Resumo: O artigo tem por objetivo analisar a trajetória, os repertórios de ação e a incidência na política municipal de transporte coletivo e mobilidade urbana do movimento Tarifa Zero de Belo Horizonte (TZ-BH), no período 2013-2019. A metodologia envolveu revisão de literatura, levantamentos documentais e entrevistas semiestruturadas. O artigo parte da abordagem de movimentos sociais, especialmente mobilizando a noção de repertórios de ação e, em seguida, discute antecedentes e contextos do ativismo em torno do tema transporte coletivo e mobilidade urbana. A análise percorre a trajetória do TZ-BH e aponta para sua atuação no âmbito institucional, por meio da participação e interações com o governo, e extrainstitucional, tematizando a questão do transporte coletivo e mobilidade urbana como direito social. Em ambos os casos, influenciou circunstancialmente a política de transporte local.
Palavras-chave: Movimentos Sociais, Repertórios de Ação Coletiva, Política de Transporte e Mobilidade Urbana, Tarifa Zero-BH.
Abstract: The article aims to analyze the trajectory, action repertoires and incidence on the municipal policy of collective transport and urban mobility of the Tarifa Zero movement in Belo Horizonte (TZ-BH), in the period 2013-2019. The methodology involved literature review, documentary surveys and semi-structured interviews. The article starts from the approach of social movements, especially mobilizing the notion of action repertoires, and then discusses the antecedents and contexts of activism focused on the theme of public transport and urban mobility. The analysis traces the trajectory of the TZ-BH and points to its performance in the institutional sphere, through participation and interactions with the government, and extra-institutional, thematizing the issue of public transport and mobility as a social right. In both cases, the movement circumstantially influenced transport local policy.
Keywords: Social Movements, Repertories of Collective Action, Transport and Urban Mobility Policy, Tarifa Zero-BH.
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TRANSPORTE COLETIVO E MOVIMENTO TARIFA-ZERO-BH: repertórios de ação e incidência na política local
Recepción: 29 Julio 2021
Aprobación: 20 Mayo 2022
O transporte urbano tem sido, historicamente, objeto de revoltas populares e de mobilizações nas metrópoles brasileiras, desde manifestações em torno dos bondes no começo do século XX, aos protestos de rua que eclodiram no país em junho de 2013. Especialmente a partir de um processo de urbanização caracterizado por desigualdades socioespaciais e déficits de inclusividade, o transporte coletivo se coloca como um problema social significativo, com múltiplas dimensões e implicações, sobretudo para os setores populares. No contexto brasileiro contemporâneo, a atuação de atores coletivos tem tematizado a questão do transporte e mobilidade urbana, pressionando a agenda governamental, com seu enquadramento como direito social.
Nessa perspectiva, em 2015, por meio de Emenda Constitucional, o transporte foi inserido no rol de direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 (CF-88). Um avanço anterior foi a aprovação, em 2012, da Política Nacional de Mobilidade Urbana, que, inclusive, estabelece a participação social como um de seus princípios. Entretanto, a garantia do transporte enquanto direito social e a efetividade da participação social nas respectivas políticas ainda são objetivos distantes da realidade.
O movimento Tarifa Zero – Belo Horizonte (TZ-BH) surgiu na capital mineira no contexto dos protestos de junho de 2013 e, desde então, busca discutir e influenciar a política municipal de mobilidade urbana. A trajetória e atuação do movimento ilustram os desafios da política pública de transporte urbano e da inclusão da sociedade civil nos processos decisórios. A escolha pelo TZ-BH se justifica, ainda, pelo relevante papel do movimento no contexto recente das mobilizações locais e nacionais em torno da pauta.
O presente artigo busca compreender a emergência do movimento TZ-BH e seus repertórios de ação, considerando os diferentes contextos da gestão do transporte coletivo. Associando a emergência do TZ-BH ao contexto nacional e às dinâmicas locais, o argumento analítico construído aponta para um repertório amplo de ação coletiva, que permitiu, em alguma medida, incidir na política de mobilidade urbana municipal.
O estudo de caso do TZ-BH desenvolve-se mediante uma abordagem qualitativa, de cunho exploratório-descritivo. Para sua realização, mobilizaram-se, como recursos metodológicos, a revisão de literatura relativa a movimentos sociais e repertórios de ação coletiva, objetivando compreender e delinear as estratégias de atuação adotadas pelo TZ-BH e como se deu a sua relação com o Estado ao longo de sua trajetória; levantamentos bibliográficos e documentais relativos à política de mobilidade urbana de Belo Horizonte e ao TZ-BH, devendo-se destacar que, em relação a este último, a pesquisa documental se deu principalmente por meio da internet e do acompanhamento do movimento nas redes sociais. Foram realizadas, ainda, entrevistas semiestruturadas com dois informantes-chave. Uma das entrevistas foi feita com um ex-servidor público, com longa experiência na gestão do transporte coletivo municipal (Entrevistado 1), e teve como propósito a obtenção de informações complementares às fontes bibliográficas e documentais acerca da política de mobilidade municipal; a outra, com uma integrante do TZ-BH (Entrevistado 2), buscou informações adicionais acerca do movimento, principalmente no que se refere ao seu repertório de atuação e estratégias adotadas para dialogar com as diferentes gestões municipais.
O artigo está estruturado em três seções, além desta introdução e das considerações finais. A primeira consiste em breve revisão da literatura sobre movimentos sociais, com ênfase em seus repertórios de ação. A segunda busca situar a questão do transporte urbano e suas políticas, recuperando antecedentes e marcos institucionais no âmbito federal e municipal, tendo em vista contextualizar a emergência do TZ-BH. A terceira apresenta o TZ-BH, destacando seus frames, repertórios de ação e incidência na política de transporte.
A partir da segunda metade do século XX, desenvolveram-se diferentes correntes de abordagem dos movimentos sociais. Ressaltando-se a polissemia da própria noção de movimentos sociais, alguns autores têm realizado esforços sistemáticos no sentido de aglutinar elementos comuns nas diferentes abordagens, como Della Porta e Diani (1999, p.165), que os definem como redes de interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, grupos e/ou organizações engajadas em confronto político e/ou ancoradas em elementos culturais e identidades coletivas compartilhadas. Também tendo em vista um balanço entre as distintas tradições, McAdam et al. (1999, p. 2)apontam três fatores para balizar a análise dos movimentos sociais: as estruturas de mobilização ou formas de organização formais e informais disponíveis para os insurgentes; a estrutura de oportunidades políticas; e os processos de framing ou enquadramento interpretativo e de construção de significados compartilhados.
As estruturas de mobilização - enfatizadas pela teoria de mobilização de recursos - remetem aos recursos materiais e humanos, neste último caso referidos a ativistas, apoiadores, organizações comunitárias e associativas preexistentes, apontando para a formação de redes, que conformariam as bases para a ação coletiva. Nessa trilha, a mobilização de um determinado grupo que se aglutina ocorre ao dispor dos recursos necessários à sua ação.
Já a noção de estrutura de oportunidades políticas - oriunda da teoria do processo político -, a partir de Tarrow (1999, p. 54), diz respeito às dimensões formais e informais do ambiente que favorecem a expressão e reivindicação de grupos, dentre outros aspectos, em decorrência de desequilíbrios institucionais e crises nas coalizões políticas, que implicam maior permeabilidade das instituições, ou de mudanças no padrão de interação entre Estado e sociedade. Nessa perspectiva, um movimento social se mobiliza quando há oportunidades que propiciam a ação coletiva.
A noção de oportunidade política remete ao contexto, e nesse sentido, em paralelo pode-se incorporar a consideração de Dryzek (1996), que coloca em evidência o caráter inclusivo ou exclusivo dos Estados como um elemento importante na configuração e resultados de ações coletivas. Schoslberg e Dryzek (2002) destacam que a inclusão dos movimentos sociais nos processos decisórios institucionais no âmbito do Estado não garante sua influência bem-sucedida. Desse modo, os autores apontam para relevância de uma atuação movimentos sociais em duas vias: nos contextos institucionais e na esfera pública. Caberia aos movimentos a análise do contexto, da situação em que se encontram e de suas reais possibilidades de incidência nas decisões.
A dimensão cultural, central na corrente europeia dos novos movimentos sociais, em alguma medida é incorporada ao conceito de frame, redefinido por Snow et al. (1986) como um esquema interpretativo que permitiria aos atores compreenderem e se localizarem dentro de um cenário ou situação. A partir desses autores, Tarrow (1999, p. 6) define framing como “os esforços estratégicos conscientes de grupos para moldar entendimentos compartilhados do mundo e em relação a eles mesmos que legitimam e motivam a ação coletiva”, remetendo à dimensão criativa dos movimentos. Nessa direção, Gohn (1997, p. 89) assinala que frames permitiriam demarcar injustiças sociais, bem como ancorar a solidariedade e articulação dos atores.
Em outros termos, a construção de significados compartilhados tem um papel relevante para a conformação da ação coletiva, mediando oportunidade e organização. No que toca à ação, uma noção chave é a de repertório de ação coletiva, cunhada no bojo da teoria do processo político. O conceito tem uma longa trajetória com ressignificações, acompanhada em revisões sistemáticas, como Alonso (2012).
Na formulação inicial de Tilly (1978, p.125-126), repertório remete às formas de ação coletiva - limitadas e circunscritas aos contextos -, bem como às possibilidades de inovação. Nessa concepção, um dado repertório poderia incluir um conjunto de formas de ação como manifestações, marchas, discursos, ocupações, greves e petições. Em revisita ao conceito, Tilly (1995, p. 26) o redefine como um “conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha”. Adiante, na perspectiva teórica de confronto político, o repertório - de confronto - remete à interação de atores coletivos em uma situação de conflito. Conforme McAdam et al. (2009, p 24-25) “os repertórios não são simplesmente uma propriedade dos atores do movimento; são uma expressão da interação histórica e atual entre eles e seus opositores,” constituindo “números limitados de desempenhos alternativos historicamente estabelecidos”. Os autores apontam para tensionamentos entre persistência e inovação nos repertórios, indicando que o emprego recorrente do mesmo repertório reduz sua eficácia associada à novidade, impulsionando assim inovações táticas. Nos ciclos de protesto, destacam que os temas, símbolos e inovações táticas dos atores coletivos influenciam uns aos outros.
McAdam et. al. (2009, p.24) elencam como grandes desempenhos a criação de associações, reuniões públicas, manifestações, passeatas, campanhas eleitorais, petições, ocupações, barricadas, publicações, dentre outros. Alonso (2012, p.32) observa que a concepção de repertório como conjunto de performances confrontacionais se consolida em Tilly (2006), destacando que sua abordagem enfatiza “o improviso, a capacidade dos atores de selecionar e modificar as performances de um repertório, para ajeitá-las a programas, circunstância e tradição locais.”
No contexto brasileiro, a noção de repertório tem sido recentemente (re)apropriada em desenvolvimentos teóricos e analíticos (TATAGIBA et al., 2012; ALONSO, 2012; LOJEKANN, 2013; TATAGIBA; TEIXEIRA, 2016). Dentre os diferentes repertórios de ação coletiva, destaca-se a relevância do ativismo digital no contexto contemporâneo (MARICHAL, 2013; VON BULLOW et al. 2019).
Mais além, considerando a difusão e pluralização de instituições participativas nas últimas décadas, destacam-se os debates sobre a interação dos movimentos sociais e o Estado. Nesse sentido, Abers e von Bullow (2011) sublinham a necessidade de compreender como ocorrem tais relações e Abers et al. (2014) aportam a noção de repertório de interação.
A intensificação do processo de urbanização brasileiro nos anos 1960-70 potencializou características que se imprimiram no tecido socioespacial das cidades: periferização e metropolização, informalidade urbana, desigualdades e déficits de inclusão socioespacial. Nesse contexto, entram em cena os movimentos sociais urbanos, organizados em torno de reivindicações relativas ao acesso à terra, à moradia e aos bens e serviços urbanos, incluindo o transporte coletivo.
O transporte já se configurava anteriormente como um problema social, desvelando as desigualdades e vulnerabilidades de amplos segmentos da população e colocando-se como um mote de ação coletiva. Em tal contexto, mostra-se como um problema vultuoso, objeto de mobilizações e manifestações, como indicam diversos autores (MOISÉS; MARTINEZ-ALIER, 1977; GOHN, 1995; DOIMO, 1995). Em virtude do padrão de expansão das metrópoles por periferização, o transporte configura-se como um problema crucial para os segmentos de baixa renda, submetidos a longos deslocamentos entre a moradia e o trabalho.
O problema dos transportes urbanos entra na agenda do governo federal de forma mais nítida a partir de 1965, com a criação do Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes (GEIPOT), vinculado ao então Ministério de Viação e Obras Públicas, colocando-se como objeto de planejamento nos anos 1970 (ANELLI; KOURY, 2009). Nesse período, houve uma tentativa federal de institucionalização de uma política de transportes urbanos em conjunto com o planejamento das recém-criadas regiões metropolitanas, em que a responsabilidade de concessão do transporte coletivo é transferida para os estados.
Nesse contexto, em Belo Horizonte inicia-se uma primeira experiência mais sólida de planejamento do transporte coletivo, com a criação da Companhia de Transportes Urbanos da Região Metropolitana (METROBEL) em 1978, que unificou o sistema de financiamento do transporte público por meio da instituição da Câmara de Compensação Tarifária (CCT). Contudo, a METROBEL foi extinta nos anos 1980 e o controle da CCT passou a ser exercido pelo sindicato patronal das empresas (Veloso, 2015).
Do ponto de vista da participação social, pelo menos até a década de 1980, a política municipal de mobilidade foi marcada pela falta de diálogo do governo com os usuários do transporte coletivo. Apesar disso, a sociedade civil nunca se mostrou indiferente à questão: manifestações envolvendo atos públicos - incluindo depredações de ônibus - fizeram-se presentes, expressando a capacidade de mobilização em torno do problema.
No ambiente de redemocratização, destacam-se novos atores coletivos, com plataformas voltadas para a descentralização, a ampliação dos direitos sociais e a democratização do Estado e suas relações com a sociedade. Tais pautas, assim como propostas relativas à reforma urbana, foram canalizadas para a Assembleia Nacional Constituinte, conformando avanços na CF-88. Com o novo pacto federativo, o transporte urbano passou a ser de responsabilidade dos governos municipais.
A municipalização do transporte coletivo na cidade inicia-se em 1991, com a criação da Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte (BHTRANS) no governo Eduardo Azeredo (1990-1992), do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Contudo, a empresa não assumiu de imediato a gestão do sistema de ônibus.
Em 1992, Patrus Ananias, do Partido dos Trabalhadores (PT), foi eleito com uma proposta de gestão com orientação participativa e inclusiva. Em 1993, a gestão do transporte coletivo foi efetivamente assumida pela BHTRANS, que passou a exercer o controle da CCT, administrando as receitas tarifárias e possibilitando o reinvestimento dos superávits em experiências inéditas como a gratuidade universal do sistema em alguns domingos e feriados. Embora a prefeitura não tenha avançado em direção ao subsídio tarifário, tais iniciativas foram importantes no enquadramento do transporte como um direito social, rompendo com a lógica produtivista de abordagem do transporte focada apenas nos deslocamentos moradia-trabalho.
Houve, na gestão Patrus Ananias (1993-1996), um esforço de aproximação com as comunidades, a exemplo da criação da rede de transportes de vilas e favelas com tarifa reduzida e ônibus adaptados às características viárias locais (Leite e Amaral, 2008). No âmbito da participação social, em 1994 foram instituídas Comissões Regionais de Transporte e Trânsito (CRTTs), constituindo os primeiros espaços institucionais de participação da política de transporte, com membros eleitos pelas comunidades regionais, canalizando e atendendo as demandas societárias.1
A gestão de Célio de Castro (1997-2001), do Partido Socialista Brasileiro (PSB), deu continuidade às políticas da gestão anterior e criou um Conselho voltado para a questão tarifária, com participação da Associação de Usuários do Transporte Coletivo e de representantes das empresas e dos trabalhadores rodoviários (Veloso, 2015). Em 1998 realizou-se a primeira licitação para concessão do sistema de transporte, baseada no Plano de Reestruturação do Sistema de Transporte Coletivo - BHBUS.
Já no final dos anos 1990, a breve experiência de controle social do transporte coletivo foi afetada pela queda do número de passageiros, em decorrência do processo de motorização. Nesse contexto, a CCT passa da condição de superavitária para deficitária e, segundo Veloso (2015), as empresas de ônibus voltaram a exercer uma grande influência nas decisões da BHTRANS. Os déficits do sistema prejudicaram a atuação das CRTTs e, a partir dos anos 2000, a busca pela redução dos custos implicou o atendimento insatisfatório das demandas societárias. Soma-se a isso a concepção mais verticalizada da gestão Fernando Pimentel (2001-2008), do PT, que contribuiu para perda de relevância da estrutura de acompanhamento CRTTs.2
A crise de demanda e os déficits da CCT alimentaram ideias em favor de novos tipos de regulação do setor, que privilegiassem princípios e valores de mercado, como a competição entre as empresas. Nesse contexto, o compartilhamento do risco de novos déficits foi uma das justificativas para a mudança da forma de remuneração na licitação para a concessão do sistema de transporte promovida em 2008. O novo modelo de concessão determinava a remuneração das empresas diretamente pelo valor da tarifa arrecadada e não pelos custos de operação do serviço prestado. Isso significou o fim do controle público da arrecadação tarifária e da CCT, cuja administração foi novamente internalizada pelo sindicato das empresas, reduzindo as possibilidades de controle social. Adicionalmente, o modo de reajuste da tarifa passou a ser realizado anualmente por meio de uma fórmula composta por índices inflacionários referentes aos insumos de produção do serviço. Paralelo aos aumentos anuais da tarifa, o novo contrato gerou incentivos para que as empresas reduzissem a oferta de viagens, agravando o círculo vicioso de desestímulo ao uso do transporte coletivo e a crise da mobilidade urbana.
A nova gestão do prefeito Márcio Lacerda (2009-2016), eleito em 2008 e reeleito em 2012 a partir de uma frente incluindo PSDB e PT, pode ser dividida em dois períodos, correspondentes aos mandatos. O primeiro representou uma continuidade em relação à gestão anterior no que toca à política de mobilidade. Em relação à participação, o prefeito criou uma estrutura precária baseada em Territórios de Gestão Compartilhada, sem possibilidade de incidência popular nas decisões. No segundo mandato, a aliança com o PT foi rompida e as jornadas de junho de 2013 colocaram a questão tarifária em pauta.3
Desde o primeiro governo Márcio Lacerda, a cidade foi palco de mobilizações, com o surgimento de novos atores e um amplo repertório de ação coletiva, com diversas manifestações e protestos, inclusive contra o governo local. As ocupações urbanas se multiplicaram no período, observando-se ainda ocupações culturais, movimentos ambientais e de defesa do patrimônio (Brasil et.al., 2019).
As jornadas de junho de 2013 eclodiram em São Paulo, de início voltadas a questionar o reajuste das tarifas do transporte público pelo Movimento Passe Livre (MPL). Tendo como pano de fundo a repressão policial aos protestos, desdobraram-se em pautas relativas à insatisfação com a Copa das Confederações de 2013 e com os preparativos para sediar a Copa do Mundo de 2014. Apesar do aumento da tarifa de ônibus em São Paulo ter sido o estopim das manifestações, em pouco tempo elas ganharam proporções inesperadas e passaram a reunir uma pluralidade de atores com pautas heterogêneas (MARICATO, 2013; AVRITZER, 2016; ALONSO, 2017, MENDONÇA, 2017; ANELLI; KOURY, 2019), marcando o início de um longo ciclo de mobilizações no país (TATAGIBA, 2014).
Gohn (2016) aponta para as inúmeras reivindicações que surgiram paralelamente à questão da tarifa de ônibus vocalizada pelo MPL. Merece mencionar, a partir de Anelli e Koury (2019, p. 3), a recusa do MPL à participação institucional, interpretada por analistas como: “um modo de forçar o governo do PT a romper a inércia do seu arco de alianças e aumentar os direitos sociais dos trabalhadores, neste caso, o subsídio integral do transporte urbano pelo Estado, além de protestar contra o aumento de 35 centavos na tarifa”.
Como em outras capitais, em Belo Horizonte as jornadas de 2013 foram marcadas pelo caráter multitudinário e pela repressão policial, a despeito da qual as mobilizações persistiram nas ruas. Como indica Veloso (2015), no dia 22 de junho, momento de maior manifestação, cento e vinte cinco mil pessoas caminharam em direção ao estádio de futebol Mineirão, uma das sedes da Copa.
As manifestações de 2013 reconfiguraram e amplificaram um tecido movimentalista na cidade, propiciando a emergência e articulação de atores coletivos novos e nem tão novos.4 Nesse ambiente, surge o TZ-BH.
As jornadas de 2013 podem ser consideradas como oportunidade política que favoreceu a emergência de atores coletivos e a sua confluência. Dentre esses atores mobilizados na cidade, Veloso (2015) destaca os que se sentiam afetados pelos problemas de mobilidade urbana e/ou aqueles que vocalizavam essas pautas, como antigos militantes da Associação dos Usuários de Transporte Coletivo, integrantes de organizações estudantis e partidos de esquerda, anarquistas e autonomistas, ativistas independentes e pessoas que nunca tinham tido experiência de mobilização. A inexistência de um coletivo organizado, como o MPL de São Paulo, fez com que a pauta do transporte coletivo fosse mais ampla e, inicialmente, representada pelo Comitê Popular dos Atingidos pela Copa (COPAC), que havia assumido a responsabilidade pela convocação dos atos na cidade.
Nesse cenário, passa-se a realizar a chamada “Assembleia Popular Horizontal” (APH). A primeira reunião, em 18/06/2013, foi convocada por coletivos autonomistas e anarquistas, com o objetivo de definir os rumos das manifestações na cidade. Para Viana (2017, p. 266), a APH associava-se à tematização de “processos realmente autônomos e autogestacionais”, configurando um “espaço de encontro e articulação dos indivíduos e coletivos em torno das pautas públicas da cidade”. Ferreira (2016, p. 6) destaca que:
Algumas características principais chamam a atenção: ausência de líder, gênese popular, inexistência de formalidades e realização em espaços públicos. [...]O nome carrega consigo significados. “Assembleia” por ser um encontro com objetivos de discutir as problemáticas levantadas pela insurgência popular na resolução dos conflitos sociais. “Popular” por ter sua gênese em espaços públicos (não há sede física) e com participantes oriundos de diversas localidades – maioria marginalizada do centro – da cidade. É horizontal, pois não há liderança e nem formalidades burocráticas para sua realização.
Na referida reunião, definiram-se como exigências a redução da tarifa do transporte e o Passe Livre Estudantil, ao lado da auditoria dos contratos do transporte público (RICCI; ARLEY, 2014). Na 2ª APH, definiram-se grupos de trabalho (GTs) endereçados a temáticas específicas, iniciando-se as atividades do GT de Mobilidade Urbana, posteriormente conhecido como movimento Tarifa Zero-BH (TZ-BH).
O primeiro contexto de atuação do referido GT foi o anúncio pelo então prefeito Márcio Lacerda da intenção de reduzir as tarifas do transporte coletivo. Havia na Câmara de Vereadores um Projeto de Lei (PL) que pretendia reduzir R$ 0,10 em seu valor por meio de desonerações de tributos. Porém, a estratégia adotada pelo governo deixara de incorporar à redução da tarifa as isenções de impostos feitas pelo governo federal. Na 3ª sessão da APH - em 25/06/2013 - foi anunciada a aprovação, em primeiro turno, do referido PL pelo legislativo, momento em que militantes do PT informaram que sua bancada de vereadores apresentaria emendas ao mesmo, exigindo a incorporação da isenção dos impostos federais à redução da tarifa e a abertura das planilhas do sistema de ônibus. Foi decidida a realização de uma manifestação na Câmara pela aprovação das emendas, mas a aprovação do PL original em sessão extraordinária, causou indignação nos manifestantes, que decidiram por permanecer na Câmara. (VELOSO, 2015; VIANA, 2017).
A ocupação durou oito dias, cabendo ao GT de Mobilidade Urbana sistematizar as demandas para apresentação ao governo. A exigência da ocupação era ser recebida pelo prefeito, que, no entanto, exigia a desocupação da Câmara para receber uma comissão, o que foi recusado. A reunião ocorreu em julho, após escolha dos representantes para a comissão e, segundo Veloso (2015), foi a primeira vez que o prefeito se reuniu com movimentos sociais para negociação. Em decorrência da heterogeneidade dos grupos que compunham a ocupação, a pauta ampla de reivindicações não se restringiu à redução tarifária. Contudo, o único compromisso assumido pelo prefeito referia-se à incorporação da isenção dos impostos federais ao valor da tarifa e, assim, a APH manteve a ocupação. Para além das energias mobilizatórias de 2013 que se evidenciam no repertório de ação direta do movimento, a ocupação, para Moreira e Leão (2019, p.1017), “produziu também um impulso renovador da luta institucional a respeito da política de transportes.”
A posterior dispersão dos grupos e pautas presentes na ocupação marcou o encerramento das jornadas de junho na cidade. Entretanto, o GT de Mobilidade permaneceu ativo, com reuniões presenciais semanais e interações por meio de um grupo de e-mails. Assim, em uma das reuniões, em julho de 2013, foi proposta a elaboração de um PL de iniciativa popular para implantar a tarifa zero nos transportes.
A ideia do PL desencadeou uma campanha de mobilização para a coleta das 95 mil assinaturas necessárias para o seu encaminhamento (OLIVEIRA, 2017). A campanha lançada em setembro de 2013 envolveu apoiadores e contou com a elaboração de um site na internet, conteúdo midiático e material gráfico (impresso e virtual) que pode ser considerado como expressão do frame referente à gratuidade do transporte coletivo e à mobilidade como direito social. Nesse sentido, conforme Moreira e Leão (2019, p.1015), a campanha tinha em vista criar “um novo imaginário e narrativa na cidade”, mas não obteve sucesso em obter as assinaturas requeridas:
As dificuldades e os desafios em realizar a empreitada de coleta de assinaturas para o projeto de lei de iniciativa popular pareceram superar a projeção inicial entusiasmada dos jovens ativistas que intencionavam mobilizar a população da cidade. A experiência concreta, condizente com a realidade da natureza da disputa que envolvia a luta pela gratuidade universal dos transportes na cidade, foi conduzindo as expectativas iniciais em um curso decrescente. [...] Desse modo, à medida que o “reservatório de energia rebelde” acumulado durante os grandes protestos de junho de 2013 foi se esgotando, os jovens ativistas passaram a encarar a aridez da construção cotidiana da luta social em um contexto delineado por toda sorte de adversidades. (MOREIRA; LEÃO, 2019, p. 1.017)
A despeito do resultado, a campanha teve um alcance significativo na tematização do transporte coletivo e da mobilidade como direitos sociais, evidenciado pelo número de pessoas que curtiram a página do TZ-BH no Facebook na ocasião5. Com esse alcance, o GT ganhou autonomia em relação à APH e passou a ser denominado como Movimento Tarifa Zero BH (TZ-BH). Em sua própria definição no Facebook:
O movimento Tarifa Zero BH é um coletivo surgido a partir das manifestações de junho de 2013 em defesa do transporte como um direito social universal, gratuito no momento do uso. Ao propor a tarifa zero no transporte coletivo, buscamos afirmar que é possível uma outra lógica de mobilidade urbana, que se volte para as pessoas, e não para máquinas ou lucros. Assim, a tarifa zero é uma medida que busca romper com o círculo vicioso de aumento tarifário e redução do número de usuários de ônibus, com a injustiça no financiamento do sistema - que é regressivo na renda - e busca promover uma nova relação da população com o espaço urbano. (TZBH, s/d)
O movimento ampliou suas ações com um repertório amplo envolvendo ações diretas e manifestações, ao lado da atuação em instituições participativas. Nos termos do TZ-BH (s/d): “como movimento social autônomo e horizontal, buscamos simultaneamente pressionar a prefeitura por mudanças e realizar ações diretas, de vivência de uma nova realidade, que envolva a população em seu cotidiano.” A atuação do TZ-BH realiza-se, então, sob esses eixos de ação coletiva.
Como aponta Veloso (2015, p. 208), a juventude universitária de classe média que compunha parte do grupo se voltava para um debate mais acadêmico, privilegiando a atuação junto às instituições e buscando .a disputa pelos condicionamentos legais e objetivos e regulação do sistema de transporte por ônibus e o sistema de mobilidade urbana de uma maneira geral”. Em relação à participação, apesar do TZ-BH conseguir eleger representantes em quatro das nove CRTTs, dentre os quais dois se tornaram membros do Conselho Municipal de Mobilidade Urbana (COMURB), a atuação nesses espaços não obteve conquistas significativas. Com pouca relevância política, as CRTTs mostraram-se um espaço pouco fértil para as proposições do movimento. Já o COMURB, criado em setembro 2013 como uma resposta do governo às mobilizações, não se mostrou efetivo a partir de seu desenho institucional - consultivo com composição não paritária em desfavor da sociedade civil - bem como de seu funcionamento, tendo se reunido ordinariamente apenas seis vezes desde sua criação até 2019.
Cabe mencionar, ainda, que o TZ-BH teve participação na IV Conferência Municipal de Política Urbana, propôs emendas à revisão do Plano Plurianual (PPA) e à elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do município em 2014, além de participar de reuniões do Observatório de Mobilidade Urbana de Belo Horizonte e de audiências públicas na Câmara Municipal. Nesse sentido, em relação ao repertório de ação institucional, Moreira e Leão (2019, p. 1020) destacam que “os participantes do movimento ocupavam todos os espaços participativos possíveis relacionados à questão dos transportes e à mobilidade urbana do município”.
Ainda nos domínios institucionais, destaca-se o acionamento do Poder Judiciário como repertório de ação coletiva. Nessa linha, o TZ-BH protocolou denúncias no Ministério Público (MP), bem como forneceu subsídios para que a Promotoria de Defesa do Patrimônio Público do MP e a Defensoria Pública (DP) ajuizassem ações contra aumentos da tarifa (Veloso, 2015). Em uma das ações, o aumento extraordinário da tarifa em 2015 foi derrubado durante um mês por decisão liminar, suspensa em segunda instância após recurso da prefeitura.6
Partindo da constatação que uma atuação exclusiva em âmbito municipal seria insuficiente, o movimento propôs uma plataforma nacional com o objetivo de sensibilizar os presidenciáveis das eleições de 2014 em torno das propostas para a política de mobilidade. A tentativa de pautar o debate eleitoral voltaria a acontecer nas eleições municipais de 2016, por meio da campanha “#D1Passo”, com o objetivo de sensibilizar os candidatos à prefeitura quanto às pautas da mobilidade urbana. Participaram da construção da campanha, além do TZ-BH, a BH em Ciclo, o Bike Anjo e o Nossa BH, que elaboraram um documento com seis diretrizes para uma cidade mais justa, acessível e sustentável. Os movimentos realizaram visitas aos onze candidatos, buscando com que esses registrassem no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) compromissos de campanha em relação às suas propostas, mas poucos se comprometeram. Adiante, no segundo turno, os movimentos realizaram um debate com representantes dos dois candidatos.7
A despeito de limites e constrangimentos relativos à incidência na política de transporte por meio de um repertório de ação institucional, a atuação do TZ-BH implicou seu reconhecimento pelo governo como ator coletivo representativo da pauta de mobilidade urbana e impulsionou avanços pontuais. Moreira e Leão (2019, p.1017) afirmam que o TZ-BH se constituiu como um dos principais atores coletivos a pautar o tema do transporte e mobilidade junto ao governo local, notando que “a experiência da participação institucional do Movimento TZ passou a ser delineada pela tensão de se submeter aos contornos e aos modos da institucionalidade e procurar ultrapassá-los.” Além disso, os autores ressaltam que:
[..] o repertório de ações do Movimento TZ, em Belo Horizonte, sempre esteve, de alguma forma, conectado à experiência adquirida e à memória dos acontecimentos de 2013. Os protestos nas ruas que continuaram a ocorrer a cada recorrente reajuste anual das tarifas eram animados pelo desejo, ainda que de maneira não consciente, de repetição da grande revolta ou algo próximo a isso. (MOREIRA; LEÃO, 2019, p. 1.020)
Assim, destaca-se o repertório contencioso e expressivo de ações diretas que se desdobrou em performances diversas, além da mencionada ocupação da Câmara Municipal, destacando-se diversas mobilizações, dentre as quais: o “1º Ato pela tarifa zero e pelo fim dos abusos das empresas de ônibus”, em 2013; os quatro atos com o mote “Se a tarifa aumentar, a cidade vai parar!”, ocorridos em 2014, em resposta ao anúncio do aumento da passagem pelo prefeito Márcio Lacerda; e os atos de 2015 contra o aumento extraordinário da tarifa. Ressalta-se que o segundo ato contra o aumento extraordinário da tarifa em 2015 foi uma das manifestações de maior porte organizadas pelo TZ-BH, convocado logo após um ato em que a polícia dispersou violentamente os manifestantes.8
A ideia da eficácia e da potência dos protestos de rua, marcante nos primeiros anos de atuação do TZ-BH, ficou desgastada nos anos seguintes, o que se refletiu no arrefecimento das manifestações e atos de rua, acompanhada por uma diversificação dos repertórios de atuação do movimento. Nesse sentido, além de protestos, ressaltam-se campanhas de mobilização com frames que irrigam a esfera pública com premissas do direito ao transporte e à mobilidade urbana, bem como ações originais balizadas por um caráter lúdico, dentre as quais é emblemática a intervenção da “Busona Sem Catracas” no carnaval de 2014. Com grande repercussão, a performance colocou dois ônibus gratuitos para circular, repetindo-se em outras oportunidades, nos termos do relato do TZ-BH (s/d):
[...] a partir dos recursos arrecadados com a venda de camisas, ofertamos - em 4 ocasiões distintas - um ônibus sem catracas, com acesso totalmente gratuito, chamado de "Busona sem catracas.", uma inversão de gênero, feminista e provocadora. Os ônibus eram contratados de empresas da cidade e ficavam à disposição do movimento por um horário determinado. Excetuando-se a função de motorista, todo o trajeto, divulgação e operação da atividade foram pensados de maneira coletiva e horizontal. Buscou-se a maior aproximação possível com linhas existentes na cidade para que o ônibus pudesse de fato proporcionar a experiência de uma vida sem catracas. Assim, durante os 4 dias de carnaval, a Busona percorreu mais de 25 blocos, ligando foliões e transeuntes a bairros distantes de BH. Na Marcha das vadias, a busona fez o trajeto do centro até a ocupação urbana Guarani-Kaiowá. O circuito das ocupações conectou a população das 4 ocupações urbanas mais recentes de BH. Por fim, no Dia Mundial Sem Carros, um dia útil, uma Busona simulou o trajeto da linha 33 - centro-barreiro, uma das regiões mais populosas e sem política de mobilidade na cidade.
Ainda a partir da narrativa do movimento, pode-se destacar seu papel de tematização e enquadramento interpretativo da questão do transporte e mobilidade sob uma perspectiva mais abrangente da vida cotidiana, do direito à cidade:
Nosso principal objetivo com as intervenções urbanas que promovemos na cidade é mostrar para a população que uma outra forma de mobilidade urbana e de vivência é possível, mas que só será alcançada por meio de organização e luta. [...] A vivência festiva de um espaço urbano outrora monótono mostra que é possível criar uma outra realidade cotidiana, e esse é nosso principal objetivo.
No final de 2015, inicia-se o projeto que ficou conhecido como “Busão da Comunidade”, a partir da reivindicação de uma linha de ônibus que ligasse o Aglomerado de Vilas-favelas da Serra à zona leste, dando acesso ao metrô e a outros serviços locais. Essa demanda foi identificada a partir de um diálogo entre o MP e uma representante do aglomerado, no programa “Diálogos Comunitários”. O pedido de ajuda chegaria ao TZ-BH em razão de sua atuação no aglomerado, ministrando palestras sobre mobilidade no programa público de Educação para Jovens e Adultos. A criação da referida linha com uma tarifa reduzida pode ser considerada uma das maiores conquistas do TZ-BH.9
Devido às dificuldades de diálogo do governo Márcio Lacerda com os movimentos, o pedido da linha estrategicamente foi deixado para ser apresentado ao novo governo. Pelo menos inicialmente, a gestão do prefeito Alexandre Kalil, do Partido Humanista da Solidariedade (PHS), iniciada em 2017, mostrou-se mais disposta ao diálogo, ainda que tal abertura não tenha sido traduzida em um atendimento tempestivo da demanda. A pressão do movimento e da comunidade durou mais de um ano e envolveu reuniões, audiências públicas e ações mobilizatórias, incluindo um abaixo-assinado com cerca de cinco mil assinaturas encaminhado à BHTRANS, que não atendeu às expectativas no processo de negociação. Contudo, a autorização para a criação da linha foi dada diretamente pelo prefeito em uma reunião com representantes do movimento, da comunidade e da Câmara Municipal, que ocorreu após um longo processo de mobilização.10
Em 2018, o TZ-BH apresentou ao governo propostas para o edital da auditoria do transporte coletivo anunciado pelo prefeito, ressaltando falhas no processo da última verificação, realizada em 2014 pela empresa Ernst & Young. Em paralelo, protocolou uma denúncia no MP, solicitando que tal empresa não participasse da licitação e que a auditoria abrangesse o período de 2008-2018, ao invés de 2013-2018. O movimento tinha expectativa de que participaria da comissão de acompanhamento da auditoria, mas além de não ter suas propostas acatadas, a comissão não previu vaga para representantes da sociedade civil. Com o entendimento de que a auditoria seria realizada sem controle social e que teria os mesmos vícios da verificação de 2014, o movimento amadureceu a ideia da realização de um cálculo tarifário. O cálculo foi divulgado em dezembro de 2018, com grande repercussão na imprensa, uma semana antes da apresentação da auditoria, indicando que a tarifa de ônibus deveria ser menor do que a tarifa então vigente.11
O TZ-BH coloca-se como aberto e horizontal, desde suas premissas às suas práticas ao longo de seus sete anos de atuação. Essa trajetória é permeada por discussões colocando em relevo a construção (conflitual) de significados e frames, bem como de sua própria identidade coletiva. Nesses percursos, em 2015 alguns participantes deixaram o TZ-BH, criando o Movimento Passe Livre BH (MPL-BH) por não se sentirem representados por um movimento que não se definia anticapitalista. Isso porque o TZ-BH nunca estabeleceu uma lista de princípios e valores, por um entendimento coletivo de que quanto mais o grupo se definia, mais ele segregava. Em sua trajetória, o TZ-BH não se vincula diretamente a nenhum partido e preza por uma participação autônoma, mas não se configura como um movimento anarquista.
O TZ-BH recorreu à atuação nas redes sociais, na linha do ativismo digital, que se configurou como um recurso mobilizatório relevante. Suas páginas no Facebook, Twitter . Instagram evidenciam o perfil de seu ativismo, com um largo repertório de ação coletiva, como já exposto, encampando: interação com o governo municipal e a participação nas instituições participativas; acionamento do Poder Judiciário, por meio de ações judiciais; ações diretas e ações de rua; e comunicação, com assessoria de imprensa e divulgação nas redes sociais.
Como posto por Moreira e Leão (2019, p.1021), o TZ-BH inscreveu o transporte e a mobilidade urbana no rol dos direitos na agenda pública municipal, “combinando a política das ruas e a atuação institucional, a experiência procurou interferir nos rumos das políticas públicas para o transporte coletivo, travando uma luta pelo direito social ao transporte.”
Em 2012, a Política Nacional de Mobilidade Urbana estabelecia o transporte como direito social, adiante inserido na CF-88, e previa a participação no planejamento, na gestão e no controle da política nacional de mobilidade urbana. Porém, não chegou a enfrentar a contento a crise estrutural de demanda, financiamento e qualidade do transporte coletivo, que vem se agravando desde o final dos anos 1990. Mais além, ao se analisar a realidade de grande parte dos municípios brasileiros, a participação social institucionalizada nas referidas políticas não se mostra efetiva e/ou se restringe a uma dimensão formal.
As jornadas de junho colocaram em evidência a questão da tarifa dos ônibus, que constituiu seu mote inicial a partir do MPL, já consolidado e com um longo histórico de atuação, com um papel propulsor do ciclo de protesto. Outros atores coletivos, no entanto, começaram a ganhar forma no ambiente efervescente das manifestações de 2013.
Em Belo Horizonte, o movimento TZ-BH aglutinou pessoas que há muito se sentiam afetadas pelos problemas de mobilidade urbana. O surgimento desse movimento se deu em um momento de esvaziamento dos espaços de participação social pela gestão municipal, tornando inviável ou ineficaz a atuação pela via institucional. Além disso, a falta de transparência em relação aos contratos celebrados com as empresas de ônibus tornava impraticável o controle social em relação aos serviços prestados.
Em sua trajetória e atuação, o TZ-BH recorreu a um repertório amplo de ações coletivas. Por um lado, seu repertório envolveu interações com o governo local na medida das (im)possibilidades nos contextos das diferentes gestões. Por outro lado, destaca-se a multiplicidade de ações diretas balizadas por seus frames: ocupações, manifestações, mobilizações virtuais, campanhas e performances de caráter lúdico que podem ser consideradas inovações sociais.
Ao atuar por via institucional, o TZ-BH não raro se deparou com uma gestão resistente e pouco disposta a estabelecer um diálogo, mas obteve conquistas, como a linha Busão da Comunidade. Sobre tal avanço, é importante ressaltar que, embora a criação da linha tenha sido autorizada pelo prefeito em uma reunião com representantes societários, a oportunidade de diálogo só foi aberta após um período de mobilização do movimento e comunidade. Portanto, diante do poder das empresas de ônibus e do enfraquecimento dos espaços participativos, o Busão da Comunidade não teria sido possível somente pela via institucional.
Ao promover ações diretas, fora do Estado, o movimento mostrou-se bem-sucedido em incidir, em alguns casos, na política municipal, assim como foi capaz de alcançar e de mobilizar públicos diversos. Por fim, reafirma-se o papel do TZ-BH de tematizar e gerar visibilidade para a questão do transporte coletivo, em especial para a tarifa e, mais além, para a pauta da mobilidade urbana sob um frame mais amplo de direito social e direito à cidade. A partir de sua atuação - com seu repertório largo e diverso - tem impulsionado esses temas e pautas na agenda do governo local, bem como na esfera pública, delineando possibilidades de re-imaginar a cidade.