Mesas temáticas coordenadas
Recepción: 14 Febrero 2022
Aprobación: 03 Junio 2022
Resumo: O artigo objetiva analisar a política de Assistência Social no Brasil a partir de 2016, considerando as medidas regressivas, os ajustes fiscais e os cortes orçamentários que têm promovido o desfinanciamento da Assistência Social e ameaçado o Sistema Único de Assistência Social. As análises estão pautadas em um arcabouço teórico crítico e dialético, construídas com base em estudo bibliográfico e documental, com reflexões sobre a ação do Estado no âmbito do Sistema Único de Assistência Social e os seus desdobramentos junto aos indivíduos e famílias no atual cenário de pandemia decorrente da Covid-19. Os resultados mostraram que a reestruturação produtiva do capital com base no padrão toyotista-flexível; a crise capitalista desencadeada a partir de 2008; as contrarreformas do Estado, a exemplo da Emenda Constitucional nº 95/2016; e as questões sanitárias decorrente da Covid-19, têm configurado um cenário regressivo para o SUAS, com aprofundamento das desigualdades de classe, raça/etnia e gênero, histórica e socialmente construídas na realidade brasileira, com significativos limites para a democracia e a cidadania.
Palavras-chave: Estado, assistência social, neoliberalismo, conservadorismo.
Abstract: The article aims to analyze the Social Assistance policy in Brazil from 2016 onward, considering the regressive measures, fiscal adjustments and budget cuts that have promoted the underfunding of Social Assistance and threatened the Unified Social Assistance System. The analyzes are based on a critical and dialectical theoretical framework, built on a bibliographic and documentary study, with reflections on State action within the scope of the Unified Social Assistance System and its consequences for individuals and families in the current pandemic scenario. resulting from Covid-19. The results showed that the productive restructuring of capital based on the flexible Toyotist pattern; the capitalist crisis unleashed from 2008; the State's counter-reforms, such as Constitutional Amendment No. 95/2016; and the health issues resulting from Covid-19, have configured a regressive scenario for SUAS, with a deepening of class, race/ethnicity and gender inequalities, historically and socially constructed in the Brazilian reality, with significant limits for democracy and citizenship.
Keywords: State, social assistance, neoliberalism, conservatism.
1 INTRODUÇÃO
O artigo intitulado “A política de Assistência Social no Brasil em tempos de ultraneoliberalismo e conservadorismo” objetiva analisar a política de Assistência Social no Brasil a partir de 2016, considerando as medidas regressivas, os ajustes fiscais e os cortes orçamentários que têm promovido o desfinanciamento da Assistência Social e ameaçado o Sistema Único de Assistência Social.
Com o aparato regulatório, jurídico-normativo e administrativo que foi constituído no pós-Constituição Federal (CF) de 1988, a exemplo da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) em 1993 e da implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) em 2005, são definidas diretrizes para a Assistência Social tendo como base uma política pública de direitos, porém, com o desafio de ser operacionalizada a partir de um projeto liberalizante implementado no Brasil a partir dos anos 1990.
O SUAS implantado em 2005 se apresentou como um modelo de gestão em âmbito nacional, que passou a articular um conjunto de programas, projetos, serviços e benefícios, com gestão compartilhada e participação da sociedade civil nos espaços deliberativos visando efetivar os direitos de cidadania (MARSHALL, 1967; SANTOS, 1979).
Nesse contexto, o projeto democratizante que ensejou a elaboração da Constituição Federal de 1988 foi implementado a partir da lógica do neoliberalismo, com ajustes fiscais e privatizações, que imprimiram aportes minimalistas para a política de Assistência Social.
A compreensão da sociedade do capital se faz necessária no âmbito da proteção social para compreender o estágio protecionista do capitalismo que dispõe os serviços, benefícios básicos de proteção social de indivíduos e famílias submetidos à lógica do mercado e do consumo. A lógica capitalista baseada na divisão social de classes – entre proprietários e trabalhadores – determina a formação de famílias com e sem condições de consumo na qual aquelas desprovidas desta capacidade dependerão de políticas sociais de proteção para garantirem as mínimas condições de sobrevivência.
Enquanto construto das sociedades capitalistas que visa acolher os interesses do mercado, o processo da política social é marcado, contraditoriamente, pelo objetivo de proteger e atender às famílias e indivíduos. Contudo, ao determinar a centralidade da família, a política de assistência social se coloca no limite do reconhecimento da cidadania como exercício da solidariedade, dignidade e respeito aos direitos humanos e sociais ao vincular ações disciplinares àqueles que mais demandam cuidados nos ciclos de desenvolvimento da vida humana – como crianças, idosos e pessoas com deficiência. Na verdade, isso denota o cerceamento das liberdades familiares para com seus membros, atribuindo-lhes responsabilidades estatais e referendando a prática do familismo.
A pandemia Covid-19 desnudou uma realidade que estava posta de desigualdades sociais e o desmonte do SUAS desencadeado no contexto do ultraneoliberalismo presente no Estado brasileiro. Ao mesmo tempo, exigiu a sua atenção, tanto que já no Decreto Federal nº 10.282/2020, que regulamenta a Lei Federal nº 13.979/2020 a Assistência Social foi reconhecida como “serviço essencial”, o que motivou uma série de debates e lutas de diferentes segmentos para que o Sistema Único de Assistência Social pudesse ter condições de responder ao contexto pandêmico.
As análises estão pautadas em um arcabouço teórico crítico e dialético, construídas com base em estudo bibliográfico e documental, com reflexões sobre a ação do Estado no âmbito do Sistema Único de Assistência Social e os seus desdobramentos junto aos indivíduos e famílias no atual cenário de pandemia decorrente da Covid-19.
O artigo está estruturado em duas partes. A primeira analisa a Assistência Social em tempos de ultraneoliberalismo e de conservadorismo; e a segunda, que examina a política de Assistência Social no contexto da pandemia Covid-19, refletindo-se sobre os desafios postos para o acesso à proteção social das famílias que vivem do trabalho.
2 A ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL EM TEMPOS DE ULTRANEOLIBERALISMO E DE CONSERVADORISMO
As relações que se estabelecem no contexto do capital apresentam um caráter articulado aos aspectos econômico-financeiros que perpassam o mercado, exercendo assim, por meio do aparato jurídico-administrativo formas de controle social, que no contexto das crises estruturais atua no sentido de salvaguardar os pilares e processos que engendram a acumulação capitalista (MARX, 2010, 2014; MANDEL, 1990; MÉSZÁROS, 2011; NETTO, 2005).
As diretrizes neoliberais postas para os países periféricos da América Latina se fizeram presentes por meio de contrarreformas em atendimento às diretrizes estabelecidas pelo Consenso de Washington, que ensejaram processos de privatização, ajustes fiscais e cortes orçamentários (BEHRING 2008 e 2012).
A emergência do neoconservadorismo na política brasileira remonta à década de 1980 quando da elaboração da Constituição Federal de 1988, com a formação do chamado Centrão, quando naquele período “32 deputados formaram a bancada evangélica, que participou do Centrão e apoiou a eleição de Fernando Collor de Mello”, formando em 2003 a Frente Parlamentar Evangélica (SIERRA; VELOSO; ZACARIAS, 2020, p. 60).
A regulamentação da política Assistência Social com a promulgação da Lei Orgânica de Assistência Social em 1993 expressou um grande avanço no seu reconhecimento como política de proteção social. Por outro lado, o contexto de alinhamento do Estado brasileiro ao ideário neoliberal, com o estímulo às organizações da sociedade civil e a redução dos investimentos públicos tardou a sua implementação.
Ao final da década de 1990, a agenda neoliberal já apontava seus resultados nefastos expressos por Castelo (2012, p. 623), nas “[...] baixas taxas de crescimento, desequilíbrios nos balanços de pagamentos (com graves crises cambiais), déficits públicos crescentes e aumento das dívidas públicas internas”. Os efeitos sobre as expressões da “questão social” (SANTOS, 2019) também foram desastrosos: aumento do desemprego estrutural e do pauperismo (absoluto e relativo), e perda de direitos sociais básicos, como a precarização das relações trabalhistas e a privatização de bens públicos, como saúde, previdência e educação (CASTELO, 2012).
Com a ascensão dos Partido dos Trabalhadores à presidência da República em 2003, e a promessa das políticas neodesenvolvimentistas, abre-se espaço para o alargamento da incorporação de demandas sociais e para a ampliação de políticas sociais públicas, mesmo que de caráter focalizado e seletivo.
Em 2006 a bancada evangélica aliou-se à chamada “bancada da bala”, e à “bancada ruralista”, formando uma ampla frente de defesa do conservadorismo (SIERRA; VELOSO; ZACARIAS, 2020, p. 61).
É nesse contexto que a política de Assistência Social ganha destaque, sobretudo, com a expansão dos Programas de Transferência de Renda e sua unificação no Programa Bolsa Família, assumindo nas análises de Mota (2008, p. 54) um papel de política estruturadora dada a centralidade que assume no rol do sistema de proteção social brasileiro, pela supervalorização de tais programas em detrimento dos investimentos na saúde e na previdência. Seguiu a tendência da política social do período, de acordo com Behring (2018, p.60), marcada pela “[...] focalização com forte seletividade e de baixo custo, e que se tornou abrangente, em função do tamanho da desigualdade social no Brasil [...]”.
A política de Assistência Social ganha significativo impulso também com a aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), de 2004; a Norma Operacional Básica (NOB/SUAS), de 2005; a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB/SUAS/RH), de 2006; a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, de 2009; e a Lei nº 12.435, de 2011, que atualiza a Lei nº 8.742, e a Norma Operacional Básica, de 2012, que definem as diretrizes estruturantes e os mecanismos que orientam e normatizam a sua gestão por meio do Sistema Único de Assistência Social nas três esferas de governo.
O SUAS organiza o conjunto de serviços e benefícios capazes de materializar o direito à proteção socioassistencial de forma preventiva, quando estabelece os serviços de Proteção Social Básica, tendo como porta de entrada os Centros de Referência de Assistência Social com a oferta do Serviço de Proteção Integral à Família que entre suas prerrogativas pressupõe o trabalho de orientação e acompanhamento das famílias no seu território de referência e encaminhamento para os serviços da rede de proteção social. A instalação e trabalho desenvolvido no âmbito desses equipamentos públicos os tem legitimado em todo o território nacional como referência para as famílias em territórios de grande incidência de pobreza.
A literatura que aborda os avanços aponta uma série de mudanças trazidas com a implementação do SUAS no país, dentre os quais podemos citar a organização e a hierarquização de serviços e benefícios em base sistêmica e por nível de proteção, o estabelecimento de princípios e diretrizes orientadoras e estruturantes do sistema, a definição de unidades públicas, a padronização dos serviços e o financiamento por pisos de proteção.
A política de Assistência Social na perspectiva do SUAS, organizada em duas modalidades (básica e especial), tem suas ofertas pautadas em programas, projetos serviços e benefícios, e visa ultrapassar o agravamento de vulnerabilidades que afetam os diversos ciclos de vida em decorrência de deficiências, violências, desastres ambientais, discriminações, dentre outros. Nesse contexto, os processos de trabalho e de intervenções das equipes de referência têm como foco uma perspectiva relacional com ofertas de seguranças sociais (SPOSATI, 2009, 2013).
O ideário neoliberal que já vinha sendo efetivamente implementado no Brasil desde o governo de Fernando Henrique Cardoso tem se apresentado de forma devastadora junto à classe trabalhadora. Nos governos Lula e Dilma este foi perpassado por um desenvolvimentismo social, com aportes junto à pobreza e à extrema pobreza a partir de um caráter de seletividade e de focalização (FREIRE; CORTES, 2020).
A gestão do SUAS irá incorporar as diretrizes do modelo gerencial e implementar uma série de processos visando o controle das ações planejadas e dos recursos investidos, assim como a aferição de resultados em nome da eficiência na gestão pública. É nesse contexto que as informações passam a ser monitoradas por meio de sistemas alimentados pelos municípios, visando informar a realidade de atendimento das famílias nos serviços e benefícios no âmbito dos programas, projetos e serviços, servindo de instrumento de mensuração do alcance da atenção socioassistencial no Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, de instrumento para retração dos investimentos sob a orientação neoliberal.
Tal realidade tem sido ampliada frente à crise estrutural do capital, que a partir de 2008 tem promovido significativos desdobramentos junto à classe trabalhadora, diante da reestruturação produtiva pautada no padrão toyotista-flexível, contribuindo para aumento do desemprego, fragilização de vínculos trabalhistas e “uberização” do trabalho, com elevado contingente de pessoas exercendo atividades laborais precarizadas e sem proteção legal.
Esse processo de retração vai ser exacerbado a partir de 2016 quando o país passa a ser governado por Michel Temer, que imbuído de implementar a ortodoxia neoliberal expressa no plano de governo intitulado “Uma ponte para o futuro” medidas de austeridade fiscal com ênfase na redução dos investimentos públicos e na desconstrução do aparato burocrático do Estado, responsável pela implementação das políticas sociais públicas, assim como a redução dos gastos públicos, que teve na Emenda Constitucional nº 95/2016 seu maior instrumento, já que prevê o congelamento dos investimentos nas políticas sociais públicas por vinte anos (AMORIM; TEIXEIRA, 2017).
É na contradição sócio-histórica da realidade brasileira que a Assistência Social se coloca como política de proteção social e, no chão das disputas de classes, se dispõe ao desafio de buscar desvencilhar os ranços históricos e os entraves políticos assentados nos “ismos” (conservadorismo, machismo, patriarcalismo, assistencialismo, favoritismo, primeiro damismo, entre outros). É neste mesmo sentido que o SUAS se apresenta no intuito de desenvolver ações de proteção social às famílias e que, em pouco menos de duas décadas, obteve pequenas conquistas já ameaçadas não só pelas armadilhas do grande capital e do neoliberalismo, mas pelo reestabelecimento de ações centradas em práticas assistencialistas e neoconservadoras acentuadas após o golpe político que vivenciou a população brasileira em 2016.
O Censo SUAS 2019 informou a existência de 8.357 CRAS em todo o Brasil com atendimentos que pressupõem a orientação sobre os direitos e serviços públicos disponíveis assim como a problematização da ausência de serviços e benefícios necessários para assegurar a cidadania das famílias (BRASIL, 2020a).
No âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade, os 2.723 CREAS (BRASIL, 2020b) são responsáveis pela oferta do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos com atenção às violações de direitos, encaminhamento para a rede de proteção social e trabalho na perspectiva restaurativa e redutora dos danos decorrentes dos agravos produzidos pelas violações de direitos. No atendimento à população de rua destacam-se, no Censo SUAS 2019, 228 Centros Pop que executam o Serviço de Proteção Especializado para a População em Situação de Rua, desenvolvendo ações de acolhida, orientação atividades grupais e individuais de fortalecimento do convívio, acesso a rede de serviços, alimentação, higiene, guarda de pertences, entre outros, para a população em situação de rua (BRASIL, 2020c).
Na Proteção Social Especial de Alta Complexidade, os Serviços de Acolhimento Institucional para crianças, adolescentes, jovens, adultos, pessoas idosas e pessoas em situação de rua ofertados em diferentes modalidades cumprem o importante papel de prover a proteção integral aos indivíduos e famílias com vínculos familiares rompidos, garantindo desde a moradia e alimentação ao acompanhamento socioassistencial realizado por equipes multiprofissionais, que a partir da oferta de procedimentos profissionais buscam assegurar o acolhimento das demandas, realizando-se a orientação sobre os direitos e serviços ofertantes de equipamentos públicos, bem como o encaminhamento e o acompanhamento dos atendimentos na rede socioassistencial.
Dessa forma, o Censo 2019 aponta a existência 5.788 serviços de acolhimento distribuídos entre os seguintes públicos: 2.801 para crianças, 40 para jovens egressos de serviços de acolhimento, 25 exclusivamente para crianças e adolescentes com deficiência, 297 exclusivamente para pessoas adultas com deficiência, 726 para adultos e famílias, 95 para mulheres em situação de violência doméstica e 1.784 para idosos (BRASIL, 2020d).
A existência de tais equipamentos públicos com oferta de serviços, embora explicite os avanços na construção de uma rede de proteção socioassistencial, é atravessada por fortes tensões decorrentes do próprio processo de reorganização burguesa na perspectiva da garantia da acumulação capitalista, que têm culminado para a perspectiva de desmonte dos direitos socioassistenciais.
Silveira Jr. (2021, p.109, grifo do autor) apresenta três tendências à assistência social no cenário recente de “crise e ofensiva burguesa”. A primeira consiste na “[...] degradação das condições objetivas de trabalho, atendimento e oferta dos programas, projetos, serviços e benefícios nas unidades socioassistenciais e na gestão[...]” e se expressa pelas condições de trabalho aviltantes que têm sido disponibilizadas aos trabalhadores do SUAS, materializadas no excesso de trabalho, nas exigências pelo cumprimento de metas, na estrutura de trabalho “[...] paralela às restrições das condições de atendimento que os cortes orçamentários e o aumento do desemprego colocam[...]” (SILVEIRA JUNIOR , 2021, p.109, grifo do autor).
Nessa mesma linha, Braga e Costa (2020, p.82) ao analisar a gestão do trabalho no contexto do gerencialismo tomando como referência, a análise das formas de contratação das equipes de referência da gestão, dos CRAS, CREAS, unidades de acolhimento e Centros Pops presentes nos dados do Censo SUAS 2019 afirmam que predomina entre os profissionais, o desenvolvimento de suas atividades “[...] sem as condições de enfrentamento das realidades em que atuam, seja pela precarização dos serviços, seja pelo nível de precarização salarial que vivenciam[...]” (BRAGA; COSTA, 2020, p. 82).
A segunda tendência apontada por Silveira Junior. (2021, p.110, grifo do autor) é “[...] o atrofiamento das respostas público-estatais ao pauperismo [...]” expressas de um lado pela “[...] exponenciação dos processos de focalização-seletividade, através da imposição de mecanismos de controle da seleção econômica e da burocratização para o acesso aos benefícios[...]” em virtude das constantes restrições orçamentárias e, do outro, pelo “[...] estreitamento da viabilidade dos mecanismos de remediação do pauperismo[...]. já que o público da assistência social tem crescido e, sem possibilidades de inserção seja no mercado de trabalho, seja no âmbito do empreendedorismo, o que tem provocado “[...] um estrondoso represamento dos ‘usuários’ na Assistência Social, o qual essa Política cada vez menos pode conter[...]” (SILVEIRA JUNIOR, 2021, p.111).
Finalmente, a terceira tendência apontada é a “radicalização (e/ou reposição) de padrões ideológicos e administrativos reacionários” (SILVEIRA JUNIOR, 2021, p.111, grifo do autor), presentes, por exemplo, na concepção, organização e gestão do Programa Criança Feliz e do Programa de Educação Financeira para as famílias do PBF, no desmonte do Ministério do Desenvolvimento Social e no desrespeito das pactuações das instâncias de controle social e “rechaço dos espaços de participação (sobretudo do Conselho Nacional de Assistência social e das Conferências” (SILVEIRA JUNIOR, 2021, p.112), numa perspectiva autoritária tendo como base um caráter centralizador, que se inicia no governo de Michel Temer e é continuada no atual governo Bolsonaro no ataque à participação social e ao Sistema Nacional de Participação Social, com a redução do número de conselhos regulamentada pelo Decreto nº9.759 de 11/04/2019 (SILVEIRA JUNIOR, 2021).
Ante o exposto, Silveira Junior. (2020, p. 113) ainda destaca que todas as ações desenvolvidas apontam também “[...] uma tendência para a exacerbação do minimalismo na proposição de ações, no estabelecimento de critérios de seletividade e na delimitação de diretrizes e estratégias”. Tal afirmação traz uma preocupação quanto ao futuro das ações encaminhadas no âmbito do SUAS e, ao mesmo tempo, na perspectiva de política pública que vem predominando na sua implementação, marcada cada vez mais pelo afastamento das diretrizes democráticas postas nos seus marcos normativos e, ao mesmo tempo colocam em xeque a capacidade do sistema de garantir as provisões socioassistenciais necessárias à garantia de direitos.
O Sistema Único de Assistência Social tem seu fundamento na concepção de proteção social instituída no âmbito da seguridade social brasileira, que incorpora a assistência social como política de proteção social não contributiva e que deve se estender a todos que dela necessitarem. Dessa forma, o reconhecimento e a necessidade de que o Estado Democrático de Direito seja capaz de atender às necessidades emergenciais de cidadãos remete a provisões que são públicas, capazes de assegurar uma proteção integral (PEREIRA, 2011).
Por outro lado, é preciso compreender os limites e a função da política social na sociedade capitalista. Como assinala Boschetti (2016), a política social é um instrumento contraditório que auxilia no processo de reprodução do capital, mas é incapaz de alterar a condição de desigualdade social gestada pelas próprias contradições engendradas pelo capitalismo e, ao mesmo tempo, se bem estruturada permite que a classe trabalhadora possa ter acesso a serviços e benefícios capazes de atender suas diferentes necessidades (COUTO, 2015).
Para tanto, um instrumento que nos auxilia a pensar o investimento de maior alcance e alargamento desse atendimento é o orçamento público. No caso do SUAS, nunca foi uma prioridade no orçamento público e, ao mesmo tempo, sempre foi objeto de luta por parte de diferentes segmentos da população comprometidos com o projeto democrático de política de Assistência Social assegurado na Constituição Federal de 1988. Mesmo assim, ainda não se definiu um percentual para a implementação da referida política.
Além disso, os danos trazidos pelo congelamento dos gastos com a Emenda Constitucional nº 19 já assinalam o desfinanciamento da política e comprometem as condições objetivas de trabalho (SILVEIRA JUNIOR, 2021; YAZBEK, 2021). Cabe ressaltar que a tendência à redução já vinha sendo denunciada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). Em “Nota referente ao Déficit Orçamentário da Política de Assistência Social” de 1 de abril de 2019, o CNAS apresentou uma grande diferença entre o orçamento aprovado pelo CNAS e o incorporado na Leis Orçamentárias Anuais do Governo Federal no período de 2017 a 2019 (CNAS, 2019).
No que tange ao Orçamento de 2020, além de uma nova Nota do CNAS, merece destaque a Agenda Política da Frente em Defesa do SUAS e da Seguridade Social emitida em março de 2020, estabelecendo medidas necessárias para o enfrentamento à pandemia e à promoção da proteção da população, tanto para o campo específico da Assistência Social como para a Seguridade Social de forma mais ampla. No campo específico da assistência Social, a agenda assinala a necessidade da “Efetiva recomposição do Orçamento para a Assistência Social, aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, no valor aproximado de 2,7 bilhões, mas cuja Lei Orçamentária Anual autorizou apenas 1.3 bilhões” (FRENTE EM DEFESA DO SUAS E DA SEGURIDADE SOCIAL, 2020, p. 3).
Apesar dos avanços que podem ser identificados no processo de emergência e de desenvolvimento do SUAS, a ação do Estado não tem conseguido ultrapassar a perspectiva familista e focalista da Assistência Social brasileira, reafirmando-se no atual contexto ultraneoliberal e conservador a lógica individualizante e moralizadora da questão social (FREIRE; CORTES, 2020). De modo que a família, posta como instância protetiva no SUAS, tem sido diretamente perpassada pelas contradições do sistema capitalista no contexto da crise do capital e pandêmica.
O neoconservadorismo tem se expressado a partir dos pilares “Deus, pátria e família”, com a mobilização de setores relacionados à religião, com pautas que colocam em evidência as hierarquias e a submissão a padrões sociais excludentes, que historicamente têm servido para a construção e aprofundamento de desigualdades (SIERRA; VELOSO; ZACARIAS, 2020, p. 54).
Em substituição às estruturas do Estado social têm sido implementadas as diretrizes do Estado penal, com estratégias de vigilância e de controle social, com o encarceramento em massa da população pobre, negra e moradora das periferias urbanas, historicamente marcadas pela segregação social e pela ação repressiva do Estado brasileiro. Nesse sentido, os aportes religiosos e conservadores da extrema-direita no poder apresentam um conjunto de retrocessos que reafirmam as velhas estruturas de desigualdades geracionais, de classe, de raça-etnia, de gênero e de orientação sexual construídas na realidade brasileira.
Os discursos conservadores buscam resgatar os modelos tradicionais de família com base em hierarquias e desigualdades, reafirmando ainda as velhas práticas que perpassaram a política de Assistência Social, assentadas no assistencialismo, na liberalidade e no favor, e as relações de benesse e de dependência que historicamente pautaram a política social no Brasil.
3 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL E A PANDEMIA COVID-19: os desafios para o acesso à proteção social das famílias que vivem do trabalho
A pandemia Covid-19, desencadeada no cenário mundial e brasileiro no início de 2019 e que perdura até o atual momento, trouxe à tona uma série de desigualdades e manifestações da questão social e, ao mesmo tempo, a discussão sobre a importância da proteção estatal em diversas esferas. No que tange ao campo social, a necessidade de assegurar o isolamento social como principal medida para enfrentar o contágio do vírus e a sua disseminação, assim como a preparação dos sistemas de saúde para o enfrentamento à doença e o investimento em pesquisas que sinalizem para a sua prevenção ganham a cena dos discursos políticos e midiáticos.
Na realidade brasileira, diante da pandemia Covid-19, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), articulados às demais políticas públicas e ao sistema de garantia de direitos se apresentam como importantes suportes no que se refere ao desenvolvimento de ações de prevenção e de enfrentamento ao novo Coronavírus.
Contudo, apesar de se constituir em um importante aporte protetivo, o SUAS tem sofrido um processo de desfinanciamento e a estratégia adotada pelo governo federal foi a de substituição dos repasses regulares fundo a fundo por créditos extraordinários temporários para fins de enfrentamento à pandemia Covid- 19 ou recursos pontuais com execução previamente definida (VIANA, 2020), o que evidencia o descompromisso com a continuidade do SUAS e o relega ao caráter pontual.
Analisando as diretrizes postas para o SUAS no âmbito da Proteção Social Básica, cabe destacar que o artigo 3º, § 1º, inciso XXVIII, da Lei nº 13.979 de 06/02/2020, coloca os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) como essenciais no enfrentamento à pandemia Covid-19. No que se refere às medidas de enfrentamento à Covid-19, o artigo 2º da Portaria nº 337, de 24 de março de 2020, do Ministério da Cidadania, dispõe sobre medidas de flexibilização das atividades presenciais nos CRAS e nos CREAS, visando evitar aglomeração de pessoas, com ações centradas na prestação de informação aos usuários no que se refere ao cuidado e à prevenção, bem como em relação à disseminação do novo Coronavírus.
Na Proteção Social Especial, no âmbito do Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes foi emitida a “Recomendação Conjunta nº 01, de 16/04/2020, pelo MC, MMFDH, CNJ e CNMP”, que dispõe sobre a adoção de “[...] mecanismos alternativos para manutenção do contato com os familiares quando for necessário, restringir as visitas, além de uma atenção especial às crianças e aos adolescentes com baixa imunidade [...]”; e sobre a organização de “[...] regime de funcionamento emergencial com cuidadores residentes, de modo a reduzir o fluxo diário de entrada e saída de profissionais [...]” (SOUSA, 2020, p. 103).
No que se refere aos serviços de acolhimento institucional para pessoas com deficiência e idosas, destaca-se a Portaria SNAS nº 65, de 06/05/2020, com orientações sobre as “[...] ações que devem ser adotadas no serviço de acolhimento de pessoas idosas ou com deficiência, para prevenir a transmissão do coronavírus [...]” (SOUSA, 2020, p. 103-104)[1].
Quanto ao Serviço Especializado para População de Rua/ Serviço Especializado de Abordagem Social e Serviços de Acolhimento Institucional, importante matéria é posta na Portaria SNAS nº 69, de 14/05/2020, visando “[...] subsidiar as ações, o funcionamento e a reorganização das unidades para o atendimento e acolhimento das pessoas em situação de rua, inclusive os imigrantes [...]”, e promover a “[...] identificação de usuários que façam parte dos grupos de riscos e que seja mantida articulação com a rede de saúde [...]”, de forma a realizar o mapeamento das demandas que se apresentam e a promoção de apoio “ [...] às organizações da sociedade civil que prestem atendimento a esse público [...]” (SOUSA, 2020, p. 103-104).
Considerando as normativas que foram emitidas no contexto da pandemia Covid-19, cabe destacar também a “Portaria Conjunta nº 01/2020, da Secretaria Nacional de Assistência Social e da Secretaria de Gestão de Fundos e Transferências (SGFT)”, que “[...] define a utilização dos recursos provindos do cofinanciamento federal no atendimento às demandas emergenciais de enfrentamento ao coronavírus dispondo, ainda, sobre como utilizar tais recursos [...]”, bem como o rol das medidas provisórias que foram emitidas no período de março a abril de 2020 (MP nº 941, de 02/04/2020, e MP nº 953, de 15/04/2020), com a abertura de crédito extraordinário para o Ministério da Cidadania (SOUSA, 2020, p. 106-107).
O Auxílio Emergencial 2020 foi instituído pela Lei 13.982, com o pagamento de R$ 600,00 durante 03 (três) meses destinado a pessoas maiores de 18 (dezoito) anos, sem “emprego formal e sem qualquer outro tipo de proteção social (incluindo os microempreendedores individuais)”, que apresentem renda “[...] per capta mensal de até ½ salário mínimo (R$522,50) e não ter recebido rendimento tributável acima de R$28.559,70 em 2018 [...]” (MAURIEL, 2021, p. 56), tendo ocorrido em julho/2020 a aprovação para o pagamento de mais 02 (duas) parcelas, e, em setembro/2020, mais 04 (quatro) parcelas no valor de R$ 300,00 (trezentos reais). No que se refere ao ano de 2021, o Decreto nº 10.661/2021 regulamentou o pagamento de 04 (quatro) parcelas do auxílio emergencial correspondendo a R$ 150,00 (cento e cinquenta reais) para família constituída por uma única pessoa, R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais) para família beneficiária do auxílio emergencial/auxílio emergencial residual, e R$ 375,00 (trezentos e cinquenta reais) destinado à família monoparental, tendo como referência a mulher provedora.
O referido benefício se apresenta a partir de uma lógica minimalista, que afronta e limita o exercício da cidadania. De forma que no atual cenário de mundialização da economia pautada nos interesses do capital financeiro, faz-se necessário ultrapassar a perspectiva regressiva do Estado no âmbito das políticas públicas, que “[...] a partir do Governo Temer, colocou o Brasil num cenário de extremos retrocessos sociais [...]”, ampliados no governo Bolsonaro (FREIRE; CORTES, 2020, p. 37), fazendo-se necessária a implementação de um projeto societário que contemple as demandas da classe trabalhadora.
Mesmo com tantas dificuldades, os estados e municípios vêm respondendo às demandas postas de diferentes formas, como revela o documento produzido pelo Ministério da Cidadania intitulado “Atuação da Política de Assistência Social no Contexto da Pandemia do Novo Coronavírus”, que apresenta dados preliminares dos questionários das gestões estadual e municipal do Censo SUAS 2020, do Registro Mensal de Atendimento dos CRAS e dos CREAS, evidenciando como o sistema vem garantindo as ofertas na perspectiva da implementação da proteção socioassistencial (BRASIL, 2021).
No âmbito dos estados, o referido documento (BRASIL, 2021) revela que todos os respondentes informaram ações realizadas no âmbito da gestão da Assistência Social durante a pandemia Covid-19, sendo evidenciadas em termos percentuais como: produção de orientações técnicas específicas para o atendimento durante o período da pandemia (85%); apoio aos municípios no atendimento à população de rua (81%); participação ou elaboração do plano de contingência/resposta (69%); apoio aos municípios na reorganização das unidades de acolhimento (69%); realização de cofinanciamento com recursos extraordinários para os municípios durante a pandemia (59%); realização de diagnóstico estadual, mapeando os principais riscos à transmissibilidade no território (46%); regulamentação de cofinanciamento específico para benefício eventual em situação de calamidade devido à pandemia (38%); outros (31%); e pactuação com o Sistema de Justiça, de fluxos e procedimentos necessários à situação de emergência (19%).
Percebe-se todo um esforço das ações estaduais em encaminhar um conjunto de ações que atendessem às necessidades dos municípios em termos de orientações, apoio na reorganização de serviços, estudos de riscos regulamentação de novos benefícios e articulação com o próprio sistema de justiça, até o financiamento (ainda que em forma de créditos extraordinários), na perspectiva de fornecer os subsídios necessários para que as gestões municipais pudessem dar continuidade às ações do SUAS, em atenção às particularidades de cada Estado. Tal esforço foi necessário já que, concordando com Viana (2020, p.140), as orientações que o Ministério da Cidadania e da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) emitiu para “reorganização das ofertas, recomendando turnos de revezamento e atendimento remoto ou presencial por agendamento, desconsideram a realidade da esmagadora maioria dos municípios brasileiros e as características territoriais do país” (VIANA, 2020, p.140).
No que tange aos municípios, a publicação revela que unidades públicas continuaram os atendimentos e os acompanhamentos das famílias no âmbito do PAIF e do PAEFI, mesmo no contexto tão adverso, como revela o Quadro 1.
As informações do Quadro 1 são reveladoras em termos quantitativos e denotam a forte presença que os serviços socioassistenciais possuem no contexto do sistema de proteção social brasileiro, o que confirma a real necessidade de que estes integrem o conjunto dos “serviços essenciais” no contexto pandêmico.
No entanto, tal essencialidade precisa se coadunar com a perspectiva de política pública sustentada por um orçamento público capaz de garantir as condições de trabalho, a valorização do trabalhador, a estruturação dos equipamentos públicos, a oferta de serviços e benefícios amplos e uma estrutura de gestão que tem no pacto federativo funções e responsabilidades compartilhadas entre os entes, mas sobretudo, que respeite as instâncias deliberativas e de pactuação do SUAS. No contexto do ultraneoliberalismo tais premissas se afastam cada vez mais dessa perspectiva e reforçam aspectos culturais da política da assistência social, como o voluntariado, o clientelismo político e a filantropia.
Finalmente, destaca-se que a implementação dos serviços só é possível com a presença dos/as trabalhadores/as, e que, para tanto, precisam estar em condições para acolher as demandas das famílias, mas estes/as sequer foram reconhecidos/as no Plano Nacional de Vacinação como público prioritário, mesmo com a mobilização nacional que envolveu o Fórum Nacional e os Fóruns Estaduais dos Trabalhadores do SUAS, o CNAS, o CONGEMAS, a Frente em Defesa do SUAS e da Seguridade Social, entre outras instâncias.
A pandemia Covid-19 não está restrita à análise sob a perspectiva doença versus saúde, isto pois, seus impactos e causalidades atingem todos os setores da vida social e aprofundam as manifestações da “Questão Social”[2] que afetam cotidianamente as famílias brasileiras:
A pandemia colabora para escancarar as marcas e sequelas do neoliberalismo e da crise do capital, acentuando e deixando ainda mais visíveis as consequências econômicas, políticas e principalmente sociais. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2020) divulgou um relatório indicando que 25 milhões de empregos poderão ser perdidos devido ao choque da Covid-19 e que os trabalhadores perderão cerca de 3,4 trilhões de dólares em renda até o final do ano. Uma consequência do desemprego de longo prazo e do subemprego, bem como da incerteza no mercado de petróleo, é que a taxa de crescimento global provavelmente cairá para cerca de 1%, como sugere o Fundo Monetário Internacional (FMI) (SANTOS; WIESE, 2021, p. 197).
A expansão mundial da Covid-19, escancara a divisão de classes e expõe a supremacia dos países capitalistas-imperialistas sobre os países de capitalismo dependente como o Brasil. A adoção de uma agenda neoliberal de capitalismo dependente e a submissão brasileira aos órgãos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), são evidentes. Tanto o é que, em plena pandemia, os órgãos governamentais têm atuado a partir de uma política austera, lançando discursos e medidas de proteção ao empresariado e à economia sem ao menos investir em ações eficazes de preservação da vida da população brasileira.
Medidas como implementação de um real “lockdown”, o repasse de um auxílio emergencial que satisfizesse as necessidades reais de sobrevivência da população brasileira e que não os colocassem em risco de infecções e à possibilidade de criação de variantes do vírus. Estratégias como estas foram adotadas e obtiveram resultados positivos em outros países, porém, no Brasil, foram negadas. Não à toa, em abril de 2021 foi instaurada a Comissão de Inquérito Parlamentar, a CPI da Covid-19, que evidenciou, por meio da mídia nacional e internacional, as ações de um chefe de Estado que, desde o início da pandemia, minimizou e negou a existência da doença, bem como da capacidade da ciência e da cientificidade de buscar estratégias alternativas para a resolução da pandemia – o que colocou as famílias brasileiras, sobretudo os segmentos marginalizados e periféricos da sociedade de classes, em situações de risco de saúde e de desproteção social e sobrevivência.
Como já mencionado neste trabalho, a pandemia da Covid-19 expôs ainda mais as desigualdades de classes vivenciadas no Brasil. Posicionamentos conservadores revestidos de modernidade camuflam a ideia de que no Brasil se vive uma democracia social e racial – uma inverdade imposta pela sociedade burguesa e já desmistificada por alguns estudiosos críticos, tal como Florestan Fernandes.
Mesmo diante das incoerências do governo brasileiro ao negar a pandemia e os números de mortes diárias, a pressão de alguns setores da população fez com que algumas orientações e medidas contra a Covid-19 fossem tomadas, mesmo que incipientes. A necessidade real do distanciamento e do isolamento social fez com que os serviços socioassistenciais fossem fechados por não terem sido considerados como essenciais. Esta foi a medida mais razoável, tendo em vista a intenção de evitar a circulação de pessoas e a contaminação dos trabalhadores. Contudo, alguns serviços precisam ser garantidos à população que necessita dos serviços ofertados que garantem a sobrevivência individual e coletiva dos membros familiares.
A alternativa inicial foi a implementação dos atendimentos remotos, mediados por tecnologias. No entanto, de antemão, a primeira evidência notada foi a desigualdade social posta na sociedade do capital, reforçada pelas tendências e orientações neoliberais, que resultaram no aprofundamento da crise. Como pensar em distanciamento social, atendimento remoto às famílias pobres e ainda garantir o home office aos trabalhadores da política de assistência social, cuja realidade de apartheid social é claro e evidente?
A maioria das famílias usuárias da política de assistência social não dispõe de conhecimento das tecnologias digitais e nem condições materiais de acesso aos meios que mediam o atendimento remoto – seja por smartphones, tablets, computadores e internet. A exemplo disso, é possível citar o processo de implementação do Auxílio Emergencial (AE) [3] no qual, por carência de recursos, milhares de famílias sequer conseguiram solicitar o benefício ou tiveram seus pedidos negados. Neste mundo de contradições, a política de proteção social que, historicamente, atua junto aos setores mais pauperizados e subalternizados da sociedade brasileira, foi desconsiderada, mesmo sendo capaz de identificar os casos de famílias mais vulneráveis, sem a necessidade de um aplicativo digital. Caso acionada, a política de proteção social poderia ter recorrido aos dados sistematizados já existentes do CadÚnico, como também à inclusão de famílias que já são acompanhadas, antes mesmo da pandemia, pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAEFI).
Implementar um benefício emergencial com uso de tecnologias em meio a uma pandemia, em um país em que a educação tecnológica é restrita a uma parcela da população e o acesso material aos meios tecnológicos não são possíveis a uma grande parcela das famílias pobres implica ignorar e desarticular a política de assistência social e todo o aparato possível da Rede do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
[...] sobre desarticulação do auxílio emergencial com a Rede SUAS, o que tende a explicar o acréscimo de dificuldades enfrentadas pela população para sua inclusão na atenção em agências bancárias. Foi constatado que 21,2 milhões de pessoas se apresentaram fora do CadÚnico, dentre estas 734 mil pessoas não sabem ler nem escrever, 2,7 milhões moram em domicílios onde ninguém tem acesso à internet, em geral comunidades de povos tradicionais ou moradoras em enclaves. As unidades do SUAS, e seus serviços socioassistenciais não são providos de apoio tecnológico, não contando com celulares e computadores móveis para facilitar a relação de atenção às/os cidadãs/os usuárias/os (SPOSATI, 2020, p.25).
Significa que a proteção social no Brasil, principalmente em tempos de pandemia, reforça a autocracia burguesa, de seletividade, não garantindo proteção social de acesso universal aos segmentos populacionais mais fragilizados e desprotegidos da sociedade brasileira. Na linguagem popular, as medidas de proteção social tomadas para atender as famílias brasileiras em tempos de pandemia foram para “inglês ver”. As famílias brasileiras, pobres e periféricas vivenciam situações cotidianas de negligências e foram punidas pelo Estado no exercício do modelo familista de proteção social.
4 CONCLUSÃO
No Brasil o receituário ultraneoliberal e conservador tem sido largamente implementado a partir de 2016 com a ascensão da extrema-direita ao poder, com medidas regressivas, mercantilização de direitos e cortes orçamentários nas políticas públicas, que põem em risco as conquistas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Em tempos de crise do capital e pandêmica a ação do Estado tem se apresentado a partir de diretrizes ultraneoliberais e conservadoras, ampliando a perspectiva familista da política de Assistência Social. Nesse contexto, os problemas estruturais que perpassam o cotidiano de (re)produção das condições de vida da classe trabalhadora são abordados a partir de uma perspectiva individualizante e moralizadora, que reforça o caráter de responsabilização dos indivíduos pelas expressões da questão social.
O SUAS e o SUS têm se apresentado como suportes fundamentais no enfrentamento à pandemia Covid-19, ao tempo em que têm sofrido constantes ataques frente às contrarreformas do Estado e aos aportes ultraneoliberais e conservadores.
Apesar da formatação da lógica integrada e territorializada do SUAS, a sua implementação tem sido marcada pela descontinuidade, com aportes minimalistas nas ofertas de serviços, tanto na Proteção Social Básica, para a atendimento às situações de vulnerabilidade social, quanto na Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade, para atendimento às situações de risco ou violação de direitos, respectivamente, dentro e fora do núcleo familiar de origem.
Nesse sentido, faz-se necessário ultrapassar o caráter minimalista e focalizador, e, trazer os aportes estatais para o enfrentamento das desigualdades de classe, renda, raça/etnia, gênero e orientação sexual, histórica e socialmente construídos na realidade brasileira, como forma de defesa da democracia e efetivação da cidadania.
O Sistema Único de Assistência Social tem sofrido os reflexos do alinhamento do Estado brasileiro ao ideário ultraliberal de radicalização da retirada do Estado da atenção às necessidades sociais, demarcada de forma explícita pelo desfinanciamento, desestruturação das instâncias de gestão, desrespeito às instâncias de pactuação e controle social do SUAS, reforço às ações filantrópicas das organizações da sociedade civil, desprofissionalização, entre outros.
É notório que o SUAS vem sofrendo ataques contínuos, mas ao mesmo tempo, ao desvelar as condições sociais da população brasileira trouxe à tona as desproteções que precisam de provisão estatal, não só no campo da reprodução material da força de trabalho, mas das situações decorrentes das violações de direitos.
Assim, mesmo com todos os limites apontados na implementação dos serviços e que os comprometem em termos de resultado, não há como desconsiderar a necessidade das provisões do SUAS e, de maneira simultânea, a continuidade da defesa pelo seu reconhecimento no orçamento público que garanta ações profissionais em quantidade e qualidade requeridas pelo público do SUAS. Trata-se de travar uma luta integrada às lutas gerais da sociedade pelo fortalecimento das políticas sociais públicas que compõem o sistema de proteção social brasileiro.
As reflexões aqui expostas não pretendem esgotar as análises sobre as medidas regressivas do Estado neoliberal e conservador brasileiro em relação à oferta de serviços e benefícios às famílias que vivem do trabalho – em especial as que dependem do acesso a benefícios e serviços da política de assistência social – em tempos de pandemia.
Diante de um processo de vacinação lenta, pesquisadores, trabalhadores e militantes da política de assistência social enfrentam importantes desafios relativos ao debate e à reflexão acerca do reconhecimento legal e das ações da política de assistência social como política pública de responsabilidade estatal de proteção social.
É preciso destacar o quanto as incidências culturais, sociais e históricas nas formas de ser, viver e estar em famílias não são consideradas para se pensar as famílias como lócus de proteção e, também, de desproteção social - sobretudo quando se analisa pelo prisma da sociedade de mercado, cujo acesso das famílias herdadas dos costumes autocráticos burgueses são possíveis, sendo que às famílias deserdadas resta a burocracia e o não acesso às condições de mercado, o que impossibilita a proteção social de seus membros.
A lógica familista reforçada pelo Estado burguês reduz acessos de proteção social e de cidadania, além de delegar à família maiores responsabilidades em relação aos cuidados de seus membros, intensificando as desproteções sociais, sobretudo, das famílias que não estão inseridas no mercado formal de trabalho.
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Notas