Resumo: O artigo analisa os desafios postos à Saúde Mental no âmbito do SUS em meio ao contexto de crise do capitalismo e de contrarreformas do Estado, que tem tensionado e confrontado as conquistas da Reforma Psiquiátrica e do Movimento de Luta Antimanicomial. Os retrocessos revelam a centralidade biomédica com o fortalecimento da lógica manicomial e hospitalocêntrica vinculada às práticas conservadoras, ocorrendo, nesse sentido, uma inversão do modelo de atenção psicossocial, em especial, no campo de atenção de álcool e outras drogas com repercussão sobre a produção do cuidado. Esse tempo é marcado pelo agravamento da pandemia da Covid-19, pela defesa da democracia, da vida e do cuidado em liberdade. Conclui que se trata de uma discussão analítica conceitual com base no arcabouço legal e normativo da Política de Saúde Mental correlacionada com a literatura especializada da temática.
Palavras-chave: Crise, Saúde Pública, Saúde Mental, Pandemia, Política Pública.
Abstract: The article analyzes the challenges posed to Mental Health within the scope of the SUS in the context of the crisis of capitalism and of the State's counter-reforms, which have been straining and confronting the achievements of the Psychiatric Reform and the Anti-Asylum Movement. The setbacks reveal the biomedical centrality with the strengthening of the asylum and hospital-centered logic linked to conservative practices, occurring in this sense, an inversion of the psychosocial care model, especially in the field of care for alcohol and other drugs, with repercussions on the production of care. This time is marked by the worsening of the Covid-19 pandemic, the defense of democracy, life, and care in freedom. It is a conceptual analytical discussion based on the legal and normative framework of the Mental Health Policy correlated with the specialized literature on the subject.
Keywords: Crisis, Public Health, Mental Health, Pandemic, Public Policies.
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SAÚDE MENTAL EM TEMPOS DE CRISE: desafios da e na atualidade1
Recepción: 06 Septiembre 2021
Aprobación: 20 Mayo 2022
Os impactos da crise capitalista concomitante à implementação de uma contrarreforma1 do Estado, de cunho neoliberal, acirrada no período mais recente, tem acarretado perda gradual dos direitos sociais, em tempo marcado por grandes incertezas, fragilidades e com implicações nas políticas sociais e na própria organização da Política Pública de Saúde brasileira no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa crise econômica, política e institucional agravou-se ainda mais com a crise sanitária resultante da pandemia da Covid-19, a qual tem se constituído num desafio global que impõe limites para os sistemas de saúde público e às estratégias antivirais existentes. O número de contaminados e de mortalidade no país é expressão do desmantelamento das políticas públicas de cunho social, de anos de subfinanciamento das políticas sociais, aliado a desinvestimentos, contingenciamentos, cortes de orçamentos, entre outros.
Na perspectiva de Mendes (2015, p. 68), “quando se refere à natureza da crise capitalista, é possível afirmar que o Estado exerce papel fundamental na sua constituição, à medida que é forma necessária desse modelo de reprodução social capitalista”. Assim, entendê-la requer compreender duas formas determinantes da sociabilidade capitalista, sendo que a primeira delas consiste na “forma mercadoria/forma valor e a forma política estatal'', acrescentando, ainda, uma terceira: a forma jurídica. Esta última também entra em crise, colocando em cheque os direitos sociais – o direito à saúde” (MENDES; CARNUT, 2020, p. 17).
Nesse sentido, a saída que o capitalismo tem buscado para essa crise gira em torno dos ideários neoliberais e da “intensificação de políticas de contrarreformas do grande capital produtivo aliado às finanças” (IAMAMOTO, 2019, p. 34), que colocam no centro da prática os desafios postos à garantia e ao fortalecimento das políticas sociais que visem assegurar a promoção, a proteção e o fortalecimento dos direitos historicamente construídos e os que se encontram em construção. Estamos diante de uma nova era de devastação, uma espécie de fase ainda mais destrutiva da barbárie neoliberal e financista que almeja a completa corrosão dos direitos do trabalho em escala global” (ANTUNES, 2018, p. 10).
Na perspectiva analítica de Pereira, Duarte e Santos (2021, p. 5) o acirramento da austeridade econômica “vem produzindo um modelo de democratização da pobreza atrelado à democratização da política. [...] embora pareça inclusiva, ela, na verdade, constitui mera formalidade; inclui muito pouco”. Nesse contexto, as políticas sociais públicas são atravessadas por conflitos decorrentes de “um processo internamente contraditório, que simultaneamente, atende interesses opostos [...] são respostas e formas de enfrentamento, quase sempre setorializadas e fragmentadas, às expressões da questão social no capitalismo” (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 24).
Essa complexa dinâmica amplia as situações de desigualdade social enquanto expressões da questão social, aqui compreendida como o “conjunto multifacetado das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado” (IAMAMOTO, 2019, p. 38), presentes na vida de um expressivo contingente da população brasileira que vive nos 5.570 municípios brasileiros. Embora nem todas as desigualdades sociais decorram diretamente da relação capital/trabalho, sem dúvida, todas elas agudizam-se e exponenciam-se nessa ordem estabelecida pelo capitalismo, como as desigualdades de classes, gênero, raça/etnia, territoriais, socioambientais, socioespaciais e as geracionais.
Assim, ao considerarmos a conjuntura de crise do capitalismo, a crise econômica e de austeridade fiscal com o predomínio de políticas neoliberais e a crise sanitária causada pela pandemia da Covid-19, é possível compreender o atual quadro crítico materializado nas dificuldades e nos retrocessos presentes na área da Saúde com ataques sem precedentes ao SUS. Nesse mesmo movimento, soma-se ainda a um processo mais amplo ora em curso, de retrocessos no campo da Saúde Mental no que tange à manutenção dos princípios da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, processos esses com consequentes e significativas implicações na vida dos usuários e familiares dessa política.
Nesse sentido, estamos diante de um imperativo ético e epistemológico, de empreender um esforço “mais aprofundado de conhecimento dos seus movimentos, tendências, contra tendências e relações, com vista ao estabelecimento de estratégias de políticas dialeticamente interligadas” (PEREIRA, 2014, p. 24). É no bojo desse processo que o artigo empreende uma análise acerca dos desafios postos à Saúde Mental no âmbito do Sistema Único de Saúde em meio ao contexto de crise do capitalismo, de contrarreformas do Estado e que tem se agravado cotidianamente com a crise sanitária ocasionada pela pandemia da Covid-19, tempo esse de defesa da democracia, da vida e do cuidado em liberdade.
Cumpre destacar que o artigo é um recorte da pesquisa de doutorado ora em curso no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí, que tem como objeto de análise a formação no âmbito do Serviço Social na sua relação intrínseca com o campo da Saúde Mental, a partir da história numa perspectiva de longa duração. Trata-se de uma discussão analítica e conceitual com base na literatura especializada da temática e em consonância com o arcabouço legal e normativo da Saúde e da Saúde Mental.
Com vistas a alcançar os objetivos propostos, o texto se estrutura em três partes. Inicialmente é analisada a multiplicidade de dimensões presentes no contexto de crise que tem marcado e fragilizado as políticas sociais. Na sequência, discutimos a atenção à Saúde Mental com destaque para a constituição histórica do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira, que vem sendo colocado em xeque nesses tempos de crise econômica, social, política e sanitária, e, por fim, buscamos refletir sobre a conjuntura de crises e sua tendência de desmonte das conquistas advindas da Reforma Psiquiátrica e do Movimento da Luta Antimanicomial.
Na atualidade, é indispensável realizar uma análise da conjuntura levando em consideração as articulações, aliadas a importantes aspectos das dimensões locais, regionais, nacionais e internacionais das mudanças no âmbito do Sistema Público de Saúde, bem como, dos acontecimentos ora em curso. Isso requer do protagonista da atividade de trabalho, que seja capaz de empreender uma leitura consistente, e, ao mesmo tempo, que saiba fazer uma análise do trabalho e dos desafios postos à garantia dos direitos historicamente conquistados.
A multiplicidade de dimensões supracitadas marca de modo inelutável a trama da realidade social. Tonet (2009, p. 435) afirma que “a humanidade está atravessando uma crise sem precedentes, que atinge todas as dimensões da vida”, sendo essa crise acompanhada da “onda das políticas de austeridade e de Estado mínimo “de um capitalismo neoliberal, rentista e globalizado” (NUNES, et al, 2019, p. 4491). Simionatto (2009, p. 88) destaca que para a apreensão da real dimensão da crise capitalista na atualidade é necessário “discutir suas principais manifestações não apenas na esfera da economia e da política, mas também, as repercussões nos campos do conhecimento, das ideias e dos valores”. Assinalam Gomes; Lima e Carvalho (2021, p. 152) que a crise não é uma exceção na dinâmica capitalista, ela é
[...] explicada pela fase de acumulação que a precede. Sua possibilidade de deflagração está contida desde o nível mais abstrato até o mais concreto no processo de desenvolvimento da economia capitalista. A contradição entre produção e consumo, gerada por meio da anarquia da produção, origina um processo cumulativo de tensões que se resolve nas crises econômicas (p. 152).
Essa conjuntura tem se [re]configurado em decorrência das “pressões do grande capital internacional com apoio interno dos centros do poder [...] somadas as exigências de regressão de direitos trabalhistas e previdenciários, consubstanciados em contra reformas trabalhista e previdenciária” (IAMAMOTO, 2019, p. 16-17). Boschetti e Teixeira (2019, p. 70) apontam o “argumento neoliberal falacioso de que o motivo da crise está relacionado ao excesso de gastos públicos, de fato, o ajuste fiscal no país foi intensificado nos últimos quatro anos em benefício das ambições do capital”.
Nessa perspectiva, a soma das medidas neoliberais ocasiona efeitos deletérios para os serviços públicos, uma vez que “abre espaço para a privatização de empresas estatais bem como ocasiona a restrição de gastos na área social e impõe reformas fiscais” (SALVADOR, 2008, p. 88). Cumpre destacar que as reformas se caracterizam pela transferência de “diversas atividades para o controle do mercado, que passam a ser assumidas pelo empresariado e demais setores privados, sendo que o Estado assumirá a função de repassador de recurso e regulador dos processos” (PINTO, 2014, p. 662).
A conjuntura política institucional tem contribuído para a intensificada sensação de insegurança “em meio à ascensão de governos populistas de extrema-direita” (LEÃO; IANNI; GOTO, 2019, p. 57). Apenas para ilustrar “a nova direita não é uma mera aliança entre neoliberais e neoconservadores [...],mas sim, uma fusão do que há de mais rígido e antissocial em cada uma destas correntes, resultando numa ideologia nefasta” (PEREIRA; PEREIRA-PEREIRA, 2021, p. 48).Assim, as contra reformas de caráter neoliberal destes governos contribuem para a dissolução das redes de seguranças, das políticas públicas, dos direitos sociais enquanto resultado do processo contínuo de desfinanciamento por parte destes governos, situação que se intensificou a partir da aprovação da EC/95, que limitou os gastos públicos por vinte anos.
O resultado disso expressa-se claramente agora no contexto da pandemia, reafirmando as inúmeras análises que apontam a “perversidade” dessa estratégia e o quanto ela fragiliza “o já precário funcionamento do SUS, do SUAS, da Previdência Social, ou seja, exatamente as políticas de Seguridade Social que neste momento estão sendo demandadas para ações emergenciais e preventivas” (YAZBEK; RAICHELIS; SANT’ANA, 2020, p. 208). Alia-se a esses rebatimentos de caráter estruturais, as repercussões nas condições sociais e de vida da população usuária desses serviços, assim como, nas intervenções cotidianas, muitas vezes, definidas de forma vertical no âmbito das políticas sociais públicas sob a égide do ideário neoliberal.
As contínuas contrarreformas do Estado colocam em risco o próprio Sistema Único de Saúde, tendo em vista o histórico subfinanciamento da Saúde desde a sua criação e de sua consagração como política de direito universal, promulgada pela Constituição Federal de 1988. Na análise de Mendes e Carnut (2020, p. 23) para reconhecer a dimensão da crise na Saúde Pública e as décadas de subfinanciamento do SUS, é necessário compreender “a crise capitalista contemporânea, que tem o Estado capitalista atuando no sentido de restringir o orçamento público, em decorrência de ajustes fiscais adotados pelos governos”. Assim, com os insuficientes recursos destinados ao SUS, tem-se os problemas na manutenção da rede de serviços, limitando os investimentos para a ampliação da infraestrutura pública e para a remuneração dos trabalhadores. Diante dessa realidade, a decisão de compra de serviços do setor privado e a ideologia da privatização são fortalecidas (PAIM, 2018).
É típico dessa ordem mundial, acentuada pela lógica do capital financeiro, abundância e riqueza de um lado, e de outro, a pobreza, a exclusão social, as precariedades de condições de existência e trabalho, ambiental, entre outras, produzidas pelos mesmos processos que motivam o desenvolvimento econômico e o crescimento das forças produtivas. Com a crise sanitária causada pela pandemia da Covid-19 “a crise do capital, que já expressava por si a barbárie do sistema capitalista quanto à vida dos trabalhadores, se agrava fortemente” (SANTANA; FERREIRA, 2021, p. 29). Na perspectiva analítica de Pereira e Pereira-Pereira (2021) essa crise sanitária “é produto acumulado da exploração voraz dos recursos da natureza e do trabalho humano pela civilização industrial, ainda em expansão, que, somado à crise estrutural do capital, ganha contornos extraordinários” (PEREIRA; PEREIRA-PEREIRA, 2021, p. 43).
O enfrentamento da pandemia pelo Estado brasileiro se confronta com o ajuste neoliberal e as medidas de austeridade fiscal nos últimos anos, com cortes nas despesas com políticas sociais e investimentos públicos em serviços sociais, assim como pela “flexibilização do mercado financeiro para a presença de bancos internacionais, programa de privatizações, desregulamentação das relações trabalhistas, sistema previdenciário, entre outros que expressam as contrarreformas”(GOMES; LIMA; CARVALHO, 2021, p. 156).
A pandemia da Covid-19 trouxe à tona o debate sobre a estratégia ultraliberal de que se vem alimentando a ordem capitalista na atualidade para responder às suas frequentes crises, com a posição do governo brasileiro contraposta à da grande maioria dos dirigentes em outros países afetados pela pandemia, mesmo os que se situam no campo do conservadorismo liberal, em relação à administração da crise sanitária. Para a maioria, as medidas interventivas têm fulcro na transparência de informações, além de identificação, controle e aparelhamento de instituições compatíveis com a periculosidade do vírus. E nessa perspectiva, Carvalho (2019, p. 6) sustenta a tese de que o bolsonarismo revela-se, na vida brasileira contemporânea, como “uma perigosa composição do ultraneoliberalismo, do militarismo e do reacionarismo político cultural”,
[...] no Brasil, esse quadro, como sinalizado, se agudiza em função da desigualdade social e da crise política, num governo que escolhe a economia em detrimento da vida. Alguns elementos aprofundam a crise no Brasil: as transformações no mundo do trabalho levando a um trabalho absoluta e amplamente precarizado, e o crescimento significativo do setor de serviços (incluindo o comércio), que hoje emprega mais de 50% da força de trabalho. Esses são dois elementos que estruturam as relações sociais e de trabalho de forma mais favorável à acumulação (PINTO; CERQUEIRA, 2020, p. 43, destaques nossos).
Tendo isso em vista, demonstra um complexo painel de desafios à conturbada democracia mundial e brasileira, em face do “perfil da desigualdade social que impera internacionalmente e se particulariza de forma gravíssima no Brasil recente, assim como no tipo de democracia e de política social pública em voga” (PEREIRA, 2021, p. 316). Em última instância, isso explica a desvalorização e exploração da força de trabalho e a total destruição dos direitos e garantias sociais, resultado das conquistas democráticas e das lutas dos trabalhadores no último século, implicando uma regressão social sem precedentes, somando-se à pobreza e à falta de acesso a condições básicas de saúde, higiene, alimentação dentre outras necessidades sociais, agravando o quadro crítico de retrocessos e lutas no âmbito das políticas sociais, na área da Saúde e na Saúde Mental no âmbito do SUS.
A Constituição Federal de 1988 fortaleceu e ampliou o acesso aos direitos sociais, bem como a defesa de uma sociedade mais justa e diversificada, assegurando direitos humanos, sociais, culturais e econômicos de uma forma ampla e abrangente sob a responsabilidade do Estado. Teve impactos no desenho das políticas, principalmente, pela instituição da Seguridade Social como Sistema de Proteção Social articulando as políticas de Previdência, Saúde e Assistência Social. Assim, pela primeira vez na história do Brasil os direitos sociais não estavam subordinados à inserção econômica do trabalhador, mas à condição universal da cidadania.
A Carta Magna constituiu um marco histórico no âmbito da Saúde Pública brasileira ao materializar no artigo 196 a Saúde como direito social e como dever do Estado, e, ao mesmo tempo, legitimou a criação do Sistema Único de Saúde baseado nos princípios da universalidade e da atenção integral, bem como, representou a abertura de horizontes no cuidado em Saúde Mental com a Reforma Psiquiátrica Brasileira na conjuntura da democratização do país.
Afirmam Kruger e Oliveira (2018) que,
[...] o componente jurídico-legal do SUS completou-se com a Lei 8.080/1990 [...] sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde e o funcionamento dos serviços; e com a Lei 8.142/1990, de participação da comunidade na gestão do SUS, mediante duas instâncias colegiadas nas três esferas de governo: Conselho de Saúde e Conferência de Saúde (KRUGER; OLIVEIRA, 2018, p. 58).
Nessa perspectiva, o movimento de redemocratização ocorrido durante os anos de 1980, na busca por um Estado democrático e a Reforma Sanitária, impulsionou as ideias e as iniciativas de mudanças no campo da Saúde Mental, bem como foram “por elas favorecidas, dada a relevância do movimento antimanicomial no âmbito dos processos de luta pela ampliação dos direitos e da noção de cidadania” (MACHADO, 2020, p. 5).
O início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil é contemporâneo ao Movimento Sanitário, em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão em Saúde, em defesa da Saúde coletiva e da equidade na oferta dos serviços. Contudo, a Reforma Psiquiátrica a gênese do movimento ocorrida na década de 1970, mais precisamente em 1978, com o surgimento do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) tem uma história própria ligada ao movimento internacional para a superação da violência asilar, tendo sido a Itália um dos países que mais teve influência com o Modelo da Psiquiatria Democrática.
A Reforma Psiquiátrica constituiu um dos mais expressivos movimentos de transformação no campo da Saúde Mental, inspirada por pensadores críticos ao modelo hospitalocêntrico predominante, e por “experiências com práticas de cuidado inovadoras na área, no plano internacional e nacional, a luta antimanicomial mobilizou numerosos atores na academia, nos órgãos públicos, nos serviços de saúde e nos movimentos sociais” (MACHADO, 2020, p. 5).
Enquanto partícipes desse processo destacam-se: o papel da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), sendo um marco importante para a estruturação do SUS, tendo como desdobramento desse evento, em 1987, a I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM) e no mesmo ano, o Congresso de Bauru tendo como lema Por uma Sociedade sem Manicômios, o que significava construir uma nova forma social e cultural de lidar com a loucura. Contudo, é somente em 1992, com a II CNSM, que as críticas ao modelo hospitalocêntrico foram amadurecidas para a efetiva e progressiva extinção dos manicômios (TOMAZ, et al, 2020).
Cumpre destacar que, no Brasil, a obrigatoriedade da realização das Conferências foi mantida com a Lei n. 8142/1990, que as consagrou como instâncias colegiadas representativas dos vários segmentos da sociedade. As Conferências “visam realizar debates e deliberações sobre temas relevantes da sociedade, representando um importante canal para estreitar a comunicação entre setores sociais e o Estado brasileiro” (MENEZES, 2018, p. 7), sendo um amplo fórum de debates organizados com a finalidade de avaliar e planejar as ações e diretrizes e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar a qualidade dos serviços de Saúde e de vida da população usuária.
Essas práticas de gestão têm ainda o desafio da “construção de um projeto social que garanta a redistribuição da riqueza e a socialização do poder político” (KRUGER; OLIVEIRA, 2018, p. 64).Vale ressaltar que no contexto da crise do capitalismo e das medidas políticas de austeridade fiscal adotadas, os fundamentos democráticos do SUS estão sob risco à medida que a relação entre Estado e sociedade acaba sendo mediada pelo mercado e “na gestão pública da atenção à saúde requer exatamente o oposto: a questão da saúde como algo pertinente à esfera pública da vida social porque constitui um direito universal e um dever do Estado (COHN; BUJDOSO, 2015, p. 45).
Diante desse movimento, a Reforma Psiquiátrica foi construindo um processo de desinstitucionalização através de “estratégias e dispositivos políticos, sociais e culturais, e não apenas clínicos e terapêuticos” (AMARANTE; NUNES, 2018, p. 2170).
[...] aqui, a saúde mental se convocou a tomar parte do campo da saúde coletiva onde a política e o social deixaram de ser adjetivos para se substantivar no pensamento social da saúde. Não se tratava mais da psicologia social, da psiquiatria social e tantas outras adjetivações do social, mas de uma determinação fundamental do processo saúde doença (CAVALCANTE, 2020, p. 38)
Nesse sentido, foram instituídos os Centros de Atenção Psicossocial através da Portaria nº 224/1992. Torna-se importante destacar que foi somente após Lei nº 10.216/ 2001, que dispôs sobre a proteção e os direitos da pessoa com transtorno mental, que teve início o redirecionamento do modelo assistencial em Saúde Mental, mediante a implantação de equipamentos denominados Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Esses novos modelos de atenção constituíram a construção de uma Rede de Atenção orientada à substituição da lógica de internação hospitalar. Assinalam Severo et al (2020, p. 9) que foi essa “implementação e sustentação política, por mais de 30 anos, que conferiu ao Brasil um lugar de destaque e reconhecimento internacional no campo da saúde mental”.
As legislações, assim como as diversas Portarias do Ministério da Saúde,em particular a Portaria GM/MS nº 336/2002 que estabelece as modalidades de serviços CAPS, definidos por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional conforme as diretrizes da referida Portaria e posteriormente a III e IV CNSM,foram importantes para os avanços na Saúde Mental.Essa nova perspectiva na forma de produzir cuidado, ao reconstituir a complexidade do existir com o transtorno mental, para além da enfermidade e ao focar nas múltiplas necessidades subjacentes à vida nessa condição, pressupõe a existência de articulação com a Rede de Saúde, com a Rede Socioassistencial do . no território e com o Sistema de Garantia de Direitos (SGD) com vistas a fortalecer as ações intersetoriais.
Contudo, a atual conjuntura marcada por tempos de profunda crise, com impactos em todas as dimensões da vida; a crise que não se originou, mas se acentuou com a pandemia da Covid-19, tem imposto desafios, retrocessos e lutas no que tange à afirmação dos princípios da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. Esses parâmetros têm sido colocados em xeque, submetidos à lógica da redução dos gastos públicos e da ampliação da relação público-privada que fragiliza o caráter universal da Política de Saúde e de Saúde Mental historicamente construída.
Os efeitos da conjuntura de crise no Brasil, cuja principal mediação tem sido as políticas de ajuste, são inegáveis, especialmente pelos obstáculos postos às políticas sociais e à efetivação do direito à Saúde Pública universal. No campo da Saúde Mental, “a resposta à crise atual manifesta-se por mudanças no plano político-jurídico com repercussões na forma de desmonte da Rede de Atenção Psicossocial” (NUNES et al., 2019, p. 4.491), configurando-se num retrocesso às conquistas alcançadas historicamente nesse campo de conhecimento, de intervenção e de cuidado.
Essa regressão deve ser compreendida não apenas como uma “ruptura do pacto democrático e social celebrado com a Constituição de 1988” (DELGADO, 2019, p. 3), mas como uma atualização “neoconservadora do componente de contrarreforma da democracia no Brasil, acelerada a partir do Governo de Michel Temer (2016-2018) e agravada no atual Governo Bolsonaro no ano de 2019 até o momento” (CAVALCANTE, 2020, p. 40).
[...] ademais, a opção da política de Estado do governo Bolsonaro tem levado as classes subalternas a uma situação dramática de enfrentamento da pandemia. Submetidos à informalidade e a precarização laboral, ao desemprego aberto, a péssimas condições habitacionais e sanitárias, alimentação e vida, muitos trabalhadores somam-se às fileiras das estatísticas de mortalidade e pauperização crescentes (GOMES; LIMA; CARVALHO, 2021, p. 151).
Nesse sentido, assegurar a integralidade, a universalidade e a intersetorialidade nos serviços de atenção à Saúde Mental e, portanto, ao SUS, tem sido um desafio, principalmente quando a produção do cuidado não envolve apenas questões específicas das práticas de atenção e cuidado em Saúde Mental, mas fatores condicionantes e determinantes relacionados às necessidades sociais e que precisam da mediação do conjunto das políticas sociais.
Nesses mais de quarenta anos da Luta Antimanicomial e mais de trinta anos da Carta de Bauru, a Lei nº. 10.216, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira completou vinte anos. Foi estabelecida uma nova Política Nacional de Saúde Mental, tornando possível a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS; redirecionou, em todo território nacional, o modelo assistencial até então hegemônico, de hospitalocêntrico para a Rede de Atenção Psicossocial, de base comunitária, territorial, com ações intersetoriais e de apoio matricial onde a vida acontece. Essa Rede, formalizada em 2002, a partir da Portaria GM/MS nº. 336, foi redimensionada pela Portaria GM/MS nº. 3088 em 2011. A partir de então, vários acontecimentos históricos atravessaram a trajetória dessa política pública, o que culminou na contrarreforma psiquiátrica que vigora na atualidade, no Brasil.
O desmonte das conquistas, bem como os múltiplos e mútuos tensionamentos na Política de Saúde Mental, foram registrados na Linha do Tempo organizada na Figura 1,onde marcamos os principais marcos temporais, legais e conceituais desse campo, o que permite empreender uma leitura sobre os sentidos impressos em direção à constituição do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira no que tange ao movimento de ruptura com o modelo hospitalocêntrico, centrado no manicômio, para o paradigma do tratar em liberdade mediante a expansão de novas estratégias de atenção não hospitalar, como os Centros de Atenção Psicossocial, ancoradas na perspectiva da cidadania e do cuidado em liberdade mediante a constituição de uma Rede de base territorial.
Uma análise da história, a partir da Figura 1, no que tange aos retrocessos e desafios com os quais a Reforma Psiquiátrica e o Movimento da Luta Antimanicomial tem se deparado, revela que a partir de 2010, com a emergência do Decreto nº 7.179 de 2010, que institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, desenha-se uma perspectiva de oposição entre a Saúde Mental e a questão de álcool e outras drogas.
Como já assinalado, esse quadro se intensifica no ano de 2016 com as políticas de austeridade fiscal, adotadas pelo governo de Michel Temer, que orientadas sob essa lógica aprova a Emenda Constitucional nº 95 de 2016, que impôs o congelamento de gastos públicos, gerando impactos nocivos para a Saúde e Educação, sobretudo para a Política Nacional de Atenção Básica e para a Política de Saúde Mental, criando um campo de disputa pelo direito à Saúde universal, estatal e de qualidade.
[...] assim, o SUS passa a enfrentar, ao lado de seu subfinanciamento de 30 anos, um processo crescente e contínuo de desfinanciamento, a partir de 2017, em decorrência de um ajuste fiscal que asfixia direitos fundamentais à saúde, evidenciando a intervenção da forma jurídica (regime político) do Estado, sob uma intervenção pública que busca cumprir o papel exigido pelo capital em crise (MENDES; CARNUT, 2020, p. 28).
É nesse contexto que se vivencia ainda mais o adensamento dos retrocessos na Rede de Atenção Psicossocial, à medida que as Comunidades Terapêuticas, já inseridas na RAPS como serviços de atenção residencial de caráter transitório, se reafirmam como estabelecimentos de Saúde por meio da Portaria nº 1.482 de 2016, a qual as capacita a receber recursos públicos do SUS. Essas medidas tendem a diminuir os recursos para os CAPS com o aumento do financiamento para as Comunidades Terapêuticas e para os hospitais psiquiátricos tradicionais, e que, portanto, se agravam com a Portaria GM/MS 3.588 de 2017, que “resgata o modelo manicomial e dá início a um processo de desmontagem de todo o processo construído ao longo de décadas” (AMARANTE; NUNES, 2018, p. 2073).
Retomando a Linha do Tempo é possível identificar que a partir de 2018 “começa a se consolidar uma nova política de saúde mental e acentuado no ano de 2019, com o governo Bolsonaro” (TOMAZ et al, 2020, p. 95) num cenário cada vez mais crítico, particularmente, com a publicação da Nota Técnica nº 11 de 2019, cuja orientação está na contramão do que foi preconizado e construído ao longo dos anos da Reforma Psiquiátrica e do Movimento da Reforma Sanitária. Na conjuntura atual, a Política de Saúde Mental vem se desenvolvendo no interior de um SUS desfinanciado que enfrenta uma crise sanitária e seus agravos na esfera do social, fato que coloca em xeque a cobertura universal da Saúde Pública e da política social no seu compromisso com o direito de cidadania e com a satisfação das “necessidades humanas básicas” (PEREIRA, 2011, p. 37).
A entrada oficial e o financiamento das Comunidades Terapêuticas, a Portaria GM/MS nº. 3855/2017, a Nota Técnica nº. 11/2019 e sua “nova” política de Saúde Mental e a “nova” política de drogas revelam os retrocessos e desafios dos programas e serviços no campo da Saúde Mental e de álcool e outras drogas, que se intensificam no final de 2020, em meio ao agravamento da crise sanitária e numa crescente agudização da crise política, econômica e social no país. Uma verdadeira contrarreforma baseada tanto no discurso de valorização da abstinência, como na lógica manicomial, que aprofunda o estigma da loucura e da segregação em detrimento da lógica da autonomia, do cuidado em liberdade e no território e da participação dos usuários, conforme preconiza o modelo de atenção psicossocial da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial no Brasil.
Uma premissa desafiada pelo cenário de redução de investimentos públicos em todas as políticas sociais, agravada pelo regime fiscal de austeridade imposto pela Emenda Constitucional 95. E nesse momento crítico da pandemia no Brasil, com mais de 5832 mil mortes, com baixa cobertura de vacinação pelo SUS, além do negacionismo, o acesso à política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas é uma necessidade vital para milhares de pessoas. A pandemia apenas vem “agravando a crise econômica transnacional com impactos presentes e de longo alcance à reprodução da vida e às relações de trabalho” (CAVALCANTE, 2020, p. 36). Essa crise sanitária colocou os determinantes sociais em saúde no centro da prática de intervenção, ao mesmo tempo que, nos obriga diuturnamente reformular, segundo Saraceno (2020),
[...]nuestras hipótesis y quizás ponerlas al día. Esta pandemia ha desencadenado procesos de transformación de categorías que utilizamos diariamente y entre elos nos obriga a tomar nueva conciencia sobre la dramática ausência de democracia en los sistemas de salud, en general (SARACENO, 2020, p. 2).
Nessa perspectiva, os processos ora em curso têm ampliado os desafios e também as resistências, tanto para quem intervém nesse campo de conhecimento quanto para os usuários dos serviços de Saúde Mental e seus familiares, de assegurar as conquistas advindas da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial no Brasil. Tem exigido, particularmente de quem intervém, a construção de uma nova perspectiva de olhar para a realidade que seja, ao mesmo tempo, crítica, sensível e propositiva, uma vez que as necessidades de saúde e sociais são renovadas e ampliadas nesses tempos de crise, demandam a construção do trabalho coletivo sinérgico capaz de encontrar potências e de enfrentar as fragilidades presentes nesses contextos.
Na conjuntura de crises a tendência é de um significativo aumento desta característica em sua versão mais nefasta para as políticas sociais, para a Saúde Pública, para a vida dos trabalhadores e da população usuária dos serviços, com destaque para os usuários dos serviços de Saúde Mental. Esse contexto impõe sérios obstáculos aos sistemas de saúde, ao mesmo tempo que expõe limites relativos à ampliação da desigualdade social, revelando de modo inelutável as diferenças no acesso à proteção de si em face das condições objetivas do viver e do sobreviver de grandes contingentes da população. Ele incide em processos que estão em curso na história recente, nos quais participam forças sociais marcadas por relações de interdependência e de interpenetração recíprocas na dinâmica das [re]configurações sócio - históricas e que ficam mais evidentes “ao passo que o Estado recua e os governos perdem controle sobre a economia e sobre as relações assumidas no mercado de trabalho, uma abertura cada vez maior aos movimentos antidemocráticos de contrarreforma” (LEÃO; IANNI; GOTO, 2019, p. 57).
No campo da Saúde Mental os efeitos da crise e das consequentes contrarreformas do Estado e das políticas de ajuste têm colocado inúmeros e graves desafios para manter os princípios e assegurar os direitos e conquistas da Reforma Psiquiátrica e do Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil, cuja consolidação está intimamente vinculada com a perspectiva da integralidade, das ações intersetoriais e de redes. Destaca-se que esses efeitos nesse campo ainda “guardam relação, por um lado, com questões específicas das práticas de atenção e cuidado em saúde mental, e por outro, com determinações estruturais e conjunturais que atingem o conjunto de políticas sociais e da classe trabalhadora” (MACHADO, 2020, p. 6).
Os retrocessos revelam a centralidade biomédica e psiquiátrica sobre os demais saberes e fazeres com o fortalecimento da lógica manicomial e hospitalocêntrica vinculadas a práticas conservadoras, ocorrendo, nesse sentido, uma inversão do modelo de atenção psicossocial, em especial, no campo de atenção de álcool e outras drogas e com grande repercussão sobre a produção do cuidado. Somos ainda desafiados pelo cenário de redução de investimentos públicos em todas as políticas sociais, agravada pelo regime de austeridade imposto pela Emenda Constitucional nº 95 e pelo momento crítico da pandemia da Covid-19 no Brasil e que só reforça a necessidade vital do acesso às políticas sociais, de Saúde e à política de Saúde Mental.
A complexidade do momento exige alternativas marcadas pelo imperativo epistemológico e ético da necessidade de [re]conhecer as particularidades que marcam a nossa formação sócio- histórica e como elas se apresentam na realidade da sociedade brasileira atual e no debate teórico-político do campo da Saúde Mental, para que possamos, juntos, trabalhar na direção do fortalecimento de um projeto de sociedade que seja capaz de potencializar a ciência e a ética, além de resistir às armadilhas da simplificação que marcam a visão de mundo subsumida à métrica e à lógica do capital, pois ao fazê-lo será possível construir elos com as demais políticas públicas, as quais são indispensáveis para o enfrentamento das mútuas e múltiplas relações entre a pessoa com transtorno mental, a questão social e as vulnerabilidades inerentes à experiência de uma vida marcada pela busca da proteção social e de outros e de novos sentidos, assim como requer de quem intervém nesse campo, defender a Saúde Mental como defesa do SUS e da vida nesse tempo e no futuro a construir.