Resumo: Este artigo resulta de pesquisas nas áreas de Economia Política e Economia Agrícola e trata do processo centralização de capital na agricultura. Na primeira parte faz um resgate teórico das categorias concentração e centralização de capital, como as mesmas foram amplificadas no contexto de hegemonia das políticas neoliberais e de que maneira a forma de funcionamento dos grandes grupos econômicos reduz as condições de sobrevivência dos pequenos produtores agrícolas. Na segunda parte examina como essa centralização de capital se manifesta em termos de modernização agrícola e em estratégias dos grandes grupos que atuam no setor para aparecerem como politicamente e socialmente adequadas. Nesse sentido, como resultado de estratégia de pesquisa, analisa as dinâmicas de alguns dos maiores grupos brasileiros que atuam na produção e exportação de commodities. Na terceira parte, explicita como o padrão irracional de consumo, do ponto de vista da maioria da população, e a destruição da natureza associada à produção agrícola representam características intrínsecas ao capitalismo. Por outro lado, aponta críticas e possíveis alternativas a partir da perspectiva da Ecologia Política.
Palavras-chave: Centralização de capital, agricultura, problemas ambientais, ecologia política.
Abstract: This article is the result of research in the areas of Political Economy and Agricultural Economics and deals with the process of centralization of capital in agriculture. In the first part, a theoretical review of the categories concentration and centralization of capital is carried out, how they were amplified in the context of the hegemony of neoliberal policies and how the way in which large economic groups operate reduces the conditions of survival of small agricultural producers. The second part examines how this centralization of capital manifests itself in terms of agricultural modernization and in the strategies of the large groups that operate in the sector to appear as politically and socially adequate. In this sense, as a result of the research strategy, the dynamics of some of the largest Brazilian groups that operate in the production and export of commodities were analyzed. In the third part, it is explained how the irrational pattern of consumption, from the point of view of the majority of the population, and the destruction of nature associated with agricultural production represent intrinsic characteristics of capitalism. On the other hand, criticisms and possible alternatives are pointed out from the perspective of Political Ecology.
Keywords: Capital centralization, agriculture, environmental problems, political ecology.
Mesas temáticas coordenadas
CENTRALIZAÇAO DE CAPITAL NA AGRICULTURA E PROBLEMAS AMBIENTAIS uma leitura crítica1
CENTRALIZATION OF CAPITAL IN AGRICULTURE AND ENVIRONMENTAL PROBLEMS: a critical reading
Recepción: 14 Febrero 2022
Aprobación: 30 Mayo 2022
Desde o início da década de 1990, articulando-se à chamada globalização e a hegemonia de políticas neoliberais, passou a ocorrer um crescimento geométrico de atividades articuladas às commodities minerais e agrícolas em diversas regiões da periferia capitalista. Como elementos decisivos nesse processo estão as grandes corporações, o sistema financeiro e a atuação do Estado, que têm favorecido a centralização de capital e a abertura de novas fronteiras agrícolas na América Latina. O primeiro aspecto (centralização) é analisado no tópico seguinte.
Quanto às expansões de fronteiras agrícolas, essas têm ocorrido inclusive em áreas já ocupadas por centenas de milhares de produtores não capitalistas e voltados às pluriatividades. São favorecidas por incentivos fiscais dados às monoculturas de larga escala, intensivas de capital e com necessidades crescentes por novas terras agricultáveis. Como consequência, a produção de alimentos básicos fica cada vez mais prejudicada. Por outro lado, à proporção que a agricultura industrial avança sobre territórios camponeses, quilombolas e indígenas, o grau de expropriação dessas populações aumenta, novas assimetrias econômicas e sociais são estabelecidas e a disputa (desigual) pelo uso e controle da terra torna-se um elemento central.
Ao mesmo tempo, cada vez mais, as grandes empresas do chamado agronegócio têm buscado aparecer como “politicamente corretas” e anunciam ter políticas que favorecem a preservação do ambiente e respeitam direitos das comunidades em que se enclavam e dos seus empregados, a quem chamam de seus colaboradores. Entretanto, apesar de praticamente todas associarem suas marcas ao termo sustentabilidade, colecionarem certificações e terem departamentos voltados para a questão ambiental, não conseguem superar contradições relacionadas à dinâmica de produção e comercialização em grande escala de suas mercadorias.
Avalia-se que essa é uma questão importante para analisar na medida em que as autodeclarações de empresas têm servido de base para apoio estatal às mesmas e para definição de compras por diversas categorias de consumidores. Na segunda parte deste artigo, portanto, procura-se confrontar a hipótese marxiana relativa às tendências de progresso na agricultura capitalista, com as supostas ações de grupos econômicos e agentes políticos que argumentam que agora no século XXI é possível produzir e comercializar em grande escala com um mínimo de agressão ao ambiente e aos direitos sociais. Como procedimento para analisar esse último aspecto foram examinados criticamente as práticas de algumas das maiores empresas com atuação no setor agrícola no Brasil.
Como ressaltamos na terceira parte, na verdade foram criados termos escorregadios, tais como Desenvolvimento Sustentável, Economia Verde”, “Capitalismo Consciente” etc, que passaram a ser adotados nos discursos de empresas e governos, sem que de fato representem o que parecem indicar. Em vez disso, minimizam relações de exploração sobre pessoas e o ambiente e ainda sugerem pretensas alternativas inviáveis na dinâmica de funcionamento do capitalismo.
De fato, a transformação da natureza em propriedade privada permite que o proprietário possa fazer o que bem entender dentro dos limites de sua cerca, como, por exemplo, arrancar uma vegetação, bloquear nascentes de rios ou expulsar comunidades centenárias que não tenham títulos de propriedades, sem que as leis possam alcançá-lo na maior parte das vezes.
Por outro lado, além de identificar os grandes problemas ambientais, inclusive os relacionados à grande produção agrícola, é necessário dar outros passos. Nesse sentido, consideramos pertinentes algumas indicações pioneiras de Marx, que embora não tenha priorizado o assunto, sem dúvida alguma não o ignorou. Em vez disso, elaborou conceitos e nos apresentou elementos que permitem enxergar a raiz do problema e possíveis rumos do ponto de vista da classe trabalhadora. A Ecologia Política pode ser um desdobramento contemporâneo nessa perspectiva e, portanto, uma possível referência para debates e agendas de pesquisas.
Dentre os pontos essenciais para compreender a dinâmica do modo capitalista de produção, para as finalidades deste artigo, consideramos os conceitos de concentração e centralização de capital:
[...] a concentração requer reinvestimento, enquanto que, para a centralização, basta redistribuir a propriedade do capital já existente. É por isso que a concentração prevalece quando há acumulação, ao contrário da centralização, que prevalece em contextos de estagnação (MARX, 1983, p. 689).
Como destaca Sweezy (1983), a dinâmica de acumulação no modo de produção capitalista se diferencia e está ligada à crescente composição orgânica do capital, e há outros dois aspectos que precisam ser levados em consideração: o primeiro relacionado ao crescimento do capital constante em relação ao capital variável; o segundo, o crescimento da parte fixa do capital constante. São essas tendências que levam à escala maior de produção. Marx denominou esse processo de concentração do capital. A concentração nesse sentido é companheira normal da acumulação e obviamente não pode ocorrer sem ela. A recíproca, porém, não é necessariamente verdadeira, pois é possível imaginar a acumulação ao mesmo tempo que os capitais individuais diminuem de volume (SWEEZY, 1983). Isso ocorre porque juntamente com a concentração há um segundo e mais importante processo que Marx chamou de “centralização do capital”, que não deve ser confundido com a concentração:
[...] pelo fato de pressupor apenas uma modificação na distribuição do capital já existente e em atividade. Seu campo de ação não se limita portanto pelo crescimento absoluto da riqueza social, pelos limites absolutos da acumulação. O capital cresce num determinado lugar até atingir uma massa imensa, sob um controle único, porque em outro lugar foi perdido por muitos investidores. Isso é a centralização, em contraposição à acumulação e à concentração (MARX,1983, p. 686).
Outro elemento importante para Marx, de acordo com Sweezy é o “sistema de crédito’, aqui considerando não só os bancos, mas toda a maquinaria financeira de casas de investimentos, mercados de títulos, etc.”. O credito é uma arma na luta contra a concorrência e se transforma no principal mecanismo na centralização dos capitais. E, as empresas de sociedade anônima seu principal instrumento de centralização de capitais.
Os efeitos da centralização e, em menor escala da concentração para Marx são três. O primeiro leva a uma socialização e racionalização do trabalho dentro dos limites do capitalismo, ocasionando uma “transformação progressiva do processo de produção isolado, num processo de produção socialmente combinado e cientifico”. O segundo ponto é que a centralização, em si mesma, é consequência da modificação técnica e da crescente composição orgânica do capital, e age para apressar ainda mais as modificações técnicas, acelerar e intensificar os efeitos da acumulação, ampliando assim ao mesmo tempo as revoluções na composição técnica do capital, que aumenta sua parte constante às expensas da parte variável e, portanto, reduz a procura relativa do trabalho. Por último há uma substituição progressiva da concorrência entre vários produtores pelo controle monopolista ou semimonopolista dos mercados por um pequeno número de grupos (MARX,1983 apud SWEEZY 1983).
Observando a dinâmica econômica das últimas décadas na exploração das commodities agrícolas, nas novas fronteiras agrícola da periferia capitalista, por exemplo, é possível compreender os diferentes níveis de acumulação, entre grupos do agronegócio e nas demais atividades não articuladas com os mercados internacionais. E a resultante é expressa no grau crescente de concentração produtiva que se constata em todos os elos da cadeia produtiva[1].
Como resultado dessa dinâmica, o Brasil se consolidou como um dos mais importantes players do mercado global de commodities (minérios e proteínas animal e vegetal), ocupando um espaço antes absoluto de grupos dos E.U.A. De fato, na segunda do século XXI, o epicentro da produção e de exportação desses produtos (em particular da soja) se desloca dos EUA para o Cone Sul , onde se destacam por ordem de importância, Brasil, Argentina, Paraguai ,Uruguai e Bolívia, que juntos produzem 54,5% da toda produção global, ou 58% das exportações e 48% da área ocupada com soja no mundo (USDA, 2019).
O Brasil, em particular, se tornou o maior produtor e exportador de produtos da agropecuária (complexo soja e milho, complexo sucroalcooleiro, celulose, carnes, suco, fumo dentre outros). O maior destaque tem sido o complexo da soja, e o país é responsável por 31% da produção, 45% das exportações e também da área ocupada com a cultura, cerca de 27% do total global. Do total da safra de soja (135,4 milhões de toneladas em 2020), a macrorregião do Centro-Oeste responde por 45,3% e o Estado do Mato Grosso, 26,5%. Esse grau de concentração se repete no rebanho de bovinos, respectivamente 34% e 15% (CONAB, 2020; IBGE, 2021).
Esse nível de concentração é ainda maior na cultura da soja brasileira. De acordo com censo agropecuário de 2017, havia 238 mil produtores especializados em soja. Neste período cerca de 60% da produção total de soja saíram de 11.393 grandes unidades, que colhem em áreas superiores a 1000 hectares. Os pequenos (com menos de 100 hectares) representaram 75% (ou 179.300 produtores), mas só responderam por 10% de toda produção. Ou seja, a cada censo os pequenos perdem importância enquanto os grandes avançam na quantidade produzida e no número de estabelecimentos. Uma curiosidade é que somente 694 estabelecimentos que tinham mais de 10 mil hectares plantados, naquele ano, eram responsáveis por 16,11% de toda soja colhida no pais, enquanto os mais de 179 mil produtores pequenos respondiam por apenas 10% (IBGE, 2017).
A alternância econômica e geográfica na produção de commodities, além de se enquadrar na divisão clássica do trabalho, entre os hemisférios Norte e Sul, é também resultante da concorrência inerente a dinâmica capitalista no seu processo de acumulação, onde as unidades pequenas são substituídas pelas maiores, por conta de um contínuo aumento da produtividade e da incorporação de progresso técnico e da produção de larga escala que caracteriza os processos produtivos
A concentração e a centralização de capitais no agrário brasileiro já estão presentes desde os anos 70, e o Estado teve papel importante na indução deste processo e no seu “sucesso atual”. Mas, sem dúvida, com a agenda neoliberal da década de 1990 eles ganham musculatura, de um lado pelo o Efeito-China, e, de outro, pela política econômica incentivando a expansão, que se soma aos novos mecanismos de financiamentos, públicos (BNDES, BB) e privados (bolsas de valores e grandes corporações).
Portanto, confirmam-se os mecanismos destacados por Marx como os principais do processo de acumulação e o sistema de crédito se manifesta de forma cada vez mais decisiva. Nesse sentido, mecanismos como IPo, follow-up, debentures, LCA e outros passam a se constituir num meio de ganhar escala e competir no mercado onde os grandes grupos estão inseridos.
Por outro lado, a narrativa mais comum dos grandes projetos tem sido a associação entre a exploração de suas atividades e o progresso que supostamente acompanha a sua chegada. Esse discurso, aliás, é endossado pelos governos.
Dupas (2007), por sua vez, resgata a referida narrativa e a desconstrói. Para o autor, a elite global ao fazer essa associação entre as transformações ocasionadas pela globalização de mercados, comete equívocos, porque, “este mesmo progresso, traz consigo (também) exclusão, concentração de renda, subdesenvolvimento e graves danos ambientais, agredindo e restringindo direitos humanos essenciais”. Portanto, avalia que é fundamental se debater a quem serve esse progresso, quais os riscos e custos de natureza social, ambiental e de sobrevivência da espécie, sendo que isso aparece de forma cristalina no avanço do agronegócio nas áreas periféricas do capitalismo (DUPAS, 2007).
Os atores hegemônicos da expansão são as grandes corporações presentes nos diferentes elos da cadeia produtiva e as grandes unidades na produção propriamente dita. Esta dinâmica ganha destaque internacional e tem servido como moeda de troca para novas concessões, mas também para questionamentos por aqueles dos grupos excluídos desse processo de integração do local a internacional, gerando conflitos de toda ordem que se prolongam ou têm soluções questionáveis.
Nesse período contemporâneo, onde o local e o internacional se imbricam, tentando formar uma unidade, são as assimetrias que prevalecem e transcendem aquele lugar, e, se tornam universais, mesmo ocorrendo em áreas tão diversas e longínquas, como as florestas bolivianas, o chaco paraguaio e argentinos e as chapadas do Matopiba[2], no Brasil. No entanto, todas as comunidades envolvidas têm algo em comum neste processo de expansão de grãos em geral na América Latina. Observa-se que os problemas que afligem os camponeses e grupos sociais marginalizados nesses locais, de ordem econômica, social, cultural e ambiental são muitos semelhantes, inclusive, em termos de “agroestratégias” a que são submetidos pelas empresas na expansão da produção e no controle dos territórios em disputa (MESQUITA, 2021).
Questões relacionadas ao acesso, uso e controle da terra manifestam-se com diferentes formas e estratégias. A estratégia das empresas consiste em desqualificar os residentes locais, questionando suas posses, pressionando sua retirada e/ou deslocamento, alegando que as terras que ocupam há várias gerações, agora têm dono. Essa estratégia, sempre esteve presente nas zonas de fronteira agrícola (nas frentes de expansão) e tinha como ponta de lança os grileiros profissionais com seus exércitos de mercenários e redes aparelhadas no Judiciário, Legislativo e Executivo. Na atualidade, além daquelas, conta com novos agentes voltados à especulação de terra, autoridade locais e nacionais, todo um serviço de lobby dentro e fora Congresso Nacional e outras formas de tráfico de influência e /ou de narrativas, no sentido de “vender” aquela ideia já corriqueira de que o agronegócio é o agente do desenvolvimento e progresso para aquela comunidade.
Há outras “agroestratégias” presentes nesta área de fronteira, mas essas duas são suficientes para mostrar que os grupos sociais marginalizados há muito não têm o que comemorar, seja na conquista do emprego, na melhoria das condições de vida, no acesso à terra ou mesmo a serviços públicos constitucionais. O que se percebe, neste novo contexto dominado por um sofisticado sistema de exploração, que conta com apoio governamental, é o aparecimento de novas privações: o aumento do monopólio da terra; cercamentos de área comunais (públicas); impedimento ao acesso à água e/ou aterramento de cursos d´agua; proibição da coleta de ervas medicinais, fibras e frutos silvestres; o aumento da devastação de florestas e o uso generalizado e indiscriminado de agrotóxicos. Esses, em função do que causam na fauna, flora e lenções freáticos, representam um eficaz agente (silencioso) de expropriação nas comunidades cercadas por grandes produtores do agronegócio.
Na fase neoliberal as (re)configurações do uso e controle da terra nestes locais impactados pelo avanço das monoculturas se mostram insustentáveis, excluem mais do que incluem, e agravam ainda mais as desigualdades. O atual modelo de desenvolvimento rural gera riqueza (para quem?) mas quase não gera emprego formal no local .A “riqueza criada” à custa de um pesado passivo social e ambiental, não se internaliza, não gera links (na economia local) com outras atividades que favoreçam o desenvolvimento local e regional, de forma que o gigantesco excedente produzido no local é transferido para outros regiões, inclusive fora do país.
A narrativa dominante deste reduzido número de grandes corporações de que promovem “desenvolvimento e progresso” nos locais onde se estabelecem e, portanto, deve (continuar) a receber regalias pelo processo civilizatório que faz no local não se sustenta. Nesse rumo, concordamos, por exemplo, que:
[...] a expansão da soja no Matopiba revela como ela falha não só em trazer desenvolvimento sustentável, mas em se configurar como desenvolvimento de modo geral. [...]. Enquanto alguns podem se beneficiar, a maioria dos moradores rurais do Matopiba fica privada de acesso a recursos vitais como água e alimentos. Eles ainda têm seus direitos e meios de vida dificultados e são excluídos de instâncias de tomada de decisão, como os fóruns de governança da paisagem. Argumentamos que tais processos podem ser caracterizados como mau desenvolvimento porque, [...] em vez de resultar em melhoria das condições de vida para a maioria das pessoas, eles levam à concentração de renda, de terra e de outros recursos naturais nas mãos de poucos (RUSSO LOPES; BASTOS LIMA; REIS, 2020, p.14).
Ao mesmo tempo, apesar das evidentes consequências dos grandes projetos, por diversas razões os grandes grupos econômicos colocam como elemento central de suas narrativas a associação entre modernização agrícola e boas práticas ambientais. Esse aspecto é analisado no tópico seguinte.
Conforme Foster (2005), podem ser distinguidos três grandes momentos na evolução da agricultura contemporânea: o do início do capitalismo, o de consolidação do capitalismo industrial e o período iniciado com a consolidação do capital monopolista. O segundo momento, aproximadamente da década de 1830 até a década de 1880, marca de maneira mais evidente o início da agricultura capitalista, entendida assim por ser subordinada à dinâmica da indústria e voltar-se prioritariamente para atender demandas de mercados em todas as escalas geográficas. Ou seja, paralelamente à revolução industrial, praticamente teve início uma revolução também na agricultura, com notável aumento do capital constante em seus processos produtivos. Como grandes expressões desse fato, podem-se citar o salto na mecanização (beneficiada pela segunda fase da revolução industrial) e a progressiva incorporação de fertilizantes na produção agrícola (HOBSBAWM, 2000).
Evidentemente, o aumento da produtividade agrícola cada vez mais passou a ser de interesse da burguesia industrial. Por um lado, por representar uma alternativa para baratear matérias-primas de interesse da indústria e alimentos que eram consumidos pela classe trabalhadora, e, nesse último caso, reduzir custos com o pagamento de salários. Por outro lado, a mecanização no campo estava ligada a novos grupos de capitalistas industriais, que precisavam vender suas máquinas, insumos e alimentos e matérias-primas processados. Quanto a esse ponto, Silva (1978) destaca que:
[...] o produtor vai sendo colocado cada vez mais sob a dependência do mercado, e, mesmo que ainda detenha a posse parcial e precária dos meios de produção, esta é mediatizada pela mercadoria e pelo capital, que assim se imiscui, indiretamente, na própria produção. Esse processo é bastante claro sob o capitalismo monopolista, onde tanto as indústrias fornecedoras de meios de produção para a agricultura, como as que transformam os produtos agrícolas, são dominadas por oligopólios que se apropriam de parcela cada vez maior do valor gerado na agricultura.
Após a Segunda Guerra Mundial algumas tendências da agricultura que já se manifestavam desde o final do século XIX foram aceleradas, sobretudo com a chamada “revolução verde”, expressão que de fato é inadequada para captar o mais importante, ou seja, o papel desempenhado pela indústria química e os processos que levaram a aumentos temporários de produtividade agrícola às custas de profundos prejuízos a diversos ecossistemas. Conforme Albergoni e Pelaez (2007, p. 34), a tal revolução foi impulsionada “fundamentalmente pela combinação de insumos químicos (fertilizantes, agrotóxicos), mecânicos (tratores e implementos) e biológicos (sementes geneticamente melhoradas) ”. A partir da década de 1990, no contexto da chamada globalização e da predominância de políticas neoliberais, “a agricultura passou a se estruturar sobre uma tríade: a produção de commodities, as bolsas de mercadorias e de futuro e a formação das empresas monopolistas mundiais” (OLIVEIRA, 2016, p.240).
Para determinação dos preços das commodities as bolsas de mercadorias e futuros (sic!) passaram a ser decisivas e funcionam como campos para os jogos do capital parasitário. Como principais bolsas com essas funções destacam-se a Chicago Mercantile Exchange, a New York Mercantile Exchange (NYMEX), Chicago Board of Trade (CBOT), a Commodities Exchange (COMEX) e a Bolsa de Londres. Com menos volumes de transações, mas também importante, principalmente para o Brasil, temos ainda BM & FBovespa.
Quanto à presença de empresas monopolistas na agricultura, é importante destacar que isso ocorre por meio de vários mecanismos. Além do envolvimento direto na produção em grande escala, há interesses de grandes grupos em processamento de alimentos e matérias-primas, compra e venda de terras, produção de fertilizantes e defensivos agrícolas, produção de máquinas e desenvolvimentos tecnológicos relacionados à chamada agricultura de precisão. Por outro lado, todas essas produções estão associadas a controles exercidos por grupos transnacionais. De acordo com Howard (2016), no caso das sementes de soja há indícios de acordos entre os maiores grupos mundiais, ou seja, Basf, Bayer, Dow, DuPont, Syngenta, ChemChina e Monsanto, com centralidade da última. No mesmo rumo, o Atlas do Agronegócio no Brasil identificou que acordos entre esses maiores grupos resultaram em três grandes conglomerados, e “eles administrarão a produção e a comercialização de quase todas as plantas geneticamente modificadas neste mercado e deterão a maioria dos pedidos de patentes e direitos de propriedade intelectual” (SANTOS; GLASS, 2018, p.20).
Assim como no mercado de sementes, também há evidências de oligopolização na indústria de agrotóxicos e na indústria de processamento de bens agrícolas. No primeiro caso, o controle é exercido principalmente pelos grupos Basf, Bayer, Corteva, FMC e Syngenta. No segundo, pelas empresas ADM, Bunge, Cargill e (Louis) Dreyfus. Evidentemente, alguns dos grupos atuam ao mesmo tempo na produção agrícola e nas principais indústrias relacionadas. Além disso, estão presentes na maior parte dos países, inclusive por meio de parcerias com empresas locais.
No Brasil, nos anos 1990 começa a se verificar um crescimento exponencial na produção agrícola voltada para exportações, sendo esse acompanhado pela consolidação de grandes empresas, mudanças qualitativas no processo produtivo, maior grau de incorporação de novas tecnologias da informação, sofisticação das máquinas usadas nas plantações e nas colheitas e associações de empresas agrícolas com grupos industriais e do setor financeiro. Ao mesmo tempo, buscando sintonia com discursos e pressões de grandes grupos econômicos e políticos mundiais, diversas empresas brasileiras também passaram a se apresentar como socialmente e ambientalmente adequadas.
Na verdade, em nível mundial cada vez mais, grandes empresas do chamado agronegócio têm buscado aparecer como “politicamente corretas” e anunciam ter políticas que favorecem a preservação do ambiente e respeitam direitos dos seus empregados, para os quais usam o eufemismo de “colaboradores”. Entretanto, apesar de praticamente todas associarem suas marcas ao termo sustentabilidade, colecionarem certificações e terem departamentos voltados para a questão ambiental, não conseguem superar contradições relacionadas à dinâmica de produção e comercialização em grande escala de suas mercadorias. Avalia-se que essa é uma questão importante para analisar na medida em que as autodeclarações de empresas se constituem justificativas para apoio estatal às mesmas e para definição de compras por diversas categorias de consumidores, que podem ser convencidos a prestigiarem empresas que supostamente valorizam mais o meio ambiente. Como exemplo de grupos que podem ser associados à modernização agrícola e que dizem ter boas práticas ambientais, examinamos os casos da SLC Agrícola, da Amaggi e do grupo Bom Futuro.
A SLC Agrícola tem matriz em Porto Alegre (RS) e é uma das maiores do ramo no Brasil. De acordo com a revista Forbes (2021), em 2020 apresentou um faturamento acima de R$ 3 bilhões e de 2019 para 2020 seu lucro líquido cresceu 62%. Em 2021 era possuidora de dezesseis unidades produtivas, sendo nove delas na região de Matopiba. Na safra 2019/2020 produziu em 448.568 hectares, distribuídos da seguinte forma: algodão, 125.462 hectares; soja, 235.444 hectares; milho, 82.392 hectares; outras culturas, 5.270 hectares. Por outro lado, embora o principal negócio da empresa seja a produção agrícola em grande escala, ela também obtém lucros comprando, revendendo e arrendando terras para outros grupos e negociando títulos no mercado financeiro. Apesar do tamanho da SLC e dos seus diversos negócios, em 2020 tinha apenas 2.723 trabalhadores fixos e pouco mais de 1.000 temporários (safristas).
Uma das razões para a baixa absorção de mão de obra pela SLC é o seu padrão produtivo industrial e diversas estratégias para reduzir custos e minimizar riscos. Entre outras medidas nesse rumo podemos identificar as dinâmicas de compras e vendas em grandes lotes, aproveitamento das atuais vantagens econômicas e políticas de produzir na região do Matopiba, rotação de culturas para aproveitamento quase ininterrupto da terra, nível de mecanização para plantio e colheita, uso de sementes geneticamente modificadas para obtenção de maior produtividade e uso da chamada agricultura de precisão. Quanto a esse ponto, segundo a empresa:
Todas as lavouras cultivadas pela SLC Agrícola possuem um banco de dados com todos os manejos realizados ao longo dos anos. Utilizando imagens de satélite e mapas de produtividade de diferentes safras é possível identificar lavouras que possuem variabilidade. São realizadas amostragens para caracterização química, física e biológica do solo, em conjunto com inspeções técnicas de campo. São realizadas recomendações para as aplicações em taxa variável de insumos visando corrigir ou amenizar problemas (SLC, 2021b. p. 1)
As ações da SLC estão majoritariamente nas mãos de brasileiros, mas a empresa também tem parcerias com grupos de outros países em praticamente todos os seus negócios. Destacam-se o grupo japonês Mitsui&Co, o grupo inglês Valiance Asset Management, os bancos Credit Suisse . Deutsche Bank e as produtoras de semente Syngenta (Suíça) . Nidera (Holanda). Além disso, devido às características da produção em grande escala, a empresa adquire grandes volumes de herbicidas, fungicidas, inseticidas e fertilizantes diretamente dos maiores produtores mundiais.
A SLZ informa em seus documentos que “utiliza-se de todos os recursos necessários para que suas atividades sejam sustentáveis e responsáveis, usando as melhores práticas mundiais de forma a impactar positivamente as questões ambientais e sociais onde atua” (SLZ, 2021a, p.8). Diz ainda possuir políticas assistenciais para seus empregados e dependentes, manter boas relações com comunidades ao redor de suas propriedades, preocupar-se em preservar áreas nativas e fazer boa gestão de todos os recursos que utiliza. Além disso, mantém departamentos voltados para essa narrativa e um contundente marketing em torno desses processos. Como resultado, apresenta certificações tais como a RTRS (RoundTable on Responsible Soy), 3S (Soluções para Suprimentos Sustentáveis), os padrões ABR (Algodão Brasileiro Responsável) e BCI (Better Cotton Initiative) para a cultura do algodão.
A segunda empresa analisada, a Amaggi Agro, tem sede em Cuiabá (MT) e ancora-se em quatro grandes setores: produção agrícola de precisão e em grande escala de soja, milho e algodão (37,4%), indústrias relacionadas à produção agrícola (39,6%), transporte e logística (19,5%) e energia (3,5%). Juntamente com empresas associadas possui 371.113 hectares de terras no Brasil, e também está presente na Argentina, Paraguai, Holanda, China, Suíça e Noruega (AMAGGI, 2021). Por outro lado, de forma direta emprega pouco mais de 5 mil pessoas.
Além da diversificação de negócios, embora em geral relacionados à agricultura, a Amaggi, possui forte articulação com o setor financeiro e transaciona com aproximadamente 40 instituições do Brasil e de outros países. No caso das estrangeiras, destacam-se o Deutsche Bank (Alemanha), o Mizuho (Japão), o J.P. Morgan (E.U.A.), o Bank of Communications (China), o Crédit Agricole (França), a Deere & Company (E.U.A.), o BNP Paribas (França), o Citibank (E.U.A.) e o Bank of China (AMAGGI, 2021). Como a SLC, a Amaggi arvora-se de ter um setor exclusivo voltado para a “sustentabilidade ambiental”, possuir diversas certificações que supostamente comprovam tal fato e participar de diversos pactos nesse rumo, inclusive no sentido de minimizar o desmatamento na Amazônia.
Também com sede em Cuiabá (MT) e posse de 583 mil hectares de terras no estado do Mato Grosso, o grupo Bom Futuro atua nos ramos de agricultura em grande escala (soja, milho e algodão), pecuária, sementes, psicultura, energia, aeroportuário e imobiliário. Declara empregar de forma direta aproximadamente 7 mil pessoas. Como as outras duas empresas analisadas, apresenta-se como altamente comprometida com o “desenvolvimento sustentável” e parceira de entidades da sociedade civil e de comunidades rurais que ficam nos entornos de suas propriedades.
Os três grupos analisados, evidentemente, possuem vários pontos em comum: todos possuem grandes latifúndios, priorizam produções de commodities, com destaque para soja, algodão e milho, atuam em setores complementares à produção agrícola em grande escala, investem na agricultura de precisão, atuam em mercados especulativos, inclusive com títulos relacionados às supostas boas práticas, e possuem profundas relações com grandes grupos transnacionais. Sobre a posse de terras, é interessante ressaltar que os três grupos analisados possuem juntos um total de aproximadamente 1,402 milhões de hectares de terras, o que equivale, por exemplo, a mais da metade da área do estado de Alagoas ou quase um terço da área do estado do Rio de Janeiro.
Por outro lado, fazendo o exercício de verificar quantas pessoas são empregadas pelos três grupos analisados, chega-se a um total de menos de 15 mil pessoas. Esse quadro vai ao encontro dos resultados do último censo agropecuário (IBGE, 2020), segundo o qual as propriedades com até 50 hectares empregam 71,7% de assalariados no meio rural, enquanto as propriedades com mais de 2.500 hectares, apenas 4,4%. E também se configura como um dos resultados da chamada agricultura de precisão, que na prática representa a mesma dinâmica do setor industrial, com cada vez menos capital variável e cada vez mais capital constante.
Outro ponto importante a destacar é o grau de articulação empresarial entre o setor agrícola e outros setores. Como vimos, ainda que a produção de commodities agrícolas se constitua elemento fundamental para os lucros dos grupos, esses também obtêm significativos ganhos atuando em áreas de apoio à agricultura em grande escala e comercializando terras e diversos tipos de títulos. A propósito, cabe destacar as vantajosas possibilidades de lucrar em função de certificações e transações com títulos relacionados às supostas boas práticas. De acordo com a Forbes (2021), por exemplo, em 2020 a SLC Agrícola emitiu ditos “títulos verdes” e captou R$ 480 milhões em Certificados de Recebíveis do Agronegócio e R$ 100 milhões em empréstimos vinculado à sustentabilidade (SustainabilityLinked Loan).
Além da importância dos lucros diretamente relacionados às “boas práticas”, para as empresas do ramo da produção agrícola em grande escala há outros motivos para manter departamentos voltados para cuidar desse assunto de forma sistemática e evidenciada. Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, que as mesmas são historicamente associadas a grilagens de terras e desmatamentos e o fato de que todos os produtos da indústria química usados na agricultura têm impacto sobre o ambiente.
Evidentemente, essa situação passou a ter um grau de importância bem maior do que em outros momentos em função do avanço das redes sociais, que podem servir como meio para desvalorizações de marcas, com consequentes prejuízos financeiros para as empresas. Essas, portanto, precisam estar sempre vigilantes e aparecerem o máximo possível como ambientalmente adequadas. Uma questão que se coloca, todavia, é a seguinte: até que ponto os grupos que atuam na produção agrícola em grande escala conseguem realmente atingir os objetivos que dizem se colocar como desafio?
Analisando alguns movimentos da modernização na agricultura ainda no século XIX, Marx observou que:
[...] todo o progresso da agricultura capitalista é um progresso na arte de saquear não só o trabalhador, mas também o solo, pois cada progresso alcançado no aumento da fertilidade do solo por certo período é ao mesmo tempo um processo de esgotamento das fontes duradouras de fertilidade. Quanto mais um país tem na indústria o ponto de partida de seu desenvolvimento, tanto mais rápido se mostra esse processo de destruição. Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social na medida em que solapa os mananciais de toda a riqueza: a terra e o trabalhador (MARX, 2017 p.573-574, Livro I).
Dessa forma, conforme Marx (apud FOSTER, 2005, p.232): “[...] uma agricultura racional é incompatível com o sistema capitalista (mesmo que este último promova o desenvolvimento técnico da agricultura) e precisa ou de pequenos agricultores trabalhando por conta própria ou do controle dos produtores associados”.
Marx fez suas observações em um momento no qual o capital monopolista ainda estava começando a se consolidar, mas a força de sua teoria foi ratificada com os acontecimentos a partir do final do século XIX, por todo o século XX e nas primeiras décadas do século XXI. De fato, a concentração e a centralização do capital, bem como o aprofundamento da sua dimensão parasitária, foram fatores decisivos para saltos na devastação e empestamento, expropriações de trabalhadores do meio rural e inviabilização de sobrevivência de milhares de espécies vegetais e animais. Dessa forma, avaliamos ser pertinente a noção de expropriação ecológica, mas, ao mesmo tempo, que devem ser buscadas saídas em contraposição à logica do capital, e que o campo da Ecologia Política apresenta potencial nesse rumo. No próximo tópico ressaltamos esses aspectos.
A tendência de degradação ambiental cada vez mais tem sido objeto de reflexão no campo marxista. Chesnais e Serfati (2003), por exemplo, destacam o seguinte: a crise ecológica é um dos resultados do desenvolvimento capitalista, não permite solução paliativa e só pode ser solucionada a partir de um enfrentamento ao capital e seus agentes; a crise atinge países e classes sociais de forma diferenciada, e representa um grande mal para a humanidade, mas não significa necessariamente uma crise para o capital. Na verdade este pode até tirar proveito da mesma para valorizar-se ainda mais. De fato, como destacamos no tópico anterior, as certificações e algumas práticas empresariais se constituem em um elemento adicional para obtenção de ganhos financeiros.
Tratando especificamente da relação entre o desenvolvimento tecnológico e a questão ambiental, Andrioli (2008) ressalta que para Marx a lógica do capitalismo implica uma tendência de aumento contínuo de produtividade na indústria e na agricultura, e isso tende a se chocar com o desenvolvimento do ser humano e com a preservação da natureza, pois ambos ficam subordinados à lógica de produção de mercadorias.
Ao mesmo tempo, devido ao seu caráter camaleônico, o capital cria termos como “Economia Verde”, “Capitalismo Consciente”, entre outros, fazendo com que o sistema capitalista, politicamente, perante a sociedade, não se posicione como o vilão da questão ambiental, mas como o seu herói; não como o culpado pela degradação ambiental, mas como a solução para este problema. Tais colocações minimizam a relação de exploração que o modo de produção vigente possui com o ambiente. Ocorre que a transformação da natureza em propriedade privada permite que o proprietário possa fazer o que bem entender dentro dos limites de sua cerca; desde arrancar a vegetação natural até promover a exclusão social, impedindo que as pessoas que vivem da floresta acessem os recursos necessários para reproduzirem a sua existência. Essa situação, por sua vez, nos remete para análises de Marx que resultaram na noção de expropriação ecológica.
Na antiga Prússia, atual Alemanha, no século XIX, Marx percebeu que a maioria da população era composta por camponeses que iam às florestas para recolher madeira morta para cozinharem e amenizar o frio. Nessa busca pela madeira, adentravam nas propriedades privadas, o que pela lei local era uma invasão. Os camponeses passaram a ser criminalizados e tachados de bandidos, ladrões de madeira, por fazerem o que sempre fizeram por gerações. Nesse cenário, Marx observou o rompimento de um costume necessário para a existência dos campesinos e que os debates legais não estavam concentrados em minimizar o confronto, permitindo de uma certa forma que as instituições socioculturais fossem mantidas, mas sim em fazer valer o direito de propriedade. Como desdobramento Marx (2017a) escreveu em 1842 o livro Os Despossuídos, denunciando tal forma de dominação.
Esse ensaio de Marx é reconhecido atualmente por ser um trabalho que trata da expropriação ecológica, embora tal conceito só tenha sido estabelecido no final do século XIX e início do século XX. Tangenciando a expropriação da terra, em 1844 Marx escreve também os Manuscritos Econômico-Filosóficos, no qual destaca o conceito de acumulação primitiva e o rompimento do metabolismo sociedade-natureza que permite a exploração do humano por outro humano. Por um lado, os camponeses tornam-se despossuídos por terem somente a força de trabalho para vender. Por outro lado, fazer com que a terra fosse transformada em uma mercadoria foi condicional para o desenvolvimento do sistema capitalista. Ou seja, “o Capitalismo inicia-se como um sistema de usurpação da natureza” (FOSTER, 2014, p. 88).
Atualmente, com base no discurso de que a propriedade privada tem uma função social o capital segue cometendo atrocidades. Para manter os lucros altos dos produtores de commodities e inibirem a estrutural taxa de lucro decrescente dentro do capitalismo, por exemplo, o Estado implementa práticas como a renúncia fiscal na compra de fertilizantes e herbicidas e em exportações de grãos, e dessa forma os grandes grupos econômicos proprietários de terra têm impostos reduzidos. Percebe-se aqui que a propriedade nada tem de função social como afirma a Constituição brasileira, por exemplo. Tem apenas função privada, e serve somente aos donos dos meios de produção. Ratifica-se, portanto, que a produção capitalista “graças ao método da distribuição de seus produtos, lida com os meios materiais de modo esbanjador, perdendo para a sociedade, de um lado, aquilo que, de outro lado, ela ganha para o capitalista individual (MARX, 2017, p.114-115, Livro III).
Sob outro viés, a Ecologia Política aponta respostas ao colapso ambiental pelo qual passamos, considerando elementos marxistas e demonstrando o elo existente entre a evolução da degradação ambiental e o modo de produção capitalista. Quanto a esse último ponto, há instrumentos que fazem a sociedade adquirir mercadorias essencialmente em função de interesses capitalistas, a exemplo da obsolescência programada, que consiste em estabelecer no processo de fabricação um tempo de funcionamento do produto. Assim, o capital cria valor de uso em função do valor de troca (BAUMAN, 2008). Como consequência, verifica-se um aumento da velocidade de produção, com inevitáveis impactos ambientais.
A irracionalidade existente no modo de produção capitalista faz com que o desperdício institucionalizado seja pago pela sociedade em geral e não pelos donos dos meios de produção. As externalidades negativas geradas pelo capitalismo e seu desperdício fazem com que as grandes corporações dividam o custo da produção de mercadorias com a população em geral, enquanto que os lucros ficam apenas com os capitalistas. A poluição dos rios, do ar, das águas, da terra, da fauna e da flora, oriunda do “moinho de produção” acaba por adoecer muitas pessoas que nem consomem a mercadoria que originou o dejeto das quais são vítimas. Os custos não são internalizados pelas empresas poluidoras, e sim assumidos pelas sociedades que sofrem os danos (SCHNAIBERG, 2002).
A pressão ambiental reflete-se ainda na forma de conflitos socioambientais, como os inúmeros verificados na Amazônia brasileira, onde são comuns assassinatos, tortura, cárcere privado e trabalho escravo. De um lado o capital quer utilizar a natureza como um insumo para produzir a mercadoria em busca do valor de troca; já as populações tradicionais necessitam da floresta em pé para reproduzir sua existência, dando a essa relação um caráter de valor de uso.
Nesse cenário, como ressalta Schnaiberg (2002), a elaboração de políticas públicas voltadas ao controle demográfico, tecnologia ambiental, fiscalizações e compromisso ambientais voltados a mitigar as mudanças climáticas, em nada irá afetar o colapso ambiental por qual passamos, pois o Estado invariavelmente atua nas consequências, não se comprometendo a atuar na causa. Por esse motivo “é necessário intervir para desacelerar, parar, reverter e eventualmente desmantelar o “moinho de produção”, que está particularmente, no centro do sistema (FOSTER, 2014, p. 99).
Como procuramos demonstrar neste texto, nos últimos 30 anos, de forma articulada à globalização, houve uma significativa centralização de capital no setor agrícola. Esse fato, todavia, provocou efeitos contraditórios. Por um lado, para algumas regiões e empresas representou oportunidade de crescimento econômico e aumento de taxas de lucro. Por outro lado, também contribuiu para degradação ambiental, desterritorializações de várias comunidades tradicionais e povos originários e desarticulação de vários sistemas produtivos de alimentos de interesse da maioria da população.
O crescimento econômico decorrente do boom das commodities não se materializou em desenvolvimento inclusivo, gerador de melhorias econômicas, sociais, ambientais, culturais ou que abarcassem a maioria historicamente excluída. Ao contrário, as assimetrias se acentuaram por conta das dinâmicas econômicas diferenciadas que acompanharam esses processos, entre o núcleo capitalista privilegiado (controlado por grandes corporações) e aquele segmento tradicional (camponeses, indígenas, quilombolas, sem terras etc.) voltado ao mercado local/regional (interno).
As perdas dos grupos sociais marginalizados na periferia capitalista, principalmente no meio rural, não se restringem mais ao precário acesso à terra, embora essa questão permaneça na raiz dos maiores problemas. No caso do Brasil, é evidente também a queda drástica na produção de alimentos básicos, o aumento da especialização em soja e matérias-primas industriais, a redução do número de não-proprietários, a substituição da lavoura tradicional pelo agronegócio e a devastação de recursos naturais, por exemplo.
Quanto à possibilidade de compatibilizar a agricultura capitalista em grande escala com “boas práticas ambientais e sociais”, poderia se admitir, apenas por hipótese, que as maiores empresas reconhecem “seus erros do passado” e estão comprometidas com o fim dos desmatamentos de florestas primárias e de outros danos ambientais, e que a “agricultura de precisão” tem contribuído nessa perspectiva. Ocorre, entretanto, que os maiores grupos continuam envolvidos em diversos processos nos quais são apontados como poluidores, com grilagens de terras e com o avanço de plantações em áreas de preservação e terras indígenas. No Brasil, claro, essas situações são muito mais evidentes. Mas o problema é maior.
Na verdade, os problemas que continuam aparecendo na ponta do sistema não podem ser atribuídos apenas ao que de fato fazem empresas nas escalas locais e a conivência dos agentes públicos com as mesmas, principalmente dos países periféricos. Embora, obviamente, tenham suas responsabilidades pelo quadro que continua gravíssimo, a questão essencial é que a produção agrícola em grande escala sempre permanecerá atada pela lógica da acumulação capitalista.
Ainda que afirmem que se arrependeram do que fizeram nos verões passados, que deem apoios pontuais a grupos comunitários em torno de suas propriedades, que façam pactos, que exibam mil certificações e atestados de boa conduta, as grandes empresas do setor agrícola sempre terão o lucro como principal farol. E como destacamos, esse lucro permanece vinculado a produções em estruturas latifundiárias, com baixíssimo nível de empregabilidade, alto volume de uso de produtos químicos, com inevitável impacto ambiental, altíssimo consumo de água e energia e avanço em fronteiras agrícolas que se chocam com interesses coletivos.
Conforme indicado por autores do campo da Economia Política Crítica, com desenvolvimento recente na Ecologia Política, no capitalismo se consolidou o rompimento do metabolismo sociedade-natureza e, cada vez mais ocorre um processo de expropriação ecológica. Portanto, não vislumbramos saídas para as crises ambientais e relacionadas à produção agrícola nos marcos do capitalismo. Em vez disso, sem prejuízo de enfrentar os problemas imediatos, nos lugares concretos, defendemos uma perspectiva mais estrutural. Que se corte o mal pela raiz.