Mesas temáticas coordenadas
Recepción: 14 Febrero 2022
Aprobación: 22 Junio 2022
Resumo: Compreendida como expressão da luta de classe, a questão social solicita a reflexão sobre o seu significado, demarcando as determinações contemporâneas que conformam o processamento dos movimentos que lhes são orgânicos – a desigualdade e a luta/ resistência. No desvelo de ambos, a judicialização da luta, a banalização da morte dos mais pobres se apresentam como estratégia de enfrentamento político-institucional a questão social e, portanto, uma necessidade sociopolítica de manutenção da hegemonia burguesa. Tais determinantes associam-se ao recrudescimento da lógica gerencialista vigente nas políticas de seguridade social, os quais reverberam diretamente no trabalho e na formação dos assistentes sociais e exigem da profissão o fortalecimento dos acúmulos teóricos e ético-políticos processados na construção de uma cultura profissional crítica, com radical posicionamento de classe.
Palavras-chave: Questão social, serviço social, judicialização da questão social, gerencialismo.
Abstract: Understood as an expression of the class struggle, the social question requires reflection on its meaning, demarcating the contemporary determinations that shape the processing of the movements that are organic to them – inequality and struggle/resistance. In the care of both, the judicialization of the struggle, the trivialization of the death of the poorest are presented as a strategy of political-institutional confrontation with the social question and, therefore, a socio-political need to maintain bourgeois hegemony. Such determinants are associated with the resurgence of the managerial logic in force in social security policies, which directly reverberates in the work and training of social workers and require the profession to strengthen the theoretical and ethical-political accumulations processed in the construction of a critical professional culture, with radical class positioning.
Keywords: Social question, social work, judicialization of the social issue, managerialism.
1 INTRODUÇÃO
A noite escura que atravessa o chão da contemporaneidade torna perceptível que vivemos em um contexto de crise estrutural do capitalismo. Conforme analisado por Mészáros (2002), uma crise global, que afeta todas as dimensões da vida e que atinge tanto os países centrais quanto os países de desenvolvimento dependente. Além de um ordenamento político-econômico marcado por uma assombrosa exponenciação do liberalismo, a crise sanitária instaurada na pandemia amplificou o metabolismo antissocial do capital (ANTUNES, 2020) e, por conseguinte, o seu potencial destrutivo, alterando substantivamente a reprodução da vida social e atribuindo a questão social novos contornos, embora preservando e aprofundando as estruturas que historicamente lhes são compósitas.
Nessa processualidade, a expansão dos índices de pobreza, miséria, fome, informalidade e adoecimento associa-se à autodestruição ambiental, às guerras por demarcação de espaço geopolítico – sobretudo em torno das reservas de petróleo –, a retração de direitos e a precarização da vida, num movimento que tem o trabalho intermitente e a “uberização” como protótipo das relações de trabalho crescentemente individualizadas e invisibilizadas, que se travestem “de prestação de serviços e obliteram as relações de assalariamento e exploração do trabalho” (ANTUNES, 2020, p. 20).
No Brasil, além desses determinantes históricos, o controle da terra assume papel de centralidade e estratégia para a hegemonia capitalista, cujo modus operandi se caracteriza por arranjos entre as burguesias nacionais com o capital internacional e desprestígio das massas, seja urbana ou camponesa, exigindo-lhes luta e resistência contra os sistêmicos processos de exploração. A história mostra a resistência e a luta dos trabalhadores do campo manifestas na quilombagem no período colonial, Canudos, no começo da República, e Contestado, Trombas e Formoso, em tempos mais recentes, evidenciando “a persistência de complexos e dramáticos antagonismos no campo” (IANNI, 2004, p. 92) que, na atualidade, configura-se na conflitualidade agrária expressa na relação entre agronegócio e campesinato, que se caracteriza pelo antagonismo da matriz tecnológica adotada por cada sujeito.
Sob essas manifestações da crise do capital, alternativas xenófobas, fundamentalistas religiosas, de ataque a direitos e liberdades emergem como varinha de condãoa convencer os setores das classes populares como uma saída mágica para esses diversos problemas que afetam sua vida cotidiano. É sob esse senso comum que trabalha o pensamento conservador-reacionário, que tem na força do controle da mídia e nos algoritmos das redes sociais um terreno fecundo para disseminação das fakenews e, a partir destas, a reprodução de um discurso negacionista, que refuta a ciência, a história, a arte e as conquistas civilizatórias que humanizam a vida. Tais defesas intencionam neutralizar a organização e o protagonismo dos trabalhadores na luta contra esse cenário de barbárie iminente e pela construção de uma alternativa estrutural a essa configuração societária.
A apreensão crítica desses determinantes exige um compromisso ético-político, uma tomada de partido frente à História. Diante dessa exigência, o Serviço Social vem respondendo organicamente – articulado às lutas dos trabalhadores com radicalidade crítica, refutando facilitismos teóricos e políticos e as abordagens negadoras das análises totalizantes – com a afirmação do projeto profissional, que reconfigurou o Serviço Social para uma perspectiva ético-política emancipatória, distinta da perspectiva conservadora de suas origens. Enquanto profissão, o Serviço Social comporta quatro eixos organizativos, que lhe atribuem uma totalidade: produção de conhecimento, intervenção, organização e formação profissional. Em cada uma dessas dimensões, o Serviço Social vem construindo fronteiras de resistências ao conservadorismo.
Esse confronto com o pensamento conservador não se configura como um elemento de tímida dimensão e incidência; ao contrário, atesta os acúmulos que o Serviço Social vem consolidando nas elaborações profissionais medidas pelo percurso da crítica teórica e das elaborações ético-políticas. O conservadorismo contemporâneo, mais beligerante e travestido de um forte componente reacionário, ressoa, também, em seus tentáculos, ofensivas de uma possível restauração do conservadorismo no âmbito do Serviço Social, seja pelo retorno às formas tradicionais ou pela via pós-moderna[1]. Nesse embate, a afirmação dos fundamentos e direção social do Projeto Ético-Político é indispensável na refutação de uma reconfiguração – ou tentativa – da cultura profissional do Serviço Social, como alerta Guerra (2016, p. 90-93), marcada por características como: (a) a compreensão da profissão como um padrão prático-operativo; (b) a reflexão assentada num marxismo idealista, que, ainda que antineoliberal, sustenta-se numa visão possibilista sem avançar na crítica da estrutura; (c) a suposição de uma neutralidade política que se expressa a partir de uma categoria que seria homogênea; (d) o descaso pela formação teórico-metodológica rigorosa; (e) a inclinação a considerar o viés da profissão como trabalho manual desprovido de trabalho intelectual crítico; (f) a política social utilizada como técnica de administração da pobreza, com caráter assistencialista, focalista, minimalista, seletivista e meritocrático, tendo na lógica do gerencialismo uma importante orientação. Com essas provocações, construímos as reflexões aqui apresentadas.
2 ESTADO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICA SOCIAL: o gerencialismo em debate
Desde a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1843, Marx (2010) procurou demonstrar que o Estado é produto da sociedade e não uma abstração de sua condição real; logo, uma separação formal entre as esferas privada e pública – que se configura como um dualismo abstrato entre Estado e sociedade civil ou entre Estado político e Estado real – é produto da modernidade, posto que, na Idade Média, o poder político é um caráter de cada esfera privada.
Na esfera do Estado político pode ocorrer, no máximo, uma acomodação de interesses, uma vez que, ao apresentar-se ideologicamente como uma esfera que representa o “bem comum” ou os “interesses gerais”, o Estado pode incorporar em sua órbita os interesses das classes e camadas subalternas. Nos manuscritos produzidos em sua juventude, Marx apresenta essa possibilidade e não nega a importância da assistência pública (saúde, educação etc.) e das primeiras legislações fabris da Inglaterra, como vitória de anos de luta da classe operária, que impôs limites à economia política do capital (Cf. SOUZA FILHO, 2011; SILVA, 2014). Essas leis sociais são resultantes do conflito entre capital e trabalho, que exige intervenções que vão além das práticas pré-capitalistas (caritativas, filantrópicas etc.) e repressoras do Estado.
A criação dos direitos sociais como parte da expansão da cidadania está associada à mobilização e participação da classe trabalhadora e suas frações no cenário político das sociedades. Por meio de tais direitos, os trabalhadores podem ter acesso a uma parte da renda socialmente produzida e canalizada ao Estado sob a forma de impostos e outras contribuições sociais. Porém, não basta apenas o seu reconhecimento legal-positivo, a sua efetivação exige uma constante luta social. Desconsiderar esses conflitos é aceitar a ideologia do Estado como portador de uma racionalidade universal e desconsiderar que o seu desenvolvimento histórico integra-se ao processo de consolidação da hegemonia burguesa que, pelas próprias contradições que este encerra, acaba por possibilitar a emergência de outras tendências e projetos societais, que visam construir uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe. Desse modo, não se pode elaborar uma reflexão crítica acerca do Estado sem considerar a questão social.
No Brasil, uma análise crítica sobre esse fenômeno chamado de “questão social” considera-a como:
[...] indissociável da sociabilidade capitalista e, particularmente, das configurações assumidas pelo trabalho e pelo Estado na expansão monopolista do capital. A gênese da questão social na sociedade burguesa deriva do caráter coletivo da produção contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho –, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. [...] a questão social condensa o conjunto das desigualdades e lutas sociais, produzidas e reproduzidas no movimento contraditório das relações sociais, alcançando plenitude de suas expressões e matizes em tempo de capital fetiche. As configurações assumidas pela questão social integram tanto determinantes históricos objetivos que condicionam a vida dos indivíduos sociais, quanto dimensões subjetivas, fruto da ação dos sujeitos na construção histórica. Ela expressa, portanto, uma arena de lutas políticas e culturais na disputa entre projetos societários, informados por distintos interesses de classe na condução das políticas econômicas e sociais, que trazem o selo das particularidades históricas nacionais (IAMAMOTO, 2007, p. 155-156).
De acordo com Fleury (1994), os direitos sociais de cidadania ganham materialidade com as políticas sociais, que são resultantes possíveis e necessárias das contradições entre capital e trabalho, mediadas pela intervenção do Estado e que envolvem pelo menos três participantes principais: a burocracia estatal, a burguesia industrial e os trabalhadores urbanos. Portanto, não cabe reforçar as análises unilaterais que a consideram como um instrumento de dominação: uma via de mão única onde trafegam apenas os interesses da burguesia. Numa perspectiva da totalidade, seu entendimento envolve múltiplos determinantes e suas inúmeras funções[2].
No capitalismo monopolista, as políticas sociais em respostas às expressões da “questão social” estão associadas, dentre outras questões, à preservação e ao controle da força de trabalho ocupada e excedente. Por serem resultantes de um complexo jogo político atravessado por contradições, conflitos, acordos e concessões entre os sujeitos (representantes de setores da burguesia, da burocracia estatal e dos trabalhadores), o processo de formulação (que leva em conta os diversos orgãos e as divisões no aparelho do Estado) pode tornar as políticas sociais distantes das reais necessidades da classe trabalhadora e de suas frações. Todavia, o seu processo de implementação também é pautado pelas disputas e alianças entre esses sujeitos no seio de cada setor e/ou aparelho estatal. Dependendo do grau de mobilização e organização da classe operária e do conjunto dos trabalhadores, essas medidas quando articuladas a uma política econômica e financeira que não a restrinjam, podem “assinalar conquistas parciais, [...] importantes no largo trajeto histórico que supõe a ruptura dos quadros da sociedade burguesa” (NETTO, 2001, p. 34).
No Brasil, as políticas sociais nascem e se desenvolvem orientadas pela perspectiva do modelo de seguro social. Porém, nos anos 1980, em um período caracterizado pela redemocratização do país, o Estado conduziu reformas, que levaram em consideração alguns anseios dos setores progressistas da sociedade e que se expressaram, mesmo que de forma parcial, com a inclusão da seguridade social no texto da Constituição Federal de 1988. Contudo, segundo Silva (2020a), o neoliberalismo, com suas nuances estruturais e conjunturais, vem impondo, desde os anos 1990, limites às conquistas democráticas da classe trabalhadora, ao garantir os interesses do capital de dominação financeira por meio de distintos mecanismos construídos no âmbito do Estado, como: planos de estabilização da economia; medidas de ajuste fiscal permanente[3] (fundos de estabilização fiscal, hoje chamado de Desvinculação das Receitas da União, Lei de Responsabilidade Fiscal, congelamento de gastos sociais por vinte anos etc.); ampliação regressiva da carga tributária; privatização de empresas e serviços públicos; programas sociais de alívio ou “combate” à pobreza absoluta; portarias e leis que criminalizam os movimentos sociais e a pobreza; e realização de contrarreformas trabalhista, previdenciária e da administração pública, isto é, de uma verdadeira contrarreforma do Estado.
Segundo Coutinho (2010), os ideólogos do neoliberalismo apresentam-se hoje como defensores de uma suposta “terceira via” entre o liberalismo puro e a socialdemocracia “estatista”, como representantes de uma posição ligada às exigências da modernidade (ou da chamada pós-modernidade) e, portanto, ao progresso. Nessa mesma direção, Behring (2003) aponta que:
Mesmo que o termo reforma seja apropriado pelo projeto em curso no país ao se auto-referir, partirei da perspectiva de que se está diante de uma apropriação indébita e fortemente ideológica da ideia reformista, a qual é destituída de seu conteúdo progressista e submetida ao uso pragmático, como se qualquer mudança significasse uma reforma, não importando seu sentido, suas consequências sociais e direção sociopolítica (BEHRING, 2003, p. 128).
Por essa razão, tem sido adotado o termo contrarreforma do Estado, que não deve ser restringida apenas a sua dimensão administrativa, posto que o gerencialismo é uma das dimensões da contrarreforma do Estado, que é constituída também pela contrarreforma econômica, fiscal, da previdência social etc. (BEHRING, 2003; SOUZA FILHO, 2011; SOUZA FILHO; GURGEL, 2016). De um modo geral, tanto na assistência social como nas demais políticas de seguridade social, as contrarreformas gerenciais vêm impondo padrões de gestão e organização do trabalho cada vez mais precarizados, por meio das terceirizações, da avaliação do desempenho, do produtivismo, da polivalência, do saber burocrático/instrumental, do “envolvimento” do trabalhador (leia-se da sujeição) no processo de trabalho, sob o discurso da qualidade, da autonomia, da criatividade, da versatilidade, da flexibilidade etc. Para os usuários, as consequências também são deletérias, pois os padrões de gestão e organização gerencialista do trabalho são fundamentados por conceitos e noções, como empoderamento, empreendedorismo, empregabilidade etc., que contribuem, em grande medida, para que estes sejam transformados em cidadãos consumidores, em empreendedores ou em clientes, mas sem direitos sociais. Associado a esta lógica gerencialista soma-se o protagonismo do Estado na judicialização das lutas e da vida, enquanto uma das estratégias de enfrentamento à questão social, cujas peculiaridades exporemos brevemente no próximo item.
3 A HEGEMONIA DO AGRONEGOCIO: a exponenciação da judicialização da questão social
A questão agrária brasileira deve ser analisada como uma expressão da questão social, que resulta das “desigualdades sociais forjadas na dinâmica e lógica do sistema assentado na exploração e dominação do capital, no campo ou na cidade” (COSTA e VIANA, 2018, p. 2), que assume maior expressividade com o advento da industrialização. Destaca-se, no entanto, que as expressões da questão social se manifestam no campo e antecedem, em muito, o processo de urbanização/industrialização nacional.
Sendo a questão social indissociável ao modo de vida capitalista (IAMAMOTO, 2001), sua manifestação no campo pode ser observada a partir das relações sociais estabelecidas entre capital e trabalho, que se caracterizam, de modo geral, pelas contradições entre as classes burguesa e camponesa que, no Brasil, apresentam-se com particularidades próprias de uma formação sócio-histórica que tem em suas bases a concentração fundiária pela classe latifundista, com o controle completo da terra, e um modelo produtivo voltado para o atendimento da demanda externa, para o qual o padrão era o uso da força de trabalho escravo, conforme o sistema plantation no período colonial.
O capitalismo se expande no campo construindo sua hegemonia, atualmente manifesta ideologicamente pelo agronegócio, que dissemina valores e ideias na busca do consenso social, a exemplo da campanha nacional “O agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo”, que, compondo os “sistemas das filosofias tradicionais”, impõe-se como uma “[...] força externa, como elemento de força coesiva das classes dirigentes, e, portanto, como elemento de subordinação a uma hegemonia exterior [...]” (GRAMSCI, 2001, p. 114-115), limitando as potencialidades críticas das massas camponesas e da sociedade em geral, que passa a considerar a matriz tecnológica comercial como modelo produtivo a ser seguido.
Hegemonicamente, o agronegócio submete a produção agropecuária à lógica do mercado, que, na nova divisão internacional do trabalho ou na “nova rodada transnacional do capital” (BARBOSA, 2006), resulta em nova configuração da questão agrária, com o privilegiamento da produção de commodities[4] agrícola, pecuário e de minério, inserindo, o capital, em alguma medida, famílias camponesas a sua dinâmica, seja diretamente articuladas ao processo produtivo, seja pelo fornecimento de insumos, material e instrumentos de trabalho. (AZAR, 2013, p. 40).
Como historicamente o Brasil resiste à reforma agrária, mantendo sua estrutura fundiária concentrada, o que gera intensos e sistemáticos conflitos agrários, a classe camponesa faz uma persistente luta pela terra e pela reforma agrária, adotando estratégias de enfrentamento ao latifúndio. Neste sentido, a função social da terra assume papel central na disputa pela terra por constituir uma referência delimitadora da propriedade, tomando configurações diversas de acordo com o interesse político/econômico e culturais dos sujeitos envolvidos, implicando diretamente na questão da desapropriação, para o que a judicialização constitui estratégia na disputa pela terra e na luta pela reforma agrária.
Por um lado, os movimentos sociais do campo que fazem uso da ocupação de terra, em regra o fazem tendo como ponto de partida o cumprimento da função social da propriedade. Ou seja, a ocupação em si constitui um questionamento quanto a isto, uma denúncia pública de que a propriedade ocupada não cumpre a obrigação legal, forçando com a ocupação sua desapropriação “por interesse social, para fins de reforma agrária”, conforme a CF-1988. Por outro lado, os proprietários ou supostos proprietários, de modo geral, insistem na defesa do direito inalienável da propriedade, fazendo para isso o uso de mecanismos como a judicialização com ações de despejo e reintegração de posse da terra, estabelecendo dinâmicas e disputas territoriais conflituosas que demandam decisões judiciais.
Isto porque os proprietários podem solicitar a nulidade de processos administrativos de desapropriação, inclusive utilizar mandados de segurança para defender suas propriedades de eventuais ações interventivas do poder público, diminuindo o papel do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a quem compete declarar a produtividade ou improdutividade do imóvel. Tudo isso no âmbito da legitimidade jurídica permitida.
Importante demarcar que a judicialização como estratégia de controle da terra pelo capital constitui-se social e historicamente. Na configuração atual, contribui para apresentar a nova imagem do latifúndio, imprimindo-lhe aspecto de civilidade. Se antes, a couraça do latifúndio rejeições pela sociedade, sendo considerado improdutivo, violento e atrasado, agora, sua “faceta modernizada” pelo agronegócio busca o consenso social mostrando-o ideologicamente como moderno, produtivo e humanizado.
Porém, apesar de negar velhas práticas, tal faceta não consegue que o agronegócio esconda sua “essência devoradora de terras e homens” (AZAR, 2013, p. 96), sua natureza violenta e sua prática expropriadora. Isso porque, mesmo que procure apresentar-se moderno, com o uso do que existe de mais avançado em termos de ciência e tecnologia, assim como a adoção de subterfúgios jurídicos que lhe conferem o aspecto de legalidade, para manter o controle da terra, não abandona suas práticas autoritárias e coercitivas.
Nesse sentido, enquanto utiliza marcos legais para garantir o direito inalienável da propriedade privada, impetra ações possessórias que, regra geral, resultam em despejos, que configuram a materialização da violência praticada pelo capital e pelo Estado contra o direito à vida. A primeira violência do Estado[5] praticada é a própria ação de despejo, pois, muitas vezes, os magistrados desconhecem as realidades das famílias envolvidas e história, sujeitos e contextos dos processos que decidem.
O Estado, como sustentáculo do latifúndio, utiliza o aparato de suas polícias, publicamente denunciadas por seu caráter violento, para a retirada forçada de famílias acampadas em áreas de litígio. Para tanto, usam de tratores, derrubam as moradias, incendeiam plantações, matam os animais e agridem pessoas, em especial, as lideranças. Porém, o Estado não age sozinho, pois, articulado à violência em pauta, o agronegócio participa diretamente das ações, com sua “segurança privada”, suas milícias particulares, violentando física e psicologicamente as famílias. Psicologicamente, rondam as áreas, fecham estradas, impossibilitando a circulação das pessoas, circulam armados e ameaçam quem encontram. Fisicamente, além das ações acima, agridem e assassinam. Ou seja, o latifúndio, travestido de agronegócio, apesar de seguir as “regras do jogo”, os “ditames da lei” para manter o controle da terra, não abandona suas práticas autoritárias e coercitivas e perversas.
Nesse sentido, o judiciário pauta a demanda do agronegócio, em proteção à propriedade privada, e à revelia do direito à vida expresso nos interesses coletivos, não considerando as necessidades de reprodução material e social de populações diversas como quilombolas, indígenas, ribeiros, extrativistas. Muitas vezes, as decisões judiciais são tomadas sem o conhecimento da realidade destas populações, mas também, substâncias na discriminação e preconceito de classe. A judicialização para o controle da terra implica, em igual medida, a judicilização da vida e a legitimação dos meios mais diversos para perpetuar o poder, tais como a violência e a morte.
4 LUTO E LUTA: a morte como uma mediação da questão social contemporânea
É no trânsito da produção material e reprodução da vida social que as classes sociais se formam. Ao usarem músculos, ossos, força e cérebro, os homens vão construindo, objetivamente, o mundo, produzindo algo que satisfaça apenas a sua necessidade ou “objetos externos”, ou que satisfaça as necessidades de uma sociedade em determinada época, “seja qual for a natureza, a origem, provenha do estômago ou da fantasia” (MARX, 2010, p. 57). A externalidade desses objetos configuram, assim, a produção de mercadorias, num movimento em que “os homens têm história porque têm de produzir sua vida, e têm de fazê-lo de modo determinado: isto é dado por sua organização física, tanto quanto na sua consciência” (MARX, 2007, p. 34).
A coisificação do ser humano e fragmentação da existência do “homem que se perdeu”, afasta de si a possibilidade da consciência da genericidade humana, conectado com a espécie a que pertence e com toda a riqueza material e espiritual por ela produzida. Desse modo, a autoconsciência traduz-se em autoalienação, num processo em que “o trabalho alienado aliena a natureza do homem, aliena o homem de si mesmo, o seu papel ativo, a sua atividade fundamental, aliena do mesmo modo o homem a respeito da espécie; transforma a vida genérica em vida individual” (MARX, 2002, p. 116). Nesse movimento, a vida e a morte são também reificadas, alçadas a um processo natural, desprovido de historicidade e revestido, muitas vezes, de um imaginário transcendente, facultado ao pensamento mágico.
No movimento contemporâneo de reprodução da vida social – cujas mediações e fundamentos vimos sinteticamente assinalando nesse texto – torna-se imperativo indagar qual o sentido político que a morte comporta, ou qual o lugar que ocupa na luta de classe. Num esforço de apreensão mínima dos inúmeros determinantes que perpassam essa discussão, optamos por localizar nossas reflexões no debate da questão social, compreendendo esta enquanto resultante da luta de classe ou, mais precisamente, enquanto síntese do processamento dos antagonismos inerentes à sociedade burguesa, salvaguardadas as particularidades das diversas formações sociais.
“Morrer é um ato solitário. Morre-se só: a essência da morte é a solidão. O morto parte sozinho, os vivos ficam sozinhos ao perdê-lo” (CHAUÍ, 2000, p. 366). Num leito de um hospital, longe dos parentes e amigos, o tempo de morrer quase nunca assegura a dignidade de quem está morrendo. Tal solitude não se configura, no entanto, como impeditivo, à construção de um sentido histórico e político da morte; ao contrário, requisita a construção de um sentido coletivo para este ato histórico. Desse modo, a defesa da vida vem associada à da dignidade na morte e ganha terreno fértil na cena contemporânea.
A utilização da barbárie, da violência – como assinalados nos itens anteriores – sinalizam a morte enquanto um recurso e uma estratégia político-institucional mobilizada pelo Estado burguês no enfrentamento à desigualdade e à organização política dos trabalhadores. No tempo presente, os sustentáculos conservadores, autoritários e antidemocráticos que conformam a nossa formação social adensam com matizes de perversidade as respostas à desigualdade e à rebeldia dos trabalhadores do campo e da cidade. Além do extermínio da juventude negra, dos indígenas, das mulheres, dos militantes, dos mais pobres, a morte se instaura sorrateiramente como uma estratégia de poder. Morre-se pela fome, com desespero e pela negligência. O discurso da naturalização (evocando a ideia de que a morte é inevitável, não importando as condições sociais em que esta se processa), frequentemente aparece como fronteira dessa arena política, como resposta à luta de classe.
O avanço das forças produtivas, aí incluso o desenvolvimento cientifico, não foi suficiente para atenuar a indiferença diante da morte do outro ou para tornar excepcional a morte terrível, provocada pela peste e pela violência; ou a morte súbita, que impede ao homem ser avisado de seu fim (ARIÈS, 21012, p. 32). Nos últimos dois anos, as câmeras frigoríficas, as valas comuns, os sacos de acomodação dos corpos, a abolição dos ritos de despedida assinalam um luto que se defronta com a luta pela vida (ou, de forma mais precisa, pela sobrevivência imediata) como única alternativa de realização histórica e social e, portanto, mediações significativas para se pensar a questão social contemporânea.
A consciência da morte (e, por conseguinte, da vida) torna-se, assim, cada vez mais afastada dos indivíduos, cujas memórias são destinadas à cova da indiferença que move as relações sociais. A “indesejadas das gentes”, como diz Manuel Bandeira, nos arranca da história como indivíduo e como classe, exigindo dos sobreviventes o luto emprenhado na luta. Aos subalternos cabe a grande tarefa de recompor a sua história integral, como assinala Gramsci, apartando os traços da difusão e da fragmentação e sustentando-se nas mãos e nos ventres de quem fermenta a luta pela liberdade. As intermitências da morte devem andar de mãos dadas com a inteireza da vida; com a possibilidade de construir consciência singular e coletiva sobre a humanidade, a finitude e a necessidade de transformação societária que se perfaçam no horizonte da erradicação da barbárie, a qual nos parece uma questão medular do processamento da luta de classe.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento do capital é mediado por contradições entre as classes, que buscam, cada uma a seu modo, a hegemonia, o que significa haver “... por um lado, a crítica prático-teórica da estruturação das formas de dominação e, por outro, a condição de possibilidade de alterar as regras já dadas” (DIAS, 2006, p. 23). Os tempos estão prenhes de adversidades, mas nestas também germinam potencialidades. Responder as primeiras e elaborar as segundas exige qualificação teórica e ousadia político-prática.
Desse modo, o agravamento da questão social e as insuficiências das respostas que lhe são formuladas necessitam de debate e enfrentamento. O aumento da desigualdade, a banalização da morte dos mais pobres e dos que lutam contra o capital, a instauração do gerencialismo como instrumento ideopolítico de gestão das políticas sociais e a retração dos direitos sociais associada à precarização das formas de viver e produzir, solicita dos trabalhadores capacidade crítica, lucidez política e vontade coletiva caucionada num horizonte anticapitalista, para não sucumbirem a barbárie.
Qualificar o componente da rebeldia na questão social é tarefa urgente dos trabalhadores e este adensamento não se localiza apenas nas ações e prospecções coletivas, mas se alarga para os acúmulos particulares de partidos, movimentos e profissões. Na especificidade da organização política do Serviço Social, a compreensão dos projetos societários em disputa bem como dos limites e potencialidades contidos na luta imediata pela garantia de cidadania e atendimento das necessidades básicas, se apresenta como condição importante no desvelo do real, no intuito de evitar análises românticas e deterministas acerca dos processos histórico-sociais. Desse modo, é imperativa a consciência de que a dialética não pode capitular diante dos determinismos, fatalismos e ausência de criticidade; afinal, trata-se de uma profissão que, há aproximadamente quatro décadas, não se furta à luta e à crítica.
Parafraseando Marx, de que a humanidade só se coloca apenas as tarefas que pode resolver, o desafio do Projeto Ético-Político do Serviço Social hoje reside, pois, na questão a saber: os assistentes sociais ainda mantêm para si essa tarefa de manutenção de seu Projeto Ético-Político? Considerando a indicação de Marx ao fato de que no processo histórico temos capacidades que se originam historicamente e que também podem, igualmente, suprimir-se historicamente, a principal questão é identificar até que ponto se está reduzindo o horizonte de contribuição com a emancipação humana que o Serviço Social se colocou para a América Latina quando da emergência do Movimento de Reconceituação, na década dos anos 1960. Neste sentido, reafirmar seu Projeto Ético-Político é também conceber que “[...] uma pedagogia separada da luta pela transformação social perde todo o seu sentido.” (MANACORDA, 2007, p. 181).
Sob essa provocação, compreender qual o horizonte macroscópico que unifica as lutas e resistências das diversas organizações e forças políticas dos trabalhadores, de caráter anticapitalista, que materializam resistências no cenário contemporâneo brasileiro é uma necessidade histórica e uma exigência teórica para a compreensão da luta de classe no Brasil contemporâneo e para compreensão da processualidade do vínculo orgânico entre Serviço Social e História. As questões e respostas suscitadas em torno desse vínculo traveste-se de um conteúdo histórico e cauciona a construção de um outro senso comum, direcionado radicalmente ao processo de humanização e ao alargamento das possibilidades da vida
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Notas