Resumo: O intuito deste artigo é apresentar os fundamentos históricos e ideológicos do termo “empoderamento”, fazendo uma abordagem às raízes e as funções que cumprem o “empoderamento” nas estratégias políticas propostas pelos movimentos feministas desde a década de 1980. Depois de ter constituído uma dimensão importante do projeto feminista antiopressivo, a noção de “empoderamento” se difundiu rapidamente nos anos 1990 e se converteu em uma “palavra da moda”. A institucionalização das questões de gênero por organismos multilaterais fomentou a divulgação do termo “empoderamento” como proposta de prática política. Nesses organismos, o “empoderamento” assumiu caráter liberal. Dentro de movimentos sociais, entretanto, o termo “empoderamento” tem aparecido como sinônimo de fortalecimento da autonomia dos/das oprimidas/os .Através de revisão bibliográfica e com base no materialismo histórico dialético, busca desvelar o caráter ideológico e as bases materiais do termo para fins de estratégia política de enfrentamento ao capitalismo como totalidade e às opressões particulares a ele articuladas.
Palavras-chave: Empoderamento, Ideologia, Feminismo, Capitalismo, Práxis política.
Abstract: The purpose of this article is to present the historical and ideological foundations of the term “empowerment”, approaching the roots and functions that “empowerment” fulfills in the political strategies proposed by feminist movements since the 1980s. An important part of the anti-oppressive feminist project, the notion of “empowerment” spread rapidly in the 1990s and became a “fashionable word”. The institutionalization of gender issues by multilateral organizations fostered the dissemination of the term “empowerment” as a proposal for political practice. In these organisms, “empowerment” took on a liberal character. Within social movements, however, the term “empowerment” has appeared as a synonym for strengthening the autonomy of the oppressed. Through a bibliographic review and based on dialectical historical materialism, it seeks to reveal the ideological character and the material bases of the term for the purposes of political strategy to confront capitalism as a totality and the particular oppressions articulated to it.
Keywords: Empowerment, Ideology, Feminism, Capitalism, Political praxis.
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“EMPODERAMENTO”: fundamentos históricos e ideológicos e práxis política feminista
Recepción: 19 Septiembre 2021
Aprobación: 21 Mayo 2022
A palavra/termo/conceito “empoderamento”1 está presente na maioria dos debates, movimentos, rodas de conversa, lutas sociais, publicações e falas dos coletivos feministas na atualidade. Mas o que significa “se empoderar”? De antemão, o que se sabe é que “empoderamento” tem, em sua raiz semântica, uma relação com poder. Mas de que poder se fala? Esse poder é individual ou coletivo? Esse “empoderamento” vem de fora ou do interior das pessoas? O “empoderamento” envolve questões materiais ou é meramente subjetivo?
No âmbito do senso comum e do cotidiano das mulheres que reproduzem em suas falas a necessidade do “empoderamento”, temos por hipótese que pouco se questiona sobre tais bases ou o que realmente se tem por objetivo em tal processo.
Cronin-Furman, Gowrinathan e Zakaria (2017) chegaram à conclusão de que, a despeito de, ou, até mesmo, em razão de(a), falta de clareza na definição do termo “empoderamento” possibilita que ocorra a arrecadação comprovada de bilhões de dólares advindos do Ocidente para o Oriente, em nome do “empoderamento” das mulheres. Isso resolve os dilemas postos socialmente às mulheres na sociedade do capital?
Sob a perspectiva de que “sexismo está entranhado em sua própria estrutura [da sociedade capitalista]”, conforme mencionam Arruza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 51), e, em acordo com as bases da Teoria da Reprodução Social2, temos que a reprodução social está integrada, de forma subordinada, à acumulação de capital. Assim, a luta de classes abarca também a reprodução social, âmbito no qual a vida e a força de trabalho têm por objetivo serem supridas suas condições materiais, sociais e culturais. O “empoderamento” abarca essa totalidade?
Há uma polissemia, bem como imprecisão e naturalização em torno dessa noção. Portanto, se faz necessário conhecê-la melhor. O exercício que se propõe aqui, neste artigo, em virtude da mencionada hipótese, é, através de revisão bibliográfica e do materialismo histórico dialético, desvelar os fundamentos históricos, teórico-metodológicos e políticos dos usos do termo. O desenvolvimento do artigo se dá da seguinte forma: em um primeiro momento, buscamos abarcar seus fundamentos históricos e sua trajetória, que não é linear nem consensual; a segunda parte do artigo compreende as diferenças entre “empoderamento” libertador e “empoderamento” liberal e os objetivos políticos em torno dos quais o termo é apropriado e, por fim, concluímos o artigo com o intuito de responder se o termo/prática política “empoderamento” cabe a uma luta feminista revolucionária3.
Batliwala (2007), citando monografia não publicada de Gaventa (2002), da Universidade de Sussex, afirma que “empowerment” (empoderamento)pode ser encontrado em registros da Reforma Protestante europeia, e que reverberou por séculos na Europa e Estados Unidos através dos quakers4 e da democracia Jeffersoniana5, nos primórdios do capitalismo, bem como, mais recentemente, no movimento Black Power. De forma equivalente, em outras línguas, o “empoderamento” esteve ligado à ideia de luta por justiça social. Inclusive no estado de Karnataka, na Índia, nos séculos XII e XIII, havia o movimento Veera shaiva contra opressões de casta e gênero, que clamava por redistribuição de poder e pelo fim das castas como forma de estratificação social.
Bacqué e Biewener (2015) explicam que, no século XVII, na Grã-Bretanha, aparece o verbo “empoderar” (toempower), para se referir a um poder formal, designado por uma autoridade superior. Mas a pesquisa realizada pelas autoras encontrou a palavra “empoderamento” (empowerment) apenas no século XIX, a qual corresponderia, ao mesmo tempo, a um estado (empoderado) e a uma ação (dar poder).
Ackelsberg (2019), ao retratar o coletivo Mulheres Livres, um grupo de ativistas anarcofeministas, criado na década de 1930 para fazer frente a forças reacionárias do governo fascista do general Francisco Franco na Espanha, traz à tona a emancipação social e política de mulheres impactadas pela atuação desse grupo, a partir da temática do “empoderamento”6. Para a autora, entender a defesa do “empoderamento” popular para um processo revolucionário passa pela compreensão do que seja processo revolucionário para anarquistas: negação de qualquer tipo de hierarquia no processo de transformação social. Assim, o processo de conscientização e “empoderamento” se daria de forma descentralizada e pela ação direta. O local, o comunitário e o cotidiano são espaços para viver experiências igualitárias e empoderadoras. Só se aprende o comunismo libertário vivendo-o.Nesse sentido, o conhecimento não precede a experiência, mas se dá no próprio processo ativo.
Em vez de tentar realizar a mudança formando grupos de pressão política, os anarquistas defendiam que as pessoas deveriam aprender a pensar e agir por si mesmas, agrupando-se em organizações nas quais a experiência, a percepção e a atividade pudessem guia-las e provocar a transformação [...] A revolução externa e a revolução interna se pressupõem e têm de ser simultâneas para serem frutíferas (ACKELSBERG, 2019, p. 97).
Esse processo de experiência cotidiana seria uma preparação para a revolução que, para os/as anarquistas, ao contrário do que o senso comum faz pensar, não ocorre de forma espontânea ou improvisada. Nesse sentido, até mesmo aproximam-se da concepção marxista de transformação pela práxis. “As pessoas desenvolveriam uma consciência crítica e revolucionária por meio da reflexão sobre a realidade concreta de sua vida, reflexão que seria provocada em muitas ocasiões por suas atividades e pela dos demais” (ACKELSBERG, 2019, p. 100).
É importante dizer, contudo, que não fica claro no livro se os sujeitos em ação se utilizavam do termo empoderamento ou se é uma interpretação da pesquisadora. Conforme a própria autora menciona, no prefácio à edição brasileira, o referido livro foi escrito para o público estadunidense, com objetivo de apresentar e explicar a história das Mulheres Livres para as leitoras feministas nos Estados Unidos e, talvez, por isso, o “empoderamento”, caro à feministas estadunidenses, inclusive à própria autora, que se diz produto do feminismo da década de 1970 naquele país, apareça com ênfase no livro, o que tem relação com o contexto que, a partir de agora, será desenvolvido neste artigo.
O termo “empoderamento” foi revitalizado e recebeu forte significado político ao final do século XX (BATLIWALA, 2007; BACQUÉ; BIENWENER, 2015). Foi na década de 1970 que o termo “empoderamento” passou a ser utilizado de maneira difusa pela sociedade civil em diversos contextos. Bacqué e Bienwener (2015) apontam para o movimento das mulheres que lutaram contraviolência7, emergido no começo dos anos 1970 nos Estados Unidos, como o primeiro a empregar o termo “empoderamento” caracterizado como um processo igualitário, participativo e local, pelo qual as mulheres desenvolveriam uma “consciência social” ou uma “consciência crítica” que as permitiria criar um “poder interior” e adquirir “capacidades de ação”. Esse poder para atuar seria individual e coletivo ao mesmo tempo, com perspectiva de transformação social.
Assim, o termo “empoderamento”, conforme utilizado a partir da década de 1970, é bem diferente da noção de “empoderamento” utilizada no século XIX, o qual se referia a um poder “autorizado” por um superior, seja no Estado, na hierarquia religiosa ou em cargos profissionais.
De acordo com Bacqué e Bienwener (2015), tanto nos países do sul quanto do norte, na década de 1970, a aparição do termo “empoderamento” tem um mesmo fundamento: a oposição às formas de autoridade hierárquica impostas de cima para baixo através dos Estados e a consequente demanda pelo reconhecimento dos marginalizados e subalternos.
É preciso lembrar que as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pelo florescimento de movimentos sociais que hegemonizaram pautas como libertação das mulheres, fim das opressões raciais, direitos dos/as LGBTs8, defesa do meio ambiente, dentre outros9. A emergência da noção de “empoderamento” coincidiu, portanto, com essas mudanças e com o debate teórico que daí surgiu fortemente, em torno da questão do “poder”, tanto individual quanto coletivo e social.
Esta cuestión [do poder] está, entonces, enelcorazón de los debates intelectuales y de lasexperienciassociales, enlaconfluencia de cuatro grupos de preocupaciones y de críticas articulados: uncuestionamiento de la burocracia de laacción pública, que puedeconducir al rechazo de laacción pública o a la emergência de nuevasprácticasprofesionales; una reivindicación participativa a partir de la iniciativa de grupos locales y de movimentos sociales; una impugnación de las desigualdades sociales y tambiénraciales y de género; cuestionamientos sobre laarticulación entre “estrutura” y agencyenel cambio social (BACQUÉ; BIENWENER, 2015, p. 17).
Assim, uma leitura teórica pós-estruturalista trouxe à tona o debate de poder, do micropoder e do biopoder, especialmente a partir de Michel Foucault, ao mesmo tempo em que o movimento das feministas radicais nos Estados Unidos trouxe o slogan “o pessoal é político”. Retrabalhar as fronteiras entre esfera pública e esfera privada passa a ser algo fundamental nesse debate, na medida em que havia (e, em certa medida, ainda há) uma naturalização de que a esfera pública é ocupada pelos homens, e o lugar das mulheres é a esfera privada.
Contudo, outras influências teóricas estão em curso nessa seara. Batliwala (2007), tanto quanto Bacqué e Bienwener (2015), apontaram para as influências de Antonio Gramsci no debate da subalternidade, e de Paulo Freire, em sua análise sobre educação popular. A partir dessas bases, são contrapostos o poder como fonte de opressão e dominação, de um lado, ao poder como fonte de emancipação, desafio e resistência, de outro (LEÓN, 1997).
Conforme já mencionamos, não é só o campo teórico que torna central o tema do poder, mas também os movimentos sociais. O movimento Black Power, nos Estados Unidos, na década de 1970, reivindicava o reconhecimento e representação política dos negros e negras, e sua capacidade de produzir seu próprio desenvolvimento econômico a partir da afirmação do poder negro.
É preciso, entretanto, fazer uma ressalva, a partir das investigações de Bacqué e Bienwener (2015): apesar do termo “empoderamento” ser associado ao movimento Black Power, e do termoaparecer no discurso de alguns dirigentes do movimento, ele se mantém ali pouco teorizado, de tal modo que é possível afirmar que o poder é um tema central, mas o “empoderamento” nãopode ser considerado derivado desse movimento enquanto elemento chave. As pesquisas demonstraram, por exemplo, que o “empoderamento” não se impôs nos debates da Conferência Nacional sobre Black Power.
Segundo León (1997), o uso do termo “empoderamento” por parte do movimento social de mulheres apareceu na década de 1980, em rechaço aos modelos de desenvolvimento que, até então, haviam invisibilizado as mulheres. Tal movimento, ao fazer isso, colocou “empoderamento”na agenda pública. Batliwala (2007) ratifica que o uso do “empoderamento” como uma prática política nos movimentos de mulheres é desse mesmo período, e adiciona o fato de que isso se dá principalmente em países do Terceiro Mundo10. Na Índia, por exemplo, foi utilizado por mulheres comprometidas com o desenvolvimento comunitário.
As demandas das mulheres eram, segundo Léon (1997), em primeiro lugar, uma resposta às necessidades materiais das mulheres, para poderem sobreviver e sair da pobreza. Tratava-se de demandas bastante práticas: a luta por emprego, por melhores salários, pela saúde, pela terra, para vagas nas escolas para os filhos e filhas etc. E, conjuntamente com essas necessidades mais imediatas, havia a demanda por uma mudança fundamental nas relações de poder desiguais entre homens e mulheres.
Na década de 1990, contudo, o termo “empoderamento” passou a ser usado pelas agências internacionais de cooperação, tais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e Banco Mundial, e se firmou como uma dimensão das políticas públicas nacionais e internacionais. Tornou-se um jargão, uma “palavra da moda”. Perdeu seu conteúdo político mais progressista de transformação social. Adentrou, inclusive, o mundo empresarial. Batliwala (2007) afirmou que, nos anos 1990, a prática do “empoderamento” de mulheres se degenerou e se tornou uma prática tecnocrata que respondeu às demandas da economia neoliberal.
Como pudemos observar, esse percurso histórico é turbulento e cheio de contradições. Não há uma história linear que tenha constituído o termo “empoderamento” enquanto conceito universal. É possível dizer que no campo do discurso, o “empoderamento” tem uso amplo e está a serviço das feministas radicais, dos/as liberais e neoliberais e, até mesmo, como registrado por Bacqué e Bienwener (2015), foi adotado por uma parte da direita conservadora dos Estados Unidos. Mas em termos teórico-metodológicos e prático-políticos, seus usos são bastante diferenciados, conforme abordaremos a partir de agora.
A concepção de “empoderamento” do movimento de mulheres, especialmente do Sul da Ásia e da América Latina dos anos 1980, nasceu em contraposição a políticas de desenvolvimento economicistas, por uma abordagem alternativa, em nome da emancipação das mulheres. Esses movimentos interrogaram as teorias políticas do desenvolvimento que prevaleceram no pós-guerra, denominadas “modernizadoras”. “Cuestionan el lugar de la mujerenes os proyectos de modernización, tanto desde elpunto de vista de la igualdade hombres/mujeres como de sueficacia económica” (BACQUÉ; BIENWENER, 2015, p. 53).
La visión feministavioelempoderamiento como la via para satisfacernecesidades estratégicas de género, o sea, aquellas que se relacionanconlaabolición de ladivisión sexual deltrabajo y remoción de formas institucionalizadas de discriminación. Es decir, elempoderamiento como transformación de estrutucturas de subordinación. O sea, como unproceso de emancipación (LEÓN, 1997, s.p.).
É desses questionamentos, com base em uma abordagem alternativa, que emerge uma “interpretação radical de empoderamento”, o “verdadeiro empoderamento” (BACQUÉ; BIENWENER, 2015; FERNANDES, 2016) ou o que Sardenberg (2008) denomina “liberating empowerment” (empoderamento libertador), em contraposição ao “liberal empowerment” (empoderamento liberal).
Bacqué e Bienwener (2015), ao desenvolverem a análise sobre a noção de “empoderamento” na Índia, o consideram como um produto do movimento das mulheres do período pós-1975. Afirmam também que a noção de “empoderamento” que nasceu na Índia, por consequência, sofreu influências das abordagens gandhistas11 e da herança colonial. Batliwala (2007), em 1986, desenhou e foi coautora de um programa do Departamento de Educação do Ministério de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Índia, que se intitulou “Educação para Igualdade das Mulheres”, o qual advogava fortemente a prática do “empoderamento”, de forma bastante similar aos métodos de educação popular feminista, bastante presentes na América Latina.
Já existia, no vocabulário indiano, o “empoderamento”, que se referia aos empowered comittees, um dispositivo profissional empregado nas políticas nacionais de planificação e urbanismo, para elaboração de leis ou para implementação de uma parte do plano nacional. O “empoderamento” tinha o sentido de delegar poder a um comitê, conforme concepção mais tradicional mencionada anteriormente. Foram as feministas indianas que transformaram seu sentido e impuseram progressivamente uma nova interpretação (BACQUÉ; BIENWENER, 2015), uma proposição de “empoderamento libertador” (SARDENBERG, 2008), que seria
[...] o processo no qual a mulher adquire autonomia e autodeterminação como instrumentos para a erradicação do patriarcado, afim de extingui-lo. Essas feministas também aspiram o fim da pobreza, das guerras, e a construção deEstados democráticos. Nesta perspectiva feminista, o maior objetivo do empoderamento das mulheres é questionar, desestabilizar e, eventualmente, transformar a ordem patriarcal de dominação de gênero (SARDENBERG, 2008, p. 19, tradução nossa).
Na Índia, o “empoderamento” das mulheres, em sua gênese, esteve relacionado ao desenvolvimento local, auto-organizado pelas mulheres, especialmente as trabalhadoras do setor informal. Ao menos nos relatos das pesquisadoras Bacqué e Bienwener (2015), o “empoderamento” passava por reflexão e processos de decisão coletivos. Faziam parte desse desenvolvimento do “empoderamento” a construção de uma imagem positiva de si, a confiança em si, o desenvolvimento da capacidade de pensar criticamente, a construção de uma coesão de grupo para fins de ações coletivas, a participação igualitária no processo de construção da mudança social e a criação dos meios necessários para a independência econômica (BACQUÉ; BIENWENER, 2015).
Ao proporcionar momentos e oportunidades de empoderamento, o indivíduo e/ou seu grupo se tornam mais cientes de sua posição de exclusão e submissão e, com o apoio previsto na abertura do espaço, podem retomar o mesmo e reestruturar as relações tradicionais de poder [...] (FERNANDES, 2016, p. 3).
Collins (2019), ao debater o ativismo de mulheres negras nos Estados Unidos também defende uma política de “empoderamento”, que passaria, assim como para as mulheres indianas, por dois âmbitos: o individual e o coletivo. O individual no sentido de transformação da consciência individual e o coletivo na direção de mudar as injustas instituições sociais nos Estados Unidos.
Essa noção de “empoderamento” libertador se articula, segundo Batliwala (2007), com os princípios da educação popular, mais especificamente com as reflexões de Paulo Freire sobre a pedagogia do oprimido e as pedagogias libertadoras12 em geral, bem como com uma linha de pensamento gramsciana para criação de espaços participativos dos subalternos para fins de disputa de hegemonia13. Collins (2019) também faz referência à disputa por hegemonia e à necessidade de um conhecimento contra-hegemônico14, que promova a transformação da consciência frente a um senso comum que perpetua as relações de poder, sejam institucionais, sejam intersubjetivas.
Faz-se necessário aqui, entretanto, fazer uma ponderação a respeito do uso do termo “empoderamento” de inspiração freiriana. Carvalho (2014), ao investigar “empoderamento” em Paulo Freire, encontrou o “conceito” de “empoderamento” em apenas uma de suas obras, “Medo e ousadia: o cotidiano do professor” (1986). Na trilogia principal de Freire, “Pedagogia do oprimido”, “Pedagogia da autonomia” e “Pedagogia da esperança”, o termo não aparece. Segundo a pesquisadora, Freire escreve “Medo e ousadia” em coautoria com Ira Shor, o qual pode ter tido grande influência sobre Freire para incorporação do termo “empoderamento” na obra. Segundo ela, Freire demonstra apreensão em usá-lo em sua análise sobre educação, porque poderia ser interpretado como uma prática que autonomizaria o aluno em relação ao professor ou que o sujeito leitor pudesse dar um sentido individualista à libertação e ao “empowerment”, e acrescenta que o “empoderamento” individual, ou o “empoderamento” de só alguns alunos, não seria suficiente no que se refere ao processo de transformação social. Para Freire só faz sentido um conceito de empowerment ligado a classes sociais, ainda que não se restrinja a elas. O “empoderamento” seria, portanto, um processo político de libertação das classes dominadas.
Carvalho (2014) cita uma entrevista com Ana Maria Araújo Freire (viúva de Paulo Freire) sobre relações entre o pensamento freiriano e o debate sobre “empoderamento”, na qual ela responde: “[...] o empoderamento nunca foi uma questão para Paulo. Ele jamais escreveu sobre isso e talvez nunca respondesse diretamente sobre esse conceito. Porque Paulo tinha um certo receio de dizer ‘eu tenho poder’” (FREIRE, s/d apud CARVALHO, 2014, p. 162). Ana Maria Freire diz que Paulo Freire não gostava de deixar brechas em suas análises para relações verticalizadas.Qualquer decisão para ele seria um “decidir com”, em processo de escuta do outro. Para isso, o indivíduo deve se tornar crítico para se posicionar contra ou a favor de algo, assim, o diálogo estaria instaurado e seria possível construir o “ser mais”, o que é diferente do “empoderamento”.
O empoderamento é individualista, uma criação do neoliberalismo. E devemos ter cuidado com a falácia do empoderamento, pois, no processo de nossa libertação, devemos criar a nossa autonomia. Mas ninguém é livre ou autônomo sozinho, então devemos procurar, também, a libertação e autonomia do outro, dando-lhe condições de ser sujeito da história (FREIRE, s/d, apud CARVALHO, 2014, p. 162-3)
Colocadas essas ressalvas, é importante assinalar que a noção de “empowerment”, que, em Freire, tem uma firme conexão com classe social, foi incorporada por movimentos sociais, intelectuais e partidos políticos como um termo ou tática progressista (CARVALHO, 2014).
Chama a atenção na fala de Ana Maria Freire o fato de que “ninguém é livre ou autônomo sozinho”. Isso responderia a uma das questões do início do artigo sobre ser possível ou não se empoderar individualmente. León (1997) adverte que, para as mulheres que têm como naturalizada a subordinação, é difícil ou incerto que a mudança desta condição ocorra espontaneamente, por isso a necessidade de se facilitar as condições que permitam que as mulheres modifiquem a imagem de si mesmas e tomem consciência de seus direitos e capacidades através de agentes externos, ou aquilo que Cisne (2014) chama de “consciência militante feminista”15. Fernandes (2016) chama a atenção para o fato de que a conscientização deve elevar o entendimento da experiência particular para o universal, do pessoal para o político, seja em espaços mais restritos, para experiências de cura, seja em espaços mais amplos, de construção política coletiva. Daí a enorme relevância da teoria, que faz a mediação entre as experiências vivenciadas e a construção política da transformação social.
[...] a conscientização deve ser central na luta contra opressão porque não toma a experiência de maneira mecânica ou essencialista, mas submete a experiência ao rigor da reflexão política e social de modo a passar a compreendê-la pela dialética da práxis (a união entre prática e teoria para a transformação do mundo, como diz Freire) (FERNANDES, 2016, p. 11).
Ainda em meados da década de 1980, o termo “empoderamento” adquiriu uma dimensão internacional com a rede DAWN (Development Alternatives with Women for a New Era [Alternativas para o Desenvolvimento com as Mulheres para uma Nova Era]), criada em 1984, a partir de uma reunião de trabalho de cientistas sociais do terceiro mundo para preparar o Congresso Internacional da ONU sobre mulheres em Nairobi, no Quênia, a se realizar no ano posterior. Nos dez meses seguintes circularam muitos documentos entre essas estudiosas, as quais decidiram elaborar uma plataforma de desenvolvimento feminista alternativo que mobilizasse o “empoderamento” das mulheres. O manifesto DAWN foi apresentado no foro das ONGs16 da conferência de Nairobi em 1985 e publicado em 1987, intitulado “Development, Crisis and Alternative Visions. Third World Women’s Perpectives” [Desenvolvimento, Crise e Visões Alternativas. Perspectivas da Mulher do Terceiro Mundo] (BACQUÉ; BIENWENER, 2015).
O manifesto, em formato de livro, DAWN (SEN; GROWN, 1987), é importante porque conecta a experiência concreta do trabalho local executado por essas mulheres com análises mais universais da economia, conjuntamente com crítica social. Apresenta como requisitos do “empoderamento” recursos (financeiros, conhecimento, tecnologia), construção de habilidades, formação de lideranças, processos democráticos, diálogo, participação política na tomada de decisões, técnicas para resolução de conflitos. Processos democráticos e abertos também seriam primordiais para o “empoderamento” das mulheres frente às pressões sociais e familiares em razão de sua participação no processo. Esses requisitos possibilitariam o crescimento da autonomia e do controle das mulheres pobres sobre suas próprias vidas, ligadas a processos internos das organizações em compartilhar responsabilidade e tomar decisões. O manifesto ainda é crítico à abordagem “liberal” do Women in Development, que afirmava que o principal problema das mulheres do terceiro mundo seria a insuficiência de sua participação em um processo positivo de crescimento e desenvolvimento, e convoca a uma mudança estrutural que combata a desigualdade de classe, gênero e raça em todos os países e na relação entre países (BACQUÉ; BIENWENER, 2015). O “empoderamento” das mulheres pobres seria condição necessária à implementação dessa forma alternativa de desenvolvimento.
Si los primeiros abordajes, los de Women in Development, corresponden al modelo socioliberal, los que siguen – en particular, el de lared DAWN – remiten a un modelo radical enelhecho de que esse proyecto feminista involucra las múltiples dimensiones, individuales, colectivas y estructuralesdel poder en una perspectiva social explicitamente emancipatoria (BACQUÉ; BIENWENER, 2015, p. 66)
Segundo Sadenberg (2006, p. 5), o livro da rede DAWN concebia o “empoderamento” das mulheres como fundamental para uma transformação das estruturas de subordinação através de mudanças radicais na legislação, direitos de propriedade e outras instituições que reforçavam e reproduziam a dominação masculina. O “empoderamento” deveria cumprir três objetivos:
(1) questionar a ideologia patriarcal; (2) transformar as estruturas e instituições que reforçam e perpetuam a discriminação de gênero e as desigualdades sociais; e (3) criar as condições para que as mulheres pobres possam ter acesso – e controle sobre – recursos materiais e informacionais (SARDENBERG, 2006, p. 6).
Contraditoriamente, foi a internacionalização do termo “empoderamento”, em uma perspectiva mais libertadora, do manifesto DAWN, que resultou, na década de 1990, em seu uso economicista, adquirindo caráter despolitizador, apresentando-se como um “empoderamento” liberal.
Segundo Bacqué e Bienwener (2015), a atenção às questões de gênero por parte das grandes instituições multilaterais coincide com o patente fracasso das políticas neoliberais, que levou, inclusive, ao questionamento do Consenso de Washington17. As reorientações desses organismos não rompem com a economia de mercado, mas manifestam uma consideração superficial pelo social. As autoras, entretanto, alertam para o fato de que diferentes interpretações atravessam as referidas publicações, as quais vão desde um polo social liberal, que articula “empoderamento” com igualdade de oportunidades, antipobreza, capacidades, participação, governança e autonomização, até um polo neoliberal, empresarial e pautado na liberdade individual, fundada em escolhas racionais.
Sardenberg (2008) relembra o fato de que o “empoderamento” liberal tem sua origem no liberalismo, bem como na pauta por igualdade de oportunidades para as mulheres, no sentido do feminismo liberal18, mas que o liberalismo não deve ser apenas associado a noções de liberdade individual, direitos individuais e igualdade de oportunidades, como também com a economia neoclássica e sua aplicação neoliberal, que acarreta em ajustes estruturais, privatizações e “Estado mínimo”19, com fortes implicações sobre as mulheres, em especial as mulheres da América Latina e de outros países do sul global.
A ONU, desde sua criação, tem a ideologia social liberal presente em seus documentos e discursos, colocando o acento na retificação das desigualdades sociais no fortalecimento das capacidades dos pobres (BACQUÉ; BIENWENER, 2015, p. 70). A noção de “empoderamento” é bastante mobilizada nas análises calcadas nas relações de gênero.
Tanto Sadenberg (2008) quanto Bacqué e Bienwener (2015) destacam a Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, ocorrida em 1995, em Pequim, como muito relevante para fortalecimento do uso do termo “empoderamento” por organismos multilaterais. No mesmo ano, o “empoderamento” se converteu em um dos objetivos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o qual, inclusive, estabeleceu um índice nomeado Gender Empowerment Measure[Índice de Empoderamento das Mulheres], muito influenciado pelas noções de desenvolvimento humano e de capabilidade (o desenvolvimento das capacidades de cada um), de Amartya Sen (BACQUÉ; BIENWENER, 2015, p. 71). Segundo Carvalho (2014, p. 157), “para Amartya Sen, a pobreza seria um estado de desempoderamento, ao passo que o empoderamento dos pobres possibilitaria a conquista da cidadania”.
Nos objetivos do milênio para o desenvolvimento, dos anos 2000, da ONU, está na terceira posição a promoção de igualdade de sexos e “empoderamento” das mulheres.
Em la ONU, el empoderamiento de las mujeres es definido ante todo, así, en términos de autonomización y se trata de dar a cada una las condiciones de participar em el juego social y económico, fortalecendo la participación política y favorecendo um acceso equitativo a empleos decentes, al crédito, a la tierra y a propriedade. No obstante, no se considera aqui ninguna transformación institucional o estrutural (BACQUÉ; BIENWENER, 2015, p. 73).
Essa dimensão mais individual da concepção de “empoderamento” passa a ser dominante nos documentos desses organismos. O indivíduo é descolado de sua base social, material e histórica, portanto, estrutural. “Seu objetivo não é a igualdade, mas a meritocracia. Em vez de abolir a hierarquia social, visa a ‘diversificá-la’, ‘empoderando’ mulheres ‘talentosas’ para ascender ao topo20” (ARRUZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019, p. 37-8).
Arruza, Bhattacharya e Fraser (2019), autoras do manifesto do “Feminismo para os 99%”, chamam a atenção para o fato de que quando algumas poucas mulheres alcançam cargos e salários iguais aos dos homens de sua própria classe, o fazem se apoiando em outras mulheres, em geral racializadas e/ou imigrantes no local de trabalho, algo que se repete no âmbito doméstico.
O Banco Mundial, por exemplo, em 2005 já tinha mais de mil e oitocentos projetos que mencionavam o “empoderamento”, sendo que a maioria deles se referia ao “empoderamento” das mulheres (BACQUÉ; BIENWENER, 2015, p. 76). As abordagens do Banco Mundial, da mesma forma que da ONU, remetiam, em grande parte, à liberdade individual e à responsabilidade dos indivíduos, baseadas em teorias neoclássicas e neoinstitucionalistas.
Sardenberg (2008) advertiu a respeito de um transformismo do termo “empoderamento”: de um instrumento de mudança social passa a reforçar o status quo e garantir a continuidade das práticas dominantes.
Apesar de ter emergido no pensamento feminista como uma crítica à noção liberal de poder, o conceito de empoderamento foi apropriado pelo discurso de desenvolvimento em moda, legitimando práticas que pouco têm a ver com a concepção original desenvolvida pelas feministas do Sul (SARDENBERG, 2008, p. 21, tradução nossa).
A autora chega a falar em “empoderamento sem poder” (SARDENBERG, 2008, p. 22), porque não sobra espaço para mudança nas relações de poder existentes na sociedade a partir dessa concepção liberal de “empoderamento”.
Uma das formas principais de se conferir “empoderamento” às mulheres nessa concepção liberal é o microcrédito. A superação da condição de pobreza das mulheres estaria assentada nas escolhas racionais tomadas por mulheres que recebem crédito via governo ou ONGs. Também está presente aí uma questão moral, de que as mulheres priorizam a proteção da família, portanto, elas é que devem se responsabilizar por dinheiro emprestado A culpabilização e a responsabilização dessas mulheres vêm travestidas sob o discurso de autonomia (CARVALHO, 2014, p. 181).
Batliwala (2007) constatou que esse tipo de política não somente não resolve o problema da condição de subordinação das mulheres, como cria novos problemas, tais como endividamento, cooptação, duplicação ou triplicação da jornada de trabalho das mulheres e, inclusive, novas formas de violência de gênero.
O mais aterrador nesse processo é o fato de que o microcrédito ainda é uma situação menos indigna do que outros exemplos citados por Zakaria (2017, s.p.): a organização Índia Partners fez uma campanha que propagou que, por 100 dólares, era possível empoderar uma mulher na Índia, para a qual se compraria uma máquina de costura; a Heifer Internacional entregava, por 390 dólares, uma “cesta do empreendedor”, que incluía coelhos, alevinos e bichos de seda a mulheres na África; GatesFoundation (de Bill Gates) tinha projetos de avicultura, e enviava galinhas para países em desenvolvimento, para que mulheres "expressam sua dignidade e obtenham o controle”, sob a justificativa de que “as galinhas são pequenos animais mantidos perto da casa, eles são particularmente adequados para mulheres “empoderadas’” .
O “empoderamento” pode, também, ter uma relação estreita com o empreendedorismo, em seu caráter mais mistificador. Berth (2018), ao analisar a relação entre “empoderamento” e pessoas negras, lembra que, em razão do racismo estrutural, essas pessoas, em geral, têm dificuldade de ter um trabalho formal e, por isso, historicamente, empreendem por necessidade. Por isso, ela chama atenção em relação ao “empoderamento” pela perspectiva econômica, em particular para mulheres negras, principalmente no que diz respeito ao afroempreendedorismo e ao movimento black money, que têm, por perspectiva, fazer circular o dinheiro dentro da comunidade negra, para fortalecer a produção e o consumo nesse universo. Berth (2018) afirma que o acesso à riqueza material, desde o pós-abolição, tem sido dificultado aos negros e às negras, e o “empoderamento”, pela via do empreendedorismo, pode vir acompanhado de aprofundamento da precarização do trabalho.
Zakaria (2017) acredita que foi importante ter levado a pauta do “empoderamento” para a Conferência de Mulheres de 1995. Porém, o “empoderamento”, que significava transformar a subordinação das mulheres, quebrar outras estruturas opressivas e realizar mobilização política, tornou-se jargão dos profissionais ocidentais do desenvolvimento, e o “empoderamento” foi totalmente despolitizado.
Essa mesma pesquisadora, Zakaria (2017), pensa que o conceito de “empoderamento” precisa de um resgate imediato e urgente das mãos dos pretensos “salvadores” do desenvolvimento. Berth (2018, p. 130-131) também advoga a favor dos sentidos originais do significado do “empoderamento”, em contraposição ao “discurso para a venda de um empoderamento pasteurizado, de fachada, paternalista mais interessado em manter o estado atual das coisas [...]”. Já Batliwala (2007), depois da subversão do termo, se pergunta se realmente se deve continuar utilizando o termo “empoderamento”. Para ela é necessário construir uma nova linguagem, em escuta às mulheres pobres.
A indagação que inicia este último item conclusivo do artigo se faz necessária, porque um dos objetivos é colaborar com a escolha, por parte dos movimentos feministas, de recorrer ou não ao termo/prática política do “empoderamento”. Para tanto, buscamos os fundamentos históricos e teórico-metodológicos do termo, no intuito de compreender que práxis política engendra. Chegamos à conclusão de que o mesmo termo, “empoderamento”, responde a práticas políticas diversas, algumas com sentido mais libertador, outras bastante retificadoras do status quo.
A pergunta que fica é: o “empoderamento” interessa a uma luta feminista revolucionária, que quer superar o capitalismo e as opressões a ele integradas, abarcando produção e reprodução social?
Está claro e evidente que o “empoderamento” liberal, fortemente utilizado pelos organismos multilaterais, tais como ONU e Banco Mundial, não se propõe superar as opressões nem o capitalismo. Conforme pudemos analisar, as saídas individualizantes, sejam elas conservadoras, sociais liberais ou neoliberais, não rompem com a condição de dominação sobre as mulheres, cujas saídas se reduzem a ações econômicas (microcrédito, cestas empreendedoras etc.).
A questão se torna mais complexa ao tratarmos do “empoderamento” libertador. Cabe aqui fazer a distinção apontada por Karl Marx (2010) entre emancipação política e emancipação humana. A emancipação política remete a um conjunto de direitos que garantam “liberdade” e “igualdade” formais, que colocariam as mulheres em condição cidadã. Já a emancipação humana está relacionada à eliminação de toda forma de desigualdade, dominação e exploração, ou seja, à construção de igualdade e liberdade substantivas, o que supõe a superação do capitalismo.
O que nos parece, a partir da investigação teórico-bibliográfica realizada, é que mesmo o “empoderamento” libertador não é radical ao ponto de propor uma prática revolucionária no sentido marxista do termo, que projeta a superação das classes sociais e do capital. Afinal, para a perspectiva revolucionária, “a luta feminista não é uma questão de interesse apenas das mulheres, mas da humanidade que se pretende livre” (DURIGUETTO; CISNE, 2015, p. 20).
Apesar de extremamente relevante, o debate fomentado por Collins (2019, p. 455), que defende o “empoderamento” das mulheres negras ao colocar as epistemologias feministas negras no centro da visão de mundo delas, no sentido de “rejeitar as dimensões do conhecimento que perpetuam a objetificação, a mercadorização e a exploração”, ao fim e ao cabo,objetiva promover justiça social. E, na leitura revolucionária marxista, não existe justiça social sob o modo de produção capitalista, a não ser formalmente.
Para além da perspectiva liberal, Collins (2019) defende que o “empoderamento” não pode ser meramente uma escolha individual, mas, mesmo assim, a finalidade fica restrita ao campo das reformas21:
Ainda sobre mulheres negras, tomando por referência o Brasil, Berth (2018, p. 64) afirma que “falar em empoderamento de um grupo social é necessariamente falar sobre democracia [...]”. A pesquisadora se refere a instrumentos de participação social, tais como conselhos, comissões, ouvidorias etc. Entretanto, ela mesma afirma que esse tipo de participação social é um instrumento limitado, e que não deve ser um fim em si mesmo, porque não garante igualdade de participação.As comunidades quilombolas ou indígenas, por exemplo, costumam não acessá-lo.
No limite, o empoderamento, para Berth (2018, p. 131, grifo da autora), não é um instrumento de rompimento com a lógica do capital:
[...] é importante criar estratégias de fortalecimento econômico e tal demanda é fundamental para o surgimento de condições favoráveis ao empoderamento. Vale para fortalecimento financeiro, estético, afetivo, dentre tantos que oxigenam a corrida de grupos oprimidos pela existência digna, sobretudo mulheres negras.
Duriguetto e Cisne (2015) explicam que é muito importante questionar hierarquias de gênero [e raça] e lutar por legislação igualitária, mas isso não é suficiente para estabelecer a emancipação humana. Pelo que constatamos nesta pesquisa, as lutas locais, a auto-organização das mulheres à conscientização da sua condição de subordinação são de enorme relevância para o cotidiano dessas mulheres, especialmente do sul da Ásia, da América Latina e mulheres negras nos Estados Unidos. Entretanto, é preciso dar um passo além, que consistiria no uso da teoria para fazer as conexões entre a singularidade cotidiana dessas mulheres nos âmbitos da produção e da reprodução e o universal do modo de produção capitalista, como alicerces para uma prática radicalmente transformadora da totalidade capitalista e das opressões a ela integradas (ARRUZZA, 2015; MORAES, 2021). Caso contrário, estaríamos apenas amenizando a produção de miséria – material e espiritual – que o capitalismo engendra.
No limite, ao que pudemos observar, o “empoderamento”, nos seus vários sentidos, tem um caráter reformista. A nossa conclusão é que a luta contra as opressões não pode se desconectar da luta contra a exploração, ou seja, o feminismo revolucionário deve ser contra a totalidade articulada e contraditória que envolve sexismo, racismo, capacitismo, colonialismo, destruição ambiental, enfim,contra o capitalismo, o que torna a noção de “empoderamento” quando não mistificadora, limitada em relação à perspectiva revolucionária.