda, 26% destas famílias possuíam renda mensal menor do que um salário mínimo e somente 9% maior do que 3 salários mínimos mensais.

A remoção aconteceu em momentos diferentes. Em maio de 2017, Prefeitura e Governo do Estado alinhavaram uma intervenção policial na região, com argumento de acabar com o tráfico de drogas (PAGNAN; VERPA, 2017), que encadeou no início das demolições dos imóveis localizados nas Quadras 37 e 38. A violência das demolições deu ensejo a um acompanhamento por parte de diferentes atores da sociedade civil, integrantes de coletivos e pesquisadores, bem como do Ministério Público e da Defensoria Pública. Tiveram início, nesse momento, as atividades do Fórum Aberto Mundaréu da Luz, um coletivo que monitora a situação e dá suporte aos moradores (FÓRUM ABERTO MUNDARÉU DA LUZ, 2017).

Em 2018 foram removidos os moradores da Quadra 36, vizinha às Quadras 37 e 38, para a construção do Hospital Pérola Byington, um projeto do Governo do Estado. Apesar do projeto do hospital e os processos judiciais para desapropriação terem iniciado em 2013, a reintegração de posse somente foi confirmada no dia 13 de abril de 2018, dando o prazo de dois dias para que os moradores deixassem suas casas. Enquanto os proprietários dos imóveis tiveram suas indenizações depositadas em juízo, os que não eram proprietários somente receberam auxílio aluguel após a intervenção do Fórum Aberto Mundaréu da Luz, a despeito de sua previsão legal.

As quadras estão inseridas em um perímetro qualificado como Zona Especial de Interesse Social 3 (ZEIS3) no Plano Diretor de São Paulo, instrumento que busca proteger a moradia de residentes de áreas centrais, com grande oferta de equipamentos e infraestrutura urbana, mas com grande “presença de imóveis ociosos, subtilizados, encortiçados ou deteriorados” (SÃO PAULO, 2014). Tal caracterização incorre em obrigatoriedades aos planos urbanísticos desenvolvidos para a área: os moradores deverão ser primordialmente reassentados em projetos habitacionais na própria área; o plano deve ser fruto dos debates conduzidos por um Conselho Gestor, instituído antes da elaboração do projeto e composto por representantes dos afetados, do poder executivo, e de organizações da sociedade civil; o cadastro dos moradores e negócios afetados deve ser aprovado pelo Conselho Gestor; e, por fim, os planos devem conter soluções para a regularização fundiária (SÃO PAULO, 2014). Tanto na intervenção das quadras 37 e 38 quanto da quadra 36, os Conselhos Gestores somente foram constituídos após o início das remoções e, assim, não participaram da construção dos planos, assumindo o papel de mero aprovador das propostas construídas unilateralmente pelo Poder Executivo. Ademais, os cadastros foram aprovados quase um ano após o início das remoções, fazendo com que muitas pessoas afetadas não fossem cadastradas e ficassem sem atendimento.

  • b. As remoções nos bairros La Paralela e Doce de Octubre em Medellí

Simultaneamente, do outro lado do continente, moradores dos bairros La Paralela e de Doce de Octubre foram removidos para a construção de duas estações que integram o circuito do Metrocable Picacho, obra sob responsabilidade da empresa pública Metro de Medellín, que subcontratou o Instituto de Viviendas de Medellín (ISVIMED) para conduzir a gestão predial, incluindo as remoções. Localizados em regiões de estrato social baixo de Medellín, os bairros tiveram distintos processos de formação e de remoção.

Em Doce de Octubre, onde 65 casas com aproximadamente 250 residentes foram removidas, os primeiros habitantes chegaram ao bairro em 1973, e adquiriram suas casas com subsídio público, em um processo formal de escrituração. Já em La Paralela, os primeiros moradores chegaram em 1984 e construíram encanamentos, calçadas, pontilhões, bem como suas próprias casas, sem nunca passar por um processo formal de regularização fundiária. Esta situação fez com que os moradores de La Paralela fossem reconhecidos enquanto proprietários das construções (poseedores), mas não como proprietários do lote. Houve divergências sobre o número de moradores afetados no bairro: enquanto o censo oficial do projeto chegou apontou 308 casas, moradores afirmam que o número de casas demolidas foi de 608, das quais 297 eram registradas. A resistência à remoção não foi generalizada nos dois bairros, sendo que a principal organização de moradores neste processo – chamada de Veeduría ciudadana del Metrocable Picacho – foi uma iniciativa de moradores de La Paralela.

Remoções por obras públicas em Medellín não são recentes. As inovações urbanas pelas quais a cidade se tornou internacionalmente reconhecida também foram responsáveis pela desapropriação de um grande contingente de residentes. Tal cenário resultou na estruturação de movimentos de moradores e na formação de um observatório de reassentamento. Esses atores, sobretudo os movimentos de moradores afetados em conjunto com pesquisadores, estiveram muito próximos dos moradores de La Paralela e de Doce de Octubre durante todo o processo.

O plano diretor da cidade (MEDELLÍN, 2014), aprovado com a intervenção dos movimentos sociais, preconiza que remoções causadas por obras públicas “não devem, em nenhuma circunstância, deteriorar as condições iniciais presentes no momento em que as ações são iniciadas. Isto significa que as atividades econômicas, sociais e culturais devem manter ou melhorar o nível de renda e estabilidade dos habitantes” (MEDELLÍN, 2014). Ainda, determina que tanto proprietários quanto poseedores são detentores de direitos. Além de receberem subsídio de aluguel durante 6 meses, suas propriedades (no caso daqueles com escritura) e construções (no caso dos poseedores) devem ser avaliadas seguindo padrão de mercado e os valores serão pagos parceladamente após os moradores deixarem suas casas. Quando avaliadas abaixo de 70 salários mínimos, os moradores podem optar pelo recebimento de subsídio para compra de outro imóvel ou pelo reassentamento em projeto de habitação social próximo à área.

No entanto, nem todos os moradores demonstravam-se satisfeitos com estes direitos. Segundo eles, os valores das avaliações não eram suficientes para aquisição de uma outra moradia nas mesmas condições e com o mesmo acesso à infraestrutura urbana. Além disso, em processos anteriores de remoção, o poder público atrasou os pagamentos das parcelas, dificultando a aquisição de outra moradia. Por fim, existem barreiras para acessar o subsídio de habitação, pois este somente pode ser usado para adquirir um imóvel regularizado, um bem escasso em Medellín, e por isso mais caro, levando os moradores ao endividamento. Além disso, não havia previsão de construção do projeto de habitação social prometido para a localidade.

4 ANALISANDO OS CASOS POR MEIO DO FRAMEWORK ANALÍTICO

Nesta seção, aplicamos o framework analítico para analisar os casos, buscando compreender como os atores interagem para mudar o processo de transformação urbana no decorrer de um conflito urbano.

4. 1 Situação problemática

Em ambos os casos, os implementadores das intervenções e os afetados por elas possuem compreensões distintas sobre o que se configura enquanto situação problemática. Os implementadores do projeto enquadram as intervenções como parte do interesse público, a partir dos objetivos centrais das políticas públicas: “A gente [...] quer que a revitalização daquela região aconteça também, né? Hoje é um lugar degradado” (SP.IMP.1); “Após 15 anos de inovação com o primeiro cabo usado para alimentar um sistema de transporte massivo no mundo, Medellín alcançará outro marco com seu transporte urbano.” (JIMÉNEZ, 2019).

Assim, os implementadores configuram como problemático aquilo que traz obstáculos à efetivação das intervenções e, por conseguinte, do bem público que elas acarretarão. Os resultados indicam três elementos que representam a situação problemática para os implementadores: (1) os entraves físicos e fundiários que atrasam a consecução do projeto: “A complexidade da desapropriação gerou esse atraso. [...] Todo mundo sabe que o centro da cidade tem uma complexidade fundiária, de você achar quem é o verdadeiro dono” (FELIX, 2019); “Encontramos dificuldades, especialmente no processo de sedimentação e escavação de estacas" (TELEANTIOQUIA NOTICIAS, 2019); (2) as tentativas de resistência, que demonstram uma divergência ideológica a partir de outros atores que questionam o hipotético bem público das intervenções: “Agora, nós queremos ouvir sugestões, nós queremos ouvir que os senhores participem efetivamente com sugestões. E afastadas da ideologia, afastadas de movimentos sociais que que querem politizar” (SP.IMP.4); “Há uma questão muito complicada, que eu posso explicar e que se presta muito bem ao que devemos evitar, que é a politização do processo. A grande dificuldade está nestes processos.” (MED.IMP.3); e, em alguns momentos, (3) os arcabouços legais que exigem participação e preconizem a função social da propriedade: “Uma reunião com o Prefeito Regional da Sé foi interrompida porque ele disse ser contrário à própria existência de instrumentos como a ZEIS” (diário de campo).

Por outro lado, os residentes afetados configuram a própria remoção como sendo uma situação problemática, visto que acarreta em uma piora (atual ou futura) das condições de vida. Isto é, não era necessariamente uma relação com a casa enquanto bem material, mas sim com a condição de vida assegurada por uma moradia, mesmo que não formalizada. Em Medellín, a ameaça foi mais sutil, pois os moradores foram lentamente removidos. Por isso, conhecer as experiências anteriores de remoções conduzidas pela realização de projetos urbanos foi crucial para interpretar a situação como problemática:

Há uma prática que tem sido historicamente instalada pelas instituições, [...] há uma escassez na cidade em face do processo de reassentamento. Portanto, as pessoas não vão mais aceitar porque já sabem o que aconteceu nem Moravia, já sabem o que aconteceu na Puente Madre Laura, portanto as comunidades não vão aceitar as mesmas soluções, não é possível. (MED.RES.2).

Em São Paulo, houve um reconhecimento imediato da situação como sendo problemática, visto que a deterioração das condições de vida se materializou no início do processo, com remoções conduzidas de maneira intempestiva e violenta (KRIEGER, 2022): “Nossas casas foram todas reviradas. Ontem eu voltei na minha casa. Tudo destruído! Gente, a maior tristeza! [...] As 85 famílias estão lá sem atendimento” (SP.RES.5). Assim, conforme orientado pelo framework, existem distintas interpretações do que constitui a situação problemática, dependendo do papel dos atores na produção urbana. Assumiremos as remoções urbanas como a situação problemática a ser tratada por este artigo, focando na experiência dos afetados pelas intervenções em relação com os outros atores.

4. 2 Publicização da situação problemática

De acordo com Cefaï (2017), uma situação problemática passa a existir como um problema público quando se torna uma experiência coletiva. Nos dois casos esse processo se demonstrou precário. As tentativas de gerar a experiência coletiva foram confrontadas com tentativas de manter as situações problemáticas como problemas privados, que deveriam ser resolvidos por grupos específicos e individuais. Esforços para manter o problema privado partiram tanto de residentes afetados quanto dos implementadores do projeto, utilizando-se de dispositivos de individualização. Por parte dos residentes, estes alegaram a indisposição de fazer parte de um coletivo, além de buscarem estratégias individualizadas de assegurar os seus próprios direitos e de obter vantagens, em uma competição com outros residentes. Por parte dos implementadores, estes argumentavam que negociações personalizadas seriam a melhor forma de assegurar os direitos de todos os moradores e que evitariam ruídos e desinformação; e enquadravam a experiência coletiva como algo que prejudicaria todos os interessados: “Não se deixem levar pelas emoções de outra pessoa, é como um ímã. Quando a outra pessoa está mal emocionalmente e todos se juntam, isso se transforma em uma bola.” (MED.IMP.1).

Em contraponto, outros dispositivos foram fundamentais para publicizar a situação problemática. Inicialmente, os arcabouços jurídicos que protegem os residentes em caso de remoção foram acionados por atores da sociedade civil e por vereadores, defensores e promotores públicos. Os precedentes de outras regiões que haviam sido previamente afetadas por obras públicas e as identidades materiais e simbólicas dos territórios também serviram como dispositivos para gerar a experiência coletiva. Em São Paulo até mesmo a violência do processo serviu como dispositivo de publicização: “Eu acho que a Prefeitura deu um tiro no pé de fazer uma coisa tão violenta. Acho que se tivesse sido uma remoção ‘branca’, como é normalmente feito, não tinha gerado uma resistência tão forte” (SP.INT.1).

A experiência coletiva não consegue manter o mesmo nível de engajamento ao longo do tempo. A relação de competitividade entre os afetados, a vigilância e as ameaças veladas por parte do poder público, quebras nos laços de confiança e o atravessamento de marcadores interseccionais de desigualdade (de raça, gênero e classe) tornam a publicização ainda mais precária. Três dispositivos foram fundamentais para que a situação problemática segue sendo publicizada, ou seja, para que a experiência coletiva perdurasse ao longo do tempo: dispositivos midiáticos, por meio de mídia tradicional e alternativa; realização de reuniões formais e informais, envolvendo principalmente os moradores afetados e outros atores interessados na problemática, como descrito abaixo; e manifestações públicas, mesmo que utilizadas com menor frequência nos dois casos.

4. 3 Os públicos da situação problemática

Tanto em São Paulo quanto em Medellín, ao longo do andamento dos conflitos, três públicos se constituíram no processo de publicização: um composto pelos residentes e comerciantes afetados pelas intervenções (RES); outro corresponde aos implementadores dos projeto de intervenção (IMP); e, por fim, houve a consolidação de um público de atores intermediários (INT). Apesar de suas diferenças constitutivas em relação às intervenções, os atores que integram os públicos não são fixos, não possuem uma identidade única e, eventualmente, mudaram seus posicionamentos. Por exemplo, algumas pessoas afetadas adotaram argumentos semelhantes aos dos implementadores, em prol do desenvolvimento e da individualização. Em contraponto, alguns executores, especialmente burocratas de nível de rua, buscaram lidar com o projeto de forma a garantir justiça social.

O público dos afetados pelos projetos são os moradores e comerciantes das áreas e possuem características distintas, conforme explicado na apresentação dos casos. De forma geral, eles são materialmente desprovidos ou estão em uma posição de insegurança material constante (MARCUSE, 2009), agravada pela remoção urbana, e tal condição influencia em como este público age ao longo do conflito. Nos dois casos, o público afetado não possui conhecimentos específicos sobre direito urbanístico ou sobre as formas possíveis de resistência e de garantia de seus direitos, e também possui escassos recursos temporais e financeiros que pudessem facilitar o reassentamento. Os diferentes graus de (in)segurança material entre este público levou a uma situação de rivalidade: “não era nem de competição, era de conflito mesmo. De entender que tem direitos diferentes” (SP.INT.6), estabelecendo uma escala tácita de cidadania (KRIEGER, 2022). Especialmente, aqueles com títulos de propriedade percebiam-se enquanto detentores de direitos “superiores” em relação aos outros moradores afetados.

O público de implementadores das intervenções é composto por atores de vários departamentos dos Poderes Executivos municipal e estadual, das empresas contratadas para desenvolver o projeto, e integrantes do Poder Legislativo e Judiciário. São os donos do capital e politicamente poderosos que subscrevem e se beneficiam do modelo da produção urbana capitalista (MARCUSE, 2009). Esse público tem características comuns em ambos os casos analisados nessa pesquisa. Por um lado, por se concentrarem no modelo industrial de desenvolvimento de projetos, possuem capacidade de implementação. Inclusive, as pessoas que integram este público são contratadas e providas de recursos materiais, financeiros e jurídicos para realizar as intervenções, o que não é trivial dadas as condições do público afetado. Por outro lado, eles não desenvolveram a capacidade de lidar com os residentes afetados e possuem pouco interesse e preocupação com o desenvolvimento comunitário dos projetos: “Infelizmente, essa intervenção da Secretaria de Saúde foi feita de uma maneira muito intempestiva. Talvez sem os vínculos necessários, né?” (SP.IMP.5). Mesmo em Medellín, com um corpo burocrático municipal constituído para atender às necessidades de moradia e reassentamento, a falta de capacidade de lidar com o processo coletivo era latente, evidenciada pela troca constante dos responsáveis pelas instituições e pelos métodos pouco empáticos de lidar com a população afetada:

Em uma reunião comunitária, eu ouvi uma ligação telefônica em que um servidor público atuante na ISVIMED deu o seguinte conselho ao líder local: ‘Você não deve vir com perguntas sem sentido que desperdiçam nosso tempo. Você tem que basear suas perguntas nos decretos e leis’. E, em tom de sarcasmo, o servidor continuou sugerindo que, como a comunidade não entende da legislação, ela não tinha legitimidade para falar (notas de campo).

Já o público intermediário é formado por atores que não são afetados pelas intervenções nem as implementam, mas que por algum motivo se relacionam com estes atores devido à situação problemática. Os resultados demonstram que este público é formado por atores que buscam produzir um processo contra-hegemônico de produção urbana (MARCUSE, 2009), como acadêmicos, artistas, integrantes de coletivos e jornalistas independentes. Alguns também fazem parte de uma minoria dos politicamente poderosos (MARCUSE, 2009), como defensores públicos, promotores e vereadores que se opõem aos projetos. E, por fim, integram também o público intermediário aqueles que já foram removidos de outras localidades e passaram a integrar movimentos sociais ou associações comunitárias.

Nos dois casos, o público intermediário assumiu papel relevante por aumentar as capacidades legais, tecnológicas e midiáticas dos residentes afetados. Eles se destacam por questionar o modelo de desenvolvimento colocado em prática – “Na reunião do movimento de moradores, um dos participantes da La Paralela disse que ‘ele não era contrário ao desenvolvimento’, ao que um outro integrante prontamente respondeu: ‘Eu sou contrário. Sempre vem com um preço, e somos nós que temos que pagar.’” (diário de campo) – e por promover uma abordagem coletiva e igualitária da situação, enfatizando força do grupo e os direitos existentes para todos os afetados. Além das capacidades acima citadas, para que eles pudessem atuar na temática também foi necessário desenvolver e manter laços de confiança com os residentes afetados. Para tal, promoveram encontros formais e informais e compartilharam informações e contatos. No entanto, os laços de confiança foram abalados ao longo do processo, em momentos em que os intermediários se aproximaram dos implementadores dos projetos, mesmo que buscando facilitar a mediação, e quando os intermediários não se posicionaram favoravelmente aos anseios do público afetado.

4. 4 Os cursos de ação

Os cursos de ação identificados se referiram a aqueles direcionados à resolução da situação problemática em questão. Em São Paulo, os afetados inicialmente recorreram a soluções individuais e ao apoio de amigos e familiares para resolverem provisoriamente a situação. Após a intervenção dos atores intermediários e a constituição dos Conselhos Gestores (um para as quadras 37 e 38 e outro para a quadra 36), estes passaram a ser um espaço privilegiado, apesar de limitado, por proporcionar interação entre os três públicos para discutir e questionar as possíveis formas de solução. Paralelamente a estas reuniões, os atores intermediários que participam dos Conselhos Gestores mantiveram reuniões tanto com os moradores afetados quanto com os implementadores dos projetos, buscando mediar o processo. O público intermediário, organizado por meio do Fórum Mundaréu da Luz, também buscou desenvolver um projeto urbanístico para a região a partir de uma concepção participativa: “A gente tentou fazer, porque você sai um pouco do patamar de segurar a onda para contrapor.” (SP.INT.3). Apesar dos esforços de pautar tal projeto, ele não foi implementado.

Em Medellín, a discussão das potenciais soluções aconteceu em poucas reuniões entre implementadores do projeto e moradores afetados. Ao invés de serem espaços abertos para discussão de possíveis soluções, estas reuniões foram apresentações sobre os caminhos que já haviam sido tomados, decididos de forma unilateral. Por exemplo, em 2018, o ISVIMED conduziu uma reunião pública de 3 horas para explicar as diferentes técnicas utilizadas para calcular a avaliação das casas, com 15 minutos reservados para que os afetados trouxessem suas preocupações (diário de campo). Ainda, os afetados tiveram reuniões constantes, mobilizadas pela Veeduría e contaram com o suporte de atores intermediários para pensar em soluções, como um possível embargo jurídico do processo. Em Medellín, integrantes da Veeduría também tentaram criar uma solução coletiva. Além da busca por terrenos para que o projeto de reassentamento fosse desenvolvido dentro do mesmo bairro, a Veeduría desenvolveu um projeto habitacional que acomodasse as necessidades e interesses dos afetados. No entanto, estas propostas não reverberaram nos responsáveis pela implementação do projeto urbanístico.

Por parte dos implementadores do projeto, devido à visão de mercado subjacente e à estreita concepção de participação sustentada por eles, existe uma primazia dos cursos de ação individuais. Apesar dos arcabouços jurídicos demandarem ou permitirem o envolvimento dos moradores na concepção dos projetos – mesmo que utilizem termos polissêmicos para tal, como “socialização” e “negociação direta” em Medellín; e “conselho gestor” e “participação direta” em São Paulo –, os implementadores dos projetos permanecem presos às soluções unilaterais criadas por eles próprios. Não existe um processo proativo de coordenação do processo de participação: “Construir junto com eles é assim: a gente recebe a proposta. A gente recebeu várias, né?” (SP.IMP.1), e a dita participação na verdade significa impor barreiras. Por fim, quaisquer possibilidades de solução (mesmo que precárias) são aceitas pelos moradores afetados, aflitos por uma saída para o imbróglio, com medo do agravamento de suas condições de vida e extenuados de organizar uma resistência coletiva com fins incertos.

5 CONCLUSÃO

Este trabalho teve como objetivo compreender como, no decorrer de um conflito urbano, os atores interagem para mudar o processo de transformação urbana. Para isso, analisou dois casos de remoção urbana em que as pessoas foram retiradas de suas casas por determinação do poder público, para a realização de projetos nas localidades. Assim, buscou também aproximar a temática das remoções enquanto políticas urbanas dos estudos de políticas públicas. Para tal, desenvolveu um framework analítico tendo por base a lente teórica do direito à cidade em combinação com a sociologia dos problemas públicos.

Conforme orientado pelo framework, as situações problemáticas são centrais para a compreensão do desenrolar do conflito. O que o direito à cidade demonstrou foi que existem interpretações diferenciadas do que se constitui enquanto situação problemática, a depender do poder que os atores têm de alterar as práticas urbanas ou de lidar com as consequências de tais práticas. Assim, os implementadores do projeto enquadraram as intervenções como sendo voltadas ao bem público e, por isso, os potenciais entraves aos projetos eram vistos como situações problemáticas. Inclusive, os entrevistados trouxeram à tona a perspectiva de que o interesse público deve ser privilegiado em detrimento do interesse privado.

Mas, em nome do interesse público (questionado por diversos atores nos dois casos), podem os implementadores de políticas públicas causar danos aos cidadãos? Dentro do sistema democrático, para evitar tais danos, são constituídos sistemas de controles sociais e burocráticos, os quais foram reiteradamente interpretados como entraves pelos implementadores para garantir que as obras sejam sempre realizadas: “Há sempre alguém fazendo resistência, mas nenhum de nossas obras de teleféricos, ampliação de vias, de Veículos Leves sobre Trilhos, ficaram por fazer.” (MED.IMP.8). Em São Paulo, onde a legislação nacional e local havia sido aprovada anos antes com forte pressão dos movimentos sociais, subterfúgios legais foram utilizados para acelerar a implementação dos projetos. Este é um bom exemplo para entender o direito institucionalizado como um começo, uma potencial abertura para o direito à cidade, e não como a materialização do direito em si (PURCELL, 2013).

Já os residentes afetados sentem a situação problemática como uma piora presente ou futura em suas condições de vida, o que tem estreita ligação com marcadores interseccionais de diferenças sociais. Tal circunstância levou alguns afetados a se resignarem, corroborando com Cefaï (2017) ao identificar dimensões de passividade na constituição de situação problemática. Essa passividade, no entanto, não necessariamente estava associada a uma aceitação da situação, e sim a dois polos opostos: enquanto alguns confiavam que os implementadores do projeto trariam uma solução apropriada em tempo hábil, outros sabiam por experiências prévias que precisavam encontrar soluções individuais pois estavam enfrentando um ator privilegiado no processo de produção urbana e com o qual não mantinham boas relações: o poder público.

Aqui temos uma mudança de paradigma: nem todos os problemas nos quais as instituições governamentais estão envolvidas são problemas públicos. O envolvimento do governo não significa necessariamente que o problema será tratado coletivamente. Publicizar um problema significa remover a situação problemática das sombras de grupos especializados e levá-lo a ser reconhecido, discutido e potencialmente resolvido por diferentes grupos de atores, em uma experiência coletiva (CEFAÏ, 2017). A publicização da situação problemática vivida por atores contra-hegemônicos só é possível se não houver poder absoluto (LACLAU; MOUFFE, 2015). Legalmente, remoções a fim de desenvolver projetos públicos destacam o poder extremo do Estado. Há pouco espaço para negociação e pouco ou nenhum espaço para resistência. Devido a este poder, a publicização das situações problemáticas é sempre precária. Manter a situação problemática privada vai na direção oposta ao direito à cidade. Embora chamado de “direito”, o direito à cidade supera a construção de direitos individualizados em um paradigma de democracia liberal (LEFEBVRE, 2008; GRAY, 2018). Portanto, a intenção de manter as situações problemáticas privadas diminui a possibilidade de criar relações que implicariam em uma nova perspectiva para a produção urbana sob o direito à cidade.

Os seguintes dispositivos foram fundamentais para a publicização dos problemas públicos e para a o processo de ampliação do direito à cidade: o apoio de atores políticos locais provenientes de movimentos sociais ou com pautas atentas à população afetada; o suporte jurídico de atores estatais com função de garantir o acesso de pessoas de baixa renda à justiça, como Defensoria Pública e Ministério Público; legislação existente que deu suporte à reivindicação, servindo de instrumento utilizado a posteriori para barrar o andamento do projeto ou para discutir judicialmente sua implementação; o compartilhamento de histórias e aprendizados dos atores previamente afetados; e alguns canais midiáticos, sendo que a mídia tradicional manteve seu foco em episódios de violência, enquanto mídias alternativas forneceram espaço – de alcance limitado – para divulgação da situação dos moradores afetados.

Por fim, os públicos desenvolveram cursos de ação com perspectivas distintas, alguns contribuindo para o direito à cidade e outros para a cidade do capital, em um constante tensionamento. São cursos de ação que promoveram práticas relacionadas ao alcance do direito à cidade: a idealização de alternativas possíveis que emergiram do público afetado; o processo de aprendizado político experimentado pelos cidadãos, por meio de interação com diversos atores que propiciou maior instrução em relação aos aparatos técnicos e jurídicos e, mais importante, questionamento do modelo de desenvolvimento; e a interação do público intermediário com o público afetado, trazendo novos atores para uma arena pública mais robusta e criando a possibilidade da coordenação e acomodação dos interesses.

Em contraponto, cursos de ação contrários ao direito à cidade, promovendo a cidade do capital, também perduraram ao longo do conflito, sendo eles: a individualização das negociações e dos direitos, com foco no âmbito mercadológico do processo de remoção; a visão estreita de participação que buscou a exclusão do público afetado da arena pública; e a desconsideração, pela suposta racionalidade, de dimensões temporais e afetivas que interferem nas formas de ação. Assim, no decorrer dos conflitos urbanos, os atores interagem em um tensionamento constante entre os dispositivos de publicização e cursos de ação que despertam o direito à cidade, promovendo participação ampliada e apropriação dos espaços urbanos pelos usuários da cidade; e os dispositivos de publicização e cursos de ação que encolhem e restringem o direito à cidade em prol da cidade do capital, diminuindo as formas participação e somente viabilizando a apropriação dos espaços urbanos por meio do sistema mercadológico.

Para finalizar, trazemos três dimensões subjacentes às formas de interação que emergiram dos resultados e que precisam ser levadas em consideração em próximas pesquisas que busquem compreender a formação e continuidade de arenas públicas em situação de conflitos urbanos. A primeira dimensão envolve as questões afetivas que compreendem os laços estabelecidos e que orientam as formas de ação pública. A segunda, considerando que a arena pública se desenvolve ao longo do tempo, se refere às noções de temporalidade presentes na arena e como essas noções são apropriadas e utilizadas pelos diferentes públicos. Ademais, considerando as relações de poder existentes nas arenas públicas, vamos além da dominação da lógica de mercado e sugerimos a consideração de uma dimensão colonial que se manifesta constantemente no processo de produção urbana, evidenciando um modelo único de desenvolvimento exclusivo e excludente.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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Notas
Tabela 1
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